A Casa de Pilatos

Sevilha se reconhece por seus bairros antigos bem preservados, suas cores, suas laranjeiras carregadas de frutas mesmo no inverno, suas ruas pitorescas, pelo céu azul e pela luz peculiar. Some-se a isso o clima ameno no outono e no inverno, os excelentes e inúmeros restaurantes e a boa educação da população local e tem-se a explicação de por que a capital da Andaluzia é destino apreciado pelos turistas. Lá passei a virada do ano.

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Quando a conheci pela primeira vez em 2007, Sevilha já possuía fortes conotações culturais para mim. Desde sempre, era o local que eu associava a Carmen, a Velázquez -que nasceu na cidade – à figura de Figaro (que já mencionei em Oscar Wilde e o melhor Bellini do Rio de Janeiro) e à estória de Don Juan, que inspirou Molière e Mozart. Até hoje, não posso passar ao longo do muro da antiga Real Fábrica de Tabacos, atualmente sede da Universidade, e frente à sua entrada monumental sem pensar que é lá onde trabalha a fictícia Carmen e cantarolar alguma ária da ópera de Bizet:

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A dama de ficção mais querida para os sevilhanos é porém a figura de bronze do século XVI que adorna o topo do campanário (e ex-minarete) da Catedral, representando a Vitoriosa. Originalmente conhecida como Giralda, porque ela gira de acordo ao vento, a escultura passou a se chamar Giraldillo quando o nome original, por extensão, foi atribuído ao campanário. Aparentemente, há quem use os dois termos, de maneira indiferente, para se referir a ela.

Para um fotógrafo amador, conseguir uma boa imagem da Giralda e do Giraldillo é um desafio, por causa da altura do campanário, de quase 100 metros. Tirei várias fotos; acho que esta, onde coloquei um filtro para tornar os detalhes mais nítidos, mostra melhor a imponência da torre, embora a figura de bronze pareça distante:

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Felizmente, frente a uma das portas da Catedral há uma réplica também em bronze da escultura – que já esteve no topo da torre de 1999 a 2005, enquanto o original era restaurado – e assim pode-se apreciar de perto a beleza da figura renascentista:

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Cervantes, que morou em Sevilha, menciona a escultura no Don Quijote, como lembra placa em uma fachada na praça em torno à Catedral, mais precisamente no trecho conhecido como Plaza del Triunfo:

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Cervantes menciona Sevilha frequentemente em sua obra. Caminhando pela cidade, vi duas outras placas, ambas de azulejos, comemorando o escritor.

Na famosa Calle Sierpes, tradicional rua de comércio, vi esta:

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A Cárcel Real é onde Cervantes esteve preso por três meses, em 1597.

Em 1999, em entrevista publicada pela revista Sibila, João Cabral de Melo Neto, que morou em Sevilha mais de um vez e dedicou a ela os poemas recolhidos no livro Sevilha Andando, perguntado sobre que imagem lhe vinha à cabeça quando pensava na cidade, respondeu: “Acho que é a calle Sierpes, a rua principal. Chama-se Sierpes por isso, porque ela não é reta”.

Haverá forma mais bonita de celebrar uma cidade do que o famoso poema de João Cabral Sevilhizar o mundo ?

Como é impossível, por enquanto,
civilizar toda a terra,
o que não veremos, verão,
de certo, nossas tetranetas,

infundir na terra esse alerta,
fazê-la uma enorme Sevilha,
que é a contra-pelo, onde uma viva
guerrilha do ser, pode a guerra.

Voltemos a Cervantes. Em um muro, ao lado de portão de acesso ao recinto da Catedral, há esta placa:

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A referência às Novelas Ejemplares me traz boas lembranças, pois tenho particular afeição por esse livro. Vejam a placa em mais detalhe:

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Intrigado pela confecção harmoniosa das placas de azulejos referentes à obra de Cervantes, fiz pesquisa na Internet, onde descobri texto interessante do escritor José Carlos Canalda, no qual explica que, em 1916, para comemorar o tricentenário da morte de Cervantes – e o ano de 1616 é também, quero lembrar, pois é uma coincidência marcante, aquele em que morreu Shakespeare – as autoridades sevilhanas encomendaram vinte placas de azulejos em que seriam lembradas as menções feitas pelo escritor à cidade.

Falemos, porém, não mais de uma heroína de ficção, como Carmen ou a Giralda ou Giraldillo, mas de uma mulher de carne e osso.

No final do século XV, vivia en Sevilha uma dama nobre de nome Catalina de Ribera, que faleceu em 1505, com cerca de 55 anos de idade. Catalina casou-se com o viúvo de sua irmã, Pedro Enríquez de Quiñones. Os dois iniciaram a construção da Casa de Pilatos e, em 1483, adquiriram outro imóvel em Sevilha, o Palacio de las Dueñas. E é assim que o casal, que deve ter sido uma potência imobiliária na Sevilha da virada dos séculos XV e XVI, possuiu as primeiras versões das duas residências que, hoje, modificadas e ampliadas, são consideradas os mais importantes bens imóveis de Sevilha, após o Alcázar, residência real.

Catalina de Ribera é amplamente homenageada na Sevilha contemporânea. Na continuação dos Jardines de Murillo estão os Jardines de Catalina de Ribera, onde está, ao longo da muralha do Alcázar, o Paseo de Catalina de Ribera, no qual existe uma fonte do começo do século XX celebrando-a. Abaixo, mostro a fonte e sua inscrição, em sucessivos graus de detalhes:

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Tirar essa foto de lado não foi uma boa ideia, obviamente. O detalhe abaixo, tirado de frente, ficou melhor:

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E finalmente, a inscrição, que faz referência ao fato de Catalina ter sido a “egregia fundadora” do Hospital de las Cinco Llagas:

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Pelas vicissitudes das sucessões, os dois palácios do casal Pedro e Catalina, embora estejam ambos ainda nas mãos de seus descendentes, pertencem a proprietários diferentes. Os Duques de Alba são os donos do Palacio de las Dueñasos Duques de Medinaceli são os donos da Casa de Pilatos.

Em uma visita anterior a Sevilha, há muitos anos, eu visitara a Casa de Pilatos. Em 2016, pela primeira vez, o Palacio de las Dueñas foi aberto à visitação, em função da morte, em 2014, de Cayetana, 18ª Duquesa de Alba, célebre por seu espírito independente e anti-conformista, que lhe rendeu, entre os espanhóis, enorme popularidade, rara talvez em alguém nesse nível de riqueza – há avaliações de que deixou, ao morrer, fortuna de cerca de 2,8 bilhões de euros. A imagem da Duquesa de Alba está associada à casa em Sevilha, aparentemente sua preferida. Os jornais com frequência declaravam que ela detinha 46 títulos de nobreza e que essa cifra seria um recorde. A 18ª Duquesa de Medinaceli, porém, falecida em 2013, um ano antes de Cayetana (e não deixa de ser curioso que os numerais das duas fossem idênticos) parece ter detido 51 títulos. Quando a mesma pessoa possui 6, 7, 8 ou 9 Ducados, como era o caso das duas, aparentemente a precisão fica mais difícil.

Tanta ostentação de nobreza e fortuna, nas famílias dos Duques de Alba e de Medinaceli, me faz pensar em duas coisas, relacionadas. Primeiro, penso no poema de Sophia de Mello Breyer Andresen, Retrato de uma princesa desconhecida:

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Em segundo lugar, lembro que o Duque de Alba mais destacado foi o terceiro, o celebérrimo  Governador dos Países Baixos – região então possessão dos Habsburgos espanhóis – que, sob o reino de Felipe II, reprimiu de forma cruel e sanguinária a revolta contra o domínio da Espanha, o que não impediu o Norte da província, os atuais Países Baixos, de se tornarem independentes. O Sul católico, a atual Bélgica, permaneceu sob domínio dos Habsburgos, primeiro do ramo espanhol e, depois, com a extinção desse, do ramo austríaco, até a Revolução francesa. O mesmo Duque de Alba se destacou também por ter conquistado Portugal para Felipe II e ter sido nomeado primeiro Vice-Rei da nova possessão da monarquia habsburguesa. Por mais condenável que seja o Duque de Alba, responsável por milhares de execuções nos Países Baixos – de fato, “um imenso desperdiçar de gente”- na Espanha ele parece ainda ser visto como herói. Nenhum Duque de Medinaceli chegou perto de sua fama.

No final de dezembro, visitei as duas propriedades, o Palacio de las Dueñas e a Casa de Pilatos, uma logo após a outra.

Vejamos primeiro o Palacio de las Dueñas. Este é o portão de entrada, com o brasão usado pela família no século XVIII:

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 O que se vê do portão, em direção à rua, é o seguinte:

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A placa de azulejos no muro da direita foi colocada em homenagem ao poeta Antonio Machado, nascido na propriedade em 1875, pois seu pai era advogado ou administrador dos Duques de Alba, que alugavam casas no recinto de seu palácio, como os Duques de Guermantes alugavam à família do Narrador um apartamento em seu hôtel particulier.

Ver essa homenagem a Machado foi comovente para mim porque, na adolescência, em Montevidéu, minha professora de espanhol na escola era admiradora de sua poesia e as aulas eram passadas dissecando obras suas. Vejam em detalhe a placa, que alude a poemas de Machado:

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A paródia da bandeira e do hino britânicos pintada em uma porta de garagem pode ser vista mais nitidamente na foto abaixo:

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Uma homenagem, portanto, frente ao seu palácio, à popularidade de Cayetana, descendente do Rei da Grã-Bretanha James II.

Entremos no recinto do Palacio de las Dueñas. Chama a atenção a profusão de pátios, o mais célebre dos quais talvez seja o Patio de los limoneros, ilustrado nas duas fotos abaixo:

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Segue-se a ele o pátio principal, com suas arcadas:

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Na foto abaixo, a placa no muro, à esquerda, presta mais uma homenagem a Antonio Machado.

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Reparem abaixo nos azulejos e na ornamentação dos muros e do arco da porta, no pátio principal, que dá acesso ao chamado Salón de la Gitana:

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E aqui, em mais detalhe:

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A decoração do Salón de la Gitana, como em todas as salas do Palácio, é pesada, sombria e carregada de objetos. Deve-se supor que era assim que gostava de viver Cayetana:

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A Capela possui quadros de boa qualidade, como o retábulo – bom, embora não inovador – de Santa Catarina entre Santos, de Neri di Bicci, que viveu no século XV:

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A biblioteca, mostrada em duas fotos abaixo, revela atmosfera do final do século XIX, embora talvez faltem livros. É importante lembrar, contudo, que o Palacio de las Dueñas é apenas uma das casas dos Duques de Alba e que a maioria de seus tesouros está no palácio madrilenho:

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Por fim, chega-se ao Patio del Aceite:

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Terminada a visita ao Palacio de las Dueñas, fui rever a Casa de Pilatos.

A entrada principal da residência sevilhana dos Duques de Medinaceli, típica do Renascimento italiano, é mais elaborada em termos artísticos mas possui soberba nobiliárquica mais sutil do que a de seus primos distantes, os Duques de Alba:

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O interior, porém, conta outra estória. Antes de mais nada, é preciso saber que não é permitido fotografar o interior do segundo andar da Casa de Pilatos, que possui quadros interessantes, particularmente de Luca Giordano, um favorito meu. O térreo apresenta-se assim, no pátio interno:

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Os bustos nas paredes são de Imperadores romanos e de personagens ilustres – Cícero, Marco Antonio, Aníbal – da Antiguidade. A exceção é o busto de Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico e Rei de Espanha e de muitas outras terras. Fica claríssima a intenção de afirmar ser Carlos V o sucessor de Roma, na sua universalidade.

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Como se vê, a Casa de Pilatos é mais rica do que o Palacio de las Dueñas, em termos de   estuques e variedade nos azulejos. A casa deve muito, na sua aparência atual, ao filho de Catalina de Ribera e Pedro Enríquez, Fadrique Enríquez de Ribera, primeiro Marquês de Tarifa, que visitou Jerusalém (o que originou o atual nome da propriedade), entre 1518 e 1520. Seu sobrinho e herdeiro, o primeiro Duque de Alcalá, montou a coleção de estátuas antigas, muitas delas restauradas.

Ao redor do pátio principal, encontram-se diversas salasonde as influências mudéjar – Sevilha foi possessão árabe até 1248 – e do Renascimento italiano se coadunam:

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Algumas salas contêm peças da coleção de bustos, esculturas e baixos-relevos, muitos deles, como disse, da Antiguidade:

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Comparados com o pátio central e as salas, os jardins possuem caráter mais intimista:

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Como outros cantos do palácio, o jardim principal é representativo, com sua loggia, do Renascimento italiano:

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Nada mostra mais a diferença entre o Palacio de las Dueñas e a Casa de Pilatos do que as respectivas escadarias ao segundo andar (o qual, no caso da casa dos Duques de Alba, não é visitável). Abaixo, a escadaria do Palacio de las Dueñas:

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Sem dúvida, aristocrático e elegante, inclusive porque o retrato ao fundo representa a Imperatriz Eugenia, mulher de Napoleão III, que era espanhola de nascimento e cuja irmã foi Duquesa de Alba. Eugenia de Montijo é tratada, no Palacio de las Dueñas, como verdadeira heroína (e, sejamos justos, qualquer um que tivesse tido uma tia-trisavó Imperatriz dos Franceses provavelmente faria o mesmo); somos informados de que gostava particularmente do Patio de los limoneros e de que morreu, em 1920, na residência madrilenha dos Duques de Alba, o Palacio de Liria.

Vejamos abaixo, em duas fotos,  a escadaria da Casa de Pilatos:

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A variedade e a riqueza dos azulejos, todos do século XVI, elevam o refinamento a um nível superior. Aqui, não é necessário o retrato de uma tia-trisavó Imperatriz.

Qual das duas casas é mais bonita?

Elas se complementam.

O Palacio de las Dueñas se parece a uma casa onde as pessoas vivem. Com seu excesso de objetos e memorabilia em homenagem a uma celebridade, Cayetana de Alba (por exemplo, são expostos em uma vitrine, no centro de uma sala, o vestido e os sapatos com que dançava flamenco), apesar de secular dá a impressão de ter sido a casa de uma pessoa específica.

A Casa de Pilatos, mais impressionante, se parece a um museu, com seus bustos e esculturas e a multiplicidade de desenhos de azulejos. Embora os Duques de Medinaceli a usem frequentemente, é mais impessoal e não celebra uma pessoa específica.

A única regra seria, para um turista, não visitá-las depois de ir ao Alcázar (ou Reales Alcázares, no plural, como gostam os sevilhanos) que, por ser palácio real e fonte de inspiração para as duas casas particulares, as supera pelo requinte e a qualidade dos estuques e dos azulejos.

O que as duas casas fornecem é a percepção de como o Renascimento chegou a Sevilha e se juntou ao gótico moribundo e ao estilo mudéjar para formar conjuntos harmônicos, imponentes, luxuosos, mas onde havia a preocupação com conforto e de tornar a vida mais agradável, mais bela.

Antonio Machado, nascido no Palacio de las Dueñas e que depois de se mudar para Madri, em 1883, aos 8 anos de idade, nunca mais moraria em Sevilha, lembrou-se para sempre, como mostra sua poesia, dos “naranjos encendidos“,  do “limonero lánguido”, do “encanto de la fuente limpia”, da “tarde alegre y clara”. Seus versos fazem referência a Sevilha mas também à casa onde nasceu, fonte para ele de paz, beleza, harmonia: “Esta luz de Sevilla… es el palacio donde nací, con su rumor de fuente“. Desde o ano passado, com a abertura do Palacio de las Dueñas, todo visitante pode sentir o mesmo que o poeta.