Vida e Morte no Musée Guimet

Vida e Morte no Musée Guimet

No Carnaval de 2013, meu melhor amigo morreu. O celular tocou, vi que era o número dele, atendi feliz, dizendo: “Olá, Antonio, que bom te ouvir”, e reconheci do outro lado a voz da sua mulher: “Estou ligando para dizer que o nosso Antonio descobriu há seis meses que estava com câncer; ele não quis que você soubesse para não te preocupar. Ele morreu anteontem e foi cremado ontem”. Era muita informação de uma vez só. O choque foi grande.

Minha mulher e eu estávamos na praia, na casa da família dela, onde nos casamos. Fui até o muro branco que separa a areia do jardim. Debrucei-me e fiquei olhando o mar. Eram onze horas da manhã, o sol batia forte, o mar e o céu estavam azuis, as ondas batiam perto do muro, os pássaros cantavam, não havia ruído humano. Era doloroso o contraste entre os sinais de vida na natureza ao meu redor e a tristeza interna.

Como ele era exatamente vinte anos mais velho do que eu, não era assombroso que partisse antes. Tudo isso era porém repentino, e ele morrera relativamente jovem.

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Em Paris, em julho, revisitando o Musée Guimet — ou Museu Nacional de Artes Asiáticas —  essas lembranças estiveram bem presentes para mim. Há doze anos eu não visitava o Guimet. A última vez fora justamente por insistência de Antonio, pois esse era seu museu preferido em Paris, onde ele então morava. Parecia-me triste a ideia de lá voltar. Em julho, porém, venceu a vontade de visitar uma exposição temporária, intitulada O Mundo visto da Ásia, através dos mapas.  

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O museu foi fundado em 1889 por Émile Guimet, industrial, orientalista e amante da música. Guimet era amigo de Edmond de Goncourt. Verifico que ele faz três aparições no Journal que Edmond manteve com o irmão Jules, até a morte deste, e depois sozinho. Edmond de Goncourt visitou o museu em 1891, a convite de Guimet. Da visita, narra apenas uma anedota inócua, que não merece ser citada, sem se preocupar com a coleção. Em 1878, ele já relatara no Journal uma visita do casal Guimet à Princesse Mathilde, célebre protetora das artes, sobrinha de Napoleão e prima-irmã de Napoleão III. Segundo Edmond, a princesa ofendeu o casal, que a ouviu, sem que ela percebesse, referindo-se a Émile Guimet como uma “tête de veau” (achando-o feio, presumivelmente), o que Goncourt, sempre fofoqueiro, aprecia, ao dizer maldosamente que Guimet “a de très grandes prétentions physiques”.

Bonito ou feio, Guimet deu origem a um dos mais importantes museus de arte asiática do mundo. A mostra que me fez revisitar a coleção acaba de terminar e expôs, de maio a setembro, mapas elaborados na Ásia ao longo dos séculos, com uma visão do mundo e dos países asiáticos diferente da visão ocidental tradicional. Muitas das obras expostas eram frágeis, e a luz por isso era baixa, o que prejudicou as fotos que tirei.

Este mapa da China, feito no Japão em 1762, representando “o território da dinastia Ming”, demonstra o intercâmbio de ideias ilustrado pela exposição. É cópia de outro mapa, do século XVII,  levado ao Japão por chineses exilados em Nagasaki, o qual, por sua vez, levava em conta noções de cartografia ocidentais trazidas pelos jesuítas à Corte imperial chinesa:

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O biombo de oito painéis visto abaixo, coreano, de 1860, reproduz um mapa do mundo do século XVII, feito na China por um jesuíta flamengo, Ferdinand Verbiest. O mapa é interessante por sua relativa precisão — embora diminua consideravelmente o território indiano — e por colocar a China no centro da carta.

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É certamente mais preciso do que este mapa-múndi japonês, de cerca de 1810:

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No esforço de colocar a Ásia no centro da imagem, todos os demais continentes foram distorcidos. Uma vez mais, a Índia é desenhada de forma apenas aproximada.

Abaixo, vemos um “mapa” do Afeganistão, da virada do século XIX para o século XX, o primeiro a ser feito localmente:

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O Afeganistão é representado pela torre central. As outras quatro torres designam os Estados vizinhos ameaçadores para o território afegão: a Rússia tsarista, situada ao Norte, é a torre da direita; o Sul é a torre da esquerda, e representa o Império britânico; a torre embaixo é a China, a Leste; em cima está o Irã — então a Pérsia — situado a Oeste.

A exposição terminava com estampas de artistas japoneses ativos na segunda metade do século XIX que retratam cidades do mundo ocidental. Os artistas não conheciam o Ocidente, e desenharam usando a imaginação, revistas ilustradas, relatos de viajantes. O artista Utagawa Yoshitara, em 1862, imaginou Paris da seguinte maneira:

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Eu esperara muito da exposição e não fiquei desapontado. Como estava no museu, decidi rever a coleção permanente. Lembrava-me apenas de um infinidade de budas que, em 2006, me pareceram tediosos pela repetição. Em 2006, porém, eu só estivera uma vez antes na Ásia, a trabalho, em Kyoto, justamente com o Antonio. De lá para cá, fui à Ásia algumas vezes. Revisitei a coleção do Guimet, em julho, com novos olhos, com outra experiência de vida.

O museu não é muito grande, e as peças são expostas de forma um tanto antiquada, o que dá um sabor adicional à visita. Não há multidões e, no fim das contas, entendi, com doze anos de atraso, o que meu amigo via no Guimet.

Na postagem sobre o Museu de Arte Islâmica em Doha, eu mencionei a dificuldade de nós nos inserirmos, nos museus, em uma cultura que não é a nossa. Há os dados sutis, as deixas culturais, históricas e sociológicas que nos escapam. Em uma visita a um  museu, podemos apreciar a arte, e passar a entender um pouco mais daquela cultura. Na ausência de anos de estudos, sem conhecer as línguas, podemos sentir o encanto, o impacto daquelas obras, mas em muitos casos não apreenderemos todo o seu significado. E assim, fui passando de sala em sala no Musée Guimet, impressionado com o que via, e pensando que seria preciso eu voltar muitas e muitas vezes, para entender melhor o que está lá exposto.

Em uma das salas de arte chinesa, por exemplo, vi um ambiente simples, composto por duas cadeiras e um armário em jacarandá, do início do século XVII:

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Ainda que extremamente elegantes, pelas linhas despojadas e a qualidade do desenho e do material, os móveis não me pareceram merecer tanto da minha atenção, pelo menos não no contexto das muitas obras-primas contidas no Guimet. Isso, até eu notar uma cena intrigante. Dois visitantes chineses aproximaram-se dos móveis e ficaram muito tempo extasiados, confabulando um com o outro a respeito, tocando no armário, alisando as cadeiras, fotografando, filmando, impressionados. As funcionárias responsáveis pela segurança  — isto, infelizmente, não aparece no momento que gravei no vídeo abaixo — precisaram exclamar três ou quatro vezes: “Ne touchez pas, s’il vous plaît”:

O que os visitantes chineses terão apreciado nessas peças? Nunca saberei, e o catálogo do museu, bastante informativo e que poderia me dar alguma pista, sequer as menciona.

Há peças espetaculares na seção chinesa, como este vaso “mil flores”, do século XVIII:

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Ou este vaso “com dragão”, do século XIV:

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Não quero cansar meus seis leitores — sim, já não são quatro — com descrições de todas as obras que fotografei e minha reação diante de cada uma. Contento-me, por isso, em mostrar apenas algumas delas.

O museu é particularmente rico em peças do Império Khmer, tendo sido o Camboja um protetorado francês, de 1863 a 1953.  Logo na primeira sala, somos confrontados com esta “deusa dançante” em arenito, do século X, de Koh Ker:

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O pedestal é o original; esteve porém separado da escultura durante cerca de 145 anos, até 2016, quando o Guimet, por meio de um escambo com o Museu Nacional do Camboja,  o adquiriu. É algo magnífico, pensar que a estátua e sua base, após longa separação de um século e meio e de milhares de quilômetros, puderam se reunir.

Do mesmo Império Khmer, há esta cabeça colossal, também em arenito, do Rei Jayavarman VII, morto em 1218, escultura aliás que serve de capa para o guia do Guimet:

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Da Índia, vemos esta “divindade sob a árvore”, ainda em arenito, feita entre os séculos X e XI:

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E este “torso de Buda”, em arenito, do século V:

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A arte do reino indiano de Gandara é bem representada, e me fez pensar no museu de Taxila, que visitei em 2017, como mencionei em De Taxila a Panam Nagar.  

Abaixo, uma cabeça de “Bodisatva Maitreya” (o Buda do futuro, que ainda virá, portador de compaixão e do poder de consolar), em xisto, século I-III:

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Levei um bom tempo procurando uma das peças mais famosas do museu, o “Gênio com flores”, em estuco, do século III-IV:

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Mesmo com a ajuda de um vigia, foi difícil achar a escultura, pois ela fica pendurada em um canto de parede, ao alto, entre outras peças. Achei fascinante, o despojamento do museu em colocar assim, como quem não quer nada, uma das obras-primas de sua coleção.

Minha sala preferida é uma onde são mostradas diversas esculturas budistas chinesas, em madeira ou pedra, do século X ao século XIII, como mostra este vídeo:

Da coleção dessa sala, destaco este “monge sentado”:

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No mesmo espírito, embora representando um funcionário de governo, há, em outro salão, esta escultura japonesa, do século XVI-XVII, de um governador militar de província:

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É também japonês este biombo do século XVI:

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Era preciso partir. A tarde terminava. Eu ia à Comédie-Française, assistir à produção de uma de minhas peças prediletas de Racine, Britannicus. Mais tarde, ia me encontrar com minha filha, que chegaria de Bruxelas para passar o fim de semana comigo.

No andar mais alto,  porém, detive-me um momento no pavilhão circular, a admirar as vistas sobre Paris que o museu oferece:

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Admirei a estátua equestre de George Washington, na minha avaliação um dos seres mais extraordinários que já viveram. Pensei que o nome da praça — Place d’Iéna — evoca uma das mais célebres vitórias de Napoleão.

Lembrei que Antonio morara ali perto, na rue de Chaillot. Pensei que um dia eu tampouco estaria mais aqui, para ir ao Musée Guimet, apreciar arte asiática, lembrar de Napoleão, Washington e de todas as pessoas que marcaram minha vida e que eu jamais reverei. Percebi que essas pessoas são já muitas e vêm se acumulando desde os meus 17 anos. Há consolo, no entanto, em meditar sobre o fato de que, excetuando-se algum cataclisma, museus seguirão existindo. Gerações depois da minha visitarão o Guimet. Elas verão o governador japonês e o monge chinês sentados, ficarão impressionadas com o dragão no vaso do século XIV, sentirão o impacto que o Buda causa, em todas as suas formas e representações, se sentirão próximas do rei khmer morto em 1218. Esse, afinal, é o grande poder da arte, fazer-nos crer que a vida possui algum sentido, que a beleza e a força estética se sobrepõem à temporalidade dos seres e das coisas.  O importante não é meus parentes e amigos terem morrido, e sim o fato de terem vivido, terem sentido, terem amado, terem visto a “deusa dançante” e, para mim, de eu ter tido a chance de conviver com eles. É como uma abolição do tempo.

Nero, Agripina e Britânico me esperavam no palco da Comédie-Française. Eles também sobrevivem, como Jayavarman VII, graças ao poder da arte.

Saí do museu, entrei no metrô e fui ao teatro.

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Minhas Aventuras com Tintin

Minhas Aventuras com Tintin

Uma vez, li em algum lugar que a vida é aquilo que precisamos fazer para ocupar o tempo entre o café da manhã e o almoço e entre o almoço e o jantar. Em julho de 2018, quando passei alguns dias em Bruxelas, senti que a vida acontecia durante as refeições, quando podia estar com minha filha, que lá vive e trabalha. O resto do tempo era apenas a espera tediosa do momento de revê-la.

Desde que Julia saiu de casa, em 2011, para fazer faculdade, e passamos a morar em países diferentes, cada reencontro torna tudo mais vivo, mais vibrante, mais colorido ao meu redor. Ao mesmo tempo, cada separação traz, nos primeiros dias, um sabor de vazio e de incompletude. Como preencher os momentos em Bruxelas entre o café da manhã, o almoço e o jantar? Como tornar menos entediantes as horas sem minha filha? Tive sorte de que os dias estavam quentes e ensolarados. Choveu apenas em um final de tarde.

Um de meus primeiros destinos foi La Boutique Tintin, o paraíso de todo admirador do jovem repórter que nunca escreve para jornal algum. Tintin é provavelmente o belga mais famoso que jamais existiu. No aeroporto de Bruxelas, Zaventem, na área central por onde passam todos os passageiros, estejam eles embarcando ou desembarcando, é ostentado o foguete que figura em duas de suas aventuras mais conhecidas:

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Assexuado, sem família, ar de adolescente e rosto sem traço distintivo — o topete é sua única característica física notável — Tintin é aquilo que cada um de nós quer que ele seja e todos podemos nos projetar nele. Mais recentemente, o personagem tem-se revestido de uma forma nova de prestígio: é um dos poucos heróis de histórias em quadrinhos famosos a não ser americano, em uma espécie de resistência cultural franco-belga.

No longínquo ano de 2016, meus alunos no Instituto Rio-Branco ofereceram uma festa a fantasia com o tema “Quadrinhos”. Fiquei me perguntando se algum iria vestido de personagem das BD franco-belgas. Quantos se fantasiariam de Lucky Luke, o cowboy “mais rápido do que a própria sombra”? Quantos de Astérix ou Obélix? Quantos de Spirou, o camareiro que vira jornalista, ou de Fantasio, seu melhor amigo? E quantos de Iznogoud, o vizir que queria “ser califa no lugar do califa”?

Ao ver nas redes sociais as fotos da festa, fiquei desapontado. Havia apenas personagens de comics americanos. Notei uma única exceção: um aluno fora disfarçado de Tintin, levando inclusive no braço um Milou de pelúcia. O jornalista belga de ficção aparentemente escapa da relativa obscuridade atual de outros heróis de quadrinhos de língua francesa, como demonstra o filme The Adventures of Tintin, dirigido por Steven Spielberg e lançado em 2011.

No Brasil, conheço ao menos uma pessoa fanática por Tintin: Chicô Gouvêa. Minhas férias de julho haviam começado em Lisboa, onde eu fora visitar minha irmã, e logo no primeiríssimo dia ela e eu jantamos no apartamento de Chicô e Paulo Reis, amigos que já mencionei em  O Embrulho Vermelho. Reparei que, como também acontece em sua casa no Rio de Janeiro, os personagens tintinescos faziam-se presentes na decoração em Lisboa:

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Chicô e Paulo colecionam máscaras africanas. Uma vez, no Rio, aconteceu de eu elogiar uma delas. Da maneira mais generosa, eles imediatamente a retiraram da parede como um presente para mim. Essa máscara foi comigo para Brasília, e agora chegou a Kuala Lumpur:

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Voltemos a Lisboa, ao jantar em casa de Chicô e Paulo, onde me deparo com uma máscara com os traços do herói belga, o que eu nunca havia visto antes:

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Dias mais tarde, em Bruxelas, dirijo-me a La Boutique Tintin. Conheço bem a loja, da época em que morei na cidade pela segunda vez, e sei que ela não é barata. Fica perto da Grand’Place:

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Dentro, o foguete é onipresente, e mesmo os modelos menores são caros, em função das leis de oferta e demanda, já que esse é provavelmente o objeto mais reconhecível, mítico das aventuras do nosso amigo belga:

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Vários objetos fazem referência a outras aventuras:

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O criador de Tintin, Georges Remi (1907-1983), conhecido pelo nome artístico Hergé (foneticamente, suas iniciais invertidas), é figura controvertida. Trabalhava, no começo da vida, em um jornal conservador, católico. É em um dos suplementos do jornal que primeiro foram publicadas, de forma seriada, as aventuras de seu principal personagem. Hergé é visto por alguns como tendo sido colaboracionista durante a ocupação alemã da Bélgica, na Segunda Guerra Mundial.

As aventuras de Tintin começaram a ser publicadas em 1929. As primeiras prestam-se facilmente a acusações de racismo e antissemitismo. Ler Tintin au Congo (1931) é uma experiência constrangedora. A partir de um determinado momento, contudo, as aventuras mudam de tom e tornam-se cativantes, embora haja, em L’Étoile mystérieuse, publicado durante a Ocupação alemã, ao menos uma página com alusões antissemitas.

Em casa, temos todos os volumes, exceto justamente Tintin au Congo. Mostro na foto os meus prediletos, sendo que na maioria dos casos são ainda os exemplares que meus irmãos e eu líamos avidamente na infância:

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Os volumes onde aparece o famoso foguete são estes:

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A mudança na visão de mundo de Hergé é atribuída à forte amizade que desenvolveu, a partir de 1934, com um estudante de arte chinês então residente na Bélgica, Chang Chong-chen, que colaborou no álbum Le Lotus Bleu. A convivência entre os dois durou apenas um ano, pois em 1935 Chang Chong-chen regressou à China. Eles só voltariam a se ver em 1981.

Hergé escreveu outras séries de histórias em quadrinhos, além da que é dedicada a Tintin, mas este, ao se tornar mais famoso do que seu próprio criador, ofusca o resto da obra. Criança, eu gostava também de Les Aventures de Jo, Zette et Jocko, que mostram as peripécias de dois irmãos e seu chimpanzé:

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Em 2009, a viúva do artista criou na cidade de Louvain-la-Neuve, perto de Bruxelas, o Musée Hergé, belíssimo prédio concebido pelo arquiteto Christian de Portzamparc, mas desconfio que os visitantes vão ao museu para aprender mais sobre Tintin, não sobre o criador ou o resto de sua obra. Em janeiro de 2017, visitei em Paris, no Grand Palais, exposição dedicada a Hergé:

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Na exposição, organizada pelo Musée Hergé, as críticas ao antissemitismo, racismo e espírito colonialista de alguns álbuns foram abordadas de forma superficial, como que por mero desencargo de consciência. Com relação a Tintin au Congo, por exemplo,  um cartaz explicava que: “A ingenuidade caricatural com que ele descreve a população local e o país resulta de uma documentação sumária, cuja fonte é essencialmente o museu colonial de Tervueren”. E continuava: “Em Tintin au Congo, com frequência acusado, posteriormente, pelo seu tom colonialista, Hergé dá provas sobretudo do espírito de seu meio e de seu tempo”. Fácil assim…

A exposição dava exemplos do trabalho de Hergé como desenhista publicitário, por exemplo neste anúncio do jornal onde primeiro trabalhou:

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Naturalmente, não podia faltar uma maquete do celebérrimo foguete, pois afinal Tintin e seus amigos Milou, Capitão Haddock e Professor Girassol e os irmãos detetives Dupond e Dupont caminharam na Lua em 1954, quinze anos antes de Neil Armstrong:

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Nada me interessou mais na exposição do que rever a “estatueta portadora de oferendas”, em madeira, oriunda do Peru, produzida pela Cultura Chimu, pré-colombiana, entre 1100 e 1450:

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É que conheço muito bem essa escultura, pois ela pertence à coleção do Musée Art et Histoire, em Bruxelas, onde — criança e adulto — eu a vi inúmeras vezes. A peça inspirou Hergé, que a conhecia, a escrever um de meus livros prediletos da série, L’Oreille cassée.  Graças ao álbum, a estatueta talvez seja hoje a peça mais famosa do museu.

Em casa, temos uma mini-bibliografia sobre Tintin:

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Michael Farr —  autor inglês que publicou vários livros sobre o personagem e seu criador —  opina ser Tintin “um herói imaginário em um mundo real”. Daí derivaria seu “apelo universal”. Em The Complete Companion, Farr nos mostra como as aventuras são sistematicamente baseadas em fatos, eventos, prédios, pessoas, obras de arte, descobertas científicas reais.

O psicanalista e psiquiatra francês Serge Tisseron dedica grande parte de seu tempo a Hergé e a Tintin. Segundo sua teoria, Hergé transferiu para a série tintinesca o seu drama familiar. O pai do artista tinha um irmão gêmeo, como parecem ser gêmeos Dupond e Dupont, seus dois personagens detetives. O pai e o tio de Hergé eram filhos de uma mãe solteira, empregada doméstica na casa de um conde belga e sua mulher. Quando seus dois filhos gêmeos eram já adolescentes, a avó de Hergé casou-se com um operário, em um casamento arranjado pela condessa e graças ao qual os dois gêmeos adotaram o sobrenome — Remi — do padrasto. Essa união foi meramente de conveniência. Hergé nunca sequer viu o padrasto do pai, embora tivesse já 34 anos quando o “avô” morreu.

Quem teria sido o verdadeiro pai do pai de Hergé? Se ele sabia, nunca revelou. Serge Tisseron especula se poderia ter sido o conde, ou um de seus parentes ou talvez até mesmo o próprio Rei dos Belgas, Leopoldo II, notório mulherengo, que, segundo se sabe, frequentava as propriedades do conde e sua mulher.

Leopoldo II não era um monarca qualquer. Rei de um pequeno país, viu no imperialismo europeu na África a chance de aumentar seu patrimônio pessoal. Transformou o imenso território que é hoje a República Democrática do Congo em uma propriedade particular, à qual atribuiu-se, ironicamente, o nome de Estado Livre do Congo. Em 1908, o rei doou sua colônia à Bélgica, depois de ter amealhado grande fortuna graças a ela. O domínio de Leopoldo II sobre o Congo foi excepcionalmente cruel e sangrento. Alguns autores consideram que a presença belga no Congo constituiu, verdadeiramente, um genocídio. Joseph Conrad inspirou-se das crueldades cometidas pelos agentes de Leopoldo II para escrever Heart of Darkness, publicado em 1902. Devemos supor, porém, que, ao contrário de Kurtz, o vilão de Joseph Conrad, o Rei dos Belgas nunca sentiu arrependimento e nunca exclamou, ao morrer “The horror! The horror!”.

Seria Leopoldo II o avô de Hergé? Estaria aí a origem das falas e das atitudes revoltantes de Tintin e mesmo de seu adorável cachorrinho Milou em sua viagem ao Congo? De qualquer forma, o Tintin que sobrevive é o posterior, aquele encantador, inteligente, que ajuda os outros, vive aventuras em todas as partes do mundo, resolve vários enigmas, nunca comete maldades, é equilibrado e sensato, apesar da eterna figura de adolescente.

Saí de La Boutique Tintin, em Bruxelas, apressado, impaciente para ver Julia. Comprara um relógio de pulso. No dia seguinte, fiz um tuíte ostentando-o no braço. É, até hoje, meu tuíte mais popular.

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