O encontro de Avignon

O encontro de Avignon

No último sábado de agosto, Esther reapareceu em minha vida. Ela possui a capacidade de se materializar assim, quando eu menos espero. Esbarrei nela na Livraria da Travessa de Ipanema, enquanto eu procurava a antologia bilíngue de poemas de Primo Levi, Mil sóis.

Fiquei mudo de surpresa. Nós nos conhecemos em julho de 2011, no Festival de Avignon. Penso nela com frequência e vinha querendo restabelecer contato, pois cada encontro me transporta para uma esfera superior. Nunca imaginei que ela, uma estrangeira, estivesse logo ali, tão perto, que eu fosse revê-la de repente em uma famosa livraria de Ipanema. Simples assim, e ao mesmo tempo inconcebível.

Quando primeiro a vi, eu estava passando uns dias em Aix-en-Provence. Costumo, quando vou a Aix em julho, ir a Avignon por algumas horas. A atmosfera nas duas cidades, no verão, não poderia ser mais diferente. O Festival de Aix, dedicado à Ópera, cria uma agitação comedida, erudita. O Festival de Avignon, voltado para o teatro, com centenas, se não milhares de produções fora da programação oficial, lota a ex-capital dos Papas com uma multidão variada, barulhenta e muitas vezes divertida. As pequenas companhias de teatro desfilam pelas ruas, divulgando as suas peças, com os atores vestindo os trajes usados nos palcos. A programação oficial costuma ter um caráter intelectual, mas as produções no “off” variam enormemente em qualidade e público-alvo. Há peças inteligentes contemporâneas, recriações de grandes clássicos (Molière e Tchekhov são recorrentes) e comédias banais. Gosto, por um dia, de fugir da serenidade de Aix e frequentar a balbúrdia de Avignon, indo de teatro em teatro, vendo quatro ou cinco peças curtas em poucas horas, em salas pequenas.

Meu primeiro encontro com Esther foi inesperado, marcante e inesquecível. Transformou a forma como vejo o mundo. Nunca mais deixei de pensar nela.

Naquele dia de verão, ao chegar a Avignon de manhã e pegar um exemplar do programa do Festival, que contém sempre centenas de páginas, notei uma produção intitulada “Etty Hillesum: l’espace intime du monde”. O nome nada me dizia, mas a descrição da peça era fascinante: tratava-se de um monólogo interpretado por uma jovem atriz, Sandrine Chauveau, que em cerca de uma hora recriava trechos do Diário de Etty Hillesum, holandesa, judia, que morava em Amsterdã e foi deportada e morta em Auschwitz em 1943, aos 29 anos. Uma crítica incluída no programa do Festival dizia que “no final da peça o público precisa superar a emoção antes de sair da sala, porque a experiência dessa vida nos toca a todos”. O comentário era piegas, mas intrigante.

Comprei meu ingresso. Entrei. O auditório era pequeno, mas as poltronas vermelhas confortáveis. Começou o monólogo. Víamos a atriz andar no palco, pelo cenário, “vivendo” Etty Hillesum. O texto era intenso. A jovem dirigia-se a Deus, a ele buscava. Ouvíamos sua narração de como a perseguição aos judeus holandeses, durante a ocupação alemã, ia gradualmente se agravando. Etty mantinha a coragem e o amor à vida. Sabíamos como aquilo terminaria, mas não víamos desespero na personagem. Uma frase, particularmente, foi dita com grande efeito pela atriz: “Deus, não é você que tem de nos ajudar, nós é que temos de ajudá-lo a nos ajudar”. Quando saí do teatro, uma hora depois, eu estava meditativo. Nenhuma das outras peças que vi em Avignon naquele dia marcou-me tanto. Acabo de verificar que a última produção a que assisti foi de três peças curtas, divertidas, de Tchekhov. Era uma montagem excelente, lembro-me bem agora, e aquela que é talvez a sua peça curta mais famosa, O Urso, estava incluída. O que ficou na minha memória para sempre, porém, foi esse meu primeiro contato com Esther Hillesum — a quem todos chamavam Etty — embora eu nem sequer soubesse quem ela era até poucas horas antes.

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Às vezes acontece de uma pessoa ou um livro de cuja existência não estávamos cientes começar a aparecer frente a nós por toda parte. Poucas semanas depois de Avignon, em Bruxelas onde eu então trabalhava, visitei o ateliê de um artista plástico belga, Fabrice Samyn. Durante a conversa, ele citou Etty Hillesum. Tirou da estante uma edição em francês do Diário, que folheei ali mesmo. Meu interesse por Esther ficou assim cristalizado, para usar um conceito stendhaliano.

O que vi na Livraria da Travessa, no último sábado de agosto, foi uma nova tradução para o português dos diários, lançada pela Editora Âyiné. Trata-se da versão reduzida, intitulada Uma vida interrompida, a primeira a ser publicada, em 1981, na Holanda, que inclui algumas cartas de Etty Hillesum. Essa versão é a mais difundida. O texto completo publicou-se em holandês pela primeira vez em 1986, e foi traduzido para o inglês em 2002, o francês em 2008, o alemão em 2014, e nunca para o português.

A tradução de Mariângela Guimarães para a Editora Âyiné, feita diretamente do holandês, é construída em português correto e elegante. Passa toda a intensidade daquela vida curta e dramática. Começa-se a lê-la e não se consegue parar.

O Diário começa em 9 de março de 1941, com as palavras: “Então vamos lá! Este é um momento doloroso e quase intransponível para mim: confiar meu coração inibido a um tolo pedaço de papel pautado”. Termina em 13 de outubro de 1942, com a frase: “Gostaria de ser um bálsamo para tantas dores”. Nesse período curto de um ano e meio, Esther viu o mundo ao seu redor modificar-se, tornar-se ainda mais sombrio. De agosto a setembro de 1942, ela permaneceu, voluntariamente, no campo de triagem de Westerbork, na Holanda, para prestar ajuda aos judeus prestes a serem deportados. A partir de setembro, doente, voltou por alguns meses a Amsterdã. Ao regressar a Westerbork, podia no início, e até junho de 1943, ir a Amsterdã ocasionalmente. Em setembro de 1943, ela, seus pais e um de seus irmãos foram deportados para Auschwitz. Etty morreu no campo de concentração em novembro, sem que saibamos se de doença, de fome, de exaustão ou na câmara de gás.

A leitura do Diário é uma experiência espiritual. Ou ao menos, a alma que o escreveu era intensa e impregnada de misticismo. Ela esclarece já nas primeiras páginas, em 15 de março de 1941: “O ódio não é da minha natureza”. Na sua opinião, basta haver “um alemão decente” que, por respeito a ele, “o povo alemão não pode ser odiado como um todo”. São numerosos os pensamentos que demonstram rejeição à dor moral, à raiva, à mágoa. Ciente do “grande sofrimento humano, que se acumula e se acumula” e do “enorme sadismo” de sua época, Etty continua a considerar a vida como algo “bondoso e misericordioso”. Fala no “pedacinho de eternidade que as pessoas trazem em si”.

O Diário é o veículo para uma constante autoanálise. Ela frequentava, aliás, um psicoquirólogo, Julius Spier, alemão, judeu, refugiado na Holanda. O tratamento que ele oferecia incluía luta corporal e leitura da palma da mão. Soa, aos ouvidos de hoje, como charlatanismo, mas aparentemente ele exercia grande influência sobre seus pacientes. Os dois desenvolveram uma relação afetiva — ao menos da parte dela; Spier tinha uma noiva que emigrara para a Inglaterra. A morte inesperada do psicoquirólogo, em setembro de 1942, causou nela grande sofrimento, mas nem isso foi suficiente para abalar sua coragem. Poucas horas depois, ela já pensa nele nestes termos: “Você buscou Deus em toda parte, em cada coração humano que se abria para você — e foram tantos — e por toda parte você encontrou um pedacinho de Deus”.

Consistentemente, Etty valoriza os pequenos prazeres do cotidiano, sabendo que mesmo esses, um dia, ela não mais terá. Um dos trechos mais poéticos é a descrição de um passeio que faz, em março de 1942, com um amigo e ex-namorado, Max. Ela resume o encontro da seguinte maneira: “Foram indescritivelmente belos, Max, nossa xícara de café e o cigarro ruim, e nossa caminhada pela cidade escura, de braços dados, e o fato de que andávamos ali os dois juntos”. Percebe a alegria que pode haver em um reencontro, na transformação de um amor de juventude em amizade, e diz: “Foi indescritivelmente belo. Que nesse mundo dilacerado e ameaçado coisas assim ainda sejam possíveis. É um grande consolo”.

Etty fala frequentemente em flores, descreve-as com devoção e admiração. Parece ver nelas uma referência à fragilidade de sua própria vida ameaçada, e também a tudo que pode haver de belo, satisfatório. Um dia, observa a beleza de um jasmim branco, mergulhado na luz do sol e pelo qual passa a brisa: “Como é possível, meu Deus, ele está ali prensado entre o muro sem pintura dos vizinhos de trás e a garagem. Entre aquele cinza e aquele lodoso escuro, ele fica tão radiante, tão imaculado, tão exuberante e tão delicado, uma jovem noiva imprudente, perdida num bairro pobre”. Dez dias depois, a planta perdeu as flores, mas Etty sente que, dentro dela, o jasmim floresce ainda, “imperturbável, tão exuberante e delicado como sempre floresceu”.

Livros ocupam espaço importante em sua vida. Ela deseja ser escritora, e um tema recorrente nos diários é o debate interno sobre se tem talento, se conseguirá escrever, sobre a dificuldade de colocar o que sente no papel. Espera que algumas vítimas daquele momento na História, ao sobreviverem, escrevam sobre a terrível experiência vivida; ela deseja ser um dos futuros narradores. De Westerbork, escreve a uma amiga que gostaria de poder anotar ideias para histórias que surgem em sua mente de noite, deitada na escuridão forçada. Percebe ser excessivamente exigente consigo mesma no campo literário, sente-se obrigada a, no mínimo, escrever um novo Os Irmãos Karamazov. Etty Hillesum falava russo; sua mãe aliás nascera na Rússia. Dostoievski é um autor recorrente em seu Diário. Uma hora, percebe que só poderá levar consigo poucos livros, ao ser deportada. Pensa em uma lista sucinta, e O Idiota, de que ela já nos falara várias vezes antes, está incluído. Rilke é outro autor de sua predileção, ao qual se refere a cada instante. Avalia que um verso seu é mais real do que a vida cotidiana. A mala para o campo de concentração teria de incluir também a Bíblia e dois dicionários de russo. Em outro momento, acrescenta à lista planejada os contos populares de Tolstoi.

Há forte contraste, nos diários, entre o que acontece na vida interior de Etty — suas indagações sobre a relação com Julius Spier e com os amigos; suas leituras; a associação com as flores; o diálogo com Deus; a sensação de liberdade obtida com a visão do céu — e a tragédia da vida ao seu redor. Em 12 de junho de 1942, escreve estar “mergulhada em algo que acontece no meu íntimo”. Dois dias depois, comenta: “E agora parece que os judeus não podem mais entrar nas grandes lojas; e devem entregar as bicicletas; e não podem mais andar de bonde; e têm que se recolher antes das oito da noite”. Em julho de 1943, já definitivamente internada em Westerbork, ela descreve em uma carta a vida no campo de triagem como equivalente à de ratos em um esgoto. No entanto continua a mesma carta dizendo: “esta vida é algo lindo e grandioso, temos de construir um mundo inteiramente novo no futuro e contra cada delito, cada atrocidade a mais temos um pouquinho de amor e bondade a mais para compensar, que temos de conquistar em nós mesmos”.

Há relatos de que, em Westerbork, Etty foi de fato um bálsamo — como ambicionara — para os internados no campo. Um amigo, Jopie Vleeschhouwer, acompanhou-a até o trem em que ela e sua família partiriam para Auschwitz e a morte. Menciona que, a caminho do trem, ela foi “falando alegremente, rindo, uma palavra simpática para todo mundo que cruzava seu caminho, cheia de um humor cintilante”.

E assim termina Uma vida interrompida, com o trem partindo rumo ao campo de concentração e a carta do amigo de Etty narrando seus últimos momentos em Westerbork. Morta, ela continua bem presente para os que a leem, graças a uma intensidade e uma sinceridade muito peculiares. Seu Diário, suas cartas são a sua obra; não são os romances ou contos que ela poderia ter escrito, mas a história dos últimos meses de vida de uma mulher jovem eliminada pelo Holocausto. É uma voz individual. Sinto o quanto eu gostaria que essa voz, com sua lição de força interior e elevação espiritual, pudesse ser ouvida por mais pessoas. Ela certamente é bem menos lida do que Anne Frank, quinze anos sua caçula. Terão as duas jamais se visto nas ruas de Amsterdã? Não é impossível.

Em agosto, saí da Livraria da Travessa carregando os dois volumes, ambos publicados em 2019: os diários da holandesa que morreu em Auschwitz, e os poemas do italiano que sobreviveu fisicamente a Auschwitz. Na antologia poética de Primo Levi pela Editora Todavia, onde os poemas foram escolhidos e belissimamente traduzidos por Maurício Santana Dias, há versos que se referem a Anne Frank mas poderiam também, com alguma imaginação, aplicar-se a Esther, a quem conheci em Avignon e nunca pude esquecer. No poema A menina de Pompeia, Primo Levi fala-nos de uma menina petrificada pela erupção do Vesúvio no tão distante ano de 79, cuja presença física ficou eternizada como um “retorcido decalque de gesso”. E diz:

Mas nada entre nós permanece de sua irmã distante,
Da menina de Holanda murada entre quatro paredes
Que ali mesmo escreveu sua infância sem futuro:
Suas cinzas mudas se dispersaram no vento,
Sua vida breve encerrou-se num caderno gasto.

 

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(Este ensaio foi publicado primeiro, em 29 de novembro, na revista literária São Paulo Review)  

 

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Capitu, a Garota de Ipanema

Capitu, a Garota de Ipanema

Mudamo-nos para 52, Cornwall Gardens, South Kensington.
Joaquim Nabuco em seu Diário, 4 de setembro de 1900

Há muitos anos, minha irmã foi, em um dia de outono, apresentada à rainha Elizabeth II e ao príncipe Philip. Titina acabara de fazer 18 anos. O príncipe é conhecido pelos seus comentários intempestivos. Por alguma razão, o divórcio de meus pais — que era recente — foi tema da conversa. O príncipe perguntou: “Se seu pai mora no Rio, isso quer dizer que você fica indo e vindo entre o Rio e Londres? Mesmo antes de se divorciarem, seus pais já viviam assim, cada um em um país?”. Concluiu a interação dizendo: “Não sei como você conseguiu nascer”.

Essa história já tinha fugido da minha memória por completo. Voltou, junto a outras, quando, há poucos dias, reli as cartas que enviei ao meu pai, na época em que eu era estudante universitário em Londres e morava com minha mãe e minha irmã. Ele era então meu principal correspondente, pois eu o via como o melhor dos amigos. As cartas eram frequentes e longas. Lembro-me com carinho das tardes ou das noites em que, voltando da universidade ou do teatro, eu me sentava à mesa de jantar, no silêncio absoluto da casa em South Kensington, a poucos metros de onde morara Joaquim Nabuco, na mesma rua, e redigia, em papel em geral azul, o relato do meu cotidiano. No dia seguinte, cedo, antes de pegar o metrô para ir à aula, eu parava na agência dos correios, perto da estação, para selar e postar a carta. Na era do e-mail, do whatsapp, isso tudo parece um conto de fadas.

Minhas cartas falam do meu curso, das minhas viagens pela Europa, de escritores amigos de meu pai — e de livros. Relê-las é recordar como eu era entre os 19 e os 24 anos.

Há referências que eu já não entendo; como meu pai morreu há vinte anos, não posso consultá-lo a respeito. Fico surpreso com a seguinte frase, que coloquei como post-scriptum em uma das cartas: “Soube que você brigou com dois acadêmicos que, no velório da Dinah, falaram da paixão dela pelo José Lins do Rêgo. Achei ótimo, a atitude deles foi de extremo mau gosto”. Falo aí de Dinah Silveira de Queiroz, grande amiga de meu pai, que conheci na adolescência, e cujo romance Margarida La Rocque: A Ilha dos Demônios eu lera pouco tempo antes e achara fascinante. Mas como foi que eu, em Londres, soubera dos protestos do meu pai diante dessa intriga? Quem me contara? Quais eram os “dois acadêmicos”? Houve essa “paixão” da Dinah Silveira de Queiroz pelo José Lins do Rêgo? Nunca mais terei resposta para essas dúvidas.

José Lins do Rêgo marcou minha juventude, por causa da leitura, no começo da adolescência, de seu romance Menino de engenho. Assim como o narrador atravessa a infância e a juventude no engenho de açúcar do avô materno na Paraíba, meus irmãos e eu passávamos todas as férias na fazenda de nosso avô materno, na Zona da Mata em Minas Gerais. Propriedades rurais imersas em uma vida própria, fora do tempo, latifundiários severos chamados de “coronel”, como o avô do personagem e como meu bisavô, eram conceitos familiares para mim na infância e na adolescência. Abro o livro ao acaso, e uma frase que define o avô do narrador poderia se aplicar ao meu: “aquele seu ar de tranquilidade poucas vezes eu via alterar-se”.

José Lins do Rêgo era amigo de meu segundo avô materno, o padrasto de minha mãe, que a criou. Por whatsapp, ela me confirma neste instante que o conheceu bem: “O Zé Lins? Claro que sim. Ele e papai eram grandes amigos, unidos pelo amor ao futebol e ao Flamengo. Fez conosco a viagem à Suíça em 1954, para a Copa do Mundo”. Eram ambos dirigentes da Confederação Brasileira de Desportos e cronistas no Jornal dos Sports. Meu avô, Alfredo Curvello, escreveu nesse jornal, em setembro de 1958, uma crônica sobre José Lins do Rêgo, no primeiro aniversário de sua morte, intitulada “O Inesquecível Zé Lins”. Lamenta meu avô essa perda, “surpresa dolorosa de todos os dias, quando o buscamos onde ele não estará nunca mais, quando o esperamos onde ele sempre aparecia”, e elogia a “personalidade forte de homem que não enganava a ninguém”.

Em outra carta, leio a frase repentina: “O Luis Fernando Veríssimo me telefonou ontem. Não o vi, porque ele foi embora de Londres já hoje”. Como posso ter esquecido que um dia falei com o Veríssimo? A conversa telefônica não terá sido palpitante, porque eu era um jovem tímido. É nessa mesma época que, de férias no Rio, ao ser apresentado pelo meu pai a Jorge Amado e a Carlos Drummond de Andrade, fiquei mudo diante da simpatia do escritor baiano e da cordialidade do poeta mineiro.

Livros ocupam um espaço importante na correspondência entre meu pai e eu. Um avisa ao outro que está enviando um livro pelo correio. Um comenta com o outro suas impressões sobre algum texto ou autor. Passar os olhos por uma de minhas cartas trouxe de volta a alegria que me causou a leitura de The Pickwick Papers. Em outra, comento o sucesso de crítica da tradução para o inglês de uma obra muito cara ao meu coração, Ópera dos Mortos, de Autran Dourado. Em uma carta de meu pai, vejo elogio a um livro escrito por Cora Rónai, Sapomorfose, ilustrado por Millôr Fernandes. Noutra, ele avisa que me enviou exemplar do novo romance de Jorge Amado, Tocaia Grande, com dedicatória para mim. Queixa-se de seus editores: “Edição de livro, aqui no Brasil, realmente é um problema. Acho que insolúvel”; e em outra carta: “E cadê a divulgação? É isso aí, a eterna esculhambação das editoras, que sempre julgam que o livro vende por si mesmo, misteriosamente”. Numa terceira, falando do lançamento de sua novela Sandra, Sandrinha, reclama: “o livro saiu junto com O Gato Sou Eu, do Sabino, que tem precedência, como sempre, por parte da editora”. Fernando Sabino, amigo querido de meu pai, era então, provavelmente, o autor brasileiro mais popular, o que mais vendia. Não era preocupação tola temer que o lançamento simultâneo, pela mesma editora, do livro de crônicas de Sabino fosse afetar a divulgação de sua novela.

A vida literária de meu pai é sempre presente em suas cartas. Pouco antes de eu ir morar em Londres, ele publicara sua obra mais encantadora, um infanto-juvenil intitulado Titina, fortemente baseado na nossa vida familiar. Somos todos personagens, com nossos nomes reais, e eu apareço como um garoto mergulhado em “livros franceses”. Titina e nosso basset hound, Arusha, que morreria muitos e muitos anos depois, na embaixada em Viena, já na velhice, de maneira trágica — talvez assassinada — são as heroínas. O sucesso de crítica de Titina, que foi premiado pela Academia Brasileira de Letras, está bem registrado no arquivo de meu pai. Wilson Martins, em um artigo sobre sua “biblioteca ideal”, nela incluiu Titina. Rachel de Queiroz indicou que “a lição moral, mostrando a alegria da convivência, o amor, a piedade, a solidariedade humana, flui tão espontânea e suave na bonita linguagem de Ary Quintella, que até o leitor adulto a aprecia e aceita”. Carlos Drummond de Andrade escreveu a meu pai: “Titina — poesia, sentimento humano, arte literária: tanta coisa bonita”. O livro possui um frescor diferente das primeiras obras de meu pai, que Drummond uma vez qualificou em uma crônica, de forma elogiosa, de “sortidas vanguardistas”.

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Quando quero ler as cartas que escrevi a meu pai, não posso simplesmente abrir um baú em casa. Cinco anos antes de morrer, ele as doou, assim como seus manuscritos, resenhas de seus livros, fotografias e seus numerosos artigos de imprensa à Fundação Casa de Rui Barbosa. Como comentei em  Edla van Steen, História sobre a Amizade,  senti decepção, recebi uma impressão de traição, ao saber do destino que ele dera às minhas cartas.

Quando estou no Rio de Janeiro e consigo ir à Fundação, nunca deixo de me perguntar como pode existir, no caos urbano carioca, um lugar tão extraordinário. O prédio histórico, na rua São Clemente, é a casa onde morou Ruy Barbosa. A cama onde o jurista morreu em Petrópolis pode ser vista em um dos quartos. Às vezes, entro apenas para visitar a biblioteca, que contém, disse-me a vigia na semana passada, 37 mil volumes. A página eletrônica da Fundação diz 23 mil. Ruy Barbosa gostava dos clássicos franceses. Fico olhando por trás das vitrines das estantes as encadernações em couro das obras de Chateaubriand, de La Fontaine, de Corneille e de Racine, e das Memórias do duque de Saint-Simon.

Atrás da casa, está o jardim, aberto ao público. É grande e relativamente silencioso. O canto dos pássaros predomina. Famílias lá passeiam com seus bebês. Em um prédio lateral está a coleção de carruagens e carros de Ruy Barbosa.

Ao fundo, vemos um prédio moderno, baixo, onde ficam a sede da Fundação e o arquivo literário, que preserva manuscritos ou documentos de vários escritores, inclusive Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Fernando Sabino, João Cabral de Melo Neto, Machado de Assis, Pedro Nava, Vinicius de Moraes. O arquivo de José Lins do Rêgo não está lá, mas está o manuscrito de Menino de engenho, doado por Plínio Doyle, que me foi mostrado em julho. Foi como ver um tesouro.

Menino de engenho

A sala de pesquisa, onde examino, quando vou à Fundação, o arquivo de meu pai, é também um museu literário. Ali trabalho ao lado, por exemplo, de uma mesa redonda, cadeiras e uma poltrona verde que pertenceram a Manuel Bandeira. Ao meu redor, pesquisam estudantes universitários. Nas minhas idas mais recentes à Fundação notei, pelas caixas deixadas nas mesas, que estava sendo consultado o arquivo de um poeta até então desconhecido para mim, Sebastião Uchoa Leite. Desvio minha atenção da poltrona de Manuel Bandeira e volto a examinar a herança de meu pai. Uma entrevista em um jornal uruguaio chama minha atenção: nela, ele declara que o melhor escritor brasileiro é Machado de Assis, seguido de Lima Barreto e José de Alencar. Recordo muito bem que, seis ou sete anos depois, ele condenou a minha fase de grande leitor de José de Alencar, manifestando a esperança de que eu lesse “coisas mais interessantes”. Contradição? Acredito mais na evolução natural provocada pelo tempo que passa, processo em que nosso gosto muda. Eu mesmo, quem sabe, já não tivesse hoje o mesmo prazer em ler Sonhos d’Ouro e Senhora.

As cartas que recebi de meu pai, ao contrário das minhas, estão guardadas comigo. Releio algumas e vejo o comentário de que uma amiga sua, Sônia Coutinho, “foi à casa do Jorge Amado, aqui no Rio, e me disse que o Jorge estava com o Titina na mão, falando do livro com o Merquior, que tinha ido lá trabalhar para a entrada dele na Academia”. Outra carta comenta os boatos a respeito do suicídio de Pedro Nava, ocorrido quatro dias antes.

Em uma delas, meu pai me explica sua visão sobre o processo criador: “Recebi tua última carta, que achei bem bonita. Creio que você tem razão: muita vez o escritor nem percebe o que está escrevendo e, sem querer, coloca coisas que só terceiras pessoas percebem. Mas o que vale — em qualquer obra de arte — é o efeito. Isto é, o que ocasiona no usuário da produção artística. Obviamente, o usuário vai interpretar da maneira que julgar + adequada. Duas interpretações — aliás — são, muita vez, conflitantes, antagônicas, exatamente opostas. Já li mais de 4 livros e/ou 20 artigos sobre o enigma de Capitu. Capitu “deu” ou “não deu”? Essa ambiguidade da obra de arte é que a torna valiosa, às vezes imprescindível. É gozado, quando a gente escreve, ler depois o que pensam do que foi escrito. Uma vez escrevi A Torre de Menagem. As interpretações a respeito foram engraçadíssimas. Eu não pensara em nada do que acharam que fosse minha intenção”. Mais adiante, nessa mesma carta, meu pai faz um comentário que completa sua percepção sobre o processo de criação literária: “Hoje, o Jorge Amado me ligou. Está indo para a Europa escrever. Não aguenta + tantas entrevistas e badalações. Cansam demais e fazem a gente perder tempo”.

Meu pai era fascinado por Dom Casmurro, e particularmente por Capitu. Nela falava com frequência. Descubro um longo artigo seu de 1978, Quatro romancistas cariocas, escrito em tom jocoso, em que, ao falar de Machado, concentra-se em Dom Casmurro e revela suas próprias fantasias: “Capitu, D. Capitolina, todo mundo fala de seu mistério, de sua moral e todos se esquecem de que a senhora foi belíssima, atraente, sexy, glamurosa […] a senhora foi a Garota de Ipanema de seu tempo”.

Aos 22 anos, escrevi em uma carta: “Papai, sinto saudades imensas de você”. Comentei com um amigo, que me conhece desde os quinze anos, o tom carinhoso que eu adotava com meu pai. Ele perguntou-me: “E as cartas dele a você, são afetuosas também?” Apenas um amigo de vida toda — ou o príncipe Philip — poderia me fazer uma pergunta assim. Os intervalos entre suas cartas são curtíssimos, ele me escrevia às vezes duas, três vezes na mesma semana. São também mais sucintas do que as minhas, e em estilo mais direto; ele não era dado a exposições de alma. Apenas quando recorda a morte violenta de meu irmão na adolescência, poucos anos antes, a guarda baixa: “Hoje, não cessei de pensar no Alfredo e me sinto deprimido”. O afeto por mim aparece na indagação, na preocupação constante quanto ao meu futuro profissional, minhas ambições, meus projetos: “O tempo ruge, e você — como jovem — ainda não sabe disso”.

Sobretudo, ele me incentiva toda hora a escrever. Pergunta se consegui terminar meu romance. Sugere que eu faça traduções. Oferece-se para publicar na imprensa eventuais crônicas minhas. Opina que começar com crônicas poderia ser uma boa maneira de eu “aprender, quando quiser escrever algo, a ter saco, qualidade fundamental do escritor”.

Abro mais uma carta dele, ao acaso, de quando eu tinha vinte e um anos. Meu pai, aludindo a amigos seus, pressiona-me: “Merquior, se não me engano, começou a escrever crítica literária aos 16 anos […] Jorge Amado, aos 18 anos, já tinha publicado País do Carnaval“. A carta termina com a seguinte injunção: “Ary, escreve: crônica, romance, como é o ensino em sua universidade aí, mas escreve”.

O tempo porém nem ruge nem urge. O tempo não existe, ele é uma abstração que inventamos na tentativa inútil de dar alguma coerência às nossas vidas. Existe apenas o tempo interior, próprio a cada um de nós.

 

Cartas Ary Quintella

 

(Este ensaio foi publicado anteriormente na Revista Pessoa)

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