Em setembro, em Londres, almocei com um escritor cuja obra admiro, em sua casa em Chelsea. Enviei um e-mail avisando que eu passaria menos de três dias na cidade e perguntando se podíamos tomar um café. A resposta foi um convite para que almoçássemos em sua casa. Nós já tínhamos nos correspondido antes, e ele lera um ensaio elogioso que, no passado, eu havia escrito sobre sua obra.

O encontro poderia ter dado muito errado. Calculei mal o tempo, e cheguei atrasado. O livro que levei de presente, King of the World, uma nova biografia de Luís XIV lançada poucos dias antes pelo historiador Philip Mansel, revelou-se inútil para minimizar a falha do atraso. Meu anfitrião fora à noite de autógrafos e tinha já seu exemplar. Ofereceu-me de volta o meu presente, e não me fiz de rogado, porque não resisto a livros sobre Luís XIV.

Fui recebido primeiro na biblioteca. Olhei, fascinado, à minha volta. A aura era boêmia, e meu interlocutor informal, mas via-se em pequenos detalhes ser aquele um ambiente privilegiado, o que aliás o próprio endereço indicava. Enquanto tomávamos uma taça de champanhe, ele comentou que sua mulher estava almoçando com amigas, mas chegaria a tempo de me conhecer. Manifestou interesse pela minha vida, a profissional e a pessoal. Avesso a compromissos sociais, o que tornava o convite para almoçar ainda mais generoso, ele lamentou que minha dedicação ao trabalho e minha “evidente sociabilidade” limitassem o tempo disponível para eu escrever.

Da poltrona onde eu me sentara, notei na parede frente a mim um quadro pequeno. Coloquei o copo no chão. Levantei-me. Aproximei-me. Era um Delacroix, que sua mulher herdara dos pais. Representava duas figuras humanas perto de uma janela aberta. A personagem feminina, jovem, de perfil, olhava, de pé, para fora. Pelas roupas que ela e seu companheiro trajavam, a pintura retratava claramente uma cena medieval.

Delacroix caiu ligeiramente na minha apreciação depois que visitei, em 2018, no Louvre, uma grande mostra do artista, incensada pelos críticos, mas cuja curadoria julguei ser pouco criativa. Tudo pareceu-me repetitivo. Havia, além dos quadros históricos, magníficos, mas muitos dos quais eu já havia visto várias vezes no museu, numerosas pinturas religiosas e de flores, a meu ver desinteressantes. A bem da verdade, eu estava naquela época com uma tosse renitente, e no mesmo dia em que visitei a exposição eu começara a tomar um xarope sem ter lido a bula e não sabia, por isso, que ele provocava sonolência. Andei pelas salas do museu bocejando, olhando entediado para os quadros. Coloquei Delacroix, naquela tarde no Louvre, na categoria dos artistas que, ao serem vistos em excesso, perdem muito de sua mística.

Meu anfitrião e eu logo descemos para almoçar. À mesa, ele revelou forte erudição literária — de resto, já sugerida em sua obra — e descobrimos que um ponto em comum entre nós é o amor por Racine, de quem ficamos ambos recitando versos de memória. Referiu-se à decepção do narrador de Proust quando, pela primeira vez, na adolescência, vai ao teatro ver uma célebre atriz, a Berma, interpretar dois atos de Phèdre. Mais tarde, o narrador passa a admirar o talento da Berma, mas sente-se desiludido no primeiro contato – “Hélas! cette première matinée fut une grande déception”. A ida do narrador ao teatro para assistir a Phèdre é um dos trechos do livro em que Proust nos fornece reflexões sobre a arte. O que o narrador espera da matinê da Berma é a revelação de verdades mais reais do que as do seu mundo cotidiano. As artes visuais, a literatura, a música podem nos mostrar a vida com mais intensidade, dar a ela mais sentido. O narrador de Proust percebe que uma representação teatral pode equivaler aos “chefs-d’oeuvre de musée“. Se ele se decepciona com a Berma, é porque esta atua sem histrionismos, com uma dicção natural e não exagerada. Ele entende depois que uma obra-prima artística pode ser acompanhada de simplicidade, de um efeito natural.

Lembrou meu anfitrião a descrição, por Proust, do gesto feito no palco pela Berma, com o braço. Mencionou o quanto os movimentos dos atores podem determinar o impacto que a produção teatral causará junto à plateia. O narrador de À la recherche du temps perdu, de fato, nos diz que, durante a representação da Berma, “la salle éclata en applaudissements” quando a atriz ficou imóvel um instante, “le bras levé à la hauteur du visage“. Justamente, na véspera eu fora a Covent Garden assistir a Don Giovanni, e dois cantores — o baixo-barítono uruguaio Erwin Schrott no papel-título e a soprano sueca Malin Byström como Donna Anna — haviam dominado a representação por causa, além de seu talento lírico, de sua forte presença, suas expressões faciais, seus movimentos. Um gesto recorrente da soprano com o braço direito havia chamado minha atenção; ela ficava mais imponente a cada vez que o fazia. A própria efemeridade de representações teatrais dá-lhes a meu ver uma grandiosidade muito particular. Aquilo acontece apenas uma vez, durante duas, três horas, para os espectadores presentes e ninguém mais. A mesma representação, na noite seguinte, já não será exatamente igual.

Íamos começar a sobremesa quando sua mulher entrou. Isso trouxe novo ímpeto à conversa, pois ela possui um raro encanto. Tendo chegado atrasado, dei nova prova de má educação prolongando a minha estada. Declarei estar feliz ali, e disse que a opção teria sido revisitar a casa de Keats em Hampstead, aonde não vou há muitos anos. Ao ouvir sobre minha admiração por John Keats, ela mencionou ser descendente de Joseph Severn, o amigo que estava com ele em Roma, na hora em que o poeta morreu de tuberculose, aos 25 anos.

Pensei engasgar no tiramisù. A noção de que eu estava sentado a poucos centímetros de uma descendente de Severn, que amparava em seus braços o poeta romântico quando ele por último suspirou, grudou-me à cadeira. Nada mais me interessou. Isto é, até eu mencionar a ela a inutilidade do meu presente, a biografia de Luís XIV por Philip Mansel. Tendo eu lembrado a seguir o estudo de Nancy Mitford sobre o Rei-Sol, ficamos os três discutindo os livros da escritora, particularmente o melhor de seus romances, Love in a Cold Climate. Dissecamos as personalidades dos dois personagens mais marcantes, Cedric Hampton e Lady Montdore. Em um certo momento, a dona da casa mencionou, suavemente: “Você sabe, eu conheci a Nancy Mitford. Ela era madrinha da minha irmã. Fui com minha mãe algumas vezes visitá-la em sua casa em Versalhes, no final da vida dela”. Como o tiramisù tinha acabado há muito tempo, a possibilidade de eu engasgar não se colocou uma segunda vez.

Em março, no final do Carnaval, à beira da praia, como contei em O Mar por toda parte, retirei da biblioteca de meus sogros um volume de cartas do Padre Antonio Vieira. O que não mencionei ali é que peguei também a correspondência entre as famosas irmãs Mitford, editada pela neta de uma delas, Charlotte Mosley. A mais velha das aristocráticas irmãs, Nancy, nasceu em 1904 e morreu em 1973; a caçula, Deborah, nasceu em 1920 e morreu em 2014.

Temos de visualizar as seis filhas de Lord Redesdale, no começo do século XX, crescendo em uma casa de campo, rodeadas de cavalos e cachorros, escolarizadas pela mãe e por governantas. Havia apenas um irmão, Tom, de predileções nazistas, que morreu aos 36 anos. Ele não integra a lenda em torno ao nome da família. Suas irmãs, ao contrário, parecem fadadas a seguir sendo, para a eternidade, objeto de fascínio no Reno Unido. Criadas juntas, tiveram destinos desencontrados e demonstram a possibilidade aberta a cada ser humano de construir — ou destruir — sua própria biografia. Nancy, que passou boa parte da vida adulta na França, deixou-nos, além de alguns estudos históricos, romances cáusticos, inteligentes sobre a elite social inglesa de meados do século XX. Unity era nazista. Diana foi presa na Segunda Guerra Mundial por causa de suas atividades fascistas. Deborah, que ganharia fama como criadora de galinhas, casou-se com o 11º duque de Devonshire, herdeiro de uma casa de campo palaciana, Chatsworth, e contra-parente de John Kennedy; Pamela, a menos conhecida das seis irmãs, e também especialista em galinhas, levou uma vida discreta no campo. Jessica era socialista, considerou-se comunista por um tempo e, talvez de forma paradoxal, foi morar nos Estados Unidos. Entre outras obras de não-ficção, escreveu um livro de memórias em que narra sua infância e juventude ao lado das irmãs e do irmão, Hons and Rebels. A obra descreve de forma livre as excentricidades de sua família. Abro-o ao acaso e leio que a mãe, Lady Redesdale, odiava os bolcheviques porque estes, em 1918, haviam matado em Ecaterimburgo também os cachorros dos Romanov, além de seus donos. A sina da família imperial “didn’t seem quite so sad as that of the poor innocent dogs“.

A hora de partir já passara há muito tempo. Eu ia novamente à ópera, a uma récita de Agrippina, de Handel, que começava cedo. A interpretação de Joyce DiDonato, que cantava o papel-título, era considerada pela crítica a melhor atuação nos palcos londrinos naquele momento.

Notei que a biografia de Luís XIV ficara na biblioteca. Subimos para apanhá-la. Aproximei-me novamente da parede onde se destacavam a tela de Delacroix e, pendurado acima dela, um desenho de Gainsborough retratando o Príncipe Regente, futuro George IV, a cavalo. A proprietária das obras explicou-me ser o Delacroix a representação de uma cena de Ivanhoe, único romance de Walter Scott que jamais li. No começo da adolescência, em Montevidéu, devorei com intenso deleite esse livro onde os bons vencem, depois de muito sofrimento, e os maus são derrotados. A figura feminina na tela era Rebecca, a heroína. Suponho que a figura masculina fosse o próprio Ivanhoe, mas eu o ignorei. Interessou-me apenas Rebecca. Vê-la ali, em um quadro pendurado em Chelsea, reconciliou-me com Delacroix. Pensei na minha infância estudiosa; pensei no rio da Prata — que eu via da janela do meu quarto — enviando o vento rondar o nosso apartamento no décimo andar; pensei nos meus pais e nos meus irmãos.

Por alguns longos segundos, criou-se um silêncio ao meu redor na biblioteca da casa em Chelsea, enquanto eu examinava fixamente o Delacroix. Revivi aqueles dias — infinitamente distantes e, no entanto, tornados palpáveis graças à tela — da leitura de Ivanhoe em Montevidéu. Revi-me deitado, de noite, com o volume nas mãos, ouvindo o vento, preso às aventuras de Rebecca e por ela vagamente apaixonado.

Era preciso partir. Duas personalidades bem menos admiráveis do que Ivanhoe e Rebecca, Nero e Agripina, esperavam-me em Covent Garden. Rompi o silêncio. Despedi-me. No umbral da porta, avisei aos meus anfitriões que eu talvez viesse a escrever sobre aquele encontro.

Demorei a conseguir táxi. No trajeto, peguei o pior horário de trânsito. Sem dúvida, o atraso para Agrippina era inevitável. Havia aí uma ironia, pois a vontade de ouvir novamente Joyce DiDonato cantar era o que provocara minha ida a Londres. Quando o carro ia desembocar em Trafalgar Square, parou em um sinal vermelho. Enxerguei a coluna de onde Lord Nelson inspira, mesmo morto, os valores de coragem e estoicismo. Na esquina da rua onde o motorista e eu esperávamos o sinal abrir, reparei no prédio imediatamente à minha esquerda. Se eu abrisse o vidro, quase poderia tocá-lo. Era a representação diplomática da Malásia. Aquilo pareceu-me extraordinário; sabia que, a partir de janeiro, eu estaria morando e trabalhando em Kuala Lumpur. Assim, na mesma tarde, o convite para almoçar em Chelsea fizera-me viver, em poucas horas, o passado, o presente e o futuro.

Cheguei atrasado à Ópera. Comprei o programa. Deixaram-me entrar no auditório. Sentei-me. Encarei o palco. Mergulhei nas artimanhas de Agripina. Haviam já terminado a sinfonia de abertura, a primeira ária de Nero e alguns recitativos. A produção era estupenda, a música irresistível, as vozes e a orquestra excepcionais e Joyce DiDonato, como uma Berma moderna, efetivamente oferecia a melhor interpretação nos palcos de Londres naquela semana.

No entanto, em momento algum arrependi-me pelo atraso ou pensei ter perdido algo.

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(Este texto foi publicado primeiro, em 8 de janeiro, no jornal literário Rascunho)

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