A alma dos belos corpos

A alma dos belos corpos

A troca de mensagens inesperada, uma noite em Kuala Lumpur, desviou minha atenção do texto que eu escrevia sobre Castro Alves. Um amigo virtual no Twitter, Hudson Rabelo, residente no Rio de Janeiro, mandava-me a foto de um livro que conseguira na Berinjela, conceituado sebo carioca, e de um recibo. Nunca tínhamos nos correspondido antes. O recibo, onde meu nome aparece impresso, é o de uma compra que fiz em Quito, onde eu então morava, na livraria Libri Mundi. Lista sete obras, uma delas La guerra del fin del mundo, de Mario Vargas Llosa, justamente o mesmo exemplar adquirido por Hudson Rabelo na Berinjela. Esse foi o último romance que me dispus a ler do escritor peruano. Antes de ele virar espanhol, antes de ele virar marquês, antes de ele virar companheiro de Isabel Preysler, heroína das revistas espanholas de fofocas e ex-senhora Julio Iglesias. Preferi não ler nenhum dos subsequentes.

A Berinjela fica em frente à livraria Leonardo da Vinci. Essa não é mais a Leonardo da Vinci especializada em obras estrangeiras que conheci criança, levado pela minha mãe, e frequentei, ao longo da vida, até que fechasse em 2015. Um ano depois, surgiu novo estabelecimento com o mesmo nome, no mesmo local, no subsolo do prédio Marquês do Herval, na Avenida Rio Branco no Centro do Rio de Janeiro. O perfil mudou. Transformou-se em uma boa livraria de obras brasileiras e dispõe de um ótimo café. Compete, para mim, com a Livraria da Travessa de Ipanema na categoria de mais charmosa do Rio de Janeiro. Outros, eu sei, preferem a elas a Argumento.

É um mistério como La guerra del fin del mundo foi parar no alfarrabista. Tenho uma teoria a respeito, mas ela não explica tudo. Tampouco sei o motivo de eu ter comprado esse exemplar na Libri Mundi, pois já lera o romance anos antes. Igualmente estranho é o recibo, que considero um documento de caráter pessoal, ainda estar dentro do volume e ter podido ser lido por todos os que o abriram no sebo.

Lembro, para quem tiver esquecido, que La orgía perpetua não é um livro erótico, mas outra obra de Vargas Llosa, um estudo sobre Flaubert. Esse exemplar, também listado no recibo, continua a existir em nossas estantes, e posso vê-lo neste exato momento aqui em Kuala Lumpur.

Em Quito, naquele tempo, nosso programa predileto, aos domingos, era almoçar no restaurante italiano de um hotel no centro da cidade — nossa filha, então muito criança, encomendava sempre o mesmo prato, um farfalle ao salmão — e, depois, ir visitar ali perto a Libri Mundi. Como o nome indica, a livraria oferecia obras em diversos idiomas. Era como ter, em Quito, a Leonardo da Vinci de antigamente, que ainda então existia. A Libri Mundi ficava instalada em uma casa de dois ou três andares em rua bucólica. Vejo na Internet que, nessa localização, ela fechou em 2015, portanto no mesmo ano da velha Leonardo da Vinci, mas continua a existir em centros comerciais da cidade.

Rever o recibo esquecido da Libri Mundi foi como viajar no tempo. Relembrei a infância da minha filha; relembrei nossos animais de estimação, todos agora mortos, que eram felizes na casa em Quito; relembrei detalhes da vida no Equador; relembrei amigos. Saber do fechamento da sede da Libri Mundi na rua Juan León Mera doeu, como dói o fechamento de toda livraria. A verdade, contudo, é que se os humanos desaparecem, não deve surpreender que o mesmo aconteça aos lugares mágicos onde compramos livros.

Em Seis livrarias, em 2018, escrevi sobre aquelas de que mais tinha gostado no ano anterior. A primeira frase dessa minha crônica é absolutamente verdadeira: “Livrarias tendem a aparecer magicamente diante de mim”.

A lembrança da Libri Mundi, ressuscitada inocentemente por uma mensagem no Twitter, deu-me vontade de voltar a falar em livrarias. Omito aqui as lisboetas, descritas em um texto meu de 2021, Um dia em Lisboa, e aquelas de que tratei em “Seis Livrarias”. Todas as fotos foram tiradas por mim menos, naturalmente, a que revela o recibo da livraria quitenha e o romance de Vargas Llosa dentro do qual ele reside há anos.

Em sua essência, livrarias são todas parecidas, e podemos considerá-las de maneira descomplicada. São espaços onde não há suspense. No entanto, algumas se diferenciam das demais. A razão para isso é o ambiente. Entramos, e recebemos a sensação agradável que aquele espaço provoca. Pode ser por causa da arquitetura, ou da decoração, ou do espírito reinante, generoso e simpático ou, ao contrário, imponente. Às vezes o estoque também se destaca, e pode ser mais dirigido aos nossos interesses pessoais.

Há por exemplo, em Paris, uma livraria, Les Cahiers de Colette, xodó de intelectuais, que a rigor em nada se distingue de qualquer outra boa livraria da capital francesa, onde elas pululam. Dois detalhes, porém, a tornam particularmente atraente, a presença magnética no recinto da proprietária e fundadora, Colette Kerber, e um painel em que ela afixa fotografias de escritores que admira. Esses dois detalhes bastam para conceder ao local uma atmosfera única. Nas fotos abaixo, a segunda mostra o que torna Les Cahiers de Colette uma típica livraria parisiense de alta qualidade. A terceira revela um dos detalhes que a transformam em algo fora do comum.

Deveríamos porém iniciar pela mais nobre das livrarias, a Hatchards, em Londres, que frequento desde o final da adolescência. É tão distinta — “livreiros desde 1797” — que expõe, no patamar entre dois dos andares, um retrato a óleo de seu fundador, John Hatchard. A fachada, debruçada sobre a Piccadilly Street, apresenta três alvarás reais, de Elizabeth II, do duque de Edimburgo e daquele que era até setembro de 2022 o príncipe de Gales. Com a morte da rainha e de seu marido, e a ascensão ao trono de Carlos III, suponho que os alvarás terão de ser retirados, e um deles, o do novo rei, novamente concedido. Em julho de 2022, quando lá estivemos pela última vez, os três continuavam na fachada, embora o príncipe Philip tenha morrido em abril de 2021.

Perto do hotel em que minha mulher e eu ficamos hospedados em Londres, em julho, caminhando ao acaso descobri a mais charmosa das livrarias, a John Sandoe. Em um tuíte, durante a viagem, escrevi sobre ela: “a própria ideia de paraíso sereno”. É assim, elas realmente aparecem magicamente diante de mim. Entrei na John Sandoe várias vezes em julho. Era como a livraria do bairro para mim. Situada quase na esquina da agitada King’s Road, o seu silêncio, quando se entra, faz com que pareça a sólida biblioteca de uma casa no campo. Eu subia e descia pelos seus três andares. Às vezes, ficava em pé no térreo, frente às janelas, lendo algum volume retirado de uma das estantes. O verdadeiro luxo, durante uma viagem, é este: não sentir urgência em correr de museu em museu e em visitar exposições, enfrentando trânsito e multidões, mas ficar em um ambiente protegido, longe de todo burburinho, sonhando com frases escritas por outros.

Embora Machado de Assis fosse todo dia à livraria Garnier, não era essa a sua predileta. Isso mostra Brito Broca em A Vida Literária no Brasil – 1900, obra de 1956. Estima ele que Machado “não devia apreciar muito aquele recinto, onde os intelectuais se cruzavam e tropeçavam uns nos outros”, e conta que, uma vez, o escritor comentou com o gerente de outra livraria, a Quaresma, aonde também ia todo dia: “Sabe? Gosto mais da sua casa porque é silenciosa, não há aquele zunzum da Garnier”. Machado teria adorado a John Sandoe.

Em viagem anterior a Londres, em setembro de 2019, eu conhecera, acredito que pela primeira vez, outra livraria famosa da cidade, a Daunt Books de Marylebone, original do que hoje é uma rede. A seção sobre o Sudeste Asiático é importante, e isso despertou minha curiosidade, já que poucos meses depois, eu sabia, estaria de mudança para Kuala Lumpur. Os vitrais e a claraboia na galeria principal fazem dela um espaço particularmente agradável.

A Daunt Books possui uma característica: é ainda, verdadeiramente, uma cadeia de livrarias independentes, cujo proprietário é até hoje seu fundador, James Daunt. Nem a Hatchards preserva mais essa qualidade, pois embora mantenha personalidade própria, pertence agora à rede Waterstones. Esta, por sua, vez, é controlada majoritariamente por uma firma de investimentos americana, proprietária também da rede, colossal, Barnes & Noble. As redes Barnes & Noble e Waterstones são presididas pelo mesmo James Daunt, que já não dirige as livrarias de que é dono.

A maior livraria de Londres, e certamente uma das maiores do mundo, é a Foyles. Faz dez anos que ela já não ocupa o prédio onde a conheci, onde permaneceu por 90 anos, na Charing Cross Road, mas continua na mesma rua, reduto histórico de livreiros. Muitas vezes, quando estudante, perdi-me nos corredores, nos vários andares do edifício anterior. No novo prédio, o interior da Foyles é bem diferente de quando eu era adolescente. É mais nítido, mais claro, mais arrumado. Talvez, por isso, menos original. Possivelmente, a razão seja que a livraria já não é independente, mas pertence à Waterstones. Sem dúvida, eu gostava mais do prédio e do ambiente anteriores. No entanto, sempre acabo entrando no espaço atual, apesar do zunzum.

Charing Cross Road deve muito de sua fama como paraíso de literatos ao filme de 1987 dirigido por David Jones, 84 Charing Cross Road, estrelado por Anne Bancroft, Anthony Hopkins e Judi Dench, e inspirado em uma peça de teatro de James Roose-Evans, a qual era uma adaptação do livro de mesmo título de Helene Hanff. Esta, como o mundo inteiro hoje sabe, graças ao filme, manteve durante cerca de vinte anos uma amizade epistolar com Frank Doel, gerente da livraria de segunda mão londrina Marks & Co. Livros eram encomendados de Nova York por Helen Hanff, Frank Doel os providenciava, muitas cartas eram trocadas pelo Oceano Atlântico, e presentes também. Os dois amigos epistolares nunca se encontraram. Marks & Co já não existe, e o prédio na Charing Cross Road é hoje um McDonald’s.

Assisti à peça em Londres, na adolescência, e revi o filme faz talvez dois anos. O enredo é a celebração de como a relação entre seres humanos pode ser baseada em amor pelos livros. Essa é a minha experiência pessoal. Discutir livros, oferecer e receber livros são gestos que aproximam as pessoas.

Além da Foyles, sobrevivem algumas livrarias na rua. Há pelo menos dois bons sebos, Henry Pordes e Any Amount of Books, ao lado um do outro. Uma pequena rua transversal, de pedestres, Cecil Court, é quase que exclusivamente povoada de alfarrabistas. Ao entrar em Any Amount of Books, em julho, recebi uma surpresa e ouvi uma novidade, ao me ver face a face com um amigo livreiro malásio, Nazir Harith Fadzilah. Eu sabia que ele estava em Londres, acompanhando a mulher, mestranda na Inglaterra. Não sabia que trabalhava no sebo em Charing Cross Road. Nazir é o fundador de uma livraria encantadora, Tintabudi, em uma pequena sala em Kuala Lumpur, sobre a qual escrevi em uma Carta da Malásia, A Tinta dos Seres Bons. A surpresa, boa, foi encontrar Nazir em Any Amount of Books. A novidade, menos boa, foi saber por ele que a Tintabudi, fechada enquanto seu proprietário está na Inglaterra, já não reabrirá no mesmo endereço quando Nazir voltar à Malásia.

Notei a ausência, nessa última viagem, de um terceiro sebo na Charing Cross Road. A Internet me informa que Francis Edwards e Quinto — duas antigas livrarias que se haviam fundido em um só estabelecimento — fecharam em 2020, por causa da Covid. Novamente separados, os dois alfarrabistas continuam a existir, embora não mais em Londres; Quinto, na verdade, agora é apenas virtual. Descubro, meio por acaso, que Francis Edwards esteve instalada, originalmente, no prédio onde hoje fica a Daunt Books original, a de Marylebone.

Fica o registro de como a fachada do local na Charing Cross Road se apresentava ao transeunte em 2019, quando a fotografei.

Assim como Londres, Paris e Bruxelas são povoadas de livrarias irresistíveis, em cuja companhia as horas passam agradavelmente.

A maior de Bruxelas é provavelmente a Filigranes. Quando eu trabalhava na capital da Bélgica, ficar lá ouvindo o piano, selecionando livros, tomando um chocolate quente era uma boa forma, aos domingos, de passar as tardes de inverno. Menor, porém mais bonita, é a Tropismes. O nome, suponho, é homenagem à obra mais famosa da escritora Nathalie Sarraute. A livraria fica dentro das Galeries Royales, três passagens interligadas, de meados do século XIX, com teto de vidro, no centro histórico de Bruxelas. Seu estoque é particularmente valioso nas áreas de literatura e poesia francófonas e de história e outras ciências humanas.

Muitas vezes mencionei a livraria Galignani, em Paris, de passado tão ilustre que há na sua página eletrônica um opúsculo ilustrado, em francês e inglês, narrando sua história e a da família que a fundou. Existente desde os primeiros anos do século XIX, instalou-se na rue de Rivoli em meados do mesmo século. Já no início era também uma livraria, e uma editora, de livros em inglês. O espírito que reina nela é semelhante ao da Hatchards e ao da Ferin de Lisboa. Trata-se de um ambiente aristocrático, acolhedor, a anos-luz das vicissitudes e tragédias humanas. Deti-me sobre a Galignani, particularmente, em Um lugar encantado, em que comentei o guia de François Busnel, Mon Paris littéraire.

Um leitor, na época, referindo-se ao título que eu dera àquela crônica, perguntou-me qual era o “lugar encantado”: Paris, a rue de Richelieu, livrarias em geral, alguma específica, livros ou o guia de François Busnel? Ou se seria minha imaginação vagando por todos esses elementos? O sentido do título, a mim, parece evidente.

Além da Galignani e de Les Cahiers de Colette, em “Um lugar encantado” eu citava outra livraria entre minhas prediletas, a Delamain. Sobre a permanência de outra favorita, L´écume des pages, e os infortúnios de La Hune, talvez um dia eu escreva no futuro. Convém, aqui, fazer um comentário a respeito da Shakespeare and Company, possivelmente a mais célebre de Paris, se não do mundo.

Antes de mais nada, é preciso saber que essa não é a livraria homônima fundada e mantida por Sylvia Beach entre 1919 e 1941. Deve-se ler seu livro de memórias de 1956, intitulado naturalmente Shakespeare and Company, para entender a personalidade da autora. Obra mais encantadora nunca foi escrita. Revela uma visão do mundo espirituosa, não-conflitiva, sem dramas. Assim, pelo menos, Sylvia Beach quis passar para a posteridade. Narra com pluma leve os dissabores de sua vida. Sobre os seis meses que passou presa pelos alemães em Vittel, em 1941, diz apenas: After six months in an internment camp, I was back in Paris, but with a paper stating that I could be taken again by the German military authorities at any time they saw fit. Comenta rapidamente o fato de que a igreja presbiteriana de que seu pai era pastor, em Princeton, contava, entre os membros da congregação, com o futuro presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson. Sylvia Beach descreve de maneira vívida os muitos escritores de quem foi amiga, como Valery Larbaud, André Gide, Paul Valéry, Gertrude Stein, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. Este, em suas próprias memórias dos anos passados em Paris, A Moveable Feast, incluiu um capítulo sobre a livraria. De forma pouco característica, Hemingway tem apenas elogios sobre a livreira, dizendo: No one that I ever knew was nicer to me.

Acabo de reler Shakespeare and Company, onde aprendo que Sylvia Beach also translated Barbarian in Asia by Henri Michaux. Em julho, em Paris, minha mulher e eu, depois de muito buscar, encontramos um exemplar de Un barbare en Asie na livraria L’écume des pages. Nesse livro, que procurávamos há tempos, o escritor franco-belga fala sobre sobre sua experiência da Ásia, inclusive da Península Malaia e de Singapura. Diz sobre os malaios o que penso cotidianamente em Kuala Lumpur: Il n´y a pas une chose que je n´aime en eux. Foi em Quito que li pela primeira vez um livro de Henri Michaux, comprado na Libri Mundi, que trata do período, em 1928, em que morou no Equador, e de como tomou o caminho de regresso à Europa a pé, em lombo de mula e em canoa, descendo o rio Napo e, depois, de barco, o Amazonas até Belém do Pará, de onde finalmente tomou o navio para casa. Só em canoa foram dois mil quilômetros percorridos. Em Iquitos, acorda um dia e pensa que terá ainda tout le Brésil à traverser.

E é como se tudo fizesse sentido no mundo, como se todos os pontos esparsos da minha vida se juntassem na nossa biblioteca, hoje dividida entre Kuala Lumpur e Singapura.

Nosso exemplar de Shakespeare and Company também foi comprado em Quito, em um sebo chamado Confederate Books, que ainda existe, embora hoje sob outro proprietário e em outra localização. Naquela época, situava-se em uma esquina da Juan León Mera, a rua onde ficava a Libri Mundi. De repente, lembro que aquele era um canto da cidade bem perto do meu escritório, e que às vezes, na hora do almoço, eu caminhava até lá, ia de livraria em livraria, fuçando. Abro A Moveable Feast e encontro dentro um recibo da Confederate Books, listando à mão a compra do livro do Hemingway com mais dois, um deles o Seven Gothic Tales da Isak Dinesen, que considero notável e no qual penso com frequência.

A Shakespeare and Company era na verdade um centro intelectual. Também biblioteca de empréstimo, servia de ponto de referência, de encontro, para os escritores da Lost Generation, conterrâneos de Sylvia Beach — all those pilgrims of the twenties, ela nos diz, who crossed the ocean and colonized the Left Bank of the Seine — naquela época hoje venerada, em que Paris, entre as duas Guerras Mundiais, ainda era o centro do mundo, em termos artísticos e culturais. A livreira tornou-se uma editora famosa na história da literatura ao financiar, apesar de seus escassos recursos monetários, a publicação de Ulysses de James Joyce, em 1922, quando isso não teria sido possível na Inglaterra ou nos Estados Unidos, onde o romance era considerado obsceno. Sylvia Beach idolatrava James Joyce e gerenciava sua vida, a pessoal e a profissional. Menciona apenas discretamente que o autor irlandês, quando pôde por fim publicar o livro em países anglófonos, mostrou-se ingrato com ela, financeiramente: I understood from the first that, working with or for Mr. Joyce, the pleasure was mine—an infinite pleasure: the profits were for him.

A primeira e ilustríssima Shakespeare and Company, que ficava na rue de l´Odéon, fechou em 1941. Sua história, por causa da importância que livraria e livreira tiveram, foi narrada muitas vezes. A atual usa o mesmo nome, mas em outro endereço. Situada em um dos bairros mais antigos de Paris, seu charme é inquestionável. Pouco vou lá, porém. Não sei se faz sentido, em Paris, frequentar uma livraria que vende obras exclusivamente em inglês. Talvez faça para turistas que não falam francês ou para franceses sedentos pela civilização americana. Ela exerce o papel, na capital da França, de bastião da cultura anglo-americana.

Quando lá estive pela última vez, em 2019, senti-me asfixiado. Poucos dias antes, eu havia chegado de Londres, onde dedicara boa parte de meu tempo a frequentar livrarias como a Daunt e a Hatchards. Com minha filha, eu tinha visitado na véspera, no Musée du Luxembourg, uma exposição excelente dedicada à obra de pintores ingleses do período de 1760 a 1820, L´âge d´or de la peinture anglaise. Estava, assim, saturado de anglofonia. Era agora a cultura francesa que eu buscava. Fiquei poucos minutos na Shakespeare and Company e saí.

É proibido fotografar seu pitoresco interior. Tirei fotos da fachada. Os escritos nos painéis são do livreiro que fundou o novo estabelecimento, George Whitman. Como ele, considero Tolstoi e Dostoievski more real to me than my next door neighbors.

Em 2013, o escritor espanhol Jorge Carrión publicou um livro singelamente intitulado Librerías, sobre sua experiência de andar pelo mundo frequentando-as. Em algum momento, decidi comprá-lo, após ler comentários a respeito na imprensa brasileira, em especial em um artigo de Rodrigo Casarin.

Encomendei a edição espanhola, dando como local de entrega o hotel onde se hospedava o escritor Alexandre Vidal Porto, de passagem por Madri, que se dispôs a trazê-lo para mim. A encomenda atrasou e, se jamais chegou ao hotel, terá sido tarde demais para encontrar Alexandre. Meses mais tarde, fiz novo pedido e recebi o livro pelo correio em Brasília. Minha pertinácia e a dupla despesa não me renderam frutos. Logo depois, em 2020, parti para trabalhar na Malásia, minha mulher para Singapura, e o livro viajou na mudança dela. Tornou-se inacessível para mim até este ano, quando as fronteiras dos dois países foram reabertas, depois da pandemia.

Vi-o na estante em minha última ida a Singapura. Quis ver o que diz sobre a John Sandoe, o que mostra bem o quanto a livraria na rua Blacklands Terrace, a um pé da King’s Road e da Sloane Street, me impressionara em julho. O espanhol também cedeu aos seus encantos. Escreve que o interior da John Sandoe tiene todo lo que desea un fotógrafo aficionado. Contudo, avisa, ela é mais do que una imagen pintoresca, pois ese cuerpo precioso tiene alma.

O atual dono da Leonardo da Vinci, Daniel Louzada, comprou-a em 2016 de sua fundadora, Vanna Piraccini, que durante décadas foi amiga e inspiradora da intelligentsia carioca e com quem, por timidez, nunca tive coragem de conversar. Em janeiro de 2022, Vanna Piraccini morreu, aos 96 anos. Também faleceu este ano, em fevereiro, Brigitte de Meeûs, fundadora da Tropismes, aos 76. Em janeiro de 2017 já morrera José Ferreira Vicente, fundador de um de meus sebos prediletos em Lisboa, Olisipo, que desde então mudou-se para novo endereço.

Assim são as livrarias e seus criadores, mortais como nós, seus clientes, admiradores e amigos. Elas surgem, muitas prosperam, criam um impacto cultural, algumas tornam-se míticas, mudam de lugar, de proprietário, desaparecem ou parecem-nos, ilusoriamente, destinadas a durar para sempre, mas evoluem, transformam-se. Afetam nossas vidas, permitem sonhos, tornam-se nossa segunda casa. Quando uma fecha, é como um golpe no coração. Mas como um amigo querido, um parente carinhoso, em nós elas vivem para sempre. Como a Libri Mundi de Quito, no bairro La Mariscal, na rua Juan León Mera. Trazida de volta à memória, um dia em Kuala Lumpur, por uma foto casualmente recebida pelo Twitter. Voltou assim a existir.

Há algo insondável nisso tudo, pois assim é a vida.

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Quatro telefonemas

Quatro telefonemas

Colette amava os gatos. Teve vários ao longo da vida. Quando era ainda casada com seu primeiro marido, Henry Gauthier-Villars, cujos romances ela escrevia para que ele os assinasse como se fossem seus, com o pseudônimo de Willy, existia um gato chamado Kiki. Mais precisamente Kiki-la-Doucette. Era um angorá. Morreu em 1903, nos diz Judith Thurman em sua biografia da escritora, Secrets of the Flesh, sem especificar a razão da morte e a idade do gato.

Kiki-la-Doucette, gato bem real, inspirou um personagem literário. No livro de Colette Dialogues de bêtes, publicado em 1904, portanto após a morte de Kiki, o gato aparece em vários diálogos conversando com Toby-Chien, o buldogue francês que também existiu. De angorá, Kiki-la-Doucette vira um chartreux, embora sua descrição física — “um corpo listrado” — não se pareça à dos gatos dessa raça. Em 1930, Colette ainda estava revisitando essa obra. Em suas memórias sobre o casamento com Willy publicadas em 1936, Mes apprentissages, a escritora assim descreve o angorá: “Longo, opulento, sutil”.

Nos diálogos com Toby, Kiki-la-Doucette mostra-se intrinsicamente felino, ou como imaginamos que um gato deva ser. É dado a dizer ao buldogue frases como: “Só vejo extravagâncias ao meu redor”; “as sutilezas psicológicas sempre ficarão inacessíveis a você”; “sinto vergonha por você, você ama todo mundo, aceita todas as rejeições de forma servil”; “anda, imita minha divina serenidade”.

Os dois, Kiki e Toby, amam seres diferentes. O gato prefere “Ele”, alter ego de Willy, enquanto o buldogue entrega sua devoção a “Ela”, a própria Colette. Um dos diálogos acontece durante uma viagem de trem, de que participam Ela, Ele, Kiki e Toby. O cachorro está solto, e o gato está em uma cesta fechada. Kiki exclama: “As torturas que sofro são morais. Estou sendo submetido ao mesmo tempo ao enclausuramento, à humilhação, à obscuridade, ao esquecimento e aos sacolejos”. Seu desconforto logo termina. “Ele” retira o gato da cesta, dizendo: “Venha, meu belo Kiki, meu enclausurado, venha, você agora terá rosbife frio e peito de frango”.

Kiki explica a Toby como consegue evitar, ao contrário do seu interlocutor, o óleo de rícino:

Uma vez Ela quis — eu era ainda pequeno — me purgar com o óleo. Eu a arranhei e mordi tanto, que nunca mais Ela tentou. Por um minuto, Ela deve ter achado que estava com um demônio sobre os joelhos. Eu me contorci em uma espiral, soprei fogo, multipliquei por cem as minhas garras, por mil os meus dentes, e fugi, como em um passe de mágica.

Kiki também transmite a Toby sua tática para evitar aquilo que o buldogue classifica como “o suplício do banho”. Explica que, ao ser submetido à experiência, deitara-se de costas e adotara o olhar “clemente e aterrorizado do cordeiro no altar”.

Apenas este ano tomei conhecimento da existência dos dois Kiki-la-Doucette, o real e o fictício. Quando isso aconteceu, minha família havia perdido uma outra Kiki. Muitas vezes escrevi sobre nossa gata persa dourada, que emprestou mesmo seu nome para o título de uma crônica de abril de 2020, Kiki em Kuala Lumpur.

A viagem para trazê-la de Brasília à Malásia, em janeiro daquele ano, durara, de porta a porta, 36 horas, atravessando dois oceanos, a bordo de três aviões. Um percurso, sem dúvida, mais penoso do que o trajeto de trem dos personagens de Colette. Trancada em uma jaula nos três diferentes voos conosco, emulando Kiki-la-Doucette a nossa Kiki miou praticamente as 36 horas. No último trecho, Istambul-Kuala Lumpur, puxei-a um momento para fora da pequena jaula, segurei-a nos braços, e passeamos juntos pela cabine. Os membros da tripulação, em vez de me censurar, começaram a me mostrar fotos dos seus próprios gatos.

Não foi à toa que escrevi sobre Kiki em abril de 2020, quando vigorava na Malásia o primeiro confinamento e o pavor do vírus se iniciava. Era proibido sair de casa, a não ser para comprar comida e remédio. Enjaulado em um apartamento vazio em Kuala Lumpur, sem a biblioteca e sem a mobília, que estavam em um container no cais de Port Klang, sem conhecer quase ninguém na Malásia, onde eu chegara cinco semanas antes do início do confinamento, forçosamente separado da minha família amparei-me na gata persa dourada. Tínhamos apenas, como companhia, um ao outro. Cuidar dela tornou suportável o isolamento provocado pela pandemia. Para mim, a única exceção, além dos livros que eu previdentemente fora comprando depois da chegada, era um amigo brasileiro que, uma vez por semana, me dava carona até o supermercado. Para Kiki, não havia o alívio da quebra da rotina. Era eu apenas em seu universo, e mais ninguém.

Houve, depois disso, outros confinamentos. Aconteceu assim o que sempre acontece quando dois seres que se amam são obrigados a viver encerrados, na presença exclusiva e constante um do outro. O amor cresceu ainda mais.

Em novembro de 2021, as fronteiras entre Malásia e Singapura foram parcialmente reabertas, sob diversas condições. No início de dezembro, viajei a Singapura. Como contei na carta da Malásia de janeiro de 2022, Tchekhov e os tigres, rever minha mulher, conhecer sua casa, pareceu-me um paraíso, após as agruras dos confinamentos. Durante uma semana, tudo transcorreu de maneira perfeita. Até que veio o primeiro telefonema.

Em Kuala Lumpur, Kiki parara de comer. Videoconferências entre nós não a motivaram. Liguei para o veterinário. Ao visitá-la, ele recomendou uma alimentação especial e vitamina B. Avisou que, se ela não voltasse a comer em poucos dias, teria de ser internada.

Dois dias depois, um domingo de tarde, regressei à Malásia. Ao entrar no apartamento, notei um silêncio pouco habitual. Não houve miados. Não houve corrida até a porta para me receber. Chamei. Procurei. Sem resultado. Supus que ela estaria dormindo em algum novo esconderijo.

Desfiz a mala. Guardei as roupas. Liguei para minha mulher. Tomei um chá. Chamei. Procurei. O silêncio continuava. A solidão também. Àquela altura, fazia já duas horas desde minha chegada a casa. O sol se punha. Tentei novamente.

Foi embaixo de um móvel que a encontrei.

Nunca ela havia se escondido ali. Estava acocorada, ensimesmada. O olhar era opaco, indiferente. Ofereci comida, que ela rejeitou. Peguei-a no colo. Trouxe-a para cima da cama. Ela imediatamente saiu do quarto.

Na segunda-feira, levei-a uma clínica. A veterinária declarou: “Ela sofreu um trauma emocional com sua viagem. Por isso parou de comer e daí desenvolveu uma doença típica de gato idoso, lipidose hepática”. Perguntei sobre seu prognóstico. A veterinária hesitou apenas um pouco antes de responder: “Bem, ela tem 17 anos. Já está no bônus”. À noite, recebi da clínica o segundo telefonema de más notícias: “O resultado do exame de sangue é muito ruim”.

Começamos então, Kiki e eu, uma nova existência. Ela não comia de forma espontânea. Trancada em uma jaula, recebia soro por via intravenosa. A comida era forçada pela garganta. Eu ia à clínica na hora do almoço. Abria a porta da jaula. Conversava com ela. Às vezes, ela ronronava, enquanto eu fazia carinho. Muitas vezes, me ignorava. Sugeriram-me que eu a fizesse escutar música. Selecionei árias de Mozart, sobretudo de As bodas de Figaro e de Don Giovanni. A escolha não era arbitrária. Durante os confinamentos, como narrei em Cleópatra no Escritório, à noite eu costumava assistir às gravações oferecidas gratuitamente pela Metropolitan Opera. Chamara minha atenção o fato de que Kiki levantava a cabeça com frequência, atenta, quando a ópera era de Mozart.

As árias de Cherubino e de Don Ottavio, apesar de encantadoras, não pareciam causar efeito algum. A gata persa dourada continuava sem comer.

Eu insistia em falar com a veterinária a cada visita, o que significava esperar que terminasse alguma consulta. Isso determinava quanto tempo eu teria com Kiki. Às vezes, conseguia ficar 45 minutos parado diante da porta aberta da jaula, dizendo-lhe palavras de carinho; às vezes, só podia ficar dez minutos antes de voltar para o escritório.

Chegar em casa de noite significava enfrentar, ao sair do elevador, a perspectiva de entrar no apartamento vazio, sentir sua ausência e enfrentar sozinho o silêncio e a escuridão.

O Natal se aproximava. Viajei a Singapura para passá-lo em família.

Todo dia, ligava para a clínica. A resposta era sempre a mesma:
“Ela continua sem comer”. Uma vez, perguntei à veterinária se ela me avisaria se fosse necessário administrar o que eu prefiro chamar de “a injeção da felicidade eterna”. A veterinária declarou-se, por razões éticas, contra a eutanásia. Imaginei a gata persa dourada talvez definhando por semanas, meses. Conversei com a outra sócia da clínica, que se mostrou mais receptiva.

Na tarde do dia seguinte, 31 de dezembro, estávamos todos assistindo no cinema, em Singapura, a um filme muito ruim, House of Gucci, quando entrou no meu celular o terceiro telefonema portador de más notícias. Saí da sala e fui para o corredor. Não havia ninguém por perto. Atendi. O ultrassom mais preciso que eu insistira fosse feito em outra clínica mostrara que vários órgãos estavam afetados. A veterinária, categórica, afirmou que Kiki estava sofrendo. Não havia esperança.

Enquanto eu analisava o dever exigido de mim, a ligação continuava ativa. A veterinária esperava uma decisão. Era a terceira vez que eu passava por esse momento. Em 2012, já tivéramos de sacrificar nossa cachorra Missy, e, em 2018, outro gato, o majestático James. Dispomos da faculdade de poupar sofrimento aos animais que amamos. Mas se esperamos demais, depois nos sentimos culpados por ter prolongado a sua dor. Se não esperamos, fica a dúvida se não nos precipitamos.

Dei a autorização. Opinei porém que alguns dias, até a minha volta a Kuala Lumpur, não fariam diferença alguma para a Kiki, mas toda para mim, pois permitiriam uma despedida. A veterinária soterrou minha autocomiseração. Repetiu que o animal sofria; seria cruel esperar um dia a mais sequer. Quanto à despedida, ofereceu-me uma videoconferência com Kiki. Colocou o celular frente a ela, que estava solta em cima da mesa de metal do consultório.

Falei longamente de amor e gratidão. Ela miava, se agitava e ronronava sobre a mesa de metal. Desliguei.

Minha mulher apareceu. Conversamos sobre como dar a notícia à nossa filha, que crescera com Kiki, escolhera o seu nome e, dentro da sala de projeção, sabia que algo estava acontecendo. Nesse momento, entrou a quarta chamada. Atendi, aceitando ter de ouvir que tudo terminara.

Não era isso o que nos esperava.

A veterinária ligava para avisar que, após três semanas sem se alimentar espontaneamente, Kiki, na hora em que iria receber a injeção, se jogara sobre um prato de comida destinado a outro gato. Comera.

Dos quatro telefonemas, esse foi o pior. Nosso nível de responsabilidade moral acabara de aumentar consideravelmente. Indaguei: “Ela pode ser salva, então?”. A veterinária, cautelosa, explicou: “Não creio. O que o ultrassom revelou não pode ser ignorado. Os órgãos estão comprometidos. E é também provável que a refeição de agora seja um caso isolado. Mesmo que ela volte a comer sozinha, seriam poucas semanas de vida a mais, talvez alguns meses, em condições difíceis e desconfortáveis para ela”. Assenti.

Pensei no jardim em Brasília e no jardim em Bruxelas, nos quais Kiki crescera e correra, livre, caçara pássaros e lagartixas e fora feliz. Recebi então a mensagem por WhatsApp: “Foi indolor, e ela agora descansa no paraíso dos gatos”.

Kiki, bebê espevitado. Kiki, bela, inteligente e afetuosa. Kiki, ainda viva enquanto eu viver.

Crônica originalmente publicada, em 8 de julho de 2022, no jornal de literatura Rascunho, ilustrada com o desenho de Carolina Vigna, a quem agradeço, assim como ao editor do Rascunho, Rogério Pereira, a autorização para reproduzi-lo nesta página.

Dedico esta crônica a dois amigos que conheceram a gata persa dourada,

Cora Rónai, solidária na perda,

Hudson Caldeira Brant, graças a quem alimentei Kiki na pandemia

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O peso do Universo

O peso do Universo

É possível que haja formas melhores de passar uma manhã de sábado do que lendo poemas de Jorge Luis Borges. Mas é possível também que não, como deduzi em junho, em Kuala Lumpur. Era um sábado ensolarado, mas a semana fora árdua e, à noite, eu teria um compromisso de trabalho, e outro no domingo à tarde. Passar as poucas horas de liberdade disponíveis no fim de semana em casa lendo a poesia de Borges pareceu a melhor opção.

Nossos livros do escritor argentino estão todos em Singapura. Isso é justo, porque foi minha mulher quem, quando namorávamos, fez com que eu me apegasse à força das suas obras. Um dos primeiros presentes que ela me deu foi uma edição de bolso, com o selo conjunto Alianza/Emecé, de El informe de Brodie. A capa era azul clara, com a imagem de um relevo de mármore branco representando o rosto de uma criança. A boca era coberta por duas bandagens, também brancas, cruzadas sobre o mármore.

Um dia, o volume desapareceu. Nunca soubemos o que aconteceu. Talvez tenha caído atrás de um móvel e, por isso, sido deixado para trás em alguma mudança. Talvez nós o tenhamos emprestado a alguém que nunca o devolveu. Tampouco está claro o ano em que desapareceu. Quando um de nós quis reler o livro, ou consultá-lo, não se pôde encontrá-lo. Descobriu-se que, em algum momento, ele deixara de existir nas nossas estantes.

O sumiço de El informe de Brodie tomou ares de mistério. Anos ou décadas depois, ainda é tema de conversa. O desaparecimento do livro condiz com o enigma da capa, com aquela criança — ou figura angelical — de mármore impedida de falar. O exemplar foi substituído por outro, com o selo apenas da Alianza e capa diferente. Não era porém o volume que indicara o início do namoro, e do qual se esperava que nos acompanhasse pelo resto da vida. Em seu opúsculo sobre Borges, com quem conviveu, Alberto Manguel comenta que uma biblioteca particular é como a autobiografia de seu proprietário. Se isso é verdade, há então uma lacuna na história do meu casamento.

A reabertura das fronteiras no Sudeste Asiático, depois de dois anos de pandemia, permitiu-me não somente voltar a ver minha mulher, mas também a estudar a biblioteca familiar em sua casa. Voltei assim a ler Borges, o que me ajudou inclusive a entender melhor a noção de Ásia, como explico na XV Carta da Malásia, Além da aurora e do Ganges. Retornando a Kuala Lumpur de alguns dias de férias em Singapura, trouxe comigo o terceiro dos quatro volumes das obras completas de Borges pela editora Emecé, que inclui os livros do escritor publicados entre 1975 e 1985. Os seus últimos, portanto, tendo ele morrido em 1986. É uma edição insatisfatória. Vem sem notas. Há também ao menos um erro de diagramação e outro de acentuação. Naquele sábado em Kuala Lumpur, absorto nos poemas de Borges, tive um pensamento herético, logo rejeitado por absurdo, o de encomendar os dois volumes de sua obra publicados pela Gallimard, na Bibliothèque de la Pléiade. Obviamente, não faria sentido deixar de ler Borges em espanhol para lê-lo em francês. Sonhei porém com o extenso aparato crítico que a edição deve conter, como todo volume da coleção da Pléiade.

Precisei contentar-me com o que estava ao meu alcance em Kuala Lumpur, aquele único volume da edição seca da Emecé. Afinal, como o próprio Borges nos diz, na sua palestra em Siete Noches (1980) sobre a poesia, deve-se ler a obra, e não obras sobre a obra. Explica ele: “Cuando mis estudiantes me pedían bibliografía, yo les decía: ‘no importa la bibliografía; al fin de todo, Shakespeare no supo nada de bibliografia shakespeariana […] ¿Por qué no estudian directamente los textos?”.

Minha repentina mas temporária cobiça pela edição da Pléiade, porém, se justificava. Eu não queria uma obra sobre a obra, mas comentários sobre alguns versos. Depois do almoço, já pensando que em poucas horas teria de me arrumar para trabalhar de noite, passei à leitura de algumas das palestras de Siete Noches, aquelas dedicadas ao budismo, à Divina Comédia e à poesia. Esta última pareceu-me mais árida do que as duas outras. Talvez Borges não estivesse em forma quando a proferiu. É um texto certamente menos recompensador para o leitor do que as seis conferências sobre poesia que deu em inglês na Universidade de Harvard de outubro de 1967 a abril de 1968. Naquele ano universitário, Borges proferiu as Charles Eliot Norton Lectures; elas foram publicadas em um livro lançado em 2000, This Craft of Verse.

Também Siete Noches é uma coleção de conferências, dadas em Buenos Aires em 1977. Apenas uma delas é sobre arte poética, embora outra, tratando da Divina Comédia, seja sobre um poema específico. É injusto, eu bem sei, comparar uma única palestra curta de 1977 com as seis de 1967-1968. O fato porém é que o texto em Siete Noches, onde o escritor parece distante, pouco entusiasmado, empolga menos do que This Craft of Verse. Nesse livro, ao terminar a quinta palestra ele anuncia o tema que abordará na seguinte, a última: “I am sorry to say that in the last lecture I shall be speaking of a lesser poet — a poet whose works I never read, but a poet whose works I have to write”, sendo esse poeta “menor” ele mesmo.

Acontece que nada em Borges é inútil, tudo dele merece ser lido, e mesmo a aula sobre poesia proferida em Buenos Aires em 1977 contém frases memoráveis, como esta, que parece extraída de uma obra de Oscar Wilde: “Hay personas que sienten escasamente la poesía; generalmente se dedican a enseñarla”.  Ou estas, que parecem ecoar Ralph Waldo Emerson: “La belleza está acechándonos e La belleza está en todas partes, quizá en cada momento de nuestra vida”. Essa última frase, aos meus ouvidos, possui o mesmo ritmo daquela com que Emerson inicia seu ensaio sobre a amizade: “We have a great deal more kindness than is ever spoken”.

Naquele sábado em Kuala Lumpur, toda hora eu voltava a um poema intitulado “Tríada”, publicado no último de seus livros, Los Conjurados, de 1985. Antes de citar o poema, convém mencionar o prólogo de Los Conjurados. Ali, Borges, chegando ao final da vida, cego, escreveu: “Al cabo de los años he observado que la belleza, como la felicidad, es frecuente. No pasa un día en que no estemos, un instante, en el paraíso. No hay poeta, por mediocre que sea, que no haya escrito el mejor verso de la literatura, pero también los más desdichados. La belleza no es privilegio de unos cuantos nombres ilustres. Sería muy raro que este libro, que abarca unas cuarenta composiciones, no atesorara una sola línea secreta, digna de acompañarte hasta el fin”.

Há muita coisa, em Los Conjurados, que eu espero possa me acompanhar “hasta el fin”. A começar por “Tríada”. Este é o poema:

El alivio que habrá sentido César en la mañana de Farsalia, al pensar: Hoy es la batalla.

El alivio que habrá sentido Carlos Primero al ver el alba en el cristal y pensar: Hoy es el día del patíbulo, del coraje y del hacha.

El alivio que tú y yo sentiremos en el instante que precede a la muerte, cuando la suerte nos desate de la triste costumbre de ser alguien y del peso del universo.

São versos que impressionam; “cuando la suerte nos desate de la triste costumbre de ser alguien” parece mesmo magnífico. Há um contraste entre as duas primeiras estrofes. As duas figuras históricas são mostradas em momentos discordantes. Júlio César está aliviado porque chegou a hora da definição de seu futuro. Dependendo do resultado da batalha, sua vida tomará um rumo ou outro. Terminará a incerteza. Mas ele tem — só pode ter tido — esperança de derrotar Pompeu. Para Carlos I, a única esperança possível é comportar-se com coragem diante da decapitação iminente. Ambos sentem alívio, mas suas perspectivas são diferentes.

As duas primeiras estrofes, de tom ligeiramente distinto, preparam-nos para a terceira: no cotidiano, estamos ainda no mesmo plano de César, com expectativas de algum êxito possível. Um dia, porém, estaremos, como Carlos I, diante do inelutável.

Júlio César, cujo assassinato é objeto de outro poema em Los Conjurados, é personagem recorrente em Borges. O mesmo acontece, embora em grau menor, com o rei Carlos I da Inglaterra. Mais especificamente, é a sua decapitação que é tema frequente na obra do autor argentino. A morte do rei mereceu inclusive um poema próprio, “Una mañana de 1649”, publicado na coleção El otro, el mismo, de 1964.

Em “Tríada”, vemos César prestes a enfrentar, no campo de batalha, seu ex-genro e rival, Pompeu. Ele não podia ter certeza de que ia ganhar a batalha. Escreve, nos seus Comentários sobre a Guerra Civil, que sua infantaria era de 22 mil soldados, enquanto a de Pompeu era de 45 mil. A cavalaria na tropa de Júlio César não passava de mil homens, e havia sete mil na de Pompeu.

O que Borges mostra é o alívio de César de ter chegado por fim o dia da decisão sobre a quem ficaria aberto o caminho para governar Roma sozinho. Sabemos que César ganhou a batalha de Farsália; Pompeu fugiu, refugiou-se no Egito e lá foi morto a mando dos ministros do faraó adolescente Ptolomeu XIII, irmão e provavelmente marido de Cleópatra VII. César chegou a perseguir Pompeu até o Egito e envolveu-se nas disputas fratricidas da família real.

Ao escolher a figura de César para a primeira estrofe, Borges recorre ao personagem histórico mais célebre possível, sobre o qual seus leitores terão já uma imagem. Essa imagem é a de um grande chefe militar, com vocação ditatorial, portanto poderoso, mas sobre quem há também uma aura romântica, pelo que conhecemos de sua relação com a rainha do Egito.

Os leitores de Borges sabem como César terminou: esfaqueado por senadores romanos, ele morreu, nos diz Plutarco, aos pés de uma estátua de Pompeu, “que ficou toda ensanguentada”. O fato de haver por perto uma estátua do rival derrotado por César na planície de Farsália não deve nos surpreender, já que a sala onde o assassinato foi cometido pertencia a um complexo arquitetônico mandado edificar por Pompeu. Assim, o leitor do poema de Borges sabe que César saiu vitorioso em Farsália, mas sabe também que sua vida terminaria de maneira dramática, o que aperfeiçoaria aliás a construção de seu mito.

Na verdade, entre a batalha de Farsália e os Idos de Março transcorreram apenas quatro anos. Como se trata de César, foram quatro anos de grande intensidade, em que houve mais vitórias militares, acréscimo de poder, e o romance com Cleópatra.  Em sua história da Roma antiga, Lucien Jerphagnon explica: “la portée symbolique de Pharsale, jour de deuil pour les uns, jour de gloire pour les autres, marquera longtemps la mémoire des siècles”. Dia de luto para uns, dia de glória para outros, que ficará por muitos séculos na memória coletiva.

Ao descrever a batalha em Comentários sobre a Guerra Civil, o próprio César inaugurou uma tradição literária. Seria impossível listar todos os autores que escreveram sobre Farsália, mas deve-se citar Lucano, Plutarco e Corneille, cuja peça La Mort de Pompée inicia-se com uma fala de Ptolomeu XIII, em seu palácio em Alexandria, em que faz referência à batalha. Menciono Corneille propositalmente, com um certo prazer, porque Alberto Manguel nos diz que Borges “não admirava” o dramaturgo francês, mas que, um dia, andando os dois juntos pela Calle Florida em Buenos Aires, o autor de El Aleph de repente parou e declamou um verso de Le Cid: “Cette obscure clarté qui tombe des étoiles”. A cena deve ter sido bonita de ver.

Ao longo da vida, li e reli Le Cid muitas vezes e assisti a diferentes produções da peça. No entanto, esse verso nunca chamou minha atenção. Visualizar Borges declamando-o repentinamente na Calle Florida ajuda a desvendar toda a sua beleza. Graças a ele, que nem admirava Corneille, e por intermédio do curto livro de Alberto Manguel, pela primeira vez palavras que eu deveria conhecer bem entraram em minha consciência. Quando abrimos uma obra, nunca sabemos o que lá encontraremos que mudará nossa percepção das coisas, que nos revelará algo que a rigor já conhecemos.

Sem dúvida, apesar de seu assassinato, César inspira um mito baseado na percepção popular de sua vida como excepcionalmente exitosa. Bem diferente é o caso de Carlos I. Rei incapaz, perdeu a guerra civil contra o Parlamento, foi aprisionado, julgado e executado em janeiro de 1649. A memória que deixou é de fracasso.

Carlos, contudo, se beneficia postumamente da reputação trágica de sua família, os Stuart, certamente a dinastia mais infeliz da história europeia. Era neto de outra célebre decapitada, Maria Stuart. Seu filho mais velho, Carlos II, conseguiria voltar ao trono, mas seria sucedido pelo irmão, Jaime II, outro incapaz, que o perderia. O filho e os netos de Jaime II, inclusive o famoso Bonnie Prince Charlie, viveriam no exílio, na França e na Itália, sempre em tentativas malogradas de recuperar o trono. Reis sem coroa, confirmariam a fama trágica e romântica da família.

Carlos I foi um importante colecionador e patrono das artes e essa faceta de sua personalidade de certa forma redime suas falhas como rei. De resto, ele usava a arte como ferramenta para tentar consolidar uma visão gloriosa de si mesmo. Como inúmeras vezes já notei, pintores, escritores, músicos ajudam a perenizar uma imagem glamorosa ou admirável de governantes frequentemente medíocres. Assim, quadros da fase inglesa de Antoon van Dyck eternizam uma imagem do rei decapitado e de sua mulher e seus filhos como belos, profundos, majestáticos.

É praxe mostrar em filmes ou séries passados em castelos no campo inglês pinturas que evocam a família ou a corte de Carlos I, pois esses são retratos facilmente identificáveis na percepção popular, a ilustrar uma visão idealizada da realeza e da nobreza. É o caso, por exemplo, da série Downton Abbey. Na sala de jantar do imaginário Conde de Grantham aparece cópia de uma tela bem real e celebrada pintada por Van Dyck, um retrato do rei a cavalo, sob um arco, acompanhado de seu mestre de equitação. A réplica, possivelmente da mão do próprio Van Dyck, pertence ao Conde de Carnarvon, dono da propriedade rural usada como cenário para a série. Ao ver essa tela pendurada na sala de jantar do “Conde de Grantham”, o público compreende desde logo a imponência da família cuja história vai acompanhar.

Em julho, em Londres, em Apsley House, casa e museu do Duque de Wellington, eu veria outra cópia do quadro de Van Dyck.

O talento do artista flamengo fez do futuro decapitado, para a posteridade, um dos símbolos de como deve apresentar-se um monarca. A presença do rei medíocre, como pintado por Van Dyck, ironicamente engrandece o ambiente. O historiador Jerry Brotton inicia seu livro The Sale of the King’s Goods: Charles I & His Art Collection, de 2006, justamente analisando a versão original desse retrato pintado por Van Dyck, conhecido como Carlos I com M. de St Antoine, sendo Saint-Antoine o instrutor de equitação do rei. Na primeira página, o historiador nota que, ao contrário da vida real, a obra mostra Carlos como “the resplendent monarch, surrounded by the trappings of power and authority, mastering his horse as imperiously as he managed his kingdom”.

A coleção de Carlos I foi desfeita após sua execução. Colocaram-se à venda, ao longo de quatro anos, cerca de 1.570 obras de arte. É essa a razão pela qual muitos quadros que pertenceram ao rei podem ser vistos hoje em museus na Europa e nos Estados Unidos. Com a restauração ao trono de Carlos II, a Coroa conseguiu porém recuperar várias das obras vendidas. O retrato original do rei a cavalo sob o arco fica exposto no castelo de Windsor.

O Carlos I que Borges mostra não é o rei fracassado, incompetente, ou mesmo trágico ou majestático, mas um jogador conformado com o resultado final do jogo. Em seu livro Kings & Connoisseurs, de 1995, em que estuda, entre outras, a coleção de Carlos I, Jonathan Brown nos diz que o rei fez face à morte “with remarkable serenity and dignity”. Na elite europeia do século XVII, saber morrer redimia todas as falhas ou os pecados de uma vida.

O Carlos I de Borges é um homem que, ao saber que sua vida terminará naquele mesmo dia, se vê, talvez como todo nós quando chegue essa hora, “liberado de la necesidad de la mentira”, segundo o poema “Una mañana de 1649”. Vê-se liberado do peso de ser alguém. Carlos I é apeado de um poder ilusório; César está prestes a chegar ao ápice do poder, que não será necessariamente mais real. Em “Tríada”, a atitude dos dois, no fundo, é a mesma: finalmente, chegou o momento decisivo.

Borges já havia, anteriormente, colocado Júlio César e Carlos I no mesmo poema, “Las causas”, presente na coleção Historia de la noche, de 1977. Os últimos versos dizem:

Se precisaron todas esas causas
para que nuestras manos se encontraran

Os versos anteriores enumeram as “causas” que, cumulativamente, geram o efeito mencionado no final do poema, o encontro de duas pessoas que se amam. As causas pretéritas que se acumulam podem ser de ordem filosófica (“Chuang-Tzu y la mariposa que lo sueña”) ou literária e mitológica (“El infinito lienzo de Penélope”) ou simplesmente da realidade do cotidiano (“Cada gota de agua en la clepsidra”). Mas podem pertencer também ao terreno da História. O que de fato aconteceu, no passado, afeta nossa vida. Duas dessas causas históricas que tornam possível, hoje, o amor entre as duas pessoas no poema são “César en la mañana de Farsalia” e “El rey ajusticiado por el hacha”.

Voltando a “Tríada”, pensei longamente, em torno do verso “Hoy es el día del patíbulo, del coraje y del hacha, sobre a ordem em que são colocados os três elementos. De início, julguei que a ordem correta deveria ser patíbulo, machado e coragem. O rei verá o patíbulo primeiro, depois o machado, e precisará de coragem para enfrentá-los. Depois, pensei em outra ordem possível: coragem, patíbulo e machado. O rei decide que será corajoso no momento de subir ao patíbulo para enfrentar o golpe do machado na nuca. Finalmente, acabei aceitando a ordem escolhida por Borges, que possui o ritmo certo. As três palavras vão se tornando menores enquanto lemos o verso. A palavra final, “hacha”, deixa no ar uma terrível vibração.

Ao chegarmos à última estrofe, em vez de sentirmos pessimismo por sermos lembrados de que um dia morreremos, ficamos consolados. Aprendemos que, como para Carlos I, a morte nos libertará “do triste hábito de ser alguém” e tirará de nós o peso do universo.

Este ensaio foi originalmente publicado em O Estado da Arte, em 2 de julho de 2022

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Além da aurora e do Ganges

Além da aurora e do Ganges

Em Tchekhov e os tigres contei que, em Singapura, em dezembro, fui de teleférico com minha mulher à ilha de Sentosa. Esse foi um dos passeios mais encantadores naquele nosso reencontro, após uma separação de quase um ano por causa do fechamento das fronteiras.

O tempo, desde então, acelerou-se. Enquanto eu estava ainda, na minha imaginação, preparando-me em dezembro para viajar a Singapura e passar o Natal em família, sem eu notar março chegou rapidamente. Um sábado, naquele mês, almocei na Malásia, no estado de Pahang, a uma hora de carro de Kuala Lumpur, em outro lugar chamado Sentosa.

Na verdade, o nome da aldeia é Janda Baik. Traduzido do malaio para o português, daria A Viúva Bondosa. Sentosa é a propriedade rural, perto da aldeia, onde almocei naquele sábado. Devo, na verdade, usar o plural, pois eu não estava só.

Assim como, em alto mar, algum movimento das ondas ou do vento faz prever uma tempestade, na Malásia, desde janeiro, pequenas mudanças haviam começado a surgir, deixando antever que a vida voltaria a um grau maior de normalidade. Após dois anos de restrições, confinamentos, dificuldades, toda evolução positiva, mesmo restrita, pode parecer um furacão ao modificar, embora para melhor, a vida cotidiana.

Ao regressar a Kuala Lumpur depois das festas de final de ano em Singapura, percebi sinais de tsunami. Antes de mais nada, minha mãe, Thereza Quintella, foi autorizada a vir me visitar, embora as fronteiras continuassem, em grande parte, fechadas. Sua chegada, no início de fevereiro, coincidiu com a retomada, pela população de Kuala Lumpur, de uma sociabilidade sem culpa.

Apesar de a Covid estar ainda bem presente — havia, no começo do ano, entre 20 mil e 30 mil novos casos todo dia — podia-se supor, graças ao alto grau de vacinação, que os perigos da pandemia pertenciam ao passado. Fevereiro, março transcorreram em ritmo intenso, com muito trabalho, reuniões presenciais normalizadas e uma vida social que poucas semanas antes seria considerada inconcebível.

Algum leitor talvez se lembre do livro The Incredible Fruits of Perak, que recebi de presente, em novembro de 2020, do sultão de Perak. A Sentosa de Pahang pertence aos pais do autor daquela obra, o fotógrafo Omar Ariff Kamarul Ariffin. Foi com toda a sua família que minha mãe e eu almoçamos no sábado 26 de março.

A calma era absoluta; “sentosa” significa textualmente paz, tranquilidade. Os pais de Omar Ariff, nossos anfitriões, cuidam da propriedade há cinquenta anos; sua mãe, Frances, australiana de nascimento, é a responsável pelo paisagismo. Ela cultiva no sítio apenas plantas nativas. Há no terreno quatro ou cinco casas de madeira em estilo malaio tradicional, uma delas tendo sido a do bisavô de Omar, onde seu pai, tan sri Kamarul Ariffin, foi criado. “Tan sri” é um título malásio elevado, não hereditário, altamente valorizado, que o rei da Malásia concede em recompensa a méritos pessoais.

A atmosfera de felicidade na chácara de Sentosa era acentuada pelo fato de que Frances e Kamarul Ariffin, naquele dia, pisavam na sua propriedade pela primeira vez após uma ausência de dois anos, ditada pela pandemia. Estarmos todos ali, naquele sábado 26 de março, era de alguma maneira uma forma de celebrar a vitória sobre a Covid-19.

Era maravilhoso e inesperado que minha mãe, que dois meses depois faria 84 anos e que sobrevivera em 2021 a uma infecção do vírus, estivesse ao meu lado em Sentosa, no estado de Pahang, na Península Malaia, admirando os nenúfares, as palmeiras e as diversas coleções da família de Kamarul Ariffin, a 16 mil quilômetros de seu apartamento no Rio de Janeiro, onde passara boa parte dos últimos dois anos confinada.

Em uma das casas de Sentosa está aos poucos sendo organizado um pequeno museu de arte islâmica, com peças colecionadas por tan sri Kamarul Ariffin. Particularmente vistoso é um baú usado, no passado, por viajantes que faziam a peregrinação a Meca. O baú é exposto em uma sala onde as paredes são de madeira rendada.

Outra casa, pintada de branco e verde, foi trazida do estado de Kelantan — o mais setentrional do país, na costa leste, fazendo fronteira com a Tailândia — e reconstruída em Sentosa. Nela são conservadas outras coleções de Kamarul Ariffin, por exemplo numerosas esculturas representando mães e filhos.

O passeio a pé pela propriedade e a visita às coleções nos ocuparam mais de uma hora, talvez duas. Caminhamos de volta à casa principal, na varanda da qual almoçaríamos. Uma surpresa adicional nos esperava. A refeição seria preparada diante de nós. Para o leitor, e para mim, talvez isso não signifique tanto, mas para quem gosta de cozinhar e cozinha bem, como é o caso da minha mãe, presenciar como os ingredientes são combinados trouxe uma perspectiva única àquele momento de confraternização.

O almoço era um delicioso laksa. Prato típico da culinária malásia e de outros países do sudeste da Ásia, o laksa é, em sua base, um caldo de massa — em geral de arroz — perfumado com ervas. Os demais ingredientes variam de acordo com a região, mas leite de coco parece ser quase obrigatório. O laksa que estávamos prestes a provar incluía anchovas, camarão fresco, camarão seco, gengibre, bastão do imperador, cúrcuma, galanga, garcinia cambogia, noz da Índia, menta vietnamita e garcinia atroviridis.

Eu já tinha experimentado esse prato outras vezes. Em setembro de 2020, de férias em uma praia na costa leste, no estado de Terengganu — experiência que contei em A Viagem a Balbec — meu café da manhã costumava ser um laksam, variação local com peixe. Minha mãe, do Rio de Janeiro, manifestara na ocasião, por whatsapp, surpresa de que se pudesse tomar no desjejum o que era essencialmente uma sopa de peixe e macarrão. Eu respondera lembrando a ela que, quando morávamos em Londres, considerávamos normal comer de manhã ovos e toicinho fritos, com salsicha, tomate e feijão. Da mesma forma, em Terengganu parecera-me natural tomar um laksam ao acordar, antes de nadar no Mar do Sul da China.

Em Janda Baik, enquanto almoçávamos, eu ouvia Frances explicar que há em Sentosa uma proliferação de macacos, resgatados de regiões em processo de urbanização. De fato, tanto no passeio a pé como durante o almoço, os únicos sons que ouvíamos eram os dos pássaros e das conversas das famílias de macacos.

Omar nos contava suas experiências como fotógrafo da natureza. Essa não é, descobri ali, uma atividade isenta de riscos, já que uma vez ele e sua filha, então ainda pequena, escaparam por pouco de serem esmagados por um elefante agressivo. Houve também um encontro inamistoso com um urso-malaio. Dias depois, ele me daria de presente um livro seu de fotografias sobre a flora e a fauna da Malásia. As fotos mostram uma enorme variedade de espécies, insetos extraordinários e répteis nativos, um deles uma cobra-real em posição de ataque. A Malásia é, assim como o Brasil, um dos países mais megadiversos do mundo.

O laksa de Sentosa foi certamente o melhor que já provei. Cada colherada criava uma impressão nova ao paladar. Pensei no comentário de um amigo que, no passado, morara na China e me dissera: “Na Ásia, cada garfada de comida é uma explosão de sabores”. Eu teria preferido que a cumbuca nunca terminasse. Estar ali, naquela varanda, com aquela família tão amistosa, saboreando aquele prato enquanto admirava a vegetação tão parecida com a da Mata Atlântica era sem dúvida um privilégio. Teria sido uma perfeita ocasião para suspender o tempo, se essa possibilidade existisse.

Prestando atenção na comida, na conversa dos meus anfitriões, na minha mãe, no verde diante dos meus olhos, percebi que, de certa maneira, eu vivera antes aquela cena. Tudo ali lembrava-me as fotos de Tolstoi, já ancião, sentado à mesa com sua família, ao ar livre, debaixo das árvores em sua propriedade rural, Iasnaia Poliana. Os grandes artistas possuem a capacidade, como muitas vezes eu já notei, de aparecer na nossa imaginação nas circunstâncias menos prováveis. A varanda de uma propriedade rural, na paisagem tropical de Janda Baik, no interior da Malásia, pode evocar as mesmas sensações de quando vemos imagens do autor russo almoçando ou tomando chá, rodeado de mulher, filhos e netos, no campo na província de Tula, frente a uma vegetação bem diferente.

O almoço terminou. Era hora de partir. As horas são fugitivas, mas sua lembrança nem sempre. Aquelas passadas em Sentosa, eu já sabia, ficariam na minha mente.

Minha mãe e eu teríamos, à noite, outro compromisso. O jantar, naquele sábado, complementaria as experiências proporcionadas em Sentosa pela natureza do sudeste asiático, a coleção de arte islâmica, a arquitetura tradicional malaia e o laksa. De volta a Kuala Lumpur, iríamos à casa de um amigo, John Ang, colecionador de indumentária e tecidos antigos malaios. Sentados à sua mesa com outros poucos convidados, provaríamos uma refeição indiana, ouviríamos a música tocada por Kumar Kathigesu, na cítara, e Kamrul Hussin, no rebab, enquanto dançarinos de Odissi apresentariam, de forma coreografada, exemplares das 5 mil peças da coleção histórica do dono da casa. Alguns dos trajes poderiam ter sido usados pelos sultões, heróis e princesas de Os Anais Malaios ou, alternativamente, por Simbad, Aladim, Sherazade e Harun al-Rashid. Haveria uma pequena apresentação de mak yong, arte dramática malaia antiga, cantada.

Seriam vários dias até eu assimilar plenamente a vivência sensorial, cultural, ambiental, gastronômica daquele sábado. Como frequentemente acontece, um livro me ajudou. Relendo os textos de Jorge Luis Borges sobre As Mil e Uma Noites, caí na seguinte frase sua: “Un acontecimiento capital de la historia de las naciones occidentales es el descubrimiento del Oriente”. E, na página seguinte: “Para hablar de un lugar lejano, Juvenal dice: ultra Auroram et Gangem, ‘más allá de la aurora y del Ganges´. En essas cuatro palabras está el Oriente para nosotros”.

Sem dúvida, naquele sábado de março, na Malásia, bem mais além do Ganges e na direção do nascer do sol, o Oriente revelou-se a mim um pouco mais.

Esta XV Carta da Malásia foi primeiro publicada, em 23 de abril, no Estado da Arte

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Burle Marx da minha janela

Burle Marx da minha janela

Agradeço ao semanário econômico malásio The Edge a matéria sobre mim na edição corrente de sua revista trimestral Haven.

Nas fotos, uso batik, camisa formal malásia, equivalente a terno e gravata.

Clique no link acima para ler o texto

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Tchekhov e os tigres

Tchekhov e os tigres

O grito de “fogo!” foi ouvido a bordo às oito e vinte da noite, a 80 quilômetros da costa. Dez minutos depois, com o navio já em chamas, os passageiros e a tripulação, 41 pessoas ao todo, estavam em dois botes no mar. Ao abandonar o barco, o comandante levou uma bússola. A luz do próprio incêndio, que ficou queimando até a meia-noite, também ajudou os remadores a colocar os botes no rumo certo. Na descrição de um viajante ilustre, no final do incêndio o salitre que o navio transportava iluminou o horizonte inteiro: “one of the most splendid and brilliant flames that ever was seen, illuminating the horizon in every direction, to an extent of not less than fifty miles”.        

Ao amanhecer, viram a costa. Todos se salvaram. Não houve mortes humanas. Foram de outro tipo as perdas registradas.

O navio se chamava Fame. Ele queimou na noite do dia em que zarpara de Bencoolen — hoje Bengkulu — em Sumatra, a caminho da Inglaterra, em 2 de fevereiro de 1824. A bordo iam Sir Thomas Stamford Raffles, ex-governador de Bencoolen, autor da frase acima, e sua mulher. Eles regressavam de vez para a Inglaterra. No mês seguinte, pelo Tratado Anglo-Holandês de março de 1824, Bencoolen seria entregue aos Países Baixos.

Raffles é famoso por ser considerado o iniciador, em 1819, da história moderna de Singapura. Dependendo do ponto de vista, pode-se considerá-lo como o visionário que deu início à transformação de Singapura em um dos centros mais importantes e prósperos do comércio internacional; ou como o imperialista que, por meio de artimanhas, ao perceber a importância estratégica da ilha asiática, situada a meio caminho entre a Índia e a China, plantou ali a Union Jack para lucro de seu empregador, a Companhia das Índias Orientais.

Se todas as pessoas a bordo do Fame se salvaram, o mesmo não pode ser dito da importante coleção de documentos levada por Raffles, conforme ele explica em relatos em que descreveu o incidente. Como os outros passageiros humanos, ele e a mulher desceram aos botes com a roupa do corpo; Lady Raffles, inclusive, sem sapatos ou meias, por já estar deitada quando o alarme foi dado. Raffles conta que perdeu no naufrágio todas as notas e coleções que reunira como administrador colonial: “all my notes and observations, with memoirs and collections, sufficient for a full and ample history, not only of Sumatra but of Borneo and almost every other Island of note in these seas; my intended account of the establishment of Singapore; the history of my own administration; eastern grammars, dictionaries and vocabularies”. Foram mais de dois mil os desenhos de história natural desaparecidos. A coleção que ia a bordo ocupava pelo menos 122 caixotes.

Se todos os humanos sobreviveram, outros seres vivos tiveram menos sorte. Raffles levava com ele, para a Inglaterra, “uma anta, uma nova espécie de tigre, esplêndidos faisões &c, domesticados para a viagem; éramos em suma, uma perfeita arca de Noé”. Que outros animais do Arquipélago Malaio, incluídos sob aquele “&c”, terão morrido queimados ou afogados?

Os relatos de Raffles sobre o naufrágio podem ser lidos no livro celebrando sua memória que Lady Raffles, viúva desde 1826, publicou em 1830. Jorge Luis Borges poderia ter criado um conto sobre o incêndio do Fame, descrevendo algum manuscrito que ele inventaria e incluiria entre os efetivamente perdidos. Borges ficaria fascinado com a presença, a bordo, de um tigre, animal que é uma imagem recorrente em tantos de seus contos e poemas. Em versos recolhidos em 1960 em El hacedor, ele contrasta a figura do tigre como “serie de tropos literarios” ao animal verdadeiro, “el tigre fatal”,

que, bajo el sol o la diversa luna,
va cumpliendo en Sumatra o en Bengala
su rutina de amor, de ocio y de muerte.

Existe no Museu Nacional de Singapura uma gravura que ilustra o incêndio do Fame. Ela me faz pensar no quanto a coleção destruída naquela noite de 2 de fevereiro poderia modificar nosso conhecimento sobre a história do Arquipélago Malaio. Os relatos de Raffles também incomodam por causa da morte dos animais, vítimas da vaidade de quem quis exibi-los na Inglaterra, a milhares de quilômetros de distância, como exemplares exóticos de uma remota província do império.

Em dezembro de 2021, quando revisitei o Museu Nacional de Singapura e revi a gravura sobre o incêndio do Fame, não era porém Jorge Luis Borges que ocupava meus pensamentos, mas Anton Tchekhov.

Tudo começara na segunda-feira 8 de novembro. Naquele dia, Tchekhov entrou no supermercado em Kuala Lumpur onde eu fazia compras depois do expediente. Na seção de frutas, eu examinava peras coreanas. Elas são grandes, redondas, douradas.

Imerso na escolha das peras, ouvi que eu recebera uma mensagem no celular. Era de um amigo que me enviava uma notícia importante: Malásia e Singapura acabavam de anunciar que viajantes de um país para o outro passariam a ser poupados de quarentena, desde que cumprissem diversas exigências burocráticas e sanitárias. 

O amigo que me enviara a mensagem sabia que a notícia me deixaria feliz. Minha mulher, em Singapura, e eu, em Kuala Lumpur, nunca podíamos nos ver, por causa do fechamento das fronteiras na Ásia do Sudeste desde o início da pandemia. Esta é uma das regiões do planeta em que as medidas mais restritivas foram adotadas de forma mais prolongada. Com o anúncio feito com Singapura de um corredor bilateral para viajantes vacinados, a Malásia, pela primeira vez desde março de 2020, abria parcialmente as suas fronteiras com algum país.  

A visita ao supermercado acelerou-se. Precisei apenas comprar comida para Kiki, a gata persa dourada. Meu objetivo agora era chegar em casa o mais rapidamente possível e telefonar para minha mulher.

Desde que, na seção de frutas, eu lera a mensagem no celular, Tchekhov não me saía da cabeça. Estudante em Londres, nunca perdi nenhuma produção de suas peças, mas são já muitos anos desde que assisti a alguma delas no palco. Em 2008, em Nova York, vi uma produção muito elogiada pela crítica de A Gaivota, com Kristin Scott Thomas no papel de Arkadina.

Nos últimos anos, Tchekhov tem sido para mim sobretudo um contista e, particularmente, o autor de “A Dama do Cachorrinho”, publicado em dezembro de 1899. O célebre conto começou a ser escrito em Ialta a partir de agosto ou setembro do mesmo ano, enquanto, do outro lado do mundo, em outro universo, em uma realidade paralela, Borges nascia em Buenos Aires, em 24 de agosto.

É depois de ler “A Dama do Cachorrinho” que Maksim Gorki escreve a Tchekhov, em uma carta frequentemente citada, que “com seus pequenos escritos, você alcança uma grande coisa, ao despertar nas pessoas a repugnância pela vida sonolenta, semi-morta”.

Um homem em vilegiatura em Ialta sem a família, Gurov, conhece uma mulher bem mais jovem, Ana, que também passa férias, sem o marido, na Crimeia. Ela chama a atenção por nunca ter sido vista lá anteriormente e por estar acompanhada de seu cachorro, um lulu da Pomerânia. Quanto a Gurov, nada há de admirável em seu caráter, fato de que ele mesmo tem consciência.

Gurov e Ana começam um caso. Um dia, a vilegiatura termina; ele tem de voltar a Moscou e ela à cidade provinciana onde mora. Ao contrário do que esperava e do que acontecera com suas aventuras anteriores, Gurov não esquece Ana. Então, tudo aquilo que sempre preenchera o seu cotidiano começa a tornar seus dias desinteressantes e desperdiçados. Gurov decide ir à cidade de Ana e sua esperança de reencontrá-la se concretiza. Começam a se ver furtivamente, a cada dois ou três meses — algumas traduções dizem “duas ou três vezes por mês” — em Moscou, para onde Ana viaja dando razões mentirosas ao marido. No último parágrafo, pensam se há alguma forma de poderem ficar juntos, sonham com isso e reconhecem que as dificuldades, as complicações em atingir esse objetivo estão apenas começando.     

O amor de Gurov por Ana torna-o mais simpático ao leitor. De quarentão libidinoso, cínico, medíocre, ele é elevado, literariamente falando, à posição romântica de vítima de um amor impossível com uma mulher igualmente casada, morando em outra cidade.

Tenho em casa traduções do conto em francês e em inglês. Na Internet, encontrei uma tradução para o português, sem referência ao nome do tradutor. Trata-se, acredito, da versão de Boris Schnaiderman para a Editora34. É a que citarei aqui, ao mencionar o parágrafo de “A Dama do Cachorrinho” que aponta uma grande verdade psicológica, razão pela qual penso frequentemente no conto.

Gurov passa a levar duas vidas — aquela passada no trabalho, com a família, com os amigos, e os momentos vividos com Ana, ou longe dela mas pensando nela. Ana e, portanto, “tudo o que era para ele importante, interessante, indispensável, aquilo em que ele era sincero e não enganava a si mesmo, o que constituía o cerne de sua vida, ocorria às ocultas dos demais”. Todo o resto, trabalho, clube, relações sociais e familiares era mentira e, no entanto, transcorria à luz do dia. Gurov conclui que “em cada homem decorre, sob o manto do mistério, como sob o manto da noite, a sua vida autêntica e mais interessante”.

Não encontro, na obra de Borges ou em suas entrevistas, referência a Tchekhov. Não sei, por isso, se leu o conto russo. Se o fez, terá apreciado a moral tirada por Gurov sobre a discrepância entre a vida mostrada publicamente e a realidade interna, emocional. “El Zahir”, um dos contos em El Aleph, de 1949, parece elevar ao paroxismo, cinquenta anos depois de Tchekhov, a percepção de Gurov de que nossa mente pode estar continuamente envolvida com algo diferente da vida que nos ocupa em público. Zahir, diz Borges, são os seres ou as coisas “que tienen la terrible virtud de ser inolvidables”. Entre os exemplos, cita um “tigre mágico” na Índia, “que fue la perdición de cuantos lo vieron, aun de muy lejos, pues todos continuaron pensando en él, hasta el fin de sus días”. 

Em Kuala Lumpur, enquanto a vida e o trabalho acontecem, e a eles me dedico com empenho, lá atrás existe um pensamento constante, mas sempre repudiado, pois prefiro não torná-lo consciente demais.  

Trata-se da percepção de que houve, por causa da Covid-19, uma dissolução da minha vida familiar. Minha mulher trabalha em Singapura, nossa filha em Bruxelas e minha irmã em Lisboa; minha mãe mora no Rio. Durante dois anos, nunca as vi, já que viajar ou receber visitas, para quem está na Ásia do Sudeste, tornou-se nesse período uma grande complicação. O convívio familiar reduziu-se à Kiki.  Não poucas vezes, nos dois anos de pandemia, perguntei-lhe, aliás com gratidão: “Como foi acontecer de só nós dois estarmos juntos?”  

A situação vivida por Gurov e Ana — não o adultério, mas o afastamento forçado entre os dois — era a do próprio autor. Ao escrever “A Dama do Cachorrinho”, Tchekhov buscava, no clima mais ameno de Ialta, controlar a tuberculose. No ano anterior, conhecera em Moscou uma atriz, Olga Knipper, que interpretaria personagens em suas peças: Arkadina em A Gaivota, Helena em Tio Vânia, Masha em As Três Irmãs e Liubov em O Jardim das Cerejeiras. Masha e Liubov foram papéis escritos especificamente para Olga Knipper. Foi em um ensaio de A Gaivota no Teatro de Arte de Moscou que eles se conheceram, no outono de 1898. Viriam a se casar em 1901, três anos antes de Tchekhov morrer.

No outono e no inverno, Tchekhov e Olga Knipper ficavam afastados, ele em Ialta, ela em Moscou, atuando na temporada do Teatro de Arte. Compensavam a separação escrevendo quase que diariamente um ao outro. 

Essa correspondência foi editada em 1996 pelo inglês Jean Benedetti, em um volume intitulado Dear Writer, Dear Actress. Ali vemos, em uma carta de 3 de setembro de 1899, justamente quando “A Dama do Cachorrinho” estava sendo escrito ou ao menos sendo concebido no cérebro de Tchekhov, a importância que a atriz já adquirira para ele. Descrevendo seu cotidiano, o autor diz de repente: “Mal tenho saído para o jardim. Fico dentro de casa, pensando em você […] não suporto a ideia de que não poderei vê-la antes da primavera, isso me leva à loucura”.

Em sua biografia de Tchekhov, lançada originalmente em 1997 e reeditada em 2021, o também inglês Donald Rayfield avalia que o caso entre o escritor e a atriz se iniciara no primeiro semestre de 1899. De fato, entre julho e agosto de 1899, logo antes de “A Dama do Cachorrinho” começar a ser escrito, Olga Knipper visitou o escritor em Ialta por duas semanas. Algumas das cenas do conto passadas na Crimeia podem ter sido fruto de experiência pessoal. Em tom que soa como uma repreensão, o biógrafo comenta que, por causa da visita da atriz, “for a fortnight Anton had written nothing”.

No dia 1º de dezembro de 2021, ostentando, além do passaporte, oito documentos, formulários e aplicativos obrigatórios, eu desembarcava em Singapura, onde não pisava desde março de 2020. Minha mulher não pudera vir a Kuala Lumpur desde janeiro de 2021. Antes disso, já havíamos ficado nove meses sem poder nos ver. Por causa da pandemia, nós nos encontramos nesses dois anos menos frequentemente do que Gurov e Ana ou do que Anton Tchekhov e Olga Knipper.

Os dias foram ensolarados. Revisitei museus. Descobri recantos até então desconhecidos da cidade. Passeei pelos parques. Fiz um passeio de barco pelo rio Singapura. Atravessei o mar em teleférico para ir ao balneário de Sentosa. Conheci amigos de minha mulher. Almocei com colegas. Um dos momentos mais encantadores foi um jantar a dois, em um bairro animado, à beira do rio, em um restaurante belga.

No Museu Nacional, gostei especialmente de uma exposição intitulada Singapore, Very Old Tree. A mostra exibe fotos do artista singapurense Robert Zhao que retratam 17 árvores locais e, ao lado delas, pessoas para as quais elas são importantes, e cujas existências talvez sejam, em parte, definidas por essas árvores.

Singapura é uma cidade notavelmente verde. Versos de um poeta singapurense, Gilbert Koh, lembram ser essa abundância de árvores o resultado deliberado de um projeto pessoal de planejamento urbano de Lee Kuan Yew, o fundador do país e seu primeiro-ministro até 1990:  

Let there be trees, the man said, and lo and behold,
there were trees — rain trees, angsanas, flames of the forest,
casuarinas, traveller´s palms and more — springing up against
the steel and concrete of the expanding city.  

Cada foto de Robert Zhao é acompanhada de explicações sobre a localização daquela árvore específica, sua importância para a pessoa mostrada ao seu lado.

A foto mais simétrica e despojada é a de uma casuarina conhecida como “The Wedding Tree”, onde recém-casados gostam de ser retratados. Sentado ao pé da bela árvore solitária, vemos o fotógrafo especializado em casamentos que já registrou ali mais de cem retratos de jovens recém-casados.

Uma história, mais do que outras, me deteve. É a que trata da foto de uma árvore imponente em frente ao prédio da Escola de Artes, diante do qual minha mulher e eu havíamos passado a pé, poucos minutos antes, a caminho do museu. Trata-se de uma angsana, ou jacarandá da Birmânia, ou pau-brasil de Andaman. Seu nome científico é Pterocarpus indicus. O texto do artista explica que a fachada da Escola de Artes foi planejada de forma a preservar essa árvore. Cita uma ex-aluna de teatro lembrando que uma vez, ao se deitar à sua sombra antes de uma representação, conseguira acalmar o seu medo do palco.

Fiquei incomodado de não ter notado a árvore, ao passar frente ao prédio. Mais tarde, em casa, descobri que ela na verdade já não existe. Foi abatida em 2018, porque seu estado de conservação precário — tinha 40 anos segundo a imprensa, 60 segundo Robert Zhao — colocava em risco a segurança dos alunos. A retirada da angsana, tratada como celebridade, foi extensamente divulgada na época. Houve homenagens nos dias anteriores. Alunos e professores despediram-se da grande árvore. Passando frente à Escola de Artes uns dias depois, notei que, no lugar onde existira a angsana, há agora uma escultura verde, no degrau, representando a sua semente. Não se pode deixar de respeitar uma sociedade que homenageia com uma escultura o exemplar específico, desaparecido, de uma árvore.

Assim como o convívio de Gurov e Ana na Crimeia precisou terminar, minhas férias singapurenses atingiam a reta final. Veio o momento do regresso a Kuala Lumpur. Sabíamos, porém, que logo nos veríamos novamente, por causa das festas de final de ano. O relativo abrandamento das restrições às viagens entre os dois países parecia permitir algum otimismo.

“Começaria uma vida nova e bela”, esperam Gurov e Ana no final do conto de Tchekhov. Nesse mesmo espírito, embarquei para Kuala Lumpur, desejoso aliás de rever Kiki, que por causa da minha ausência começara uma greve de fome. O voo já ia decolar quando lembrei ser aquele mesmo dia o aniversário da morte brutal, na adolescência, do meu irmão. Nunca, nos anos anteriores, eu passara tão incólume por essa data.  

Não podia imaginar no avião que, por causa da nova variante do vírus, as regras para viagens mudariam novamente. E que, menos de três semanas depois, em 31 de dezembro, eu teria de autorizar o veterinário a dar a Kiki a injeção fatal.  

As dificuldades e as complicações apenas se iniciavam. Começava o Ano do Tigre.

Esta XIV Carta da Malásia foi primeiro publicada, em 22 de janeiro, na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte

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Os Bois de Mirza Babur

Os Bois de Mirza Babur

Duas vezes, em 2021, assisti na Malásia ao filme de 1977 dirigido por Satyajit Ray, Os Jogadores de Xadrez. O enredo é sobre como a Companhia Britânica das Índias Orientais decidiu, em 1856, arrogar-se a posse do reino de Awadh, no Norte da Índia, sobre o qual há décadas já exercia um protetorado e do qual recebia vantagens financeiras e soldados.

O roteiro, do próprio Satyajit Ray, é baseado em um conto de Munshi Premchand, escritor de que só tomei conhecimento graças ao filme. Enquanto os ingleses complotam, e o reino se desfaz, os aristocratas locais, simbolizados por dois amigos que passam o tempo jogando xadrez, reagem com indolência e total indiferença aos acontecimentos políticos ao seu redor.

Os Jogadores de Xadrez conta com atuações brilhantes, inclusive a de Richard Attenborough como o comandante militar que decide pôr fim à independência nominal do reino, e a de Amjad Khan como o soberano que logo será deposto, Wajid Ali Shah. Poeta e compositor, esse rei fazia da sua corte um centro das artes. Um monarca mais preocupado em escrever poesia e compor canções parece, por alguma razão, tirado de algum conto de Jorge Luis Borges.

Em uma das primeiras cenas do filme, o personagem de Richard Attenborough, que existiu realmente e se chamava James Outram, conversa com um subordinado. Funcionário monotemático e sem imaginação, Outram manifesta desprezo pelo rei, sugerindo que as atividades artísticas impedem que ele tenha tempo de se ocupar de suas concubinas — pouco depois ouviremos que elas são quatrocentas — e menos ainda dos assuntos de estado. Sequioso por razões para colocar Awadh sob domínio britânico, diz considerar Wajid Ali Shah “a bad king”. Já o militar menos graduado manifesta admiração pelos talentos artísticos do rei: “he´s really quite gifted, sir”.

O primeiro-ministro de Wajid Ali Shah vem comunicar a ele que os ingleses decidiram destroná-lo. Precisa esperar, porém, pois o rei, em uma das cenas mais bonitas do filme, assiste embevecido, alheio a tudo mais, a uma dança. Quando a bailarina termina, quando a música cessa, Wajid Ali Shah nota o ar aflito de seu primeiro-ministro e diz a ele: “O que é isso? Controle-se. Só o amor e a poesia podem molhar de lágrimas os olhos de um homem”. Novamente penso em Borges, sem conseguir definir por quê.

Depois de ouvir a notícia do projeto britânico, o rei, caminhando de forma soturna pela sala do trono, frente a seus ministros, monologa e faz pensar em outro soberano deposto, Ricardo II, como caracterizado na peça de Shakespeare.

Em minha primeira visita ao Museu de Artes Islâmicas de Kuala Lumpur, em janeiro de 2020, uma semana depois de ter chegado à Malásia, notei em uma das vitrines os retratos a óleo, pintados em torno a 1830 por um artista indiano, Muhammad Azam Musavvir, de dois dos predecessores — seu tio e seu primo-irmão — de Wajid Ali Shah. Um dos quadros, representando Nasiruddin Haidar, morto em 1837 aos 33 anos, chamou minha atenção pela melancolia e a falta de energia refletidas no rosto do monarca. O retrato parece uma alegoria da situação dos príncipes destronados ou submetidos a vassalagem.

(@Islamic Arts Museum Malaysia)

Seria um engano eu supor que nunca antes o reino de Awadh chegara a meu conhecimento. Em casa, é extensa a biblioteca — ela está hoje em Singapura — sobre a Índia e sua história. Eu terei lido sobre Awadh sem registrar esse nome, vendo nele apenas mais uma etapa na gradual e absurda conquista do subcontinente indiano pela East India Company. A arte possui o poder de tornar concreto e palpável mesmo aquilo que já conhecemos, e o filme de Satyajit Ray e a expressão de Nasiruddin Haidar no retrato do museu em Kuala Lumpur transformaram Awadh em um conceito sólido em minha mente.

O Museu de Artes Islâmicas em Kuala Lumpur fica ao lado de um vasto parque, eternamente verde e luxuriante, que reúne o Jardim Botânico, o Parque de Borboletas, o Jardim de Orquídeas e Hibiscos e um gigantesco aviário — o Parque dos Pássaros.

Apesar dos sucessivos confinamentos a que a pandemia me condenou na Malásia, estive já seis ou sete vezes no museu. Fico em geral sozinho pelas galerias, pois desde março de 2020 não há turistas estrangeiros no país.

Vários dos objetos da coleção são extremamente raros. Podemos descobrir muito sobre eles na Internet, mais do que no próprio museu, onde a explicação sobre cada peça é reduzida ao mínimo. Uma das mais importantes é uma bandeja redonda de cerâmica de Iznik, datada de cerca de 1480, quando ainda reinava Maomé II, o conquistador de Constantinopla. Sobreviveram apenas cinco bandejas desse estilo, conhecido como Baba Nakkash.

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A bandeja foi comprada, em 2018, em um leilão na Sotheby´s, durante o qual despertou forte interesse. Bateu o recorde de preço alcançado até então por um objeto de arte islâmica. Podemos mesmo conhecer os detalhes de como transcorreu o leilão, que um representante da Sotheby´s declarou ter sido “fiercely competitive”. Os lances duraram vinte minutos e foram feitos por nove colecionadores. A bandeja ilustra a capa do guia geral do museu.

A coleção contém móveis, tecidos, armas, objetos do dia a dia, exemplares do Alcorão de todas as eras e regiões onde há comunidades muçulmanas, porcelanas chinesas com inscrições em árabe e miniaturas persas e do Império Mogol. Há numerosos exemplares da adaga tradicional do povo malaio, o kris, de lâmina ondulada, hoje em dia usado apenas em cerimônias, particularmente por noivos no dia do casamento.

Em uma vitrine são expostos Alcorões tão pequenos, que provavelmente serviam mais como amuleto do que para a leitura. No entanto, alguns possuem belíssimas iluminuras, como este, de dimensões mínimas (5,4 cm por 5,5 cm), copiado na Turquia no século XVI por ‘Ali al-Tabbakh al-Shirazi.

Em minha visita mais recente, admirei o Divã de Hafiz — compilação dos seus poemas — copiado, em 1613, na Pérsia, por Muhammad Qasim Shirazi. Ficarei sem saber que poema é ilustrado pela iluminura na página em que o manuscrito é exposto aberto no museu. A imagem mostra um jardim, e nele parecem reinar a harmonia e a sociabilidade.

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Em 30 de setembro, almocei com Syed Mohamad Albukhary, o diretor do Museu de Artes Islâmicas. Queria conversar com ele sobre a coleção. A refeição foi no restaurante do museu. Ele estava acompanhado de Rekha Verma, diretora das coleções, que é quem, gentilmente, me enviou posteriormente as fotos para este ensaio.

O almoço foi delicioso: húmus com pão árabe, salada de pepino e tomate cortados em cubos, nasi goreng com peixinhos fritos (talvez anchovas) e, de sobremesa, um bread and butter pudding ao molho de leite.

O diretor deu-me de presente um exemplar do livro editado pelo British Museum, em 2018, sobre a reforma, efetuada em colaboração com a Fundação Albukhary, da Malásia, de uma ala do museu londrino, para que este pudesse expor melhor a sua coleção de arte islâmica. O espaço se chama “The Albukhary Foundation Gallery of the Islamic World”. O primeiro texto no livro, assinado pelo príncipe Charles, nos diz que “in our short time here, we are duty bound to keep the past in our sights and to pass it on as best we can”. É uma boa definição de uma das funções de um museu.

Enquanto comíamos o nasi goreng, explicou-me o diretor do museu de Kuala Lumpur haver forte competição entre colecionadores de arte islâmica. Sem dar os detalhes que eu depois leria na Internet, comentou como fora acirrado o leilão para obter a bandeja Baba Nakkash. Citou, como exemplos de boas coleções, a do museu em Doha — que visitei em 2016 — a do museu no Kuaite, a do Metropolitan Museum, a do Museu Aga Khan em Toronto e a do Gulbenkian em Lisboa. Mencionei a seção de arte islâmica do Louvre, que foi para mim, em 2014, uma boa surpresa; ele então manifestou a opinião, que registrei em O Sonho do Louvre, sobre como visitar aquele museu pode ser uma experiência labiríntica.

Perguntei a Syed Mohamad Albukhary que peças prefere na coleção que dirige. Primeiro, ele indicou as miniaturas da arte mogol; depois, falou também nos quadros orientalistas, dos quais há mais de cem no subsolo do museu, que não são exibidos por falta de espaço, e com os quais, em 2023, para comemorar os 25 anos do museu, Syed Mohamad Albukhary tenciona montar uma exposição.

Dezenas dos quadros orientalistas foram mostrados, entre outubro de 2019 e janeiro de 2020, em uma exposição no British Museum, em colaboração com o museu de Kuala Lumpur, intitulada Inspired by the East: how the Islamic world influenced Western art. Foi um desencontro eu passar três dias em Londres uma semana antes da abertura da mostra; esta teria vindo depois para o museu malásio, se não tivesse surgido a pandemia.

A capa do catálogo da exposição no British Museum é um quadro de cerca de 1580 por um seguidor de Veronese retratando Bajazeto I. Esse sultão otomano, bisavô de Maomé II, o Conquistador, foi derrotado em batalha por Tamerlão, antepassado dos imperadores mogóis. Na peça Tamburlaine, que Christopher Marlowe escreveu em 1587 e que inspiraria quatro séculos mais tarde um bom poema de Borges, Bajazeto I nos aparece mantido dentro de uma jaula, prisioneiro de Tamerlão, obrigado a comer os restos de comida de seu inimigo. Indômito, ofende, em toda oportunidade, o seu algoz e se suicida — como ele próprio anuncia, em um verso de sua última fala: “Since other means are all forbidden me” — da única maneira acessível a quem está preso em uma jaula. Marlowe indica, logo após a última fala de Bajazeto: “He brains himself against the cage”.

Uma semana depois do nasi goreng, Rekha Verma mostrou-me, em um depósito no subsolo do museu, os quadros orientalistas, pendurados dentro de cofres. Vi assim de perto, sozinho, a surpreendente coleção. Não pudera esperar uma semana em Londres, em 2019, para conhecê-los no British Museum, mas agora eles estavam todos ali, e apenas meu olhar os examinava. Bajazeto I, tal como idealizado pelo contemporâneo veneziano de Veronese, ficou próximo do meu nariz, mostrando, em vez da vaidade esperada de um sultão, ou do desespero próprio de um prisioneiro de Tamerlão, uma certa afabilidade um tanto desconfiada.

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De todas as obras expostas no museu, a que mais me intriga é talvez uma aquarela intitulada A carruagem puxada por bois do príncipe Mirza Babur. Esse príncipe era um dos muitos filhos do penúltimo imperador mogol, Akbar II. Morreu em 1835, aos 38 anos. Viveu durante os estertores do outrora poderoso império de seus antepassados, fundado no século XVI por Babur, o descendente dos temíveis Tamerlão e Gengis Khan. Em 1857, os ingleses poriam fim oficialmente à dinastia, depondo o último imperador, Badur II, outro soberano poeta, irmão de Mirza Babur. A rainha Vitória se tornaria Imperatriz da Índia em 1876.

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Entre 1815 e 1820, o artista escocês James Baillie Fraser e seu irmão William Fraser, funcionário da Companhia, encomendaram na Índia cerca de 90 aquarelas de artistas indianos, ilustrando a vida em Delhi e seus arredores. O conjunto, descoberto em 1979 em papéis da família, na Escócia, formava o “Álbum Fraser”.

Depois de 1979, o álbum se desfez; as aquarelas foram vendidas e dispersadas. Dezesseis delas estiveram, de dezembro de 2019 a setembro de 2020, entre as cem obras de arte de artistas indianos dos séculos XVIII e XIX, muitos deles anônimos, mostradas pela Wallace Collection em uma exposição, Forgotten Masters: Indian Painting for the East India Company, com curadoria do historiador William Dalrymple.

Este escocês, autor de livros magníficos sobre a história da Índia, ganhou notoriedade mundial no final de 2019, quando sua obra The Anarchy foi incluída por Barack Obama em sua lista de melhores livros do ano. O livro explica como, ao longo da segunda metade do século XVIII e nos primeiros anos do século XIX, a Companhia das Índias Orientais, empresa de capital privado sediada em Londres, pouco a pouco se tornou a potência predominante no subcontinente indiano, no que Dalrymple descreve como “the supreme act of corporate violence in world history”.

A aquarela do “Álbum Fraser” no Museu de Artes Islâmicas de Kuala Lumpur, O carro de boi do príncipe Mirza Babur, teve como dono, depois da dispersão das 90 obras em 1979, o cineasta Ismail Merchant, que aparentemente a comprou em um leilão em 1980. Merchant, até sua morte em 2005, produziu quantidade de filmes elegantes, dirigidos por seu companheiro, James Ivory. Saber que ele admirou essa aquarela torna-a mais preciosa, concede-lhe valor adicional. Durante anos, assistir a uma nova “produção de Merchant Ivory”, extraída de algum romance de Henry James, de E.M Forster ou de algum autor contemporâneo, com roteiro de Ruth Prawer Jhabvala, era uma perspectiva tão instigante quanto ver o novo Woody Allen, embora fossem universos cinematográficos diferentes.

Sobre Mirza Babur, Dalrymple nos diz em outro de seus livros, The Last Mughal, de 2006, que conta o fim da dinastia em 1857, que ele era anglófilo inclusive na forma de se vestir. O historiador narra o destino infeliz de sua viúva — ou uma delas — e de um de seus filhos, após o destronamento de Badur II. Ainda em 1917, velhíssimo, com uma existência obscura e humilde, tendo tido de ganhar a vida primeiro como faquir e depois como trabalhador braçal, o filho de Mirza Babur não deixava esquecerem que era descendente do terrível Tamerlão.

Uma das inscrições em persa sobre a aquarela nos informa o nome do cocheiro, Zana, e sua casta e seu grupo étnico. É esplêndido que possamos herdar tanta informação sobre o condutor dos bois do filho do imperador.

A ilustre história do desenho representando a carruagem do príncipe Mirza Babur me comove menos, porém, do que os dois bois que a puxam. Na fazenda de café do meu avô, na Zona da Mata em Minas Gerais, costumavam também ser brancos os animais que puxavam o carro de boi no qual muitas vezes andei. Embora a fazenda de Sant´Anna pertencesse ao meu avô materno, meu pai, criança, a frequentara, por razões que um dia eu talvez dê a conhecer. Obviamente, os carros de boi da infância dele e da minha não tinham o aparato da carruagem de Mirza Babur.

Meu pai me contou que, ao menos uma vez, chegando a Leopoldina de trem, vindo do Rio de Janeiro, um carro de boi da fazenda de Sant´Anna viera buscá-lo na estação. Terá sido longa a viagem, no carro puxado pelos bois, da estação até a fazenda, pois de automóvel, hoje, ainda seriam uns bons vinte minutos.

Para o Narrador de Marcel Proust, “Combray et ses environs, tout cela qui prend forme et solidité”, tudo emerge, “ville et jardins”, para fora da sua taça de chá. Para mim, os dois soberbos bois brancos pintados há duzentos anos por um artista indiano, como registro dos aspectos luxuosos ou pitorescos do Império Mogol, fazem entrar, dentro da sala de um museu em Kuala Lumpur, toda a vastidão de Minas Gerais.

Este ensaio, a XIII Carta da Malásia, foi originalmente publicado na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte, em 6 de novembro de 2021. Posteriormente, em janeiro de 2022, tradução reduzida foi publicada, em inglês, na versão impressa da revista malásia Options.

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O Sonho do Louvre

O Sonho do Louvre

Em 14 de maio de 1717, às seis horas da manhã, Pedro, o Grande, foi à Grande Galerie do Louvre, onde então ficavam expostos mapas em alto relevo de praças-fortes francesas. Quem nos conta isso é o duque de Saint-Simon em suas Memórias. Lá ele nos diz, sem dar mais detalhes, que o czar, depois de “examinar por muito tempo” os mapas, “visitou depois vários lugares do Louvre, e saiu ao jardim das Tulherias, do qual todo mundo havia sido retirado”.

Essa anedota não é mencionada pelo crítico de arte e de arquitetura americano James Gardner em seu livro sobre o palácio-museu publicado em 2020, The Louvre: The Many Lives of the World´s Most Famous Museum. A associação que Gardner prefere fazer entre o czar e o Louvre remete a outra observação encontrada nas Memórias de Saint-Simon, embora a fonte usada pelo autor americano não seja o duque diretamente, mas L´Histoire du Louvre, obra em três volumes, de 2016, editada por Geneviève Bresc-Bautier e Guillaume Fonkenell.

Ao chegar a Paris, uma semana antes da visita aos mapas, o czar considerara excessivamente luxuoso (“trop magnifiquement tendu et éclairé”) o apartamento reservado para ele no palácio, ocupado no século XVII pela rainha Ana d´Áustria, mãe de Luís XIV, e preferira hospedar-se em uma residência particular.

Quando o soberano russo esteve no Louvre, este não era ainda um museu, mas um palácio desertado pela realeza. Nele viviam e trabalhavam artistas e acadêmicos, em apartamentos e ateliês cedidos pela monarquia. James Gardner aponta que muitos dos quadros e das esculturas de artistas franceses expostos hoje em dia no museu foram criados ali mesmo. Chardin, Hubert Robert, Quentin de La Tour, Fragonard, David, Pigalle e Falconet, entre outros, moraram no Louvre.

Luís XV, então com sete anos de idade, residia perto, no palácio das Tulherias, conectado ao Louvre pela Grande Galerie. Em 1722, o rei faria a corte retornar a Versailles, abandonado desde a morte de Luís XIV, seu bisavô, em 1715.

O Louvre visitado por Pedro, o Grande era menor do que a construção que vemos hoje. O edifício é um resumo da história da França e com ela se identifica. Inúmeros arquitetos, pintores, escultores trabalharam nele, ao longo de 800 anos. Nesse período, se poucos reis moraram no palácio, vários se dedicaram a embelezá-lo e ampliá-lo.

Construído no final do século XII por Felipe Augusto como uma fortaleza, em uma área que hoje representa apenas uma quarta parte, o quadrilátero sudoeste, da atual Cour Carrée, o Louvre foi no século XIV uma das residências do rei Carlos V. No Renascimento, a Cour Carrée ganhou uma fachada ilustre, do arquiteto Pierre Lescot. James Gardner comenta que a ala edificada por Lescot influenciou não somente a arquitetura subsequente do Louvre, mas também o classicismo francês, “which in turn inspired the Beaux-Arts idiom of Baron Haussmann that is so integral to what we imagine when we think of Paris today”.

Passou a ser necessário, no século XVI, transformar o castelo medieval em palácio imponente, mas o fato é que o Louvre foi crescendo apenas aos poucos. Uma das muitas histórias contadas por Gardner é a de que, ao chegar a Paris em 1601, como segunda mulher de Henrique IV, a rainha Maria de Médicis, que crescera em Florença, achou espantoso que “os reis da França em geral, e ela mesma em particular, tivessem de residir em algo de tanto mau gosto e tão degradado”. Parece-me uma das ironias da longa existência do Louvre que um dos períodos de maior embelezamento do palácio tenha acontecido na primeira metade do reinado do neto de Henrique IV e Maria de Médicis, Luís XIV, que abandonaria Paris por Versalhes.

Até o século XVIII, ainda existiam habitações modestas, ocupadas por particulares, no centro da Cour Carrée. Em meados do século XIX, vias públicas e casas particulares ocupavam o espaço onde hoje estão a Cour Napoléon e a Cour du Carrousel. Isso foi antes de Napoleão III terminar a ala norte e dar ao prédio a aparência uniforme que ele possui aos nossos olhos, quando o vemos do Arco do Carrossel e do jardim das Tulherias. Autores que escrevem sobre o Louvre costumam lembrar que, em La Cousine Bette, de Balzac, publicado em 1846, a personagem principal mora em uma viela obscura e perigosa nesse bairro hoje extinto que o palácio como que abrigava.

Quando, há muitos anos, li o livro de Balzac, fiquei intrigado. Não conseguia imaginar de que forma, nos pátios hoje circundados pelo esplendoroso edifício do palácio-museu, onde estão a pirâmide de I. M. Pei e a cópia em chumbo da estátua equestre de Luís XIV por Bernini, houvera anteriormente casas, albergues e tavernas. Em La Cousine Bette, Balzac descreve o bairro no capítulo 13 e já o apresenta como condenado a desaparecer, considerando sua sobrevivência até então como um atentado “contre le bons sens”. Afirma o escritor: “nossos sobrinhos, que sem dúvida verão o Louvre completado, se recusarão a acreditar que uma tal barbárie tenha subsistido” por tantos anos no coração de Paris. Napoleão I começara a demolir o bairro; trinta anos depois, em 1838, quando tem início o romance de Balzac, sobravam ainda uma rua e uma via sem saída. A descrição feita das casas pelo escritor é lúgubre. Dramático, ele faz o Louvre gritar: “Extirpem essas verrugas do meu rosto!”.

Parece inconcebível, e somente muitas leituras sobre a expansão do Louvre me fizeram entender a evolução daquele terreno ao longo do tempo. James Gardner, de resto, sofre das mesmas inquietações. Já na introdução do seu volume, ele nos diz que “no final do período galo-romano, nos primeiros séculos da Era Comum, duas fazendas, uma na Cour Napoléon, a outra no lugar da praça do Carrossel, criavam gado e porcos, e eram fartas em ameixoeiras, pereiras e macieiras, assim como vinhedos”.

Não sei porém se podemos dizer que foi Napoleão III quem terminou a construção do Louvre. Digamos que ele concluiu as fachadas e o processo secular de interligar o Louvre ao palácio das Tulherias. Desde então, houve acréscimos, como o projeto do Grand Louvre de François Mitterrand, que incluiu a Pirâmide de I. M. Pei, inaugurada em 1989. Em 2012, abriu-se em um dos pátios o pavilhão de arte islâmica, cujo teto é coberto por uma tela dourada, ondulada, a meu ver, como um tapete voador. James Gardner prefere considerá-lo inspirado de “uma tenda beduína”.

Uma vez, em 2014, visitei a coleção de arte islâmica por acaso. Nunca mais consegui chegar até ela. O Louvre é assim, um universo próprio, onde parte do prazer é ir andando, sem rumo certo, descobrindo salas que nem sabíamos existir, ou que foram modificadas desde a última visita. Mais problemático é quando queremos ver ou rever salas ou peças específicas. Pode haver dificuldade em encontrar o caminho certo pelos meandros do museu. Em A culpa foi da Mona Lisa narrei minha frustração de não poder, em 2019, chegar até a Galerie Médicis para ver as grandes telas de Rubens narrando a vida de Maria de Médicis. Há muitos anos, não visito a coleção egípcia, que abriga duas das minhas peças prediletas, o famoso Escriba Sentado e o gigantesco busto de Akhenaton.

No último dia de setembro, almocei no Museu de Arte Islâmica de Kuala Lumpur — sobre o qual escrevi em novembro uma Carta da Malásia, “Os Bois de Mirza Babur” — com seu fundador e diretor, Syed Mohamad Albukhary, que me disse considerar o Louvre confuso. Falou com mais apreço de outros museus, os Uffizi e o Gulbenkian, e posso entender a razão. O Gulbenkian, especialmente, é compacto, agradável, fácil de visitar, apesar de sua coleção abrangente e extraordinária. A opinião de Albukhary sobre o museu parisiense não é isolada. Em um livro intitulado O Louvre e seus Visitantes, de 2009, que reúne algumas das fotos tiradas por Alécio de Andrade, ao longo de quase quatro décadas, retratando o público frente a obras de arte no museu, o sociólogo Edgar Morin nos diz, no prefácio que “luxe, immensité, étrangeté, poids du pouvoir et de la richesse” são parte integrante do palácio-museu, “labirinto acachapante” (“labyrinthe écrasant“), todas elas características que podem criar “desestabilização” no visitante.

Ninguém nunca considerou o museu mais famoso do mundo fácil de visitar. Outro “biógrafo” do Louvre, Pierre Rosenberg, que foi seu diretor de 1994 a 2001 e publicou, em 2007, pela editora Plon, um Dictionnaire amoureux do museu, comenta, no prefácio, que “apenas uma longa prática do lugar impede que a pessoa se perca nele. Mas será que é tão desagradável assim perder-se no Louvre?”.

O livro de James Gardner, de início, frustrou-me. Localizei nele algumas imprecisões sobre a história da França que me decepcionaram. Um ano depois, com o prolongamento da pandemia, e o continuado fechamento das fronteiras na Malásia, passei a ver suas qualidades. Uma viagem a Paris e uma visita ao Louvre soam, por enquanto, como um sonho não impossível, mas de realização incômoda, por causa das novas regras impostas pela Covid-19. Mergulhar na história do prédio como ela é narrada por Gardner, aliás de forma cativante, é uma boa substituição. Reconciliei-me com o livro, também, por causa de uma observação de Pierre Rosenberg no prefácio de seu Dictionnaire amoureux, a de que alguns o criticarão “pelas negligências e as imprecisões, os erros e os desconhecimentos. Il faudrait tout savoir, tout connaître…”.

A questão com o Louvre é que a arquitetura e a história do prédio são tão fascinantes quanto as suas coleções. Uma época, quando eu era estudante em Londres, e de vez em quando podia ir a Paris, o que eu mais admirava no exterior do palácio era a Colonnade, a fachada leste encomendada por Luís XIV e terminada na década de 1670 em estilo clássico. Sua influência sobre a arquitetura foi grande. Essa fachada é famosa também porque Bernini foi convidado a vir de Roma a Paris, em 1665, para apresentar projetos para sua construção. Seus planos foram rejeitados, embora ele tenha sido tratado na França como uma celebridade do mundo do cinema hoje seria. Da sua visita, sobrou um renomado busto em mármore de Luís XIV, que podemos admirar em Versalhes. Mais tarde, de Roma, ele enviou uma estátua equestre do rei que desagradou, e cuja cópia em chumbo é a que vemos perto da Pirâmide, na Cour Napoléon.

A fachada leste é também conhecida como Colonnade Perrault, por causa de um dos arquitetos que trabalharam na sua concepção, Claude Perrault, irmão de Charles Perrault, o autor de contos de fadas. Lembro nitidamente que, ao menos uma vez, aos 20 anos, foi frente a essa fachada que fiz fila para entrar no museu. Hoje, muitos turistas nem percebem que a Colonnade existe, apesar da sua imponência, simplesmente porque nunca passam diante dela. Outro crítico de arte americano, John Russell, em seu belo livro sobre Paris em formato grande, ilustrado, publicado em 1983, nos diz, no capítulo dedicado ao palácio: “The colonnade has become, in fact, the disregarded back door of the Louvre”. Concebida para ser a entrada principal, virou, nas palavras de Russell, “an ordinary gateway through which disoriented sightseers occasionally pass”. Ele cita a respeito a frase de um comentarista de 1856 que nos mostra que já era assim em meados do século XIX.

Há poucos dias, a Colonnade apareceu em um dos meus sonhos: parado frente a ela, eu a olhava e sentia felicidade. Claramente, estava aí simbolizada minha ambição, apesar da pandemia e do fechamento das fronteiras na Malásia, e do transtorno em que as viagens de avião se transformaram, de voltar a viajar. É um belo sonho, perfeitamente inocente, penso eu, querer estar em Paris para rever a fachada leste do Louvre.

Devemos a Henry James a descrição de um sonho famoso sobre o edifício. Em 1855, aos 12 anos, ele entrou pela primeira vez no museu, que aparece algumas vezes em sua obra de ficção. É porém em um de seus livros autobiográficos, A Small Boy and Others, publicado em 1914, que pode ser lida sua impressão do prédio: “O Louvre é, de forma geral, o mais povoado de todos os cenários, mas também o mais silencioso dos templos”. Suponho que o termo “povoado” refira-se aos muitos personagens retratados nas pinturas, pois para Henry James — como seria também para Marcel Proust algumas décadas mais tarde — o Louvre era sobretudo a coleção de pinturas, embora ele mencione o Escravo Morrendo de Michelângelo em outro livro autobiográfico.

É a Galerie d’Apollon que Heny James descreve de maneira mais detalhada e com mais afeto em A Small Boy and Others. A galeria é talvez a mais luxuosa de todo o Louvre; sua decoração foi iniciada no reinado de Luís XIV e terminada sob Napoleão III, quando Delacroix dela participou, com uma pintura no teto. Henry James nos conta que, durante anos, a galeria tornou-se para ele “a splendid scene of things”. Viria a ser porém o cenário do pesadelo — “the most appalling yet most admirable nightmare of my life” — que ele teria muitos anos depois de visitar o museu pela primeira vez. O pesadelo, descrito em detalhe pelo escritor, é maçante, como costumam ser os sonhos alheios, mas tornou-se célebre, por pertencer a Henry James e por ter a Galerie d’Apollon como palco.

Naturalmente, o espaço predileto de todo mundo é a Salle des États, onde está a Mona Lisa. A célebre florentina obscurece os outros quadros expostos em torno a ela. No entanto, há nessa sala obras famosas, de Ticiano, de Veronese, que pintou o maior quadro do museu, As Bodas de Canaã, pendurado frente à tela de Leonardo da Vinci. As Bodas de Canãa sempre exerceu sobre mim um total fascínio. Sobre essa pintura, Cynthia Saltzman publicou este ano o livro Plunder: Napoleon’s Theft of Veronese’s Feast, que descreve como ela foi extraída da parede em Veneza para a qual fora pintada, no século XVI, e levada para a França em 1797.

A Salle des États foi redecorada em 2019, e hoje está pintada de um azul escuro, não mais da cor areia com que a vi nas minhas últimas visitas. Ela abre, por uma de suas duas portas, sobre a Grande Galerie. Acho que ninguém continua a ser a mesma pessoa, depois de seguir os passos de Pedro, o Grande e caminhar pela galeria que corre ao longo do Sena e é hoje povoada por obras-primas da pintura italiana. Ela inspira livros e filmes, alguns medíocres, como é o caso de The Da Vinci Code. No filme, vendo de madrugada o cadáver do avô estendido no chão da galeria, e sabendo que ele, antes de morrer, deixara uma pista sobre seu assassinato na Mona Lisa, o personagem de Andrey Tatou diz ao de Tom Hanks: “Professor, the Mona Lisa is right over here!”. Inocente criatura. Ela acha de verdade que alguém pode não saber disso?

Algumas das numerosas referências contemporâneas ao Louvre e aos seus tesouros na literatura e nas artes contribuem para revitalizar nossa percepção sobre o museu. Em 2018, Beyoncé e Jay-Z lançaram o vídeo de uma música, “Apeshit”, que se passa no Louvre, frente a algumas de suas peças mais famosas, fazendo-nos vê-las de uma maneira impactante. A Vitória de Samotrácia, o Escalier Daru que leva a ela, As Bodas de Canãa, e duas telas de David — o retrato de Madame Récamier e a Coroação de Napoleão I — ganham uma vida mais rica e novo significado, ao se tornarem cenário da música e da coreografia. Diante das obras do Louvre, é impossível não pensar nos milhões de seres humanos, geração após geração, cujo olhar já se pousou sobre elas, nos muitos autores que já as mencionaram, e nos pintores que já as retrataram.

Nas últimas vezes em que fui ao museu, meu lugar predileto foram as salas enfileiradas de estatuária romana no apartamento de Ana d’Áustria, o mesmo que Pedro, o Grande, achou de um luxo excessivo. É uma sucessão ilustre de estátuas e bustos de imperadores, imperatrizes, generais e seres anônimos ou não-identificados. Não passo por acaso por essas salas. Busco-as de forma determinada, para rever o busto de Germânico, a quem admiro simplesmente porque ele é uma das poucas figuras descritas de forma empática por Tácito em seus Anais.

Depois dos primeiros anos do reinado de Luís XIV, nenhum soberano voltou a morar no Louvre. Os reis que residiram em Paris a partir daí moraram no palácio das Tulherias, na outra ponta da Grande Galerie. As Tulherias foram incendiadas em 1871, durante a Comuna, porque era esse o prédio, cuja construção fora iniciada em meados do século XVI por Catarina de Médicis, que ficara associado, no imaginário popular, à monarquia. De 1882 a 1883, a estrutura chamuscada do palácio foi destruída por ordem do governo republicano.

O Louvre, assim, beneficiou-se de já não ser a casa dos reis. Foi poupado pelos communards. Outro dos “biógrafos” do grande museu, Jean-Pierre Babelon, em ensaio sobre o palácio na coleção dirigida por Pierre Nora Les Lieux de Mémoire – e o fato de o palácio-museu merecer um texto na coleção demonstra sua centralidade para a identidade francesa – aponta a ironia de que as Tulherias tenham sido destruídas poucos anos depois de ter sido finalmente completada, em 1857, a interligação entre os dois edifícios, esforço de 250 anos e de vários governantes.

O incêndio e a demolição trouxeram porém uma compensação. Abriram o Louvre para a cidade, para os jardins do palácio queimado, fizeram dele parte da perspectiva em direção à Place de la Concorde, aos Champs-Elysées, ao Arco do Triunfo e ao Arco da Défense. Babelon estima que o palácio das Tulherias deixou de ser monumento histórico para dar lugar, “dans la mémoire collective, à un palais fantôme”. Deixou a lembrança de “un destin maléfique”, sendo o “palácio das revoluções, o palácio dos reis fugitivos”. De fato, dos soberanos que nele residiram a partir de 1789, Luís XVI, Carlos X, Napoleão I, Napoleão III perderam todos o trono; o primeiro foi guilhotinado, e os demais morreram no exílio. A exceção foi o irmão de Luís XVI, Luís XVIII, que agonizou em sua cama nas Tulherias, em 1824. Mas  também ele perdera o trono por três meses, em 1815, durante os Cem Dias da volta de Napoleão ao poder, e tivera de fugir das Tulherias e se exilar em Gand.

Para o turista que passeia pelos arredores do Louvre, pelos seus pátios ou as suas salas, nada disso tem importância. Não é preciso saber que o cortejo de núpcias de Napoleão I e sua segunda mulher, a arquiduquesa Maria Luísa da Áustria, passou pela Grande Galerie em 1810, a caminho da capela montada no Salon Carré; que pela mesma galeria a imperatriz Eugénie fugiu, em 1870, vindo do palácio das Tulherias a caminho da saída pela Colonnade e do exílio, após a queda de seu marido, Napoleão III.

Em seu filme de 2015 sobre o Louvre, Francofonia, Alexander Sokurov toma a Ocupação alemã e o temor que ela ocasiona sobre o futuro das obras-primas no palácio-museu como base para suas reflexões sobre a arte (“quem seríamos sem os museus”?). O cineasta russo opina que o Louvre deve valer mais do que toda a França.

James Gardner termina seu livro com uma citação de A Small Boy and Others, uma frase na qual Henry James escreve que a Galerie d´Apollon — e, devemos presumir, por extensão o Louvre — representa “não só beleza e arte, e concepção suprema, mas história, fama e poder, o mundo in fine elevado à sua expressão mais rica e nobre”.

Existirá o Louvre para sempre? Voltará a servir de pastagem para “gado e porcos”? Virará um arranha-céu? Será poupado de incêndios? As obras-primas que contém permanecerão culturalmente valiosas até o fim dos tempos? Tudo isso, ou nada, pode acontecer.

Um dos quadros mais surpreendentes sobre o edifício, exibido em uma de suas salas, é o de Hubert Robert, de 1796, intitulado Vista Imaginária da Grande Galeria do Louvre em Ruínas. E é exatamente o que vemos: a Grande Galerie como se fosse uma ruína romana, sem teto, com colunas ainda em pé, pessoas sentadas em blocos de pedras. Apenas uma obra de arte sobreviveu, a versão em bronze da célebre escultura romana Apolo do Belvedere. O original em mármore era, no final do século XVIII, nos diz Kenneth Clark em seu livro The Nude: a study of ideal art, de 1956, “one of the two most famous works of art in the world”. A cópia em bronze possui uma origem ilustre. Encomendada por Francisco I, ficou no castelo de Fontainebleau do século XVI até a Revolução, quando foi levada para o Louvre, onde permaneceu até 1967. Naquele ano, voltou para Fontainebleau. A própria escultura original chegaria de Roma a Paris em 1797, parte do botim obtido pelo exército de Napoleão, então ainda general, na Campanha da Itália. Foi devolvida ao Papa em 1815, após a derrota final do imperador.

As obras de arte viajam; desaparecem; ganham ou perdem importância. Os nomes de seus criadores são esquecidos. Se uma fortaleza, um palácio, uma estação de trem viram museus, o contrário deve também ser passível de acontecer. Mas, por enquanto, o Louvre e suas coleções continuarão a existir à beira do Sena. Serão ainda visitados por milhões, de forma física, virtual ou onírica.

O museu e suas obras vivem em mim desde que, criança, prestes a iniciar a subida da escadaria Daru pela primeira vez, vi no seu topo a Vitória de Samotrácia, bela, imponente mas etérea, prestes a voar, parecendo convidar-me e simbolizando, para sempre, a independência e os sonhos que a arte traz.

As fotos são todas do autor

Versão mais curta deste texto foi publicada originalmente na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte, em 9 de outubro de 2021

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Joseph Brodsky no Corcovado

Joseph Brodsky no Corcovado

Em 1979, Joseph Brodsky passou uma semana no Rio de Janeiro. O poeta e ensaísta lá participou de um congresso do Pen Clube Internacional. On Grief and Reason, sua segunda e última coleção de ensaios, publicada em 1995, um ano antes de sua morte por ataque cardíaco aos 55 anos, inclui um texto intitulado “After a Journey, or Homage to Vertebrae”. A viagem ao Rio de Janeiro é o assunto do texto.

Na prosa de Brodsky, não são muitas as cidades que recebem destaque. Em sua primeira coletânea de ensaios, Less Than One, de 1986, que contribuiu para a concessão do Prêmio Nobel ao autor em 1987, há uma homenagem a São Petersburgo, “A Guide to a Renamed City”. Brodsky nascera em São Petersburgo em 1940, no período em que a ex-capital, de 1924 a 1991, se chamou Leningrado. No mesmo volume, um longo ensaio, “Flight from Byzantium”, descreve não tanto uma viagem ao Bósforo, mas as percepções sobre a História que o lugar, como antiga sede dos impérios romano, bizantino e otomano, fornece a ele: “I came to Istanbul to look at the past”. Em On Grief and Reason, onde se insere o texto sobre o Rio de Janeiro, outro ensaio, “Homage to Marcus Aurelius”, fala pouco de Roma, e muito da Antiguidade e do Império Romano. Um livro avulso de 1992, Watermark, de cerca de 130 páginas, é todo sobre Veneza.

O Rio, assim, mereceu de Joseph Brodsky uma distinção pouco usual. Seus sentimentos sobre a cidade foram, porém, ambíguos.

No embarque, em Nova York, iniciam-se as frustrações. Brodsky nos diz que a VARIG vendera o dobro dos assentos disponíveis e que a situação era caótica. Ele nos explica que a atitude “indiferente” dos funcionários era de se esperar, já que a companhia, está convencido, era estatal: “you sense you are dealing with a state — the company is nationalized and everyone is a state employee”.

Nas primeiras linhas, portanto, já se vê o quanto Brodsky viajou ao Brasil despreparado e desinformado. Ele erra inclusive a data de sua viagem: diz que ela ocorreu em 1978. Pesquisando, descubro que o congresso do Pen Clube aconteceu em 1979 e fico intrigado de que o autor possa ter confundido o ano da sua única visita ao Brasil e, na verdade, à América do Sul.

Depois de um voo terrível — o avião está lotado, a poltrona não reclina, bebês choram — há a chegada ao Rio e o primeiro contato com um motorista de táxi carioca. O carro que o leva até o hotel contorna, acredita ele, “a margem direita do famoso rio Janeiro”. Não estou inventando. O texto diz: “From the airport to downtown, the taxi is rushing along the right (?) bank of that famous January River”. O ponto de interrogação é dele. Será a frase irônica? Em todo caso, de tão absurdo, esse é o trecho mais engraçado — o único, talvez — do texto.

No trajeto do aeroporto ao Hotel Glória, surgem pensamentos esdrúxulos. O poeta avalia que a forma como as pessoas dirigem no Brasil explica “os triunfos” do país no futebol. Todo motorista brasileiro “é uma mistura de Pelé e de um kamikaze”. Não entende como o Brasil consegue, com seu trânsito perigoso, ter crescimento populacional. A cada cem metros, “garotos cor de cacau” (“cocoa-shaded kids”) estão batendo bola nas ruas.

Mais algumas páginas, e ele nos contará, ao falar brevemente dos delegados de países africanos ao congresso, que eles tinham, “abaixo do cinto, alguma experiência parisiense, porque a vida não vale a pena para uma esquerdista da Rive Gauche, se ela nunca teve um negro revolucionário do Terceiro Mundo” (“if she never had a revolutionary Negro from the Third World”). É constrangedor que, em 1995, um escritor ganhador do Prêmio Nobel se sentisse à vontade para publicar frases assim, em um texto de não-ficção, de cunho memorialístico.

Os deuses, ou os cariocas, estavam naquela semana determinados a fazer com que o poeta se desiludisse com a cidade. Uma ida à praia de Copacabana termina mal, pois roubam dele, na areia, um relógio, valioso ao menos do ponto de vista sentimental, e 400 dólares. A quantia, hoje, equivaleria a pouco mais de 1.500 dólares.

Um dado particularmente enigmático é que, no Rio de Janeiro, Brodsky vê a Alemanha em toda parte. A primeira coisa que ele nota é a prevalência, no trânsito, do fusquinha. Os aparelhos telefônicos, aprendemos ao lê-lo, eram todos da Siemens. O roubo na praia é feito graças à participação de um cão pastor alemão, pertencente ao assaltante, que distrai a vítima enquanto seu dono pega o dinheiro. O cônsul da Alemanha Ocidental — estamos na época em que havia duas Alemanhas — gentilmente informa ao poeta, antes russo e, desde 1977, naturalizado americano, que as prostitutas, no Rio, “do not take money” e ficam surpresas se um cliente se oferece para pagá-las. De maneira característica, Brodsky nos diz que não teve oportunidade de comprovar se essa afirmação era verdadeira, porque ficou “ocupado, como se diz, de manhã até de noite, com uma delegada nórdica de longas pernas”. O prestimoso diplomata alemão aconselha também cuidado com o mar, pois as praias do Rio são frequentadas por tubarões.

A obsessão em ver uma forte presença germânica, e mesmo nazista, no Rio me fez lembrar que Brodsky passara, criança, pelo cerco alemão a Leningrado, de quase dois anos e meio, de 1941 a 1944. Ao menos um milhão e meio de habitantes da cidade morreram.

O Cristo Redentor, pelo menos, ele não germanizou. Preferiu italianizá-lo. Partiu do Rio convencido de que a estátua fora um presente de Mussolini à cidade.

O Rio de Janeiro visto por Joseph Brodsky é um lugar sem história. Ele lamenta que os prédios sejam todos contemporâneos e, na sua avaliação, feios: “a very monotonous city […] the two- or three-kilometer strip between the ocean and the looming cliffs is entirely overgrown with utterly moronic — à la that idiot Le Corbusier — beehive ‘structures’ […] the eighteenth and the nineteenth centuries are completely wiped out”. Ele não está totalmente errado, mas faltou alguém que o levasse ao Mosteiro de São Bento, ao Theatro Municipal, ao Palácio Itamaraty. Para um poeta e ensaísta que refletia sobre a História, a falta de referência ao passado, no Rio que ele pôde conhecer, terá contribuído para sua má vontade em relação ao lugar.

A cidade pode também ter ficado associada para ele à monotonia do evento que o fizera viajar até a margem do “famoso rio Janeiro”. Ele nos diz que o congresso foi “excruciating in its boredom, vacuity”. Outros participantes aparecem com pseudônimos. Mario Vargas Llosa, então presidente do Pen Clube Internacional e que, leio em outra fonte, foi o responsável pela ida de Brodsky ao Rio, vira Julio Llianos.

Um dos delegados é mencionado duas ou três vezes como “the Great Translator”. O apelido não me soa amável porque sinto nele, foneticamente, ecos do “Grande Inquisidor” de Dostoiesvki. Fiquei me perguntando quem seria. Uma frase de Brodsky dá a chave: ele nos diz que o “Great Translator” talvez fosse o escritor mais importante presente no congresso, pois “a reputação [literária] de todo o continente repousava sobre ele”.

Trata-se, sem dúvida, de Gregory Rabassa, cujas traduções do português e do espanhol para o inglês foram responsáveis, em seu tempo, pelo sucesso da literatura latino-americana nos países anglófonos. Embriagado (“stupefied by alcohol”), Brodsky questiona junto ao “Grande Tradutor” a qualidade dos escritores que ele traduz, criticando um livro em particular, o Cien años de soledad. É conhecida a anedota de que Gabriel García Márquez considerava melhor do que o original a tradução feita por Gregory Rabassa do seu romance.

Brodsky partiu do Rio sem levar nenhuma recordação física. Chega a perguntar-se: “Was I really there?”. As fotos tiradas dele e da “nórdica” no Jardim Botânico ficaram na câmera dela. Uma embalagem de talco foi a única coisa que ele comprou na cidade. Com ironia, comenta que mesmo os seus 400 dólares terão sido rapidamente gastos pelo ladrão, sem deixar rastros.

Sobrou da viagem apenas um poema, intitulado Rio Samba, que sequer ele próprio considera muito bom, embora julgue que “some rhymes aren´t so bad”. Já sem me surpreender, constato que a Alemanha é bem presente nos versos:

Come to Rio, oh come to Rio.
Grow a mustache and change your bio.
Here the rich get richer, the poor get poorer,
here each old man is a Sturmbannführer.

Come to Rio, oh come to Rio.
There is no other city with such brio.
There are phones by Siemens, and even Jews
drive around like crazy in VWs.

Come to Rio, oh come to Rio.
Here Urania rules and no trace of Clio.
Buildings ape Corbusier’s beehive-cum-waffle,
though this time you can’t blame this on the Luftwaffe.

Come to Rio, oh come to Rio.
Here every bird sings “O sole mio.”
So do fish when caught, so do proud snow geese

in midwinter here, in Portuguese.

Come to Rio, oh come to Rio.
It’s the Third World all right, so they still read Leo
Trotsky, Guevara, and other sirens;
still, the backwardness spares them the missile silos.

Come to Rio, oh come to Rio.
If you come in duo, you may leave in trio.
If you come alone, you’ll leave with a zero
in your thoughts as valuable as one cruzeiro.

O humor nesses versos ofensivos está ligado à curiosa certeza de Brodsky de ser o Rio, naquela época, um antro de ex-nazistas escapados da Alemanha depois de 1945 — o que explica o segundo verso, “Grow a mustache and change your bio”.

Poucos dias antes de ler “After a Journey”, eu lera Watermark, o curto livro de Brodsky dedicado a Veneza. O espírito é bem diferente do texto sobre o Rio. Veneza, que Brodsky visitou todos os anos depois de ser expulso da União Soviética, em 1972, era sua paixão, e ele lá está enterrado, no cemitério da ilha de San Michele, embora tenha morrido, em 1996, no seu apartamento no Brooklyn. Ele costumava visitar a cidade no inverno pois, como explica, suportava mal o calor.

Duas entrevistas revelam as visões divergentes do autor sobre o Rio de Janeiro e Veneza. Em dezembro de 1979, cinco meses após a sua viagem ao Brasil, entrevistado por The Paris Review, ele é perguntado sobre seu amor por Veneza. A resposta é longa e entusiasmada e inclui a frase: “É tão bonita, que você sabe que nada, na sua vida, que você possa inventar ou produzir poderia ter uma beleza equivalente”. Em 1994, entrevistado para o jornal O Globo por Edney Silvestre, este lhe pergunta: “Que imagem lhe ocorre quando ouve falar no Brasil?”. A resposta de Brodsky é sucinta e desinteressada: “Caos, eu suponho”. Não faz referência à sua viagem ao Rio, quinze anos antes.

Watermark não é uma descrição da arquitetura de Veneza. Não há quase referência aos museus, às igrejas, aos edifícios. Brodsky faz por Veneza, na escrita, o que Turner fazia por ela na pintura. Deseja mostrar as sensações, as impressões que a cidade desperta nele. De resto, Goethe já escrevera em Viagem à Itália: “Tanto foi já dito e escrito sobre Veneza, que eu não pretendo descrevê-la minuciosamente”.

Embora em prosa, Watermark é o texto de um verdadeiro poeta. Estuda a luz, seus efeitos sobre os prédios e os canais, a variação da cor da água. Um dia, último do autor na cidade naquela temporada, ao terminar de almoçar em um restaurante e caminhar para ir pegar as malas, Brodsky percebe o quanto é, ali, “absolutely, animally happy”. Sem Veneza na sua vida, escreve, ele estaria já internado em alguma clínica. Cada partida provoca tristeza. Há uma bela imagem sobre como o olho se identifica não com o indivíduo a que pertence, mas com o objeto de sua atenção. Para o olho, partir de Veneza não significa o corpo deixar a cidade, mas a cidade abandonar a pupila. “This city is the eye´s beloved. After it, everything is a letdown”. Por isso, o olho chora, “porque partimos e a beleza fica”. O choro é “uma tentativa de permanecer, ficar para trás, fundir-se com a cidade”, sendo Veneza vista como “a maior obra-prima produzida pela nossa espécie”.

Joseph Brodsky era um grande ensaísta, entre outras razões, porque sabia colocar, em sua prosa, muito de sua personalidade e de suas crenças. “After a Journey” e Watermark não fogem à regra e podem mesmo ser vistos como ensaios particularmente reveladores de diferentes facetas de sua personalidade.

Infelizmente, Brodsky é Brodsky, e nem tudo é nobre daquilo que revela sobre si mesmo. Também em Watermark há trechos desagradáveis, particularmente quando ele fala na amiga veneziana que vai buscá-lo de noite, em 1972, na estação de trem, em sua primeira viagem depois da chegada aos Estados Unidos, paga com o salário de professor universitário. Brodsky conhecera a veneziana alguns anos antes, na Rússia; ela é belíssima, e naturalmente ele fantasia a seu respeito. O marido é arquiteto, constrói edifícios modernos, o que o poeta detesta, como vimos em seus comentários sobre o Rio. Só isso, julga Brodsky, já faz com que ele “merecesse ser corneado”.

Anteriormente, na Rússia, a bela veneziana se apaixonara, nos círculos literários frequentados por Brodsky, por um homem de origem armênia. Brodsky, que era judeu, e que em um dos melhores ensaios de Less Than One, “In a Room and a Half”, fala sobre como seus pais foram prejudicados pelo antissemitismo soviético, é capaz de chegar à seguinte conclusão sobre a paixão da veneziana pelo armênio: “come to think of it, one shouldn’t get angry over a piece of fine lace soiled by some strong ethnic juices”. Em outra página, o leitor se depara com a observação de que o véu muçulmano é “um grande instrumento de planejamento social, pois garante que toda fêmea terá um homem, independentemente de sua aparência”.

Outro trecho é mais engraçado. Joseph Brodsky e Susan Sontag, que eram amigos, estão simultaneamente em Veneza, em 1977, e vão juntos visitar a companheira de Ezra Pound, Olga Rudge. Assim que o chá é servido, e Brodsky e Sontag tomam o primeiro gole, a anfitriã, de forma teatral, levanta um dedo e, então, “out of her pursed lips came an aria the score of which has been in the public domain at least since 1945”. A “ária” em questão é o discurso de Olga Rudge no qual, como viúva leal, ela afirma que Ezra Pound não fora nem fascista nem antissemita.

Li Watermark às vésperas de almoçar, em Kuala Lumpur, com um amigo italiano. Isso aconteceu na última semana de maio, logo antes da decretação do mais recente isolamento social absoluto na Malásia. Poucas horas antes do almoço, eu enviara a ele a foto de uma página de Watermark, assinalando a seguinte frase: “’Italy’, Anna Akhmatova used to say, ‘is a dream that keeps returning for the rest of your life’“. Já durante o primeiro prato, comendo o meu nhoque, comentando as palavras de Akhmatova, perguntei qual era, na avaliação do meu anfitrião, a razão do amor que as pessoas devotam à Itália. A resposta foi: “Há, antes de mais nada, razões históricas. Estão ainda de pé, na Itália, monumentos construídos há dois mil anos, quando outros povos europeus não tinham cidades. Há dois mil anos, todo mundo, na Europa, no Mediterrâneo, já queria ir a Roma, sede do império. Há também razões literárias. Cada geração de escritores escreve sobre suas experiências de Itália, e perpetua a imagem do país. Isso é particularmente verdadeiro no caso de Veneza. Pensa só, Dante já a menciona”.

Brodsky, em Watermark, comenta o fato de o Arsenal de Veneza, hoje um dos locais onde se realiza a Bienal, ter sido “imortalizado por Dante”. Admirar Veneza, tê-la como fonte de inspiração literária, escrever sobre ela significa inserir-se em uma tradição, uma linha contínua, que vai de Dante a Brodsky, passando por dezenas, centenas de outros, incluindo, além de escritores nativos como Goldoni e Casanova, Shakespeare, que nunca lá esteve, Goethe, Byron, Chateaubriand, Musset, Henry James, Proust, Thomas Mann.

A lista não tem fim e é a cada ano acrescida de novos romances, poemas, ensaios, contos. No ano passado, ganhei de presente, do mesmo amigo italiano e de sua mulher, um romance de 2009 de Geoff Dyer, Jeff in Venice, Death in Varanasi. O personagem principal visita a ilha de San Michele, “onde Diaghilev está enterrado. E Stravinsky”. Constata que o túmulo de Brodsky é próximo do de Ezra Pound, e que há sobre ele cartões-postais, deixados com mensagens para o poeta, e canetas à disposição de seus admiradores, para novas mensagens. Assim, Joseph Brodsky não só é um dos autores que falam de Veneza, mas passou a fazer, ele próprio, parte de novos textos literários que têm a cidade por cenário.

Alguns lugares possuem essa capacidade de afetar as letras. Em “A Guide to a Renamed City”, Brodsky reflete sobre o fato de que o desenvolvimento da literatura russa acompanha, não por acaso, a criação de São Petersburgo. A nova capital, ele explica, transforma-se mesmo no tema principal da literatura do país. ”Technically speaking”, diz ele, “Russian literature was born here, on the shores of the Neva”. É preciso lembrar que a cidade fundada por Pedro, o Grande em 1703 possuía para os russos um caráter exógeno, por sua arquitetura europeia e atmosfera ocidentalizante. Isso explica outra observação de Brodsky: “If it´s true that every writer has to estrange himself from his experience to be able to comment upon it, then the city, by rendering this alienating service, saved them a trip.”

Brodsky nos conta, em Watermark, o processo pelo qual, antes mesmo de ser expulso da União Soviética, Veneza firmara-se como um conceito firme em sua imaginação. No “cômodo e meio” onde vivia com os pais, no apartamento comunal que dividiam com mais três famílias em Leningrado, um dos objetos de decoração era uma pequena gôndola de cobre. Fico fascinado ao ler isso, pois em Viagem à Itália Goethe também nos conta que na casa dos seus pais em Frankfurt, quando ele era criança, havia o modelo de uma gôndola, com a qual deixavam que ele brincasse.

No apartamento comunal em Leningrado, um pedaço de tapeçaria que cobre o divã representa o Palácio dos Doges. Um exemplar antigo da revista Life que Brodsky ganha de presente — isso era provavelmente um tesouro, na União Soviética — contém uma foto da Praça de São Marcos coberta de neve. Uma garota com quem ele flerta lhe dá de presente de aniversário uma coleção de cartões-postais antigos, em tom sépia, fruto da lua de mel da avó dela em Veneza, antes de 1917. Um amigo empresta a ele o romance de um escritor e poeta francês já meio esquecido, Henri de Régnier, morto em 1936, cuja ação se passa na Sereníssima.

Em resumo, o que vemos, sem que Joseph Brodsky chegue a essa conclusão ou use este termo, é o onipresente soft-power de Veneza, que martela o imaginário do garoto crescendo longe, à beira do rio Neva, vivendo as agruras e as restrições impostas pelo invasor nazista e pelo regime soviético. Veneza possui uma marca, que se perpetua ao longo dos séculos, baseada em suas características peculiares: a instalação na Laguna e seus canais, a surpreende beleza arquitetônica, o passado grandioso como república poderosa, os tesouros artísticos, sua celebração nas artes, os artistas que lá nasceram ou viveram ou que a celebraram, e, hoje, adicionalmente, sua fama como meca do cinema e da arte contemporânea.

O Rio de Janeiro também possui uma marca e capacidade para soft power. Há inclusive um poema do próprio Brodsky, de 1970, quando ele ainda estava na União Soviética, que indica isso. Desde 2020, os versos ganharam novo fôlego, por causa do refrão “Não saia do quarto”, que soa aplicável ao isolamento social criado pela Covid-19. Um verso diz: “Não saia do quarto. Dance a bossa nova”. Atualmente, pode ser difícil para um brasileiro entender que, para os estrangeiros, a bossa nova representa, há sessenta anos, a essência do Rio de Janeiro e, por extensão, do Brasil.

É bem possível que Brodsky tenha vindo ao Rio com noções de samba, praia, alegria e bossa nova na imaginação. Em vez disso, viu ou quis ver apenas pobreza, prédios “feios”, a falta de História e uma imaginária presença alemã. Assim como eu, em minha primeira ida a Veneza, só vi sujeira, decadência e multidões. A diferença é que eu me dei a chance de rever minha opinião, indo à Sereníssima outras vezes, embora não tantas quanto Brodsky.

A bem da verdade, eu gosto do texto de Brodsky sobre o Rio. Em uma primeira leitura, senti revolta. Decidi, no entanto, relê-lo várias vezes, ao longo de poucos dias, enquanto escrevia este ensaio. E, então, mudei de opinião e mudei o sentido do meu texto. Joseph Brodsky faz observações sobre o quanto ele se impressionou com a natureza, com o aspecto inigualável do Rio. Do alto do Corcovado, julga que: “Em um dia claro, você sente que tudo o que seu olhar já viu antes são apenas as sobras miseráveis e sem brio de uma imaginação interrompida”. Considera que a vegetação do Rio, que não remete a nada com que um europeu possa se identificar, cria a “sensação de uma fuga total da realidade conhecida”. Em “After a Journey”, vemos que, sem entender o Rio de Janeiro, por causa da pobreza, a falta de referência histórica, os prédios “feios”, ele no entanto sentiu que havia ali algo de espetacular.

Em uma entrevista que concedeu em 2003 a Valentina Polukhina, especialista da obra de Brodsky, Susan Sontag, apesar da amizade que tinha por ele, lamenta: “havia algo em seu caráter de que eu não gostava, eu não gostava do quanto ele podia ser cruel às vezes com as pessoas. Ele podia ser bem cruel […] Ninguém, muito menos Joseph, podia pretender que ele tivesse bom caráter”.

Os comentários desagradáveis de “After a Journey” mostram esse aspecto da personalidade do poeta. A viagem ao Rio de Janeiro, porém, despertou também um lado melhor seu, que é a transparência com que expõe suas vulnerabilidades e aflições. Em 1979, ele tem 39 anos apenas, mas tem já graves problemas cardíacos e está consciente de sua mortalidade. Comenta que nunca mais verá o apartamento em Leningrado. Na verdade, ele nunca mais veria seus pais e nem a Rússia. Voltando do Rio, Brodsky especula se cada viagem sua não é feita apenas para poder voltar ao apartamento em Nova York, pois a cada regresso aquele é o lugar sentido um pouco mais como o novo lar.

Na última página do ensaio, o poeta conta que um iugoslavo — existia essa nacionalidade, na época — residente no Rio o convidou a uma churrascaria no Leblon. Era um admirador de sua obra; lera tudo o que ele havia publicado.

Brodsky julga ser seu anfitrião uma dessas pessoas, aparentemente ao contrário dele próprio, para as quais a vida não é só “desespero, neurose e o medo de partir como fumaça a qualquer momento”. Admite que às vezes se sente um impostor, quando os outros veem nele algo que não existe. O que há, na realidade, ele nos revela, é “um lunático atormentado, que se esforça para não ferir ninguém”. Porque, afinal, a coisa principal da vida, nos diz ele, não é a literatura, mas a capacidade de não causar dor aos outros.

Este ensaio foi primeiro publicado, em 19 de junho, na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte.

Todas as fotos são do autor

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Álbum de fotos – Lisboa

Álbum de fotos – Lisboa

Aos 19 anos, fui a Portugal pela primeira vez. Durante uns quinze dias, viajei bastante pelo país. Além de Lisboa, fui ao Porto, a Nazaré, Fátima, ao Mosteiro da Batalha, a Alcobaça, Tomar, Coimbra, Mafra, Sintra e Queluz. Por razões familiares, estive em uma pequena cidade — menos de 11 mil habitantes em 2011 — no Norte, Couto de Cucujães. O nome oficial hoje é Vila de Cucujães, mas para mim o “Vila” nunca substituirá o “Couto”. Localiza-se no município de Oliveira de Azeméis, outro nome poético. Anos depois, quando li A Ilustre Casa de Ramires na biblioteca na casa de praia dos meus futuros sogros, pude visualizar o cenário imaginado por Eça de Queirós.

Embora eu tenha voltado muitas vezes depois a Portugal, a alguns desses lugares nunca mais pude ir — a Alcobaça, por exemplo; já ao Couto de Cucujães e a Oliveira de Azeméis, voltei. Em compensação, conheci outros desde então, particularmente no Alentejo e no Algarve. Todos ocupam um lugar especial para mim. Nunca passei um dia triste ou decepcionante em Portugal. Isso seria impossível. Há poucos países tão acolhedores e encantadores.

Minha curiosidade por Lisboa, aos 19 anos, era grande porque, na adolescência, eu sentira forte impressão ao ler em Candide a descrição feita por Voltaire do terremoto de 1755. Queria conhecer a cidade celebremente reconstruída pelo marquês de Pombal. Em sua biografia do marquês, publicada em 1981, Agustina Bessa-Luís escreveu: “Sem esse cataclismo enorme que destruiu Lisboa em 1755, Sebastião José nunca passaria dum arrivista contratado para conceder alvarás […] Foi preciso que um homem sem vocação filosófica se debruçasse sobre o acontecimento e, armado de coragem, chamasse o seu bem a essa atroz ruína”.

Eu não podia prever, aos 19 anos, que minha irmã, ao se casar, iria morar e trabalhar em Portugal, que meus dois sobrinhos nasceriam em Lisboa, e que eu teria sempre um motivo para voltar. Por causa da pandemia, não vejo Titina desde setembro de 2019, quando passei um dia em Lisboa para vê-la.

Ela sempre morou no Chiado, em dois apartamentos sucessivos, até que, em 2020, mudou-se para a Lapa. O fato de eu não conhecer sua nova casa, sua rua, de eu não poder visualizar sua vizinhança é uma prova a mais das aberrações causadas pela pandemia. Na minha imaginação, ela está ainda no Chiado, e eu estou caminhando por ali.

Dos lugares onde nunca morei, Lisboa é, com Paris, aquele onde já estive mais vezes. Paradoxalmente, isso dificultou a seleção de fotos, que me tomou dois fins de semana inteiros e várias noites. Notei que, no meu celular, Lisboa aparece muitas centenas de vezes, mas faltam na galeria abaixo alguns dos lugares que eu mais teria gostado de ilustrar. Não tenho fotos boas do Castelo de São Jorge, da fachada da Livraria Bertrand, da Rua Garrett, do Teatro de São Carlos. Ando pelo Bairro Alto, pelo Chiado, pela Baixa, pela Alfama e pela Mouraria e só pareço me interessar por portas e janelas. As mesmíssimas janelas, em fachadas de azulejos, aparecem nas minhas fotos, ano após ano.

Para cada um de nós existe uma Lisboa própria, individual, que pertence apenas a nós mesmos. Minha mãe, ao saber que eu selecionava fotos para este texto, me perguntou: “Você vai mostrar os jacarandás da Avenida Dom Carlos I? O Mercado da Ribeira renovado? O cedro do Príncipe Real? Os prédios lisboetas ao cair da tarde, quando o pôr do sol os deixa dourados? A minha rua predileta, a de O Século?” Respondi: “Vou mostrar a minha Lisboa, não a tua”. Na verdade, a seleção que fiz dependeu, também, da qualidade das fotos disponíveis. Notei haver, nas perguntas de minha mãe, uma alusão a dois amigos que ela adora, Chicô Gouvêa e Paulo Reis, mas não senti ciúmes.

Menciono a Rua de O Século em Um dia em Lisboa, onde descrevo meu roteiro habitual pelas livrarias lisboetas. Inseri ali uma ou outra apreciação sobre pontos da cidade. Mesmo 24 horas em Lisboa, a passeio, são suficientes para dar o gosto de viver. O viajante comerá bem, só verá beleza ao seu redor, não passará muito frio ainda que seja inverno, visitará algum excelente museu — o Gulbenkian é espetacular, e de dimensões humanamente factíveis — e será tratado com afabilidade em todo canto.

Muitas vezes, pensei em escrever sobre o Museu Calouste Gulbenkian. Já me aconteceu de ir lá especificamente para tirar fotos das obras de arte ou dos objetos de minha predileção na coleção, de forma a estar documentado quando me decidisse a descrever a experiência de visitá-lo. Ainda não o fiz.

Há alguns anos, visitei com minha filha o Museu da Farmácia. Foi nessa mesma temporada que a levei ao extraordinário Oceanário. Há o Museu dos Coches, o do Oriente, o do Chiado, o de Arte Antiga, conhecido como das Janelas Verdes, a Casa Fernando Pessoa, o Castelo de São Jorge, o Mosteiro dos Jerônimos, as ruínas do Convento do Carmo, com seu museu arqueológico, e, brilhante novidade inaugurada em 2016, o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), onde já vi excelentes exposições. Cito apenas aqueles onde estive nos últimos anos.

Em um ensaio de 1998 sobre o afeto entre Portugal e Brasil, intitulado “Portugal, de minha varanda”, Alberto da Costa e Silva narra que o contista Samuel Rawet — e isto é tocante para mim, pois Rawet era amigo de meu pai — emigrou com a família da Polônia para o Rio de Janeiro com dois anos de idade. Só adulto ele esteve novamente na Europa. No caminho de volta para o Brasil, parou em Lisboa, pela primeira vez. Diz Alberto da Costa e Silva: “E teve a sensação de um reencontro feérico. Deixou-se ficar na cidade, em ócio — estava em casa —, por alguns meses. E não perdeu um só dia sem emocionar-se, diante de uma janela, de uma escadaria, de um beco, de uma nesga do Tejo, com o que sabia ser parte da biografia de sua alma”.

Lisboa parece imutável, mas é na verdade uma dessas cidades onde, se ficarmos algum tempo sem visitá-las, haverá muitas boas novidades quando regressarmos. Novos restaurantes, novos museus, novos cafés, novas lojas. Em 2016, foi uma surpresa descobrir que o Consulado do Brasil havia se mudado e que, nas suas instalações em um prédio pombalino na praça Luís de Camões, havia agora um hotel chamado Le Consulat. Uma noite, fomos ao bar do hotel, e lembrei que, uma vez, eu fora àquele mesmo recinto fazer uma procuração.

Por causa da pandemia, imagino que alguns lugares de que gosto terão fechado, nestes dois anos.

Apesar de parecer tão longa esta fase, a Covid, porém, é apenas um momento transitório da humanidade. Voltará o dia em que eu poderei caminhar pelo Terreiro do Paço, almoçar à beira do Tejo, ir às livrarias, tomar um café acompanhado de um pastel de nata, sentar no Jardim do Príncipe Real, passear pela Alfama e a Mouraria, rever os Painéis de São Vicente nas Janelas Verdes, jantar em uma marisqueira, passar uma manhã ou uma tarde em Sintra, e lá comer um cabrito assado com batatas — eu, que nem gosto de carne vermelha — ir à ópera no Teatro de São Carlos e, em algum momento, provar de novo o bacalhau com “azeitonas explosivas” em um dos restaurantes do José Avillez. Leitora, leitor, não me perguntem como, mas as azeitonas realmente estouram na boca.

Voltarei a ver aquela de quem Camões dizia:

E tu, nobre Lisboa, que no mundo
Fàcilmente das outras és princesa

Os programas serão sempre maravilhosos, já que feitos com a minha adorável Titina, que transforma a vida em uma aventura incansável de charme, glamour e sedução.

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