Bênção apostólica

Bênção apostólica

Transcrevo minha coluna quinzenal no jornal “Estado de Minas“, publicada ontem, 26 de abril:

O desaparecimento do papa marca a imaginação coletiva. A constatação de que pode haver apenas um pontífice em exercício cria para o ocupante da cadeira de São Pedro uma posição única. Presidentes e primeiros–ministros detêm títulos raros, mas há uns duzentos deles no mundo. Mesmo os reis, escassos hoje, são ainda algumas dezenas. O papa é só um.

Tendo sido Francisco um homem humilde na maneira de ser, teremos neste sábado, paradoxalmente, o espetáculo grandioso do seu sepultamento. É um lugar comum a observação de que nenhum protocolo se assemelha ao do Vaticano ou ao da Corte inglesa. Por mais simples que seja um bispo de Roma, ele continua encarnando a figura papal até entrar no túmulo, e o público espera assistir a um belo ritual.

Ao mesmo tempo, por mais admirado e querido que seja o sucessor de São Pedro, iniciam-se imediatamente, quando ele falece, as especulações sobre seu substituto. Haverá sempre um papa, espera-se, até o fim da humanidade, variando apenas os indivíduos que exercem a função ao longo da História.

Quando Francisco partiu, pensei em um diplomata que conviveu com quatro pontífices. Carlos Magalhães de Azeredo chefiou, durante vinte anos, de 1914 a 1934, a representação do Brasil junto à Santa Sé, onde servira anteriormente como secretário. Aposentado, ficou vivendo em Roma, onde faleceu em 1963, aos 91 anos.

Poeta, contista, membro fundador da Academia Brasileira de Letras antes de completar 25 anos, ele hoje é lembrado como amigo de Machado de Assis, 33 anos mais velho. No terceiro volume da correspondência machadiana, publicado em 2011 pela Academia Brasileira de Letras, Sergio Paulo Rouanet comenta: “a partir de 1892, as cartas de e para Azeredo predominam de modo avassalador”. A correspondência entre os dois compõe um livro muito útil, de quase trezentas páginas, editado em 1969 por Carmelo Virgillo. Em O presidente Machado de Assis, Josué Montello já comentava, em 1961, ser essa “a mais importante correspondência epistolar da literatura brasileira”. 

É em uma obra de Afonso Arinos, Amor a Roma (1982), que primeiro li sobre Magalhães de Azeredo. O futuro senador, chanceler e acadêmico, passando semanas em Roma em 1925, aos 19 anos, conviveu com Azeredo — era 33 anos mais jovem do que o embaixador — e afeiçoou-se a ele. Em seu primeiro livro de memórias, A alma do tempo (1961), o político mineiro nos conta ter Azeredo escrito um depoimento, “colorido e curioso”, e nunca publicado, sobre “a atmosfera de inquietação e intriga que reinava nos corredores do Vaticano, nas horas que precederam à morte de Leão XIII”, em 1903. Em Amor a Roma, volta ao assunto. Foi no Janículo que Azeredo leu a ele essa “peça meio crítica, na qual o então secretário brasileiro anotava as intrigas dos vivos ao redor do grande papa moribundo”.

Para entender Azeredo, convém saber que era filho único e póstumo. Seu livro de memórias, organizado em 2003 pelo acadêmico Afonso Arinos, filho, que havia sido ele também embaixador no Vaticano, seria mais interessante se não se fizesse tão presente a veneração por figuras mais velhas ou ilustres, como Dom Pedro II, Leão XIII ou Joaquim Nabuco. Sobre Pedro Augusto de Saxe-Coburgo-Gotha, neto de Dom Pedro II e objeto de um livro de Mary Del Priore de 2007 cujos título e subtítulo, O principe maldito, traição e loucura na Família Imperial, já dizem muito, Azeredo, tendo conhecido o príncipe na adolescência, nos conta apenas que era “de caráter bondoso e extremamente singelo”.

Em 1896, escreve da Itália a Machado de Assis: “Quero dizer-lhe algo da maravilha máxima do Vaticano e de Roma, Leão XIII”. Tendo assistido a uma missa celebrada pelo pontífice, conta que ele o tratou “paternalmente; tomou entre as suas as minhas mãos, unindo-as ao seu coração, e assim as teve durante toda a audiência”.

Não é preciso ser psicanalista para ver em Azeredo a busca constante da figura paterna. As demandas de sua amizade eram exaustivas. Em março de 1897, queixa-se a Machado de Assis: “A falta de cartas suas tem sido muitas vezes para mim objeto de reflexões melancólicas. Não posso crer que o seu coração tenha mudado para comigo. Mas o que creio e vejo é que as manifestações exteriores, visíveis, da sua amizade já não são as mesmas”.

Recente artigo do pesquisador Jair Santos, “Um poeta brasileiro no Vaticano”, me fez chegar aos ofícios enviados de Roma por Azeredo. Alguns, selecionados e apresentados por Luiz Felipe de Seixas Corrêa, que foi ele mesmo embaixador no Vaticano, foram publicados em 2016 pela Fundação Alexandre de Gusmão. Não podendo conhecer o depoimento “colorido e curioso” sobre a morte de Leão XIII em 1903, lemos nesse volume a respeito do falecimento de Bento XV em 1922 e da eleição de seu sucessor, Pio XI. Esses documentos oficiais, burocráticos, não possuem a verve do outro texto, que Afonso Arinos nos faz imaginar. 

Um resfriado rapidamente evolui para a bronquite, que avança para a broncopneumonia, e Bento XV morre. Pio XI, eleito, aparece na sacada pela primeira vez, pronuncia, “com voz clara e vibrante, as preces preliminares”, traça “três vastas cruzes no espaço”, dá a bênção apostólica. E, então, “as aclamações reboaram pela praça inteira”.

É esse ritual de apresentação do novo papa que, em poucas semanas, veremos novamente, dando-nos a sensação de continuidade e perenidade em um mundo onde, cada vez mais, tudo parece efêmero.

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

O presente malásio, 12 de abril

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro

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O presente malásio

O presente malásio
Visitando Anwar Ibrahim

Transcrevo minha coluna quinzenal no jornal Estado de Minas publicada ontem, 12 de abril:

Recebo em Luanda, em 31 de março, dois livros que me envia de presente o primeiro-ministro da Malásia, Anwar Ibrahim.

A primeira vez que o visitei, em novembro de 2020, Anwar Ibrahim era líder da Oposição no Parlamento malásio. Recebeu-me em seu escritório pessoal em um bairro residencial de Kuala Lumpur. Mostrou-me uma estante onde eram expostas recordações dos anos em que esteve preso, condenado por motivos políticos. Entre os objetos, figuravam vários livros que as autoridades malásias de então haviam permitido a ele ler enquanto esteve preso. Fotografei alguns desses volumes. Havia, entre outros, uma edição de “Os ensaios” de Montaigne; a biografia de Barack Obama por David Remnick; “A vida dos grandes compositores”, por Harold C. Schonberg, livro de que gosto particularmente. Na foto que tirei, aparece apenas um romance, “O sol é para todos”, de Harper Lee. Em nossa conversa, o futuro primeiro-ministro citou Ortega y Gasset.

Poucos dias antes de abrir, em Angola, o pacote contendo os presentes de Anwar Ibrahim, eu recebera um telefonema do ministro das Relações Exteriores da Malásia, Mohamad Hasan. Conversamos como bons e velhos amigos que somos.

E hoje, enquanto escrevo esta coluna, leio artigo que me envia o seu autor, outro amigo malásio, Yin Shao Loong, brilhante pensador e analista das relações internacionais, sobre as consequências para a Malásia das tarifas de importação anunciadas pelos Estados Unidos em 2 de abril e revistas uma semana depois.

O Sudeste Asiático, de onde parti há dois meses, voltou assim com muita força, nesses últimos dias, à minha imaginação. De resto, parte do meu tempo livre nas últimas semanas tem sido passado comunicando a amigos daquelas latitudes que cheguei ao meu destino atual, que estou bem e que sinto saudade deles.

Um dos livros que me envia o primeiro-ministro Anwar Ibrahim contém análise da Bienal de Veneza de 2024, organizada por Adriano Pedrosa sob o tema “Estrangeiros por toda parte”. Lamentei perder essa Bienal, a primeira sob curadoria não só de um brasileiro, mas de um latino-americano, e de um residente no hemisfério sul. Uma frase de Pedrosa me chama a atenção: “onde quer que você esteja, você sempre é, verdadeira e profundamente, um estrangeiro”.

Para um diplomata, sentir-se estrangeiro, enquanto representa o seu país em outro, é muitas vezes uma característica do cotidiano. Um trecho da frase de Adriano Pedrosa, porém — “onde quer que você esteja” — parece possuir valor filosófico. De fato, a nossa realidade individual nunca consegue ser perfeitamente compartilhada com outros. Para cada um de nós, brasileiros, o Brasil possui um sentido pessoal, único. Uma das belezas do Brasil é, justamente, que em um país tão vasto, tão rico e diverso culturalmente, com uma população tão numerosa e sofrendo de marcadas diferenças sociais e econômicas, desde a independência tenha predominado entre nós um sentido autêntico de nacionalidade. Esse é o verdadeiro milagre brasileiro.

Neste exato momento, relendo “Sagarana”, penso que apenas o mineiro — e diplomata — João Guimarães Rosa poderia ter descrito tão bem a realidade de Minas Gerais. No entanto, as novelas dele se passam em uma Minas Gerais diferente daquela que eu, por exemplo, tenho entranhada em mim, que é a da Zona da Mata. “Eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias”, diz Guimarães Rosa. Por isso, afirma, optou “pelo pedaço de Minas que era mais meu”.

Quando vivemos em um país estrangeiro, nossa apreensão da realidade local é delimitada pelo bairro onde moramos, pelos lugares que frequentamos, pelos amigos com os quais convivemos, pelos jornais que lemos. Por mais que tentemos, nunca obteremos uma visão completa daquela sociedade. Ao analisar “Sagarana”, o mais brasileiro dos húngaros, Paulo Rónai, que chegou ao Brasil já adulto, comenta: “O leitor vindo de fora, por mais integrado que se sinta no ambiente brasileiro, não pode estar suficientemente familiarizado com o rico cabedal linguístico e etnográfico do país para analisar o aspecto regionalista dessa obra”.

Não quero sugerir que não é possível adquirir uma noção correta da cultura onde estamos baseados. Procurar alcançar essa percepção deveria ser mesmo uma obrigação para todo diplomata. Nos países onde servi, tive sempre muita sorte nas amizades que fiz; elas abriram o acesso para uma melhor compreensão daquelas outras realidades.

Mas também o acaso permite novas percepções. Ano passado, caminhando por um bairro de Kuala Lumpur onde eu nunca antes estivera, de repente vi um mural representando uma cena rural no interior da Malásia. Casas de madeira sobre pilotis, com telhado de palha, alternavam com palmeiras e vegetação tropical. Em primeiro plano, um carro de boi idêntico ao que tantas vezes me transportou na infância, na Zona da Mata, ambos simples e menos aparatosos do que o de uma das novelas de “Sagarana”, puxado por nada menos do que oito bois. Associando-se às melhores lembranças da infância e da adolescência em Minas, aquele mural surgido repentinamente tornou a Malásia ainda mais compreensível para mim.

Voltando, pela imaginação, a Minas Gerais, percebi que conhecer e entender a Malásia era, também, uma forma de amar o Brasil.


Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro

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