Museu de Arte Islâmica, Doha

Em outubro de 2016, em minha viagem a Goa, fiz escala em Doha, onde meditei sobre o Prêmio Nobel de Literatura concedido a Bob Dylan, a forma como ele canta Full Moon and Empty Arms  e se Alfred de Musset tinha ou não razão em achar que a lua cheia, vista sobre uma torre, se parece a um pingo no “i”. Houve também tempo suficiente para eu conhecer o extraordinário Museu de Arte Islâmica.

Como salientou Alexander Sokurov em seu Francofonia, os grandes museus – e o Louvre, objeto do seu ensaio filmado, é provavelmente o mais famoso e maior dos museus – passam a simbolizar a cidade onde se situam e se tornam os depositários da arte, da história, da civilização, da própria vida humana.

Esse é o caso do Museu de Arte Islâmica de Doha, conhecido como MIA (acrônimo de seu nome em inglês), obra do arquiteto I.M. Pei – o mesmo, cabe recordar, da pirâmide do Louvre – e inaugurado em 2008.

O edifício, inspirado na arquitetura islâmica tradicional e que, por parecer emergir do mar, faz-me pensar também em um palazzo veneziano, é, em si, uma obra-prima:

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Vejam agora o interior, mais especificamente o café (no último andar, há também um restaurante do Alain Ducasse):

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A coleção, compacta, é extremamente variada, as peças são, muitas delas, excepcionais, e o museu tem o claro propósito de preservar uma civilização. Um painel, que me arrependo de não ter fotografado, avisa que o MIA pretende oferecer um panorama sobre “as diferentes culturas que formaram a civilização islâmica”.

Fiz a visita usando a câmera do celular profusamente… Não há restrição à fotografia. Depois de um certo tempo, dei-me conta de que estava favorecendo peças onde a escrita tem um lugar importante. Hábito de apreço por textos ou fascínio pela arte da caligrafia?

Vejam o exemplo abaixo, um Alcorão chinês do século XVII:

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O museu possui numerosos manuscritos, muitos antiquíssimos, onde a junção da imagem e do texto forma obras de arte de uma beleza impenetrável.

Às vezes, a simples escrita produz um impacto forte, como no belíssimo manuscrito abaixo do Alcorão, da Península Arábica, do século VII ou do começo do século VIII, portanto talvez contemporâneo de Maomé, na escrita hijazi. Podemos imaginar a fé do escriba, as condições em que produziu o texto, talvez seu orgulho com a beleza da sua caligrafia.

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Quando eu era estudante em Londres, frequentava assiduamente a National Gallery e passei muitas tardes nas salas dos primitivos italianos, pelos quais sentia na época forte atração. Vendo os quadros de temática religiosa de Cimabue, Duccio e seus contemporâneos, eu me perguntava até que ponto eles eram acessíveis aos turistas orientais. Eu mesmo – embora criado em um ambiente cultural católico e ocidental – ia ao museu, frequentemente, com meu exemplar do Dictionary of Subjects and Symbols in Art, de James Hall, debaixo do braço, para ler sobre conceitos misteriosos como a Transfiguração, bem menos claros para mim do que para pintores italianos do século XIII.

Hoje, quando visito exposições ou coleções de arte oriental ou arte islâmica, tenho consciência de só estar captando parte da mensagem ou mesmo da beleza de cada obra. De museu em museu, porém, o grau de conhecimento – ou ao menos de curiosidade – vai aumentando. Com toda manifestação artística é assim: quanto mais se vê, mais se aprende e mais se quer saber.

As duas jarras abaixo, por exemplo, não criam questionamentos. São belíssimas em sua simplicidade, oriundas do Iraque e feitas no século VIII ou no século IX. Podem ser admiradas sem indagações filosóficas.

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Outros objetos, embora mais elaborados, podem, como os jarros, ser admirados apenas pela sua beleza, como o galo de bronze abaixo, folheado a ouro, espanhol, dos séculos X ou XI,  que provém de uma fonte:

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O falcão abaixo, indiano do século XVII, é uma das peças famosas do museu, por causa de seu luxo absurdo: é feito de ouro, esmalte, rubis, esmeraldas, diamantes, safiras e ônix. Trata-se de uma jóia, que provocará cobiça em alguns, mas certamente não dúvidas existenciais. Vê-lo em Doha faz algum sentido, por causa da obsessão no Catar com os falcões, transformados em animais domésticos e símbolos de status. Há toda uma ala do souq, em Doha, voltada à venda de falcões, que possuem lá mesmo o seu próprio hospital.

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Há mais poesia nesta cabeça de uma estátua iraniana do século XII:

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O  azulejo abaixo coloca algum grau de questionamento. É turco ou sírio, do século XVI. Fiquei intrigado com o tom de azul, que a foto não reproduz corretamente. Também surpreendentes são os desenhos. Quão usual é esse modelo? Simboliza algo ou é apenas  tirado da imaginação individual do artista?

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Com os manuscritos, a impenetrabilidade aumenta. Abaixo, vejam uma página do livro As Maravilhas da Criação e Curiosidades da Existência, escrito no século XIII, conhecido como a Cosmografia de Qazwini, do nome de seu autor. O MIA se orgulha de possuir o que é, provavelmente, o exemplar mais antigo ainda disponível (quatro páginas estavam expostas). A Biblioteca Digital Mundial informa ser esse “um dos livros mais conhecidos do mundo islâmico”. Coloquei um  filtro na foto, para tornar mais nítidos os detalhes da aquarela:

A pintura abaixo, ostensivamente, não apresenta mistérios. Seu título é O Mestre em Luta Livre Desafiado pelo seu Discípulo, o artista é Mahmud Muzahhib, de Bukhara, no Uzbequistão, e a obra é datada de 1560-1561. A plaquinha do museu nada mais diz a não ser que os materiais utilizados são tinta, aquarela e ouro em papel.

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Tentei vários filtros, nenhum torna os rostos mais nítidos, mas está claro que o vencedor foi o Mestre. O homem sendo levantado ao ar é mais jovem do que o outro. O Mestre foi desafiado por um discípulo e venceu.

Uma parábola sobre a arrogância da juventude e a sabedoria dos mais velhos? Certamente. Uma pesquisa na Internet, porém, revelou mais detalhes. A pintura foi leiloada em 4 de outubro de 2012 (quando, suponho, o MIA a comprou) pela Christie´s de Londres e o catálogo com informações sobre a obra ainda está na sua página eletrônica. A estimativa de preço era entre 100.000 e 150.000 libras esterlinas; a pintura foi vendida por 181.250 libras. Informa a Christie´s: “This miniature illustrates one of the best known stories from the Gulistan of Sa’di, (bab 1 hikayat 27)”. O Golestan (“Jardim de Rosas“), escrito por Sadi no século XIII, é talvez o livro em prosa mais importante da literatura persa. Em abril, em Teerã, eu visitei o Palácio de Golestan e fiquei me perguntando se o nome do Palácio é uma referência não só aos seus jardins, mas também ao livro.

Continuemos com a transcrição que o catálogo da Christie´s faz do conto sobre o mestre em luta livre no Golestan (resumo a estória): um grande mestre em luta livre conhecia 360 truques, dos quais ensinou 359 ao seu discípulo predileto, por quem tinha “uma particular afeição”. Graças ao aprendizado com seu mestre, o aluno tornou-se altamente hábil em luta livre, a ponto de declarar-se tão capaz quanto ele. O rei, chocado com a pretensão do discípulo, ordenou que eles disputassem uma luta, que o mestre venceu graças ao único truque que não ensinara. O aluno declarou-se injustiçado, por não ter recebido esse ensinamento do mestre, ao que este retrucou que fizera bem em não compartilhar todo o seu conhecimento, citando a seguir um poema: “Ou a fidelidade não existe neste mundo ou ninguém a pratica mais, pois todos aqueles a quem ensinei tiro com arco e flecha, em algum momento me tomaram como alvo”.

Sobre a pintura abaixo, indiana de 1595 e intitulada Um Poeta Sendo Descartado por um Príncipe (‘spurned’, na versão em inglês da placa no museu; o verbo pode ser traduzido também como ‘desprezado’ ou ‘rejeitado’), nada encontrei na Internet, e a mensagem subjacente à cena é obscura: a frieza dos poderosos frente às artes, a inocência sendo derrotada pelas artimanhas do poder ou uma estória de amor mal-sucedida? Devemos supor que um destino não muito bom espera a eloquente figura humana sendo retirada do cenário no canto inferior direito, mas o quê: a morte, a miséria, o exílio, penas de amor? A escrita na pintura deve elucidar tudo isso, e esta é a ilustração de algum conto ou poema conhecido no mundo islâmico, contido na coletânea (diwan) de poesia de Amir Shahi, mas para mim permanece o mistério.

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Prefiro terminar este passeio pelas coleções do MIA com uma pintura indiana do século XVI que apresenta uma visão mais serena da vida, sem conflitos ou rivalidades:

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A cena representa dois músicos sentados sob uma árvore florida. Esperemos que pertencessem a uma corte ilustrada, onde houvesse espaço para que vários músicos  fossem valorizados e pudessem mostrar seu talento, sem intrigas ou competições.

Ao sair do museu, ao anoitecer, vi a seguinte imagem, tão serena quanto a dos músicos, embora povoada de vida; e com ela encerro:

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Em 2021, eu escreveria também sobre o Museu de Artes Islâmicas de Kuala Lumpur, em Os bois de Mirza Babur

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No Fim do Túnel – Rodrigo Grande

Após ver este estupendo filme, procurei nos jornais argentinos, pela Internet, a reação do público. Encontrei, entre outros comentários, este: “buena película, mantiene el interés hasta el final, recomendable, entretenida, muy bella la chica”. Ri muito com o resumo feito por esse espectador argentino. Pensei também que seria uma pena se a beleza da atriz espanhola Clara Lago desviasse a atenção de sua interpretação como Berta, alma perdida em busca, sem sequer saber disto, de redenção.

O diretor Rodrigo Grande conseguiu, de todos os atores, e não só de Clara Lago, interpretações magníficas, do Joaquín de Leonardo Sbaraglia, ao Galereto – líder de um grupo de bandidos – de Pablo Echarri, passando pelo policial altamente perturbador de Federico Luppi. Até os intérpretes de papéis secundários deixam uma lembrança forte. E o que dizer do personagem canino, Casimiro? Sua existência é determinante para algumas guinadas da trama.

Tudo é bem trabalhado em Al Final del Túnel: além das interpretações, há o roteiro, também de Rodrigo Grande, a fotografia e a direção de arte. Em todas as cenas, há um detalhe que as torna belas ou visualmente impactantes. Em algumas, há um vaso de flores, no canto, que poderia quase passar desapercebido, de tão discreto, só que está lá justamente para completar a imagem, torná-la mais rica. Na cena final, a junção de vários tons de vermelho é belíssima.

Este é um filme cujas referências artísticas são conhecidas e declaradas, inclusive em entrevistas de seu diretor: Poe, Hitchcock, Tarantino… A cadeira de rodas de Joaquín e sua espionagem dos vizinhos são clara homenagem ao Hitchcock de Janela Indiscreta. As cenas de violência – e há uma muito chocante, para a qual o diretor vai nos preparando, sadicamente, durante alguns minutos – remetem a Tarantino.

As influências cinematográficas sobre Rodrigo Grande são muito comentadas pela imprensa; por isso, eu me interessei mais pelo papel importante que ele concede à literatura. A casa de Joaquín é povoada de livros, jogados por toda parte. Apenas dois são focalizados pela câmera: os Contos de Poe e A Ilha do Tesouro (afinal, o tema que conduz a narrativa é o roubo de um banco). Um dos prazeres do filme é ver como Berta, pouco a pouco, vai arrumando as centenas de livros nas estantes; a cada cena, os cômodos estão menos bagunçados e os livros mais bem organizados. Esse detalhe é importante, pois o filme é passado quase todo no interior da casa. Os livros vão sendo arrumados, e o cenário vai ficando mais bonito e, ao mesmo tempo, mais arejado e iluminado. É possível que haja mais de uma parábola nisto. De um lado, os livros, que antes eram uma demonstração de confusão e desleixo, passam a enriquecer, embelezar a vida, dar-lhe serenidade. De outro, o afã de Berta em organizá-los sugere que o amor entre os dois protagonistas está surgindo e crescendo, sem que eles percebam (Berta, ostensivamente, ama outro homem, e percalços da vida tornaram Joaquín um solitário… como já comentei antes, este é um ano farto em filmes sobre a solidão).

Há uma cena muito comovente em que Berta, apesar de todas as evidências em contrário, à luz de sua profissão como bailarina de strip-tease, afirma a Joaquín que a casa de seu pai, no interior, é cheia de livros. Pode até ser verdade, mas não soa crível. O propósito da frase, para Berta, é fazer com que Joaquín a aceite. Os livros, assim, são a forma de aproximação entre os dois protagonistas. A biblioteca – e vale notar que Berta, a bailarina de casa noturna, manuseia os livros, para arrumá-los, e fala neles com respeito, ao mencionar o pai, mas que Joaquín, em sua decadência, não parece se interessar por eles – passa a ser um personagem, que intermedeia a relação dos protagonistas.

Uma homenagem não só a Stevenson e a Poe, portanto, mas aos livros e à literatura como um todo. E mais do que isso: apesar de toda a violência e da perversidade e da crueldade de alguns personagens, este é um filme que fala da beleza da vida, e de como recuperá-la em circunstâncias sombrias.

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No Fim do Túnel – Ficha técnica

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Os Bragança de Chandor, Goa, India

Iniciar por Goa uma primeira visita à Índia é, para um brasileiro, experiência marcante. De um lado, vê-se a Índia como a imaginamos: vegetação luxuriante, vacas passeando calmamente pela rua, atrapalhando o trânsito, um sem fim de motos buzinando. De outro, nomes portugueses de pessoas, nomes portugueses de lugares e capelinhas ou altares católicos pelos cantos, em profusão.

Como tanta coisa na Índia, Goa é antes de mais nada um estado de espírito. É um estado pequeno na costa Oeste – o menor da Índia – e é também um lugarejo, agora conhecido como Velha Goa, remanescente da antiga e dinâmica capital da Índia portuguesa, “a Roma do Oriente”, que chegou a ter 200 mil habitantes e hoje abriga cerca de 5 mil. Do antigo esplendor, restam as igrejas barrocas. É importante lembrar que Camões lá morou e que Afonso de Albuquerque, que lá morreu, é quem conquistou a região, em 1510, para os portugueses (“Toma a ilha ilustríssima de Goa!”, diz o verso do Canto X dos Lusíadas, referindo-se a alguma das ilhas na desembocadura do rio Mandovi) e foi recompensado com os títulos de vice-rei da Índia e de duque de Goa.

Das igrejas, pude na semana passada visitar duas, a Basílica do Bom Menino Jesus – o nome é esse mesmo; estamos na Índia, mas estamos em Goa – e a Sé. As duas são separadas por uma estrada ao longo da qual, nos dois lados, correm gramados bem cuidados, protegidos do asfalto por cercas pintadas de branco. O espírito bucólico dos jardins é o oposto do que acontece na estrada, onde há ruído, buzina, motos, carros e ônibus.

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E agora, vejam esta foto, tirada em uma rua transversal à estrada, ladeando o gramado mostrado acima, mas que revela universo contrastante:

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Todas as fotos que tirei da fachada da Basílica ficaram ruins, possivelmente porque os cartazes de cada lado da porta principal me pareceram incompatíveis com a beleza do edifício, e resolvi que qualquer foto seria estragada por eles, mas esta talvez dê uma ideia da imponência da igreja:

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O interior é igualmente belo:

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O arco à direita leva ao túmulo de São Francisco Xavier, que viveu em Goa e morreu na China mas teve seu corpo aqui enterrado, após algumas peripécias: em apenas um ano, entre dezembro de 1552, quando morreu o futuro santo, e dezembro de 1553, quando foi enterrado na Basílica em Goa, o corpo passou por túmulos na China e em Málaca.

Do outro lado da estrada, dentro da Sé de Velha Goa, o interior é ainda mais magnífico:

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Do que vi em Goa, nada me chamou mais a atenção do que a casa dos Menezes Bragança, na aldeia de Chandor, no interior do estado, a Leste da costa.

Quando os portugueses chegaram à Índia, no século XVI, não faltaram membros da elite local para se associar a eles. Essas famílias converteram-se ao catolicismo e no batismo adotaram nomes portugueses. Uma delas passou a se chamar Bragança, dividindo-se posteriormente em dois ramos, Menezes Bragança e Bragança Pereira. As famílias da casta dos xátrias (guerreiros) convertidas ao catolicismo, como os Bragança, são conhecidas como chardós.

Quando a família adotou o nome da família real portuguesa? Goa virou colônia em 1510; os Bragança subiram ao trono em 1640. A família hindu passou a apoiar os portugueses depois de 1640 e aí adotou o sobrenome real ou já seria aportuguesada e católica anteriormente, passando apenas a adotar novo sobrenome depois dessa data?

A casa dos Menezes Bragança, que pertence ainda à família, é considerada a mais imponente das que sobrevivem do período colonial. No dia da minha partida de Goa, decidi sair cedo do hotel, e seguir no taxi um desvio por Chandor… em resumo, fui ao Norte passando pelo Leste. A caminho de Chandor, passei por uma agitada cidade de nome Margão e por estradas vicinais praticamente desertas.

A casa fica isolada no campo, rodeada apenas de alguns monumentos indo-portugueses e de uma feíssima igreja católica. Julguei que apenas os dois monumentos mereciam ser fotografados. Um deles, me disseram, é o mausoléu da família (não sei qual dos dois):

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Os vários cabos de eletricidade entrecruzando-se no ar me fizeram pensar no Brasil.

Em frente a esses dois monumentos, mas na diagonal, encontra-se a casa:

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Esta é apenas uma parte da fachada, que é belíssima em seu estilo indo-português. Passada a porta de entrada, o acesso ao andar principal não poderia ser mais despojado:

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Fui recebido pela Sra. Judith Borges, membro da família, que me acompanhou na visita. É proibido fotografar o interior da casa, mas minha guia abriu exceção para mim, deixando-me tirar três ou quatro fotos; para cada uma, precisei mendigar arduamente. Recebi autorização para publicá-las neste blog. Foi uma experiência única, conversar no interior da Índia com uma senhora indiana (“não temos uma gota de sangue português”, disse-me ela, em tom neutro), que fala um português de Portugal perfeito, fluente e sem acento.

A Sra. Borges contou-me a estória da família: aliados ao portugueses durante a conquista e   a consolidação da colônia, tornaram-se nacionalistas durante o processo de independência da Índia. O membro mais ilustre da família pode ter sido Luís de Menezes Bragança (1878-1938), escritor e ativista anticolonialista, nascido na casa, a qual viria a herdar de seu avô materno, Francisco Xavier de Bragança, moço fidalgo, de quem há em uma parede  – não pude fotografá-lo – um retrato sentado, ostentando numerosas ordens e condecorações. Goa foi incorporada à Índia em 1961. No ano seguinte, segundo minha guia, a reforma agrária privou a família de sua fonte de renda principal.

A casa, construída há 380 anos, contém tesouros em móveis, prata e porcelana. Dois vasos pertenceram a São Francisco Xavier. Mostro na foto abaixo a enfileirada de salas:

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O retrato é o de Luís de Menezes Bragança. Pensei em pedir autorização para afastar a cadeira branca de plástico, julgando que a foto, assim, produziria cena mais homogênea. E aí percebi que isso seria um erro, pois a cadeira de plástico dá o toque divergente, humano.

O jornal inglês The Independent publicou, em 2003, artigo bem informativo, mas com erros factuais, sobre a casa, dando-lhe o título exagerado – ou sarcástico  – de The Lost Versailles of the Jungle. O artigo foi fator determinante para minha decisão de visitar o palacete dos Menezes Bragança. De certa forma, entendi a razão do título ao ver o salão de baile: longo, com uma sucessão de espelhos (“vindos da Bélgica”, disse-me Judith Borges), de janelas e de candelabros venezianos, lembra mesmo uma versão reduzida da Galerie des glaces de Versalhes. Recebi autorização para fotografar não o salão todo, mas o canto de que mais gostei, por causa do piano e os porta-retratos que, uma vez mais, humanizam:

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Como no caso da cadeira de plástico branco, o fio de eletricidade comove pela simplicidade.

Em retrospecto, percebo que deixei de fazer perguntas à minha guia que poderiam ter me ajudado a conhecer melhor a colonização portuguesa em Goa e o processo de integração à Índia independente. Por exemplo, vejam a foto abaixo:

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O buraco na parede (há outro igual do outro lado da janela) servia, voluntariou minha cicerone, para inserir armas de fogo. Para proteger a casa de quem, pergunto-me agora… quem era o inimigo?

Não há restrições para fotografar o pátio interno. Das muitas fotos que dele tirei, escolho esta abaixo, porque mostra a janela coberta de madrepérola, material utilizado antes da popularização˜do vidro em Goa e que ajudava a proteger do calor e a diminuir a intensidade da luz:

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A visita é gratuita, mas a família pede uma contribuição voluntária, para ajudar na manutenção da casa. Na saída, no salão verde retratado acima, Judith Borges apontou para uma caixa retangular de madeira, onde eu deveria colocar o dinheiro. Pensei em uma estória que li sobre Chopin, na adolescência: aristocrático, sobrevivia em Paris dando aulas de piano a moças nobres. Ao terminar as aulas, virava as costas para suas alunas, enquanto elas depositavam o pagamento sobre a lareira. Estávamos em plena era romântica, Chopin tinha suscetibilidades que deviam ser preservadas. A estória é narrada por Harold  C. Schonberg em seu The Lives of the Great Composers, onde acabo de relê-la: “Elegant pupils would enter Chopin’s studio and put theit twenty or thirty francs on the mantelpiece while he looked out of the window. He was a gentleman and gentlemen did not soil their hands with anything as vulgar as business transactions”.

Deixei 500 rúpias na caixa de madeira. Fiquei me perguntando se era pouco. Pelo meu contentamento, nunca seria demais. Judith Borges deu-me seu cartão, mas não há endereço eletrônico nem número de celular indicados, então a opção de eu obter respostas a minhas atuais indagações históricas sobre Goa e sobre a casa por meio de mail ou de whatsapp não existe.

O cartão, na verdade, é ainda o de Aida de Menezes Bragança, nora do jornalista e escritor anticolonialista e também sua prima, pois nascera no outro ramo da família, os Bragança Pereira. Falecida em 2012 aos 95 anos, tia de Judith, Aida foi objeto, em 1998, de um documentário, A Dama de Chandor, dirigido por Catarina Mourão. Declara no filme: “Fui colocada em um internato em Paris [isso terá disso em torno de 1930] e as pessoas lá me perguntavam sobre Gandhi. Eu não sabia quem ele era e explicava: ‘Eu sou da Índia portuguesa, não da Índia inglesa’ “.

No taxi, indo ao aeroporto, comecei a pensar no que vira e nas questões que me povoavam a mente, sobre o palacete, a família, a colonização, a integração à Índia. Junto com indianos, esperei o trem passar:

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Passei por este lago, o próprio retrato da serenidade:

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Cheguei ao aeroporto meditando ainda sobre a História e a grandeza desse país, desde sempre objeto das cobiças e devaneios alheios, e dizendo para mim mesmo: “De fato, Incredible India‘”.

 

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Bob Dylan, Nobel de Literatura, encontra a lua e Alfred de Musset em Doha

O Prêmio Nobel de Literatura para Bob Dylan parece contar com unanimidade, o que não é tão surpreendente: quem ousaria, sob o risco de parecer retrógrado, condenar a Academia Sueca por ser inovadora e fazer um aceno a um compositor popular e idolatrado? Por enquanto, li apenas uma voz discordante, a de Anna North no New York Times, mas o jornal publicou também artigos elogiando a escolha.

Coloco esta foto, que tirei em Doha ontem, em homenagem a Dylan, por causa de uma canção que ele canta magistralmente, Full Moon and Empty Arms.

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A canção não foi composta por ele. É de 1945 e foi gravada por Sinatra e posteriormente por vários outros cantores. A melodia é de Ted Mossman e a letra é de Buddy Kaye. Bem, dizer que a melodia é de Ted Mossman é generosidade, pois é fortemente inspirada, se não copiada, do terceiro movimento do Concerto para Piano nº 2 de Rachmaninoff. Ted Mossman parece ter sido um popularizador de composições alheias e em seu tempo nem sempre foi elogiado por isso.

Vejam neste artigo do ano passado de cmuse.org como o Concerto de Rachmaninoff influenciou a cultura popular. Estranhamente, o texto não menciona Full Moon and Empty Arms, talvez porque o disco de Dylan onde a canção aparece, Shadows in the Night, que deu à música nova vida, é também de 2015.

Sempre, quando vejo a lua cheia, eu penso em Alfred de Musset, por causa de seu interminável poema Ballade à la Lune, incluído  em uma coletânea de versos franceses que meus pais me deram de presente, nos meus 7 ou 8 anos. O poema começa assim: “C’était,  dans la nuit brune, sur le clocher jauni, la lune, comme un point sur un i”. Acho muita graça na noção da lua como “um pingo no ‘i'”… isso remete a dias muito felizes da minha infância. Ao ver a lua cheia, frequentemente exclamo: “Como um pingo no ‘i'”, para perplexidade das pessoas próximas de mim, que não consideram a ideia tão marcante. A tradução para “clocher jauni” seria “o campanário amarelado”. Na foto cima, há duas torres amareladas, incluindo o minarete ao fundo; um boa ilustração do verso de Musset.

A lua ajuda a ter uma boa concepção da relatividade da vida. Como não se sentir mínimo, ao lembrar que, como Bob Dylan em 2015, agricultores nos vales do rio Eufrates, no século VI a.C. (para não falar do próprio Nabucodonosor), já deviam olhar para a lua com perplexidade e fazer dela a confidente de seus sonhos, suas esperanças, seus temores?

Se quiser ouvir o Prêmio Nobel de Literatura cantando Full Moon and Empy Arms –  e acho que você deveria querer – aqui está o link:

Full Moon and Empty Arms

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Beethoven e Paul Lewis visitam São Paulo

Aos 20 anos de idade, eu venerava Beethoven. Podia satisfazer plenamente essa adoração, graças às salas de concerto em Londres, onde fazia minha graduação. Beethoven me dava, naquela época, a impressão de ser um amigo muito próximo. Em todas as vezes em que estive em Viena, nunca deixei de ir ver, ao menos de fora, a Casa Pasqualati, no Mölker Bastei, onde ele morou. Fiz peregrinação ao seu túmulo no Cemitério Central. Jantei na taverna instalada na casa onde ele morou em Heiligenstadt, Mayer am Pfarrplatz. Pensei mesmo em comprar um de seus pequenos bustos de gesso, facilmente encontráveis em Viena.

Há no romance de Henry James The Portrait of a Lady uma cena em que a música tem um papel fundamental. A protagonista, Isabel Archer, na casa de campo senhorial dos tios, onde mora, ouve o piano, e descobre que está sendo tocado por Madame Merle, uma amiga da tia, de passagem. Na edição original do livro, de 1881, é Beethoven que Madame Merle toca. Na edição revista por James, em 1908, o compositor passa a ser Schubert. Isabel, ao conhecer Madame Merle, vê apenas sua sensibilidade musical (“That’s very beautiful, and your playing makes it more beautiful still”), dá a ela sua amizade e não desconfia que sua vida será por isso negativamente afetada. O tio está doente – logo morrerá – mas Isabel garante a Madame Merle que “to hear such lovely music as that” fará com que ele se sinta melhor. Madame Merle retruca então com uma frase marcante, que me impressionou quando a li pela primeira vez aos 22, 23 anos: “I’m afraid there are moments in life when even Beethoven has nothing to say to us”.

Na fiel adaptação de The Portrait of a Lady para o cinema realizada por Jane Campion em 1996, essa frase (a diretora preferiu a versão onde Schubert é o compositor mencionado) ganha muita força, pela forma como Barbara Hershey, no papel de Madame Merle, a diz a Nicole Kidman, em uma de suas interpretações mais convincentes como Isabel Archer. A expressão facial de Barbara Hershey revela todas as decepções na vida de sua personagem.

Acontece que há uma peça de Beethoven que sempre tem algo a me dizer, nos bons momentos como nos menos bons. É o Concerto para piano nº 4. Se Beethoven é um amigo, esse Concerto é o seu melhor presente; trata-se de um dos monumentos da inteligência humana. Que um indivíduo tenha sido capaz de compor esse Concerto redime as falhas da nossa espécie.

Acontece também que nem todos os meus amigos nasceram em 1770 e morreram em 1827. Vários são da minha geração, estão bem vivos e posso vê-los em carne e osso. Há algumas semanas, uma amiga paulista me perguntou se eu poderia passar com ela seu aniversário. Quando um amigo de adolescência, com quem nunca houve afastamento ou rusga ao longo dos anos e com quem temos relação mútua de aceitação incondicional, pede para nos ver em seu aniversário, a única reação possível é ser grato por essa amizade e responder positivamente.

E é por essa razão que minha mulher e eu embarcamos rumo a São Paulo, para o fim de semana de 8 e 9 de outubro.

Ao planejar nossos dias em São Paulo, pensei, além  da aniversariante, na Bienal de Arte e na exposição sobre Calder e sua influência sobre artistas brasileiros, no Itaú Cultural. Outros amigos, que eu não via há muito tempo, estariam na cidade. Julguei estar atingindo o grau mais elevado de felicidade; tudo parecia perfeito. Estava equivocado. Ingrediente adicional estava à minha espera: li no jornal que Paul Lewis iria tocar, com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, no sábado, o Concerto nº 1 e o Concerto nº 4 de Beethoven.

Quando fui comprar os ingressos pela Internet, só havia lugares no Coro, mas pude conseguir dois na primeira fila e do “lado certo” para ver as mãos do pianista tocando.  Sentar no Coro acabou sendo uma experiência por si. Pode-se ver melhor, além do rosto e dos movimentos do regente (no caso, uma regente, Marin Alsop), como os músicos lidam com seus instrumentos. Mais tarde, amigos comentariam haver o entendimento de que o som chega de forma diferente – menos satisfatória – aos  espectadores sentados no Coro. Pode ser, mas para nós não pareceu: estar ali era já um privilégio.

Vejam esta foto: na magnífica Sala São Paulo, sentados no Coro, esperando para ouvir Beethoven.

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Paul Lewis estudou com Alfred Brendel, que foi o pianista que primeiro ouvi tocar o Concerto nº 4, em Londres. No ano seguinte, ouvi Maurício Pollini e aparentemente   gostei mais ainda, segundo anotações que fiz no programa, guardado até hoje. Era porém Claudio Abbado quem regia a London Symphony Orchestra e eu idolatrava Abbado, então sua presença no palco pode ter influenciado minha análise. Registrei no programa que o último movimento provocava em mim (como ainda provoca) sensação de “libertação”, após as tensões musicais do segundo movimento, que eu considerava, aos 20 anos, aptas a despertar “ansiedade” – Beethoven brinca constantemente, nesse movimento, com a expectativa do ouvinte – e que Liszt equiparava a “Orfeu domando as Fúrias”. Todas as tensões são resolvidas, ao final, e fica um sentimento de harmonia triunfante, como se o Concerto fosse uma parábola das misérias humanas sendo superadas, após lutas internas.

Voltando ao dia 8 de outubro: todos, naquela tarde de sábado, fizeram jus à sua reputação: a  Sala São Paulo, que há muito tempo eu tinha vontade de conhecer (vou pouco a São Paulo, infelizmente), Marin Alsop, Paul Lewis e a OSESP. Lewis revelou sons, nos dois Concertos, de que eu nem suspeitava ou que eu tinha esquecido. Beethoven uma vez  mais efetuou a sua magia e tirou de todos, intérpretes e ouvintes, o que de melhor tinham a   oferecer. Uma tarde que dificilmente esquecerei.

Abaixo, Lewis, de azul, e Alsop, à direita, com a mão erguida, e a OSESP, todos recebendo uma ovação bem merecida.

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E minha amiga aniversariante? No dia seguinte, depois de uma visita à Bienal, almoçamos com ela e sua família, de que sempre me senti parte, no restaurante Canto Madalena,  em Vila Madalena, ouvindo choro ao vivo. A feijoada, a caipirinha de caju e a música estavam excelentes, a companhia mais ainda. Passamos a tarde com eles, até a hora de ir para o aeroporto, com passagem pelo Beco do Batman, ali perto do restaurante.

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São Paulo, Jardins, Livraria da Vila, Itaú Cultural e sua Brasiliana, Calder, Beethoven na Sala São Paulo, Bienal, Canto Madalena, feijoada e choro, Beco do Batman, amigos diversos em diferentes momentos…

Haverá felicidade maior? Não creio… fazendo abstração, claro, da Minha vista no Rio de Janeiro.

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Woody Allen e a ArtRio 2016: o que eles têm em comum

Um princípio que adoto neste blog é só tratar de livros, filmes, exposições e artistas de que gosto. Por exemplo, todo ano fico na expectativa de assistir ao novo Woody Allen. Pode ocorrer de eu ficar decepcionado, como aconteceu com Café Society. Vale a pena eu analisar o filme? Não creio. É mais útil pensar no que há de satisfatório ao meu redor… e torcer para que o Woody Allen de 2017 seja melhor.

Da mesma forma, com a ArtRio. Espera-se a nova edição com curiosidade  e é triste quando a visita agrada menos do que a anterior, como aconteceu comigo este ano. Havia, como sempre, muito Pancetti, muito Di Cavalcanti, muito Cruz-Díez, um ar de pouca novidade. Poucos artistas novos estimulantes e menos galerias estrangeiras.

Há porém outro princípio que adoto, não no Blog, mas na vida, que é o de tentar encontrar mérito mesmo nas experiências intelectuais e artísticas mais frustrantes. Discorrer sobre as razões pelas quais Café Society é um filme decepcionante seria pouco proveitoso. Mais vantajoso é eu apontar o que despertou minha atenção de maneira positiva.

Primeiro, a fotografia cálida de Vittorio Storaro, muito comentada em críticas no mundo inteiro mas não apreciada com unanimidade, como demonstra o artigo de Richard Lawson na revista Vanity Fair, que a descreveu como sendo  “cheap-looking period gloss […] oddly lush and intricate and garish for an Allen movie”. Pessoalmente, gostei, e sobretudo dos tons alaranjados dos trechos passados em Hollywood.

Em segundo lugar, fiquei impressionado com a última cena, a mais filosófica do filme. O apreço de Woody Allen pela literatura russa, incluindo Tchekhov,  é conhecido. O final de Café Society me comoveu, ao me lembrar o conto A Dama do Cachorrinho, que Tchekhov conclui – como Allen termina seu filme – deixando incerteza no ar. No conto como no longa-metragem, sabemos que os dois personagens se amam mas vivem em cidades diferentes e são casados com outras pessoas, e percebem não haver solução fácil para seu dilema.

Este ano tem sido fértil em filmes sobre a solidão, como As Montanhas se Separam, de Jia Zhangke, e Julieta, de Almodóvar. Anton Tchekhov e Woody Allen nos falam de uma forma de solidão bem específica: a de pessoas que não vivem sós mas são atormentadas porque não podem estar perto da pessoa amada. Ver na última cena do filme de Allen essa alusão, que me pareceu transparente, ao meu conto predileto de Tchekhov foi uma surpresa e redimiu, para mim, as fraquezas do roteiro e de algumas interpretações e o enredo pouco interessante.

Talvez por causa do impacto que me causou o filme de Zhangke Jia, minha obra preferida na ArtRio foi esta foto de Isaac Julien, No Moon Shining, extraída de seu filme-instalação  Ten Thousand Waves (onde uma das atrizes, aliás, é Zhao Tao, estrela de As Montanhas se Separam), apresentada pela  Galeria Nara Roesler:

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Vejam abaixo este detalhe:

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É tanta beleza, tanta serenidade, que a questão da solidão não se coloca; devemos supor que a figura humana na foto sente contentamento em estar viva e participar desse cenário.

Gostei também desta natureza-morta de Albano Afonso, apresentada pela galeria ˜Casa Triângulo, que mistura de forma natural o tradicional e o moderno:

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Mais até do que do carregador de celular, gostei do detalhe da entrada de teatro no canto esquerdo.

Senti-me feliz diante desta fotografia de Flávia Junqueira, apresentada pela Zipper Galeria:

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O espaço vazio ocupado por uma alegria pura não deixa de ser uma parábola sobre a melhor forma de lidar com a solidão.

O atrativo maior na ArtRio 2016, porém, foi o entusiasmo do público… no sábado 1º de outubro, apesar do mau tempo, os pavilhões estavam cheios. As pessoas pareciam interessadas e animadas. Era estimulante estar no meio da multidão, nos corredores. E, como no caso da sessão em que eu assistira Café Society, algumas semanas antes, saí do Pier Mauá pensando que a experiência de ir à ArtRio não fora totalmente satisfatória, mas que perdê-la teria  sido uma pena.

Estou pensando em como finalizar este texto, quando leio artigo perspicaz de Adrian Searle, no The Guardian de hoje, sobre a Frieze Art Fair, que está começando em Londres, e caio sobre esta frase: “Art fairs are always like this, the art reduced to the status of stage-prop”. O título do artigo de Searle é: “Everyone’s a performer in the boozy, fruity house of fun”. Ao apontar os ridículos da Frieze, Adrian Searle não deixa de transmitir o ambiente eletrizante na abertura da feira.

E é isto, talvez, o que tenha faltado à ArtRio 2016: mais auto-derisão. Quem sabe, o personagem abaixo, que fotografei discretamente, não tenha sido quem melhor entendeu o espírito que deveria prevalecer na feira de arte? Termino me perguntando se o blog  The Sartorialist aprovaria esta foto…

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Paris – Moscou – Paris

“The Shchukin collection includes 37 paintings by Matisse – a number surpassed only by his 50 Picassos”. Não sei se a frase, extraída de um artigo do Financial Times de 19 de agosto, assinado por Kathrin Hille, surpreende mais pelos números citados ou pela simplicidade com que os fornece. O artigo, excelente, comenta a abertura na Fondation Louis Vuitton, em 22 de outubro, da exposição Icônes de l’Art Moderne, la Collection Chtchoukine.  

Aqui, faço uma pausa e medito. Um amigo fraternal perguntou-me recentemente se quando começo uma postagem neste Blog sei já o caminho  a seguir e como o terminarei. Respondi com firmeza que sim. Este texto, porém, abre várias possíveis trilhas,  igualmente sedutoras… penso na Fondation Louis Vuitton, penso em Moscou, penso no Museu Pushkin, penso em Matisse… Ponhamos ordem nisso tudo.

Antes de mais nada, meus dois leitores precisam saber que, durante muitos anos, frequentei Moscou com regularidade, primeiro por razões pessoais, depois por razões  profissionais. Lá estive pela última vez em 2011, mas espero voltar em outras ocasiões no futuro. Há em Moscou cinco lugares onde me sinto perfeitamente à vontade: a casa de Tolstoi, o Teatro Bolshoi, o Café Pushkin, a Ópera Helikon e o Museu Pushkin. Nem o Café (na realidade, um excelente restaurante) nem o Museu Pushkin possuem vínculo direto com o poeta; foram assim nomeados para homenageá-lo.

Em 2011, eu dava meus primeiros passos como fotógrafo bem amador. Não possuía ainda a obsessão do registro no celular. Tirei porém esta foto do Café Pushkin, de má qualidade mas que dá certa ideia da atmosfera do restaurante:

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O Museu Pushkin é o principal museu de arte ocidental em Moscou. Uma coleção espetacular. Quando penso no museu, contudo, eu o associo sempre aos quadros de Matisse.

Havia, na Rússia do começo do século XX, dois grandes colecionadores de artistas franceses, impressionistas e pós-impressionistas: Serguei Shushkin e Ivan Morozov, ambos homens de negócios muito ricos. Esse foi o momento – breve, já que a Revolução de Outubro de 1917 logo viria – na história da Rússia imperial em que a alta burguesia ganhava poder e prestígio, em que a nobreza já não era a única fonte de influência política e cultural. Sobre a atividade de Shushkin e Morozov como colecionadores, uma boa fonte é este livro, que dei de presente à minha mãe há muitos anos:

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As coleções de Shushkin (caberia aqui especular sobre a melhor transliteração de seu nome… cada língua usa uma e esta em português é minha invenção) e Morozov foram montadas até o começo da Primeira Guerra Mundial. Depois da Revolução de Outubro de 1917, ambas foram desapropriadas e divididas entre o Museu Pushkin, em Moscou, e o Hermitage, em São Petersburgo. A São Petersburgo e ao Hermitage, fui apenas um vez, há vinte anos e, por isso, não tenho com a cidade e o museu a relação afetiva que tenho com Moscou e o Pushkin.

O livro de Beverley Whitney Kean apresenta, em apêndices, a lista das obras de arte   pertencentes a Shiushkin e Morozov. O primeiro possuía 43 obras de Matisse, das quais 36 telas. Quão feliz pode ser alguém que possui 43 obras de Matisse em casa? Muito feliz, pelos meus critérios. Morozov possuía 11, o que já daria para incrementar o grau de felicidade de qualquer ser humano. Meus olhos acabam de cair, por acaso, na informação de que havia na coleção Morozov 18 telas de Cézanne. Shushkin possuía 8 Cézannes e pendurava todos seus 16 Gauguins  na sala de jantar. É de sonhar, realmente.

Pelos meus cálculos, examinando os apêndices do livro de Kean, o Museu Pushkin ficou com 19 obras de Matisse na partilha das coleções Shushkin e Morozov com o Hermitage. Como todas chegaram à Rússia antes da Primeira Guerra Mundial, a coleção de Matisses do Museu Pushkin cobre a fundo um período relativamente curto de sua produção. Há no museu uma tela de 1896 e outra de 1900; ambas pertenceram a Morozov. Todas  as outras obras de Matisse no Pushkin são do período de 1902 a 1913.

Os dois colecionadores iam a Paris com frequência e conheciam Matisse pessoalmente. Foi a convite de Shushkin que o artista visitou a Rússia em 1911. Matisse, mais tarde, mencionaria o impacto que os ícones russos tiveram sobre ele. Todas as fontes que consultei (além do livro de Kean, pesquisei em  James H. Billington – The Icon and the Axe, an Interpretative History of Russian Culture -, em Suzanne Massie – Land of the Firebird, the Beauty of Old Russi-, em Oleg Neverov – Great Private Collections of Imperial Russia – e em monografias e biografias de Matisse, um dos artistas que mais admiro) mencionam que, graças às coleções Shushkin e Morozov, em 1911 Matisse era já  apreciado no meio cultural russo. As duas coleções eram abertas ao público e há registro de que Shushkin, aos domingos, gostava de acompanhar ele mesmo os visitantes. As duas coleções, ao mostrar em Moscou o que havia de mais avant-garde em Paris, influenciaram a arte russa. Malevich era um dos admiradores dessas obras e é estranho pensar que Matisse, o inovador no uso de cores vibrantes, contribuiu, entre outros, para formar a concepção artística do artista que, em 1915, apresentaria ao público a tela abstrata Quadrado Negro sobre Fundo Branco, onde apenas essa duas cores aparecem.

Nunca, em minhas visitas a Moscou, deixei de ir ao Pushkin, aonde vou especificamente para ver os Matisses. Passei frente a eles momentos de contemplação, em que a vida se tornava mais instigante, mais intensa. Saía do museu certo de que a felicidade é algo concreto.

Não tenho fotos dos quadros no meu celular. Fotografei, isto sim, a vista desde o pórtico de entrada do museu:

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A iminência da abertura da exposição da coleção Shushkin na Fondation Louis Vuitton está deixando o mundo da arte empolgado. Virão 130 obras do Hermitage e do Pushkin,  recriando parte da coleção em um só local.

Estive na Fundação em 2015, para visitar a exposição Les Clefs d’une passion, onde foram reunidas dezenas de obras-primas da arte do século XX. Um dos pontos mais altos da exposição foi o quadro La Danse, de Matisse, emprestado pelo Hermitage e que pertenceu a Shushkin, que o encomendara ao artista.

Montar uma exposição especificamente sobre a coleção Shushkin segue padrão recente, de examinar o gosto de determinados colecionadores. Em 2015, a National Gallery de Londres montou uma mostra reveladora e importante, Inventing Impressionism, que tive a sorte de visitar, sobre a atividade de Paul Durand-Ruel como marchand. Em 2011, a exposição Matisse, Cézanne, Picasso… L’Aventure des Stein, no Grand Palais, celebrou a atividade de Gertrude Stein, seus dois irmãos e sua cunhada – todos, aliás, amigos de Shushkin – sobre o meio artístico parisiense. Misturada com obras de outras origens, tanto no Pushkin quanto no Hermitage, a coleção Shushkin aparece fragmentada. Na Fundação, seu espírito visionário e corajoso ficará valorizado.

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