O peso do Universo

O peso do Universo

É possível que haja formas melhores de passar uma manhã de sábado do que lendo poemas de Jorge Luis Borges. Mas é possível também que não, como deduzi em junho, em Kuala Lumpur. Era um sábado ensolarado, mas a semana fora árdua e, à noite, eu teria um compromisso de trabalho, e outro no domingo à tarde. Passar as poucas horas de liberdade disponíveis no fim de semana em casa lendo a poesia de Borges pareceu a melhor opção.

Nossos livros do escritor argentino estão todos em Singapura. Isso é justo, porque foi minha mulher quem, quando namorávamos, fez com que eu me apegasse à força das suas obras. Um dos primeiros presentes que ela me deu foi uma edição de bolso, com o selo conjunto Alianza/Emecé, de El informe de Brodie. A capa era azul clara, com a imagem de um relevo de mármore branco representando o rosto de uma criança. A boca era coberta por duas bandagens, também brancas, cruzadas sobre o mármore.

Um dia, o volume desapareceu. Nunca soubemos o que aconteceu. Talvez tenha caído atrás de um móvel e, por isso, sido deixado para trás em alguma mudança. Talvez nós o tenhamos emprestado a alguém que nunca o devolveu. Tampouco está claro o ano em que desapareceu. Quando um de nós quis reler o livro, ou consultá-lo, não se pôde encontrá-lo. Descobriu-se que, em algum momento, ele deixara de existir nas nossas estantes.

O sumiço de El informe de Brodie tomou ares de mistério. Anos ou décadas depois, ainda é tema de conversa. O desaparecimento do livro condiz com o enigma da capa, com aquela criança — ou figura angelical — de mármore impedida de falar. O exemplar foi substituído por outro, com o selo apenas da Alianza e capa diferente. Não era porém o volume que indicara o início do namoro, e do qual se esperava que nos acompanhasse pelo resto da vida. Em seu opúsculo sobre Borges, com quem conviveu, Alberto Manguel comenta que uma biblioteca particular é como a autobiografia de seu proprietário. Se isso é verdade, há então uma lacuna na história do meu casamento.

A reabertura das fronteiras no Sudeste Asiático, depois de dois anos de pandemia, permitiu-me não somente voltar a ver minha mulher, mas também a estudar a biblioteca familiar em sua casa. Voltei assim a ler Borges, o que me ajudou inclusive a entender melhor a noção de Ásia, como explico na XV Carta da Malásia, Além da aurora e do Ganges. Retornando a Kuala Lumpur de alguns dias de férias em Singapura, trouxe comigo o terceiro dos quatro volumes das obras completas de Borges pela editora Emecé, que inclui os livros do escritor publicados entre 1975 e 1985. Os seus últimos, portanto, tendo ele morrido em 1986. É uma edição insatisfatória. Vem sem notas. Há também ao menos um erro de diagramação e outro de acentuação. Naquele sábado em Kuala Lumpur, absorto nos poemas de Borges, tive um pensamento herético, logo rejeitado por absurdo, o de encomendar os dois volumes de sua obra publicados pela Gallimard, na Bibliothèque de la Pléiade. Obviamente, não faria sentido deixar de ler Borges em espanhol para lê-lo em francês. Sonhei porém com o extenso aparato crítico que a edição deve conter, como todo volume da coleção da Pléiade.

Precisei contentar-me com o que estava ao meu alcance em Kuala Lumpur, aquele único volume da edição seca da Emecé. Afinal, como o próprio Borges nos diz, na sua palestra em Siete Noches (1980) sobre a poesia, deve-se ler a obra, e não obras sobre a obra. Explica ele: “Cuando mis estudiantes me pedían bibliografía, yo les decía: ‘no importa la bibliografía; al fin de todo, Shakespeare no supo nada de bibliografia shakespeariana […] ¿Por qué no estudian directamente los textos?”.

Minha repentina mas temporária cobiça pela edição da Pléiade, porém, se justificava. Eu não queria uma obra sobre a obra, mas comentários sobre alguns versos. Depois do almoço, já pensando que em poucas horas teria de me arrumar para trabalhar de noite, passei à leitura de algumas das palestras de Siete Noches, aquelas dedicadas ao budismo, à Divina Comédia e à poesia. Esta última pareceu-me mais árida do que as duas outras. Talvez Borges não estivesse em forma quando a proferiu. É um texto certamente menos recompensador para o leitor do que as seis conferências sobre poesia que deu em inglês na Universidade de Harvard de outubro de 1967 a abril de 1968. Naquele ano universitário, Borges proferiu as Charles Eliot Norton Lectures; elas foram publicadas em um livro lançado em 2000, This Craft of Verse.

Também Siete Noches é uma coleção de conferências, dadas em Buenos Aires em 1977. Apenas uma delas é sobre arte poética, embora outra, tratando da Divina Comédia, seja sobre um poema específico. É injusto, eu bem sei, comparar uma única palestra curta de 1977 com as seis de 1967-1968. O fato porém é que o texto em Siete Noches, onde o escritor parece distante, pouco entusiasmado, empolga menos do que This Craft of Verse. Nesse livro, ao terminar a quinta palestra ele anuncia o tema que abordará na seguinte, a última: “I am sorry to say that in the last lecture I shall be speaking of a lesser poet — a poet whose works I never read, but a poet whose works I have to write”, sendo esse poeta “menor” ele mesmo.

Acontece que nada em Borges é inútil, tudo dele merece ser lido, e mesmo a aula sobre poesia proferida em Buenos Aires em 1977 contém frases memoráveis, como esta, que parece extraída de uma obra de Oscar Wilde: “Hay personas que sienten escasamente la poesía; generalmente se dedican a enseñarla”.  Ou estas, que parecem ecoar Ralph Waldo Emerson: “La belleza está acechándonos e La belleza está en todas partes, quizá en cada momento de nuestra vida”. Essa última frase, aos meus ouvidos, possui o mesmo ritmo daquela com que Emerson inicia seu ensaio sobre a amizade: “We have a great deal more kindness than is ever spoken”.

Naquele sábado em Kuala Lumpur, toda hora eu voltava a um poema intitulado “Tríada”, publicado no último de seus livros, Los Conjurados, de 1985. Antes de citar o poema, convém mencionar o prólogo de Los Conjurados. Ali, Borges, chegando ao final da vida, cego, escreveu: “Al cabo de los años he observado que la belleza, como la felicidad, es frecuente. No pasa un día en que no estemos, un instante, en el paraíso. No hay poeta, por mediocre que sea, que no haya escrito el mejor verso de la literatura, pero también los más desdichados. La belleza no es privilegio de unos cuantos nombres ilustres. Sería muy raro que este libro, que abarca unas cuarenta composiciones, no atesorara una sola línea secreta, digna de acompañarte hasta el fin”.

Há muita coisa, em Los Conjurados, que eu espero possa me acompanhar “hasta el fin”. A começar por “Tríada”. Este é o poema:

El alivio que habrá sentido César en la mañana de Farsalia, al pensar: Hoy es la batalla.

El alivio que habrá sentido Carlos Primero al ver el alba en el cristal y pensar: Hoy es el día del patíbulo, del coraje y del hacha.

El alivio que tú y yo sentiremos en el instante que precede a la muerte, cuando la suerte nos desate de la triste costumbre de ser alguien y del peso del universo.

São versos que impressionam; “cuando la suerte nos desate de la triste costumbre de ser alguien” parece mesmo magnífico. Há um contraste entre as duas primeiras estrofes. As duas figuras históricas são mostradas em momentos discordantes. Júlio César está aliviado porque chegou a hora da definição de seu futuro. Dependendo do resultado da batalha, sua vida tomará um rumo ou outro. Terminará a incerteza. Mas ele tem — só pode ter tido — esperança de derrotar Pompeu. Para Carlos I, a única esperança possível é comportar-se com coragem diante da decapitação iminente. Ambos sentem alívio, mas suas perspectivas são diferentes.

As duas primeiras estrofes, de tom ligeiramente distinto, preparam-nos para a terceira: no cotidiano, estamos ainda no mesmo plano de César, com expectativas de algum êxito possível. Um dia, porém, estaremos, como Carlos I, diante do inelutável.

Júlio César, cujo assassinato é objeto de outro poema em Los Conjurados, é personagem recorrente em Borges. O mesmo acontece, embora em grau menor, com o rei Carlos I da Inglaterra. Mais especificamente, é a sua decapitação que é tema frequente na obra do autor argentino. A morte do rei mereceu inclusive um poema próprio, “Una mañana de 1649”, publicado na coleção El otro, el mismo, de 1964.

Em “Tríada”, vemos César prestes a enfrentar, no campo de batalha, seu ex-genro e rival, Pompeu. Ele não podia ter certeza de que ia ganhar a batalha. Escreve, nos seus Comentários sobre a Guerra Civil, que sua infantaria era de 22 mil soldados, enquanto a de Pompeu era de 45 mil. A cavalaria na tropa de Júlio César não passava de mil homens, e havia sete mil na de Pompeu.

O que Borges mostra é o alívio de César de ter chegado por fim o dia da decisão sobre a quem ficaria aberto o caminho para governar Roma sozinho. Sabemos que César ganhou a batalha de Farsália; Pompeu fugiu, refugiou-se no Egito e lá foi morto a mando dos ministros do faraó adolescente Ptolomeu XIII, irmão e provavelmente marido de Cleópatra VII. César chegou a perseguir Pompeu até o Egito e envolveu-se nas disputas fratricidas da família real.

Ao escolher a figura de César para a primeira estrofe, Borges recorre ao personagem histórico mais célebre possível, sobre o qual seus leitores terão já uma imagem. Essa imagem é a de um grande chefe militar, com vocação ditatorial, portanto poderoso, mas sobre quem há também uma aura romântica, pelo que conhecemos de sua relação com a rainha do Egito.

Os leitores de Borges sabem como César terminou: esfaqueado por senadores romanos, ele morreu, nos diz Plutarco, aos pés de uma estátua de Pompeu, “que ficou toda ensanguentada”. O fato de haver por perto uma estátua do rival derrotado por César na planície de Farsália não deve nos surpreender, já que a sala onde o assassinato foi cometido pertencia a um complexo arquitetônico mandado edificar por Pompeu. Assim, o leitor do poema de Borges sabe que César saiu vitorioso em Farsália, mas sabe também que sua vida terminaria de maneira dramática, o que aperfeiçoaria aliás a construção de seu mito.

Na verdade, entre a batalha de Farsália e os Idos de Março transcorreram apenas quatro anos. Como se trata de César, foram quatro anos de grande intensidade, em que houve mais vitórias militares, acréscimo de poder, e o romance com Cleópatra.  Em sua história da Roma antiga, Lucien Jerphagnon explica: “la portée symbolique de Pharsale, jour de deuil pour les uns, jour de gloire pour les autres, marquera longtemps la mémoire des siècles”. Dia de luto para uns, dia de glória para outros, que ficará por muitos séculos na memória coletiva.

Ao descrever a batalha em Comentários sobre a Guerra Civil, o próprio César inaugurou uma tradição literária. Seria impossível listar todos os autores que escreveram sobre Farsália, mas deve-se citar Lucano, Plutarco e Corneille, cuja peça La Mort de Pompée inicia-se com uma fala de Ptolomeu XIII, em seu palácio em Alexandria, em que faz referência à batalha. Menciono Corneille propositalmente, com um certo prazer, porque Alberto Manguel nos diz que Borges “não admirava” o dramaturgo francês, mas que, um dia, andando os dois juntos pela Calle Florida em Buenos Aires, o autor de El Aleph de repente parou e declamou um verso de Le Cid: “Cette obscure clarté qui tombe des étoiles”. A cena deve ter sido bonita de ver.

Ao longo da vida, li e reli Le Cid muitas vezes e assisti a diferentes produções da peça. No entanto, esse verso nunca chamou minha atenção. Visualizar Borges declamando-o repentinamente na Calle Florida ajuda a desvendar toda a sua beleza. Graças a ele, que nem admirava Corneille, e por intermédio do curto livro de Alberto Manguel, pela primeira vez palavras que eu deveria conhecer bem entraram em minha consciência. Quando abrimos uma obra, nunca sabemos o que lá encontraremos que mudará nossa percepção das coisas, que nos revelará algo que a rigor já conhecemos.

Sem dúvida, apesar de seu assassinato, César inspira um mito baseado na percepção popular de sua vida como excepcionalmente exitosa. Bem diferente é o caso de Carlos I. Rei incapaz, perdeu a guerra civil contra o Parlamento, foi aprisionado, julgado e executado em janeiro de 1649. A memória que deixou é de fracasso.

Carlos, contudo, se beneficia postumamente da reputação trágica de sua família, os Stuart, certamente a dinastia mais infeliz da história europeia. Era neto de outra célebre decapitada, Maria Stuart. Seu filho mais velho, Carlos II, conseguiria voltar ao trono, mas seria sucedido pelo irmão, Jaime II, outro incapaz, que o perderia. O filho e os netos de Jaime II, inclusive o famoso Bonnie Prince Charlie, viveriam no exílio, na França e na Itália, sempre em tentativas malogradas de recuperar o trono. Reis sem coroa, confirmariam a fama trágica e romântica da família.

Carlos I foi um importante colecionador e patrono das artes e essa faceta de sua personalidade de certa forma redime suas falhas como rei. De resto, ele usava a arte como ferramenta para tentar consolidar uma visão gloriosa de si mesmo. Como inúmeras vezes já notei, pintores, escritores, músicos ajudam a perenizar uma imagem glamorosa ou admirável de governantes frequentemente medíocres. Assim, quadros da fase inglesa de Antoon van Dyck eternizam uma imagem do rei decapitado e de sua mulher e seus filhos como belos, profundos, majestáticos.

É praxe mostrar em filmes ou séries passados em castelos no campo inglês pinturas que evocam a família ou a corte de Carlos I, pois esses são retratos facilmente identificáveis na percepção popular, a ilustrar uma visão idealizada da realeza e da nobreza. É o caso, por exemplo, da série Downton Abbey. Na sala de jantar do imaginário Conde de Grantham aparece cópia de uma tela bem real e celebrada pintada por Van Dyck, um retrato do rei a cavalo, sob um arco, acompanhado de seu mestre de equitação. A réplica, possivelmente da mão do próprio Van Dyck, pertence ao Conde de Carnarvon, dono da propriedade rural usada como cenário para a série. Ao ver essa tela pendurada na sala de jantar do “Conde de Grantham”, o público compreende desde logo a imponência da família cuja história vai acompanhar.

Em julho, em Londres, em Apsley House, casa e museu do Duque de Wellington, eu veria outra cópia do quadro de Van Dyck.

O talento do artista flamengo fez do futuro decapitado, para a posteridade, um dos símbolos de como deve apresentar-se um monarca. A presença do rei medíocre, como pintado por Van Dyck, ironicamente engrandece o ambiente. O historiador Jerry Brotton inicia seu livro The Sale of the King’s Goods: Charles I & His Art Collection, de 2006, justamente analisando a versão original desse retrato pintado por Van Dyck, conhecido como Carlos I com M. de St Antoine, sendo Saint-Antoine o instrutor de equitação do rei. Na primeira página, o historiador nota que, ao contrário da vida real, a obra mostra Carlos como “the resplendent monarch, surrounded by the trappings of power and authority, mastering his horse as imperiously as he managed his kingdom”.

A coleção de Carlos I foi desfeita após sua execução. Colocaram-se à venda, ao longo de quatro anos, cerca de 1.570 obras de arte. É essa a razão pela qual muitos quadros que pertenceram ao rei podem ser vistos hoje em museus na Europa e nos Estados Unidos. Com a restauração ao trono de Carlos II, a Coroa conseguiu porém recuperar várias das obras vendidas. O retrato original do rei a cavalo sob o arco fica exposto no castelo de Windsor.

O Carlos I que Borges mostra não é o rei fracassado, incompetente, ou mesmo trágico ou majestático, mas um jogador conformado com o resultado final do jogo. Em seu livro Kings & Connoisseurs, de 1995, em que estuda, entre outras, a coleção de Carlos I, Jonathan Brown nos diz que o rei fez face à morte “with remarkable serenity and dignity”. Na elite europeia do século XVII, saber morrer redimia todas as falhas ou os pecados de uma vida.

O Carlos I de Borges é um homem que, ao saber que sua vida terminará naquele mesmo dia, se vê, talvez como todo nós quando chegue essa hora, “liberado de la necesidad de la mentira”, segundo o poema “Una mañana de 1649”. Vê-se liberado do peso de ser alguém. Carlos I é apeado de um poder ilusório; César está prestes a chegar ao ápice do poder, que não será necessariamente mais real. Em “Tríada”, a atitude dos dois, no fundo, é a mesma: finalmente, chegou o momento decisivo.

Borges já havia, anteriormente, colocado Júlio César e Carlos I no mesmo poema, “Las causas”, presente na coleção Historia de la noche, de 1977. Os últimos versos dizem:

Se precisaron todas esas causas
para que nuestras manos se encontraran

Os versos anteriores enumeram as “causas” que, cumulativamente, geram o efeito mencionado no final do poema, o encontro de duas pessoas que se amam. As causas pretéritas que se acumulam podem ser de ordem filosófica (“Chuang-Tzu y la mariposa que lo sueña”) ou literária e mitológica (“El infinito lienzo de Penélope”) ou simplesmente da realidade do cotidiano (“Cada gota de agua en la clepsidra”). Mas podem pertencer também ao terreno da História. O que de fato aconteceu, no passado, afeta nossa vida. Duas dessas causas históricas que tornam possível, hoje, o amor entre as duas pessoas no poema são “César en la mañana de Farsalia” e “El rey ajusticiado por el hacha”.

Voltando a “Tríada”, pensei longamente, em torno do verso “Hoy es el día del patíbulo, del coraje y del hacha, sobre a ordem em que são colocados os três elementos. De início, julguei que a ordem correta deveria ser patíbulo, machado e coragem. O rei verá o patíbulo primeiro, depois o machado, e precisará de coragem para enfrentá-los. Depois, pensei em outra ordem possível: coragem, patíbulo e machado. O rei decide que será corajoso no momento de subir ao patíbulo para enfrentar o golpe do machado na nuca. Finalmente, acabei aceitando a ordem escolhida por Borges, que possui o ritmo certo. As três palavras vão se tornando menores enquanto lemos o verso. A palavra final, “hacha”, deixa no ar uma terrível vibração.

Ao chegarmos à última estrofe, em vez de sentirmos pessimismo por sermos lembrados de que um dia morreremos, ficamos consolados. Aprendemos que, como para Carlos I, a morte nos libertará “do triste hábito de ser alguém” e tirará de nós o peso do universo.

Este ensaio foi originalmente publicado em O Estado da Arte, em 2 de julho de 2022

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Além da aurora e do Ganges

Além da aurora e do Ganges

Em Tchekhov e os tigres contei que, em Singapura, em dezembro, fui de teleférico com minha mulher à ilha de Sentosa. Esse foi um dos passeios mais encantadores naquele nosso reencontro, após uma separação de quase um ano por causa do fechamento das fronteiras.

O tempo, desde então, acelerou-se. Enquanto eu estava ainda, na minha imaginação, preparando-me em dezembro para viajar a Singapura e passar o Natal em família, sem eu notar março chegou rapidamente. Um sábado, naquele mês, almocei na Malásia, no estado de Pahang, a uma hora de carro de Kuala Lumpur, em outro lugar chamado Sentosa.

Na verdade, o nome da aldeia é Janda Baik. Traduzido do malaio para o português, daria A Viúva Bondosa. Sentosa é a propriedade rural, perto da aldeia, onde almocei naquele sábado. Devo, na verdade, usar o plural, pois eu não estava só.

Assim como, em alto mar, algum movimento das ondas ou do vento faz prever uma tempestade, na Malásia, desde janeiro, pequenas mudanças haviam começado a surgir, deixando antever que a vida voltaria a um grau maior de normalidade. Após dois anos de restrições, confinamentos, dificuldades, toda evolução positiva, mesmo restrita, pode parecer um furacão ao modificar, embora para melhor, a vida cotidiana.

Ao regressar a Kuala Lumpur depois das festas de final de ano em Singapura, percebi sinais de tsunami. Antes de mais nada, minha mãe, Thereza Quintella, foi autorizada a vir me visitar, embora as fronteiras continuassem, em grande parte, fechadas. Sua chegada, no início de fevereiro, coincidiu com a retomada, pela população de Kuala Lumpur, de uma sociabilidade sem culpa.

Apesar de a Covid estar ainda bem presente — havia, no começo do ano, entre 20 mil e 30 mil novos casos todo dia — podia-se supor, graças ao alto grau de vacinação, que os perigos da pandemia pertenciam ao passado. Fevereiro, março transcorreram em ritmo intenso, com muito trabalho, reuniões presenciais normalizadas e uma vida social que poucas semanas antes seria considerada inconcebível.

Algum leitor talvez se lembre do livro The Incredible Fruits of Perak, que recebi de presente, em novembro de 2020, do sultão de Perak. A Sentosa de Pahang pertence aos pais do autor daquela obra, o fotógrafo Omar Ariff Kamarul Ariffin. Foi com toda a sua família que minha mãe e eu almoçamos no sábado 26 de março.

A calma era absoluta; “sentosa” significa textualmente paz, tranquilidade. Os pais de Omar Ariff, nossos anfitriões, cuidam da propriedade há cinquenta anos; sua mãe, Frances, australiana de nascimento, é a responsável pelo paisagismo. Ela cultiva no sítio apenas plantas nativas. Há no terreno quatro ou cinco casas de madeira em estilo malaio tradicional, uma delas tendo sido a do bisavô de Omar, onde seu pai, tan sri Kamarul Ariffin, foi criado. “Tan sri” é um título malásio elevado, não hereditário, altamente valorizado, que o rei da Malásia concede em recompensa a méritos pessoais.

A atmosfera de felicidade na chácara de Sentosa era acentuada pelo fato de que Frances e Kamarul Ariffin, naquele dia, pisavam na sua propriedade pela primeira vez após uma ausência de dois anos, ditada pela pandemia. Estarmos todos ali, naquele sábado 26 de março, era de alguma maneira uma forma de celebrar a vitória sobre a Covid-19.

Era maravilhoso e inesperado que minha mãe, que dois meses depois faria 84 anos e que sobrevivera em 2021 a uma infecção do vírus, estivesse ao meu lado em Sentosa, no estado de Pahang, na Península Malaia, admirando os nenúfares, as palmeiras e as diversas coleções da família de Kamarul Ariffin, a 16 mil quilômetros de seu apartamento no Rio de Janeiro, onde passara boa parte dos últimos dois anos confinada.

Em uma das casas de Sentosa está aos poucos sendo organizado um pequeno museu de arte islâmica, com peças colecionadas por tan sri Kamarul Ariffin. Particularmente vistoso é um baú usado, no passado, por viajantes que faziam a peregrinação a Meca. O baú é exposto em uma sala onde as paredes são de madeira rendada.

Outra casa, pintada de branco e verde, foi trazida do estado de Kelantan — o mais setentrional do país, na costa leste, fazendo fronteira com a Tailândia — e reconstruída em Sentosa. Nela são conservadas outras coleções de Kamarul Ariffin, por exemplo numerosas esculturas representando mães e filhos.

O passeio a pé pela propriedade e a visita às coleções nos ocuparam mais de uma hora, talvez duas. Caminhamos de volta à casa principal, na varanda da qual almoçaríamos. Uma surpresa adicional nos esperava. A refeição seria preparada diante de nós. Para o leitor, e para mim, talvez isso não signifique tanto, mas para quem gosta de cozinhar e cozinha bem, como é o caso da minha mãe, presenciar como os ingredientes são combinados trouxe uma perspectiva única àquele momento de confraternização.

O almoço era um delicioso laksa. Prato típico da culinária malásia e de outros países do sudeste da Ásia, o laksa é, em sua base, um caldo de massa — em geral de arroz — perfumado com ervas. Os demais ingredientes variam de acordo com a região, mas leite de coco parece ser quase obrigatório. O laksa que estávamos prestes a provar incluía anchovas, camarão fresco, camarão seco, gengibre, bastão do imperador, cúrcuma, galanga, garcinia cambogia, noz da Índia, menta vietnamita e garcinia atroviridis.

Eu já tinha experimentado esse prato outras vezes. Em setembro de 2020, de férias em uma praia na costa leste, no estado de Terengganu — experiência que contei em A Viagem a Balbec — meu café da manhã costumava ser um laksam, variação local com peixe. Minha mãe, do Rio de Janeiro, manifestara na ocasião, por whatsapp, surpresa de que se pudesse tomar no desjejum o que era essencialmente uma sopa de peixe e macarrão. Eu respondera lembrando a ela que, quando morávamos em Londres, considerávamos normal comer de manhã ovos e toicinho fritos, com salsicha, tomate e feijão. Da mesma forma, em Terengganu parecera-me natural tomar um laksam ao acordar, antes de nadar no Mar do Sul da China.

Em Janda Baik, enquanto almoçávamos, eu ouvia Frances explicar que há em Sentosa uma proliferação de macacos, resgatados de regiões em processo de urbanização. De fato, tanto no passeio a pé como durante o almoço, os únicos sons que ouvíamos eram os dos pássaros e das conversas das famílias de macacos.

Omar nos contava suas experiências como fotógrafo da natureza. Essa não é, descobri ali, uma atividade isenta de riscos, já que uma vez ele e sua filha, então ainda pequena, escaparam por pouco de serem esmagados por um elefante agressivo. Houve também um encontro inamistoso com um urso-malaio. Dias depois, ele me daria de presente um livro seu de fotografias sobre a flora e a fauna da Malásia. As fotos mostram uma enorme variedade de espécies, insetos extraordinários e répteis nativos, um deles uma cobra-real em posição de ataque. A Malásia é, assim como o Brasil, um dos países mais megadiversos do mundo.

O laksa de Sentosa foi certamente o melhor que já provei. Cada colherada criava uma impressão nova ao paladar. Pensei no comentário de um amigo que, no passado, morara na China e me dissera: “Na Ásia, cada garfada de comida é uma explosão de sabores”. Eu teria preferido que a cumbuca nunca terminasse. Estar ali, naquela varanda, com aquela família tão amistosa, saboreando aquele prato enquanto admirava a vegetação tão parecida com a da Mata Atlântica era sem dúvida um privilégio. Teria sido uma perfeita ocasião para suspender o tempo, se essa possibilidade existisse.

Prestando atenção na comida, na conversa dos meus anfitriões, na minha mãe, no verde diante dos meus olhos, percebi que, de certa maneira, eu vivera antes aquela cena. Tudo ali lembrava-me as fotos de Tolstoi, já ancião, sentado à mesa com sua família, ao ar livre, debaixo das árvores em sua propriedade rural, Iasnaia Poliana. Os grandes artistas possuem a capacidade, como muitas vezes eu já notei, de aparecer na nossa imaginação nas circunstâncias menos prováveis. A varanda de uma propriedade rural, na paisagem tropical de Janda Baik, no interior da Malásia, pode evocar as mesmas sensações de quando vemos imagens do autor russo almoçando ou tomando chá, rodeado de mulher, filhos e netos, no campo na província de Tula, frente a uma vegetação bem diferente.

O almoço terminou. Era hora de partir. As horas são fugitivas, mas sua lembrança nem sempre. Aquelas passadas em Sentosa, eu já sabia, ficariam na minha mente.

Minha mãe e eu teríamos, à noite, outro compromisso. O jantar, naquele sábado, complementaria as experiências proporcionadas em Sentosa pela natureza do sudeste asiático, a coleção de arte islâmica, a arquitetura tradicional malaia e o laksa. De volta a Kuala Lumpur, iríamos à casa de um amigo, John Ang, colecionador de indumentária e tecidos antigos malaios. Sentados à sua mesa com outros poucos convidados, provaríamos uma refeição indiana, ouviríamos a música tocada por Kumar Kathigesu, na cítara, e Kamrul Hussin, no rebab, enquanto dançarinos de Odissi apresentariam, de forma coreografada, exemplares das 5 mil peças da coleção histórica do dono da casa. Alguns dos trajes poderiam ter sido usados pelos sultões, heróis e princesas de Os Anais Malaios ou, alternativamente, por Simbad, Aladim, Sherazade e Harun al-Rashid. Haveria uma pequena apresentação de mak yong, arte dramática malaia antiga, cantada.

Seriam vários dias até eu assimilar plenamente a vivência sensorial, cultural, ambiental, gastronômica daquele sábado. Como frequentemente acontece, um livro me ajudou. Relendo os textos de Jorge Luis Borges sobre As Mil e Uma Noites, caí na seguinte frase sua: “Un acontecimiento capital de la historia de las naciones occidentales es el descubrimiento del Oriente”. E, na página seguinte: “Para hablar de un lugar lejano, Juvenal dice: ultra Auroram et Gangem, ‘más allá de la aurora y del Ganges´. En essas cuatro palabras está el Oriente para nosotros”.

Sem dúvida, naquele sábado de março, na Malásia, bem mais além do Ganges e na direção do nascer do sol, o Oriente revelou-se a mim um pouco mais.

Esta XV Carta da Malásia foi primeiro publicada, em 23 de abril, no Estado da Arte

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