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Em recente viagem a Nova Delhi, ao terminar um compromisso de trabalho no domingo, vi que teria ainda cerca de duas horas de luz antes do anoitecer. Era início de outubro, a tarde estava quente e límpida. Sem hesitar, sem parar – apesar do calor – para tirar o terno e a gravata, decidi visitar a casa onde Gandhi passou seus últimos meses de vida e onde foi assassinado.

Esse era um velho sonho, de muitos anos. Fui plenamente recompensado.

Em setembro de 1947, Mohandas Gandhi, o Mahatma – ou “Grande Alma” – chegou a Delhi, vindo de Calcutá, onde passara quatro semanas. A capital, como Calcutá, enfrentava distúrbios entre hindus e muçulmanos. A independência, consagrada um mês antes, levara à partição do território até então sob domínio britânico, criando dois países, o Paquistão, constituído por territórios povoados majoritariamente por muçulmanos, e a Índia, onde a população era majoritariamente hindu.

Gandhi sofrera com a ideia da Partição mas decidiu aceitá-la. Tornou-se uma voz em favor da conciliação entre os dois países e os dois grupos religiosos. As tensões, a violência e as mortes eram elevadas, assim como o número de refugiados de parte a parte. Gandhi propugnava a tolerância mútua, decepcionando hindus mais radicais.

Naquela que seria sua última estada em Delhi, o Mahatma – praticante do ascetismo – hospedou-se na casa de um dos membros da milionária família Birla, da qual ele era amigo há muitos anos:

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A escolha surpreendeu alguns de seus admiradores, mas não fora feita por ele. Embora Gandhi já tivesse antes frequentado a casa dos Birla, nos últimos tempos vinha se hospedando, na capital, em um bairro mais humilde, que estava, em setembro de 1947, recebendo numerosos refugiados hindus oriundos do Paquistão, e onde o Governo considerou que sua segurança não poderia ser garantida. Birla House era também facilmente acessível para membros do Governo que visitavam Gandhi.

Quatro meses depois, em janeiro de 1948, as tensões e os distúrbios continuavam. Em meados daquele mês, Gandhi iniciou um jejum, o que era para ele uma prática recorrente há décadas, por razões filosóficas e espirituais, mas que servia também, ocasionalmente, propósitos políticos. Tinha 78 anos. Como recusar-lhe algo, correndo o risco de vê-lo morrer de fome? Em poucos dias, o Governo prometeu que a segurança dos muçulmanos seria garantida e que o Paquistão receberia indenização que lhe era devida.

Jawaharlal Nehru, Primeiro-Ministro da Índia, vinte anos mais jovem do que Gandhi e a ele ligado por laços antigos e profundos, mais próximo do Mahatma talvez do que os próprios filhos deste, ao visitá-lo em Birla House viu refugiados hindus gritando na rua: “Que morra Gandhi!”. Poucas horas após a morte de seu pai espiritual, Nehru faria no rádio um notável – e hoje célebre – discurso, para comunicar à Nação o assassinato, iniciando-o com a frase: “The light has gone out of our lives”.

Gandhi ocupava um quarto mobiliado com grande simplicidade, no térreo da casa:

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Dormia em uma varanda ligada ao quarto, fechada por portas-janelas, ainda mais despojada e que é, hoje, a entrada principal para a visitação à casa:

Sua vida em Birla House era pública. Durante o jejum, as pessoas passavam, no jardim, em frente a essa varanda e viam Gandhi deitado, como mostra esta foto de Henri Cartier-Bresson:

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A legenda está errada: o jejum de cinco dias terminou não na véspera de sua morte, mas doze dias antes.

Fora o período de jejum, Gandhi conduzia orações diárias no imenso jardim posterior da casa, presenciadas por centenas de pessoas. Em 20 de janeiro, uma bomba explodiu no jardim durante a oração. Ninguém ficou ferido.  A morte de Gandhi se daria no dia 30, tão movimentado quanto aparentemente costumavam ser todos os dias em Birla House. Seu secretário, V. Kalyanam, deixou um registro das atividades do Mahatma nesse último dia de vida, mas a informação no texto não é exaustiva,  pois entre os visitantes que não cita está Cartier-Bresson.

Talvez o senso de oportunidade seja fundamental para um artista. Cartier-Bresson viajava pela Índia em janeiro de 1948, e ia frequentemente a Birla House ver ou fotografar Gandhi e com ele conversar, inclusive no dia de sua morte. As fotos que tirou nos últimos dias do Mahatma e logo depois, inclusive da cremação, são hoje icônicas.

A página eletrônica da agência Magnum, de que Cartier-Bresson foi co-fundador, expõe algumas de suas fotos desse período, como esta, tirada no dia anterior ao assassinato, na qual vemos Gandhi tomando sol em Birla House: 

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Outros visitantes não citados por V. Kalyanam são a filha de Nehru, Indira Gandhi, e seu filho de três anos e meio, Rajiv – ambos futuros Primeiros-Ministros e que seriam também assassinados. As fontes porém divergem sobre se visitaram Gandhi no dia 30 ou na véspera. Em seu livro sobre a independência da Índia e a Partição, Indian Summer – comprado em Islamabad, em março, como narrei em  Alexandre, o Grande e os pássaros de Rawalpindi – Alex von Tunzelmann conta que Rajiv pegou umas violetas e brincou de colocá-las em volta dos pés de Gandhi, que o interrompeu, dizendo: “One only puts flowers around dead people´s feet”. A cena, além de premonitória, cria uma imagem de grande espontaneidade.

Às 17:12 do dia 30, o Mahatma saiu de seu quarto e dirigiu-se ao jardim, para as orações. Estava atrasado; quinhentas pessoas já esperavam por ele, indianos e estrangeiros. Hoje, o museu em sua homenagem em que Birla House se transformou coloca marcas de passos, da porta-janela do quarto até o local do assassinato, para que possamos visualizar o trajeto:

A pérgola é uma construção posterior ao assassinato, para encobrir a “Coluna do Mártir”, que marca o local exato onde os três tiros foram dados, no meio da multidão, por um hindu, Nathuram Godse:

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A inscrição dá a data e as últimas palavras de Gandhi: “Oh, Deus”. Em seu julgamento, Godse declarou ter cometido o crime porque Gandhi “favorecia os muçulmanos”, porque “seu último jejum fora pro-muçulmano” e porque sua atuação pacifista favorecia o Paquistão. Godse foi julgado, condenado e enforcado. O pronunciamento que fez durante o julgamento trai igualmente sua admiração e seu rancor por Gandhi, sobre quem faz a seguinte análise: “Essas insanidades e obstinações infantis, junto com uma forma extremamente austera de vida, um labor incessante e um caráter superior tornavam Gandhi gigantesco e invencível”.

Mesmo hoje, na Índia, Gandhi não é uma figura consensual, como informa Sunil Khilnani em seu livro publicado em 2016, Incarnations, a History of India in 50 Lives, onde consegue, em apenas onze páginas, nos dar uma excelente biografia do Mahatma:

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Khilnani relata que, há poucos anos, assistiu no Estado natal de Gandhi, Gujarat, na capital que carrega seu nome, Gandhinagar, um filme sobre o assassinato do Pai da Nação, e que, na hora dos tiros, “the audience erupted into wild applause and cheers”.

O filme dirigido por Richard Attenborough sobre a vida de Gandhi, de 1982, onde Ben Kingsley o encarna de forma impressionante, começa com a cena do assassinato, filmada em Birla House.

Birla House, aliás, já não se chama assim. Seu nome hoje é Gandhi Smriti, ou, em inglês Gandhi Remembrance. No térreo, além do quarto ocupado pelo Mahatma vemos painéis explicando sua vida e, no quarto, emoldurados, alguns objetos pessoais:

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Por alguma razão, fiquei fascinado com o relógio, parado na hora em que os tiros aconteceram:

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Ao voltar da Índia, li um texto em que o relógio de Gandhi faz uma aparição. O diplomata Natwar Singh, sobre quem já falei em Alexandre, o Grande e os pássaros de Rawalpindi, por causa de seu livro Walking with Lions, publicou em 2014 uma autobiografia, One Life is not Enough – quem discordaria? – em que relata a única vez em que viu Gandhi, em 1945, quando tinha 14 anos. Sabendo que um trem no qual viajava o Mahatma pararia em Bharatpur, Natwar Singh correu até a estação, conseguiu – apesar da multidão sequiosa por uma visão do ídolo –  grudar na janela do compartimento de terceira classe onde se sentava Gandhi e: “There he was, shaven-headed, watch nucked into the waistline of his loincloth”. Será o mesmo relógio que Gandhi usava. dois anos e meio depois, em Birla House e que hoje está exposto na vitrine? Faz sentido acreditar que sim.

Duas salas exibem caixas de madeira, com a frente de vidro, como se fossem casas de bonecas, mostrando cenas da vida de Gandhi que ajudaram a formar seu mito. Fotografei apenas uma das caixas, a da célebre entrevista que, em Londres –  vestido de forma simples, como sempre fazia, apesar do frio – ele manteve em Buckingham Palace com o Rei George V:

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No segundo andar de Gandhi Smriti está o Eternal Gandhi Multimedia Museum, onde aspectos da vida do Mahatma são recriados de forma moderna e tecnológica. Entramos em uma locomotiva, para sentir o que ele sentia viajando de trem; brincamos com um tabuleiro onde figurinhas representam contemporâneos seus, que nos repetem o que disseram como reação ao seu assassinato; em uma bacia, colhemos sal, como fez Gandhi em 1930, quando organizou a famosa Marcha do Sal até o Mar da Arábia, para protestar contra o imposto sobre o produto cobrado pelos ingleses; vemos um aro colocado contra a parede que, se aproximarmos a mão, emite o som de uma cítara:

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Há uma harpa representando, contra as cores da bandeira da Índia, a silhueta de Gandhi:

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O objeto menos tecnológico, porém, é o que mais chamou minha atenção:

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Essa escultura é uma recriação dos Três Macacos Sábios, que nos ensinam a não ver o mal, não falar mal e não ouvir o mal. Gandhi tinha frente a ele, no quarto em Birla House, apesar de seu despojamento, uma versão em madeira dos Três Macacos Sábios:

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Visitei Gandhi Smriti com dois colegas, que haviam participado comigo da reunião de trabalho naquele domingo. Ela, residente em Nova Delhi, e que já conhecia bem o museu, teve a paciência de me acompanhar, pois somos amigos há vinte anos. Ele, que estava em Delhi de passagem, é um ex-aluno e me explicou a importância filosófica dos Três Macacos Sábios para Gandhi, confirmando, como mencionei em Tagore, que aprendo sempre muito com meus alunos.

Ao sair, já quase de noite, reparei no portão:

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e na forma como o museu se apresenta ao visitante, na fachada para a rua: “O local do Martírio de Mahatma Gandhi”:

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O assassinato – o “martírio” – concluiu o processo de consolidação de Gandhi no imaginário coletivo.

Antes de partir, fiquei por vários minutos sozinho no jardim, vendo a imponente fachada traseira, ouvindo os pássaros, impressionado com a vastidão do terreno e a altura das árvores, imaginando aquele dia, 69 anos atrás, quando o gramado estava coberto de seres humanos, um deles, escondendo um revólver, já sabendo que aquele seria o último momento de vida do Pai da Nação, que vinha, frágil mas sereno, caminhando em sua direção:

 

Para Claudia Vieira Santos

 

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14 comentários sobre “Mahatma Gandhi em Birla House

  1. Vc escreve de forma tão limpa, clara e assim mesmo com tanto conteúdo que é sempre um prazer ler. É uma viagem guiada por onde vc está passando com suas fotos. Não deixe de escrever. Gde abço.

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  2. Ary, estou fascinada, morei 4 anos na India nos anos 72 até 75, tendo q partir porque o meu filhinho teve leucemia, e os hospitais não tinham as condições adequadas para tratá-lo, médicos sim! Não sabia desse seu conhecimento sobre a Índia, que não sai de mim, leio o que posso sobre a Índia , e estou vendo q você tem livros publicados? Quais ?

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  3. Ary, você está ficando um “expert” em Índia. O texto está brilhante e as fotos ótimas. Acho que Gandhi, de onde estiver, pediu aos deuses para limpar o céu para que você pudesse fotografar Birla House antes de encobrir Delhi com a névoa da poluição. Parabéns!

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