Um dia em Lisboa

Um dia em Lisboa

Como Titina mora em Lisboa há muitos e muitos anos, visitá-la não é para mim tão fácil ou corriqueiro, mas o resultado é que a cidade está sempre presente na minha imaginação. Ir a Lisboa ver minha irmã nunca foi, por outro lado, um sacrifício, pois gosto muito de estar lá. A cidade se tornou, de uns anos para cá, um centro artístico e gastronômico. A cada visita percebo diferenças que fazem dela um destino sempre mais atraente. Devo supor que as motivações dos turistas e dos residentes estrangeiros são iguais às minhas: o clima ameno no inverno, o charme de seus bairros históricos, a segurança nas ruas e a sensação transmitida de que a vida pode ser fácil e ensolarada. Um passeio simples pelas ruas do Chiado, do Bairro Alto, da Alfama, da Mouraria e de tantos outros bairros já basta para nos fazer sentir a delícia de estar vivo.

Fator adicional, para mim, é a excelência das livrarias. Um dia ideal, em Lisboa, inclui visitar as minhas prediletas.

Na minha primeira viagem a Portugal, aos 19 anos, adotei a Bertrand. Como eu quase sempre me hospedo no Chiado, ela me serve como uma mistura de livraria e de espaço prático para fazer uma pausa do sol, do calor, do frio, da agitação; para entrar, isolar-me do mundo por alguns minutos em um ambiente conhecido, seguro, e voltar a sair, com renovado entusiasmo. Na sala principal, a primeira, passei já muitas horas da minha vida. Mais adiante, a cavernosa enfileirada de arcos sugere a promessa de tesouros a serem descobertos. Mesmo uma livraria fundada em 1732 e instalada em 1773 no local atual, na Rua Garrett, pode nos reservar surpresas. Em 2017, descobri que os sucessivos ambientes desembocam agora em um café, com um mural representando Fernando Pessoa.  

Saindo da Bertrand, se desço a Rua Garrett e viro à direita na Rua Nova do Almada, chego à Livraria Ferin, a segunda mais antiga da capital. Esse é, por excelência, um lugar elegante, e me lembra duas de minhas livrarias preferidas, a Galignani em Paris e a Hatchards em Londres. O ambiente é acolhedor, e a oferta de livros, inclusive franceses, é sempre interessante, particularmente na área de história. Minha única queixa não é culpa da livraria: é que sonho, até hoje inutilmente, em conseguir fotografar sua fachada sem carros estacionados em frente. Já me aconteceu de ficar longos momentos na calçada oposta, celular à mão, esperando poder captar um momento em que a rua estivesse despejada. Já me aconteceu também de pensar, nessas horas, que os funcionários da Ferin, se me notaram alguma vez, pela vitrine, parado na rua, olhando insistentemente em direção ao prédio, devem ter estranhado ou mesmo ficado preocupados. A rigor, a fachada da livraria em nada se diferencia, arquitetonicamente, das demais nessa rua pombalina. É bem mais sóbria do que a da Bertrand com seus azulejos azuis. Mas algo ali me atrai, talvez o que sei do ambiente atrás da porta; ou talvez a forma arqueada como a palavra “Librairie” é gravada, na pedra do lado esquerdo da porta, sobre o resto da inscrição, “de A. Ferin”. No pilar do outro lado da porta está gravado “Atelier de reliure”, com a palavra “Atelier” também arqueada.

Sempre frustrado na minha tentativa de fotografar a fachada da Ferin sem carros estacionados diante dela, retomo meu passeio.

A concentração de livrarias nessa área de Lisboa, na verdade, é impressionante, pois logo ali, ao lado da Ferin, nos Armazéns do Chiado, está a moderna FNAC. E se eu voltar à Rua Garrett e subi-la, um ou dois quarteirões depois da Bertrand encontro a Sá da Costa, que deve ser o maior receptáculo de livros de segunda mão que conheço, depois da Strand em Nova York. Um dos charmes de Lisboa são os vários sebos que podem ser visitados confortavelmente em um passeio a pé. Caminha-se vendo apenas ruas harmoniosas, fachadas do século XVIII, e entra-se aqui ou ali em um alfarrabista. A Sá da Costa lembra vagamente um daqueles lugares de Bruxelas que aparecem nos álbuns do Tintin, misteriosos, mágicos. Feira da Ladra ou casa de algum antropólogo ancião, sentimos ao entrar que lá terá início uma aventura. Além dos livros, há por ali, espalhados pelas vitrines ou pelas salas, estátuas de madeira, porcelanas antigas, globos terrestres e mapas emoldurados nas paredes, inclusive um representando, na Antiguidade, o que hoje é o Oriente Médio. 

Saindo da Sá da Costa e andando até a Praça Luís de Camões, posso tomar a Rua da Misericórdia, onde grandes felicidades me esperam.

A primeira livraria a aparecer é a Bizantina. Na última vez em que lá estive, fiquei maravilhado, porque vi em uma prateleira a primeira edição inglesa de Justine, de Lawrence Durrell, que tenho em casa. Há muitos anos, retirei da estante de meu pai, no Rio, o seu exemplar e nunca o devolvi. Nem gosto particularmente do romance, mas há algo de lúdico no volume: a grossura e o cheiro do papel, a textura da capa. Sobretudo, há a minha constante ingenuidade de achar surpreendente ver em um sebo edições que já possuo. Nunca falha, sempre fico feliz quando isso acontece.

Em 2018, considerei algo extraordinário encontrar na Livraria Antiquária do Calhariz a edição em cinco tomos dos Sermões do Padre António Vieira pela Lello & Irmão, que minha mulher tem desde sempre. Chega a ser engraçado, eu me encantar de ver em um alfarrabista lisboeta a edição clássica e famosa, mas não muito antiga — é de 1959 — de um grande autor português, publicada por uma casa editorial portuguesa.

Poucos metros depois da Bizantina, no Largo Trindade Coelho, esteve até 2020 a Olisipo, onde, ao longo dos anos, comprei vários livros. Seu interior era sedutor. O ambiente era arejado, entrava a luz do sol e eles vendiam também gravuras e mapas antigos. Algumas encadernações eram estupendas. Na última vez em que lá estive, em julho de 2017, senti falta da presença do proprietário e fundador, José Ferreira Vicente, que nunca, anteriormente, eu deixara de ver. Descobri depois que ele morrera em janeiro daquele ano. Era um homem educado. Quando estou sozinho, costumo ficar mergulhado nos meus pensamentos; por isso, creio nunca termos trocado palavras muito distintas de “boa tarde” e “obrigado”. Sinto seu desaparecimento, no entanto, como o de uma presença bem familiar, de que sentirei falta. A Olisipo mudou-se para outro endereço. Não sei quando poderei voltar a Lisboa e ver como ficou instalada a livraria, agora na Avenida Infante Santo. O antigo espaço ficará para sempre gravado em mim.

Pouco depois do Largo Trindade Coelho, chega-se ao Miradouro de São Pedro de Alcântara, com a sua vista famosa sobre Lisboa, o Castelo de São Jorge e o Tejo ao fundo. Essa e outras vistas sempre me fazem pensar em um melancólico e marcante filme de 1983 de Alain Tanner, A Cidade Branca, em que Bruno Ganz faz o papel de um marinheiro suíço desembarcado em Lisboa. Na vida real, as portas e as fachadas coloridas ou azulejadas de alguns bairros, como o Chiado e o Bairro Alto, dão uma visão bem diferente, a de uma cidade cálida, vibrante e receptiva aos viajantes.

Em um dia de férias típico meu em Lisboa, a esta altura terei já comprado vários livros e irei adiante até o Jardim do Príncipe Real, para lê-los sentado em um banco sob o sol.

Em 2019, pude passar apenas vinte e quatro horas em Lisboa. Meu roteiro habitual de visitas a livreiros não pôde ser cumprido. Além da Bertrand e da Ferin, onde entrei somente para ver as novidades, respirar o ambiente, ter certeza de que essas duas velhas amigas estavam bem — preocupação inútil, pois elas seguirão existindo quando eu desaparecer — estive em um sebo apenas.

Existe, na Rua de O Século, um alfarrabista que ocupa dois espaços pequenos. Sei hoje que ele se chama Alexandria, mas só em 2019 notei haver placa discreta com o nome. Nos anos anteriores, podia-se passar pela rua, aliás bem tranquila, sem perceber haver naquele ponto uma livraria. Se minha irmã não fosse freguesa, nunca eu a teria descoberto. É um lugar especial, sobre o qual já escrevi anteriormente, em uma crônica de 2018, O Embrulho Vermelho, cujo fio condutor é justamente um livro que Titina lá comprou, naquele ano, para me dar de presente. O sebo é forte nas áreas de história, inclusive do Brasil, e de arte. O nome da rua me intrigava muito, e eu a incluía entre os muitos logradouros lisboetas cuja denominação me soa poética, como Travessa da Água-da-Flor, Travessa da Boa Hora, Travessa da Espera, Rua da Horta Seca e Rua das Flores, que faz pensar imediatamente em Eça de Queiroz. Um dia, descobri não haver nenhuma intenção metafísica no nome O Século. Trata-se, na verdade, de homenagem a um jornal republicano, fundado ainda sob a monarquia.

Na Alexandria, o livreiro é prestativo, mas discreto. Deixa-me à vontade, no espaço pequeno. Os preços são honestos. Uma vez, quis mostrar o sebo a um primo português, o escritor e biógrafo José Norton. Este me convenceu a comprar uma edição barata e surrada, em três volumes pequenos, vermelhos, de capa dura, dos Mistérios de Lisboa. Devo assim a ele meu primeiro contato com Camilo Castelo Branco. Em 2018, vi empilhados no chão 8 dos 21 volumes da correspondência de Proust editada por Philip Kolb. Fiquei tentado. Não os comprei. Nas minhas 24 horas lisboetas em setembro de 2019, voltei lá para sondar se os volumes tinham sido vendidos. De fato, tinham. Arrependi-me bastante.

Em 2020, com as fronteiras da Malásia fechadas por causa da pandemia, não visitei minha irmã. Pelo que já pude ver de 2021, neste mês de janeiro tão parecido com o ano passado, parece improvável que eu consiga consiga vê-la antes de 2022. Pergunto-me se a feira de livros ao ar livre, aos sábados, na Rua Anchieta — com as mesas do lado esquerdo, nos primeiros metros da calçada, colocadas ao longo dos azulejos da Bertrand — tem acontecido, nestes tempos atípicos para todos. Poderia perguntar à Titina. Mas há algo lúdico em permanecer na dúvida. Prefiro sonhar com os livros expostos na calçada, em pleno Chiado. Esperam a minha volta, quando passarei novamente pela Rua Anchieta, transformada todo sábado em um corredor de deleites. Esperam seduzir-me.  

Versão atualizada de texto primeiro publicado na revista literária Pessoa, em 19 de outubro de 2020

Todas as fotos foram tiradas pelo autor

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As frutas de Perak

As frutas de Perak

Foi do Sultão de Perak que recebi, neste Natal, o meu primeiro presente. Na verdade, fui eu quem, ao recebê-lo no final de novembro, decidi considerá-lo assim. Fiquei bem contente de poder antecipar a época natalina, pois esse é, para mim, o momento mais esperado e desejado do ano.

Certamente, isso é um resquício da infância. Durante anos, na Bélgica, descer as escadas com meus irmãos, na manhã do dia 25 de dezembro, ainda de pijama, para ver os presentes sob a árvore decorada na sala, com a neve cobrindo o quintal e o ambiente rural ao redor da casa, era a experiência mais mágica do ano inteiro. Abro neste minuto um livro de 2019 de Jean-Yves Tadié de artigos ou ensaios curtos seus sobre Proust, um dos presentes de Natal que, complacentemente, em dezembro dei a mim mesmo. Caio em uma citação de La Recherche a respeito de adultos rememorando a infância: “eles se perguntam se, naqueles anos felizes, o inverno não era a mais bonita das estações”.

Há outras razões, pessoais e filosóficas, para minha continuada veneração pelo Natal. Minha mulher e eu fazemos aniversário na mesma data, em meados de janeiro, e assim o Natal é um conceito abrangente, que engloba pelo menos todo o mês de dezembro e vai até a terceira semana de janeiro. Essa é a época das comemorações, da sensação de leveza, do sentimento de que pode haver harmonia entre os seres humanos. É a época da felicidade. Todo ano, prolongo ao máximo esse estado de espírito. Duvido que alguém queira me criticar por isso.

Quanto ao aspecto filosófico da questão, direi que o Natal, independentemente da importância religiosa da data, de que nesse dia se celebra um nascimento, parece ser como um resumo, uma explicação do sentido da vida. É algo que espero o ano inteiro, na expectativa de alegrias sem fim; mas depois que ele chega, termina rápido demais. Mal me preparei para festejá-lo, e ele acabou. Acredito que a data ainda está por vir, e ela já é passado.

O Sultão de Perak, Nazrin Shah, com graduação em Oxford e mestrado e doutorado em Harvard, deve ser o único soberano e a única alteza real no mundo com competência para escrever obras de história econômica. Seus livros, publicados pela Oxford University Press, têm títulos como Charting the Economy: Early 20th Century and Contemporary Malaysian Contrasts (2017) e Striving for Inclusive Development: From Pangkor to a Modern Malaysian State (2019). Pangkor é uma ilha em Perak, e é também o nome do tratado pelo qual, em 1874, o Reino Unido assinou com o Sultão de Perak de então o acordo que iniciou o processo pelo qual, em poucas décadas, toda a Península Malaia passou a estar sob controle britânico. Até 1874, o Reino Unido estava presente apenas em Penang, Malaca e Singapura, que juntas formavam a colônia conhecida como Straits Settlements.

Na capa de Charting the Economy, os dois “o” do título são representados por uma semente de seringueira e grânulos de estanho. Como toda criança brasileira aprende na escola, a exitosa inserção na Península Malaia de sementes de hevea brasiliensis roubadas da Amazônia pelos britânicos, nos anos 1870, pôs fim ao ciclo da borracha no Brasil. Uma ironia é que, hoje, importamos borracha da Malásia.

Nos dois livros, vemos como os seringais e as minas de estanho sustentaram, durante décadas, a economia da Malaia britânica. Após a independência, em 1957, o novo país começou a diversificar sua produção. Explica o Sultão de Perak: “dependence on a limited number of primary commodities with highly volatile prices had been recognised as being an unsustainable economic strategy”. O estanho é um produto não-renovável, e a borracha natural é substituível. A Malásia se transformou. Passou a exportar produtos elétricos e eletrônicos e maquinaria. Desde 1971, a política econômica, voltada para a eliminação da pobreza, inclusive por meio de ações afirmativas, de ampliação do acesso à educação e de políticas de transferências diretas à população menos favorecida, pode ser sintetizada com a frase “growth with equity”. É surpreendente ver uma alteza real — que, pelo sistema rotativo entre os sultões para a ascensão ao trono malásio, deverá se tornar em janeiro de 2029 o XVIII Rei da Malásia — citar Thomas Piketty como fonte para seu pensamento sobre a questão da distribuição de renda.   

Do Sultão Nazrin Shah, eu já havia recebido seus dois volumes sobre a história econômica da Malásia. Fiquei então intrigado com o novo presente, de que foi portador um amigo comum, Timor, que, de partida para a Califórnia, onde passaria longos meses com sua família, veio, exemplarmente, se despedir de mim. O presente real é um livro, com texto e fotografias de Omar Ariff Kamarul Ariffin, intitulado The Incredible Fruits of Perak. Nazrin Shah e sua mulher, a princesa Zara Salim, contribuíram para a publicação da obra. Como outros bonitos livros promovidos por eles, o volume ajuda a divulgar Perak, conferindo-lhe uma personalidade própria frente aos outros estados malásios.

Lançada em 2019, a obra descreve as características de cem frutas, a maioria nativas de Perak, mas algumas também exóticas. Dezenas de outras são mencionadas. Há no estado de Perak, segundo explica a princesa Zara Salim no prefácio, ao menos cinquenta cidades ou vilarejos cujos nomes celebram frutas nativas.

Em minha primeira Carta da Malásia — as cinco cartas publicadas anteriormente estão coletadas em Ilhas Misteriosas — relatei viagem que fiz à ilha de Penang e contei que a paisagem de Perak, vista do trem, lembrou-me a da Mata Atlântica. Folheando o livro sobre as frutas do estado, constatei sem surpresa que algumas existem no Brasil. Quem poderia imaginar que a pitangueira, originária da América do Sul e de que temos um exemplar no quintal em Brasília, adaptou-se na Malásia com o nome de cermai belanda? O autor nos dá a informação de que a fruta também é conhecida como “pitanga” ou Brazil cherry. A brasileiríssima e corriqueira carambola aparece logo no início do livro, com o nome de belimbing manis, e aprendo que ela é na verdade originária do Sudeste asiático e do subcontinente indiano. A carambola é conhecida na Malásia também como kembola e, sim, “carambola”.

A maioria das frutas descritas no livro é, porém, desconhecida para mim. Há muitos anos, em Belém, na praça do Theatro da Paz, tomei pela primeira vez um suco de cacau. Das lembranças mais fortes que guardo da cidade está a surpresa que tive então diante da variedade de frutas de que eu nunca ouvira falar. The Incredible Fruits of Perak causa em mim a mesma sensação. Pensar que vivi até hoje sem provar melinjau, rawa e tampoi, entre muitas outras. A melinjau parece particularmente apetecível.

Uma das anedotas itamaratianas de que mais gosto é a história, acontecida não faz tantos anos, em que um estadista indiano visita Brasília. Como é costume, é homenageado com um jantar. Como sempre acontece, na hora da sobremesa trazem à mesa não só o doce, como também uma bandeja de frutas, onde há inclusive mangas fatiadas. O visitante exclama, acredito que de boa-fé e sem ironia: “Que ótima surpresa! Vocês foram atenciosos a ponto de mandar me servir uma fruta indiana”. Ele tinha razão, a manga é originalmente da Índia. É tão adaptada à realidade brasileira, porém, que cresce sozinha por todo canto em Brasília, e eu mesmo durante muito tempo acreditei ser ela originalmente brasileira. No nosso quintal no Lago Sul, ao lado da pitangueira, há duas enormes mangueiras. No final de dezembro, elas atingem o auge da produção. Seus galhos, no Natal, devem ter ficado pesados, carregados de mangas rosadas, de diferentes tonalidades avermelhadas, que me fazem sempre pensar, quando as vejo de longe, nas maçãs estilizadas que, criança, eu colocava em toda árvore que desenhava.  

Graças assim à visita de despedida que me fez Timor, trazendo em um único volume, como presente real, uma centena de frutas de Perak, entrei cedo no clima natalino.

Menos de quatro semanas depois, tive de lidar com preocupações mais transcendentais do que a economia malásia ou as semelhanças entre a flora brasileira e a da Península Malaia. No domingo antes do Natal, vi-me caminhando, à noite, pelo gigantesco aeroporto internacional de Kuala Lumpur, vazio e abandonado. Eu lá não pisava desde abril, quando fora me despedir dos brasileiros sendo repatriados por causa da COVID-19. Naquela ocasião, já havia menos voos, mas os que se mantinham estavam lotados, por causa do novo coronavírus, de malásios voltando ao seu país ou de estrangeiros regressando aos seus. A própria alegria dos meus compatriotas de poder voltar para casa e enfrentar a pandemia com seus familiares tornava o ambiente, para mim, eletrizante. No domingo logo antes do Natal, pareceu-me o aeroporto, que eu conhecera tão movimentado, lúgubre no seu abandono.

Como eu sabia, os problemas filosóficos que passavam pela minha cabeça, enquanto eu circulava pelo aeroporto entristecido, logo receberiam resposta: “Ela vai me achar bem ou envelhecido? Magro ainda? Aprovará esta camisa?”. Pois se eu lá estava, era para esperar minha mulher, que chegava de Singapura. Recebera ela autorização da Malásia, apesar das fronteiras fechadas nos dois países, para vir passar uns dias de férias. Teríamos de fazer quarentena, mas, felizmente, em casa.

Após uma separação forçada de dez meses, por causa da pandemia e o consequente fechamento das fronteiras, era um verdadeiro milagre natalino que eu estivesse ali, esperando por ela. Pensei ser personagem de algum filme ingênuo, típico da estação, It´s a Wonderful Life talvez, ou Love Actually

Não direi que a ceia de Natal foi a melhor que já tivemos, porque faltou nossa filha, que mora em Bruxelas, e para quem as fronteiras malásias e singapurenses permanecem fechadas. Mas foi deliciosa. Após as incertezas de todo o ano, compartilhadas com a humanidade inteira, e uma prolongada separação, era possível pensar que, afinal, a nossa era uma história que terminava bem. Como devem terminar os contos natalinos.

Esta minha VI Carta da Malásia foi primeiro publicada, como as cinco anteriores, em Estado da Arte, em 7 de janeiro de 2021

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