Tiradentes esquartejado

Tiradentes esquartejado

O presidente Lula declarou em Madri, em 26 de abril, durante almoço a ele oferecido pelo rei da Espanha, Felipe VI: “O Brasil condena a invasão da Ucrânia pela Rússia. Defendemos a Carta da ONU e o direito internacional. Mas queremos abrir caminhos para o diálogo e não obstruir as saídas que a diplomacia oferece. Essa guerra no coração da Europa é uma tragédia para a humanidade. O mundo precisa de paz”.

Toda guerra é “uma tragédia para a humanidade”, mas faz sentido o presidente Lula ter focalizado, na Espanha, a guerra que se trava, desde fevereiro de 2022, “no coração da Europa”.

A fala presidencial coincidiu com minha segunda Covid-19. É bem possível que eu tenha sido contaminado, nessa nova ocasião, em um jantar em Kuala Lumpur em homenagem à atriz Michelle Yeoh. A vida é coerentemente incongruente, e faria sentido que o vírus mortífero circulasse, causando estragos, entre convidados em torno à suave e educada estrela malásia de Hollywood, que acabara de receber o Oscar.

Febril, assisti novamente a dois filmes do diretor russo Aleksandr Sokurov, Francofonia (2015) e Arca russa (2002). Rever essas obras-primas, após longo intervalo, durante os quais muita coisa mudou no Brasil, no mundo e no meu universo pessoal, me permitiu uma releitura.

A situação do Louvre durante a Ocupação alemã de Paris, na Segunda Guerra Mundial, é o fio condutor, em Francofonia, para a meditação do diretor sobre como a arte e a história se entrelaçam e como o homem lida com ambas. Os grandes museus, mostra Sokurov, tornam-se os depositários da arte e da história, da civilização, da própria vida. Questiona o diretor, um tanto cruelmente: “Quem precisa da França sem o Louvre, ou da Rússia sem o Hermitage?”.

O Hermitage, outro grandioso palácio-museu, é o cenário de Arca russa, celebrado pela filmagem em uma só tomada de câmera, de cerca de 90 minutos, de diferentes cenas inspiradas pela história da Rússia; mais propriamente, da história do país do início do século XVIII, quando Pedro I fundou São Petersburgo, ao início do século XX, quando o regime tsarista começa a desmoronar. A câmera mostra, sem interrupção, obras de arte — todas europeias, e nenhuma posterior ao começo do século XIX — reações individuais frente a elas e, sem respeitar a ordem cronológica, diversos imperadores russos. Vemos Pedro I, dito o Grande, sendo rude com sua mulher, a futura imperatriz Catarina I, e humilhando um general ou ministro. Nicolau II e sua família fazem uma refeição. Feliz com uma produção operística no teatro do palácio, Catarina II, também chamada a Grande, sai correndo para encontrar um lugar onde urinar. Recria-se imponente cerimônia em que Nicolau I recebeu, em 1829, o neto do xá da Pérsia, que vinha apresentar desculpas oficiais pelo massacre, por uma multidão em Teerã, dentro da embaixada, dos funcionários russos, inclusive o embaixador — o compositor, poeta e dramaturgo Aleksandr Griboiedov, de 34 anos — cujo cadáver, desfigurado, fora decapitado.

Durante o passeio pelo teatro de imersão que é Arca russa, temos dois guias: um é o fantasma de um narrador que vaga pelo palácio sem nunca ser visto por nós, enquanto fala por meio da voz de Aleksandr Sokurov. O outro é um “europeu”, inspirado em Astolphe de Custine, viajante francês à Rússia de Nicolau I. Custine — interpretado no filme pelo ator Sergei Dreiden, que faleceu em São Petersburgo em maio de 2023, enquanto escrevo estas linhas — foi por um tempo diplomata, tendo participado do Congresso de Viena, como lembra o filme, e é autor de um celebrado livro, La Russie en 1839, fruto de sua viagem ao país e bastante crítico da sociedade tsarista.

Há quem considere Arca russa ideologicamente reacionário; o filme pode ser visto como celebratório da monarquia e as cenas históricas escolhidas não envolvem o povo. De fato, uma obra que mostra a grã-duquesa Anastásia, correndo livre e feliz pelos corredores do Palácio de Inverno, com coroa de flores na cabeça, a própria imagem da inocência, poderia ter como um de seus resultados provocar simpatias monárquicas.

Sokurov escolheu destacar Anastásia, não uma de suas três irmãs, menos conhecidas do público. Em análise perspicaz, “Floating on the Borders of Europe: Sokurov’s Russian Ark” a acadêmica Kriss Ravetto-Biagioli aponta que a mãe de Anástasia, a imperatriz Alexandra Feodorovna, aparece conversando não com seu conselheiro Rasputin, nome altamente tóxico, mas com a irmã, a grã-duquesa Elisabete. Esta, ao enviuvar, tornou-se freira e assim aparece vestida no filme. Assim como Nicolau II, Alexandra, os cinco filhos e vários outros membros da família, Elisabete foi executada em 1918 e transformada, no final do século XX, em santa da Igreja Ortodoxa.

A mim parece que a intenção principal de Arca russa, mais do que celebrar a monarquia, é comemorar um período específico da história da Rússia, em que o país, ao fundar São Petersburgo e fazer da nova cidade sua capital, procurou abrir-se à Europa. Essa política, de determinação e lucro oscilantes, corresponde ao período dos 200 últimos anos da dinastia Romanov. Em 1918, a capital voltaria a ser Moscou.

A compreensão do filme de Sokurov é facilitada, se lembramos ser ele um pacifista, que já se manifestou, por exemplo, contra a invasão da Ucrânia. Ao encerrar Arca russa antes da Revolução bolchevique de outubro de 1917, o diretor, de forma subliminar, sugere que tudo o que veio depois representou uma ruptura entre o Ocidente e a União Soviética e, depois, a Rússia e é, portanto, algo negativo. Esse pensamento se aproxima daquele de Hélène Carrère d´Encausse em um livro, La Russie inachevée (2000), contemporâneo de Arca russa, segundo o qual a Rússia é un pays dont l´effort a toujours tendu vers l´Europe et la modernité, et qui, au moment où le but paraît atteint, est rejeté en arrière. Escritora francesa e cineasta russo ambos apontam que a falha é, também, europeia.

Francofonia, filme que nos fala de Paris e do Louvre, mostra como primeira imagem uma foto de Tolstoi, envelhecido, reclinado, olhando para a câmera. Pouco depois, uma imagem de Tchekhov. O diretor pede aos dois orientação. “O que nos espera?”, pergunta. Na sequência, veremos fotos de ambos nos seus leitos de morte. Por que a primeira divagação de Sokurov é sobre os autores russos?

Como tantas vezes na obra do diretor, não há explicação óbvia. Napoleão Bonaparte é um personagem importante de Francofonia. Embora Tolstoi não tenha sido contemporâneo do imperador, pois nasceu em 1828, sete anos após sua morte, graças a Guerra e Paz escritor russo e chefe de estado francês estarão para sempre interligados. Ao escrever seu romance, Tolstoi apropriou-se de Napoleão, contribuindo para formar sua imagem, de maneira negativa, junto à posteridade. Sua antipatia por Bonaparte já se manifestara em 1857, quando visitara Paris pela primeira vez. Quanto a Tchekhov, um de seus contos é parafraseado pouco depois no filme.

Aqui e ali, Sokurov aparece dialogando por Skype com o capitão de um navio que carrega a coleção de um museu e enfrenta uma tempestade em alto-mar. O fato de o barco transportar obras de arte ameaçadas de soçobrar é lamentado pelo diretor-narrador. É uma parábola sobre a fragilidade da civilização: a arte torna o ser humano superior aos outros animais, mas é facilmente perecível; o que torna a vida suportável pode ser destruído com grande facilidade. Ao mesmo tempo, perpassa o filme a sugestão de que os homens são mortais, mas suas obras artísticas perduram, ou ao menos podem ser mais duradouras do que seus criadores.

Vendo na tela do seu computador a agitação das ondas, Sokurov cita Tchekhov. A referência não é especificada, mas trata-se obviamente de uma alusão ao conto Gusev (1890), inspirado por uma experiência vivida pelo escritor no Mar do Sul da China, em viagem de regresso da ilha de Sacalina até Moscou. No trajeto de Hong Kong a Singapura, dois passageiros morreram, e seus corpos foram jogados ao mar. O episódio impressionou Tchekhov, que escreveu Gusev ainda durante a viagem.

No conto, Gusev e Pavel Ivanitch, doentes ambos, voltando do Extremo-Oriente para a Rússia na enfermaria de um navio, morrem em alto-mar, em dias diferentes, após diálogos que revelam as discrepâncias em suas personalidades, mas também um sofrimento comum. Seus corpos são jogados na água. Só há descrição do que acontece com o cadáver de Gusev, imediatamente atacado por um tubarão, enquanto o conto vai terminando com a menção à beleza do céu, que adquire uma coloração “delicadamente lilás” e do oceano, que também mostra cores “suaves, alegres, passionais”.

Em seguida à referência a Gusev, Sokurov focaliza um dos quadros mais célebres do Louvre, A Jangada da Medusa, pintado por Théodore Géricault entre 1818 e 1819, que representa o desespero de sobreviventes de um naufrágio, ocorrido em 1816, no início da Restauração ao trono dos Bourbon. A tragédia chocou os contemporâneos, porque o esforço para sobreviver causou todo tipo de violência na balsa, e levou à prática de canibalismo. Provocou também um escândalo político, uma vez que o comandante da fragata Méduse, abandonada a 60 quilômetros da costa da Mauritânia após encalhar em um arrecife, a caminho do Senegal, era um aristocrata que, tendo vivido no exílio por 25 anos por causa da Revolução e recém-regressado à França, recebera a função por sua fidelidade à causa monárquica.

Como não cabia todo mundo nos botes da fragata, construiu-se uma jangada, sobre a qual subiram 149 pessoas. A balsa foi rapidamente abandonada à própria sorte pelas embarcações que deveriam rebocá-la. Faltavam espaço, água e comida. Em seu Dictionnaire amoureux du Louvre (2007), Pierre Rosenberg, que foi diretor do museu, resume no verbete sobre Géricault a situação na jangada: Le martyre dura treize jours. On s´entretua. On mangea les cadavres. On jeta à la mer les malades. Quando foi encontrada por um navio, duas semanas depois, restavam na balsa apenas 15 sobreviventes, dos quais cinco morreriam após alguns dias.

Julian Barnes inclui um capítulo sobre a tela de Géricault em romance de 1989, A History of the World in 10 ½ Chapters, retomado em 2020 na sua coletânea de ensaios sobre arte, Keeping an Eye Open. É um texto que provoca, como os longas-metragens de Sokurov, numerosas reflexões. Barnes postula que o ser humano, para entender as catástrofes, precisa transformá-las em manifestações artísticas: A nuclear plant explodes? We’ll have a play on the London stage within a year. War? Send in the novelists.

Visão do pintor sobre a frágil embarcação à deriva, palco para fome, motins, mortes, assassinatos, agressões, afogamentos, canibalismo, o quadro de Géricault, para o qual posou outro pintor, seu amigo Eugène Delacroix, despertou, por sua vez, e continua despertando, a imaginação de artistas.

O escritor franco-belga François Weyergans publicou, em 1983, romance intitulado, como o quadro, Le Radeau de la Méduse. No enredo, um parisiense, diretor de documentários para a televisão, é contratado para fazer um programa sobre a obra de Géricault. Ele namora uma moça carioca, Nivea Guerra — esse foi o maior atrativo para mim, quando, muito jovem, li o romance pela primeira vez. Antoine Dufour, o protagonista, procrastina, questiona sua vida, mas entendemos no final do livro que ele conseguirá terminar o trabalho, e que isso representa, emocionalmente, uma superação, uma travessia de jangada.

A tela de Géricault foi uma das inspirações para o curador da XXIV Bienal de São Paulo, em 1998, Paulo Herkenhoff. Em entrevista da época sobre a Bienal, Herkenhoff declara seu interesse por releituras do quadro e diz: “A ‘Jangada’ se relaciona com a história da arte brasileira por meio de ‘Tiradentes Esquartejado’, de Pedro Américo, mais pelo tema político que pela imagem apresentada. Ele se apropria de Géricault de uma maneira complexa”. A XXIV Bienal expôs o quadro de Pedro Américo e esboços de Géricault para A Jangada da Medusa, assim como uma tela do pintor francês, emprestada pelo Museu Nacional em Estocolmo, representando as cabeças cortadas de dois guilhotinados.

Uma reflexão sobre o esquartejamento de Tiradentes aparece na instalação de Adriana Varejão naquela Bienal de 1998. Em livro do ano seguinte sobre sua obra que editou com Adriano Pedrosa — ele será, em 2024, o curador da Bienal de Arte em Veneza, o que é colossal — ela comenta: Além disso, interessou-me a representação da fragmentação do corpo e do corpo em pedaços, algo que está em Géricault”. O artista francês, como lembra Julian Barnes, era the portrayer of madness, corpses and severed heads. Pierre Rosenberg diz dele: peintre de la violence, de l´impitoyable et de la cruauté.

O Louvre teve sorte na Ocupação alemã, nos diz Francofonia, pois o encarregado de examinar as coleções artísticas francesas, o conde Franz von Wolff-Metternich, era um historiador da arte que atuou para preservar o palácio-museu. Ele e um dos diretores do Louvre, Jacques Janjard, são mostrados no filme conversando sobre arte, sobre a importância de preservá-la no meio do drama humano, do sofrimento que a guerra causa.

O museu, de resto, estava em 1940 relativamente vazio, pois muitas das obras, por precaução, tinham sido retiradas e depositadas em castelos fora de Paris. O mesmo aconteceu, também durante a Segunda Guerra Mundial, com o Hermitage. Francofonia nos mostra fotos antigas, azuladas, de salas no palácio-museu em São Petersburgo onde as molduras estão sem telas.

Aleksandr Sokurov contrasta a complacência do marechal Philippe Pétain e de seu governo diante da Ocupação alemã com a tenacidade russa durante o cerco de dois anos e meio a Leningrado, que levou um milhão de habitantes à morte. De forma leve, quase imperceptível, há referência ao fato de que Alemanha e França gradualmente se aproximam depois de 1945 — o que, cabe lembrar, viria com o tempo a permitir a formação da União Europeia, em um processo que teve como propósito buscar conter o instinto fratricida dos países europeus — e fazem da União Soviética o inimigo comum.

Lembra o diretor russo que os grandes museus estão repletos de troféus de guerra — e, podemos completar, de obras pilhadas pelo colonialismo, por invasões, por massacres. Sokurov traz uma visão abrangente sobre essas gigantescas coleções. Admira-as, valoriza seu papel cultural. Mas não deixa de aludir também às espoliações que contribuem para formá-las.

Francofonia detém-se, ainda nos seus primeiros minutos, sobre retratos expostos nas paredes do Louvre. “Quem teria eu sido”, pergunta-se Aleksandr Sokurov, “se nunca tivesse conhecido ou visto os olhos daqueles que viveram antes de mim?”.

Essa é uma sensação comum aos frequentadores de museus — acreditar que, ao observar retratos nas paredes, receberão uma revelação sobre a alma humana. Em um ensaio de 1972, “No More Portraits”, John Berger aponta que costumamos atribuir a retratos pintados a psychological insight which 99 per cent of them totally lack […] it is a myth that the portrait painter was a revealer of souls. Os retratos nos fascinam, afirma Berger, because they show us very vividly how little the human face has changed.

A exclamação de Sokurov, os comentários de John Berger me fazem pensar em uma frase de Roland Barthes em Mythologies (1957), no ensaio “Le visage de Greta Garbo”. Segundo Barthes, “Garbo pertence ainda àquele momento do cinema onde a aparição do rosto humano perturbava fortemente as multidões, onde era possível perder-se literalmente em um rosto humano como em um filtro”.

Pelas salas do Louvre, Sokurov nos dá como guias o fantasma de Napoleão e Marianne, a figura feminina que, desde a Revolução, representa a República Francesa. A pobre Marianne, na maioria de suas cenas, grita Liberté, Égalité, Fraternité, como se esperaria dela, mas há aí uma profunda ironia, pois na Paris ocupada pelos alemães, como em toda guerra, liberdade, igualdade e fraternidade passam a ser valores raros. Napoleão é mostrado vestindo o que era seu traje predileto, o uniforme de coronel de caçadores de cavalaria da guarda imperial, verde escuro, com o qual foi enterrado em Santa Helena. É com esse uniforme que, em 1812, na sua malfadada invasão da Rússia, o Imperador dos Franceses ocupou Moscou — quase deserta, e que em seguida queimaria — e se instalou no Kremlin.

O ator Vincent Nemeth, como Napoleão admirando sua própria coroação

Em Conversações com Goethe (1836), de Johann Peter Eckermann, o polímata alemão menciona o uniforme verde. Goethe narra a Eckermann, em fevereiro de 1830, anedota que lera em um livro sobre o exílio em Santa Helena, segundo a qual o traje, na ilha, ficara desbotado “pelo uso e o sol forte”. Sendo impossível encontrar pano da mesma cor para fazer novo uniforme, Napoleão virara o seu, gasto, ao avesso. A história não me parece muito crível, mas impressionou Goethe. Indaga ele: “Não é trágico? Não é comovente, o amo dos reis terminar sendo obrigado a usar doravante um uniforme revirado? No entanto, se pensarmos que esse foi o fim de um homem que pisoteara a vida e a felicidade de milhões de seres humanos, seu destino parece benigno: Nêmesis levou em consideração a grandeza do herói e não pôde se impedir de se mostrar relativamente generosa”.

No final de Arca russa, vemos um baile imperial, uma das grandes cenas do filme. À frente da orquestra está Valery Gergiev, regente que vi uma única vez, quando fui à ópera no Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, poucos anos antes de Arca russa ser filmado. A ópera era Don Carlo, durante muitos anos uma das minhas prediletas, na qual Verdi e seus libretistas, inspirados pela peça de Schiller — que foi também uma fonte para Dostoievski e seu Grande Inquisidor — romantizam a figura do personagem epônimo e nos ensinam que mesmo um príncipe das Astúrias, um herdeiro do trono espanhol, um neto de Carlos V pode ser infeliz.

Como era aniversário de minha mãe, sei que essa viagem a São Petersburgo aconteceu no final de maio e, por isso, quando saímos do teatro, havia luz do dia ainda e voltamos a pé ao hotel. Nunca mais estive na capital dos tsares. Vi São Petersburgo como um lugar onde o peso da história é presente demais. Caminhando pelas suas ruas, pensava no sangue jorrado pela dramática história da Rússia. Seria como alguém ir a Paris pela primeira vez e ficar pensando no período do Terror ou nos massacres nas prisões na Revolução, e na guilhotina, ou na Ocupação alemã. Moscou, onde estive algumas vezes, nunca provocou em mim a mesma reação.

Pela lógica do filme, o baile imperial parece acontecer logo antes da Primeira Guerra Mundial, mas ali vemos Pushkin, que morreu em 1837, e sua mulher, Natália, no salão, e ela dança com o “europeu”. Este, aliás, menospreza o talento do poeta nacional russo, o que, simbolicamente, pode ser visto como um repúdio da Europa à Rússia.

O baile termina, e a multidão começa a sair da sala e a descer a escadaria em direção à saída. É uma visão fantasmagórica. A peça de imersão, onde várias épocas e personagens podem ser mostrados simultaneamente, abandonando o tempo e a cronologia, vai chegando ao fim. Sabemos o que virá depois na história da Rússia, uma sucessão de tragédias com grandes perdas humanas: guerra de 1914, revolução bolchevique, guerra civil, stalinismo, Segunda Guerra. Na sequência, haverá mais guerras, a Fria e outras, até começar a de hoje, “no coração da Europa”.

O narrador parece a essa altura nos dar uma resposta à eterna dúvida sobre se a Rússia é um país europeu, um país asiático, ambas as coisas, ou uma realidade totalmente própria, não pertencendo a nenhum espaço determinado. Convida o marquês de Custine, o “europeu”, a vir com ele, acompanhando em direção ao futuro a multidão que sai do baile. Custine recusa, com ar pesaroso, em extraordinária atuação de Sergei Dreiden, que cria com seu rosto o momento mais triste do filme. Diz que prefere ficar onde está, ou seja, na Rússia dos Romanov, certamente um bom lugar para quem fosse nobre, rico, frequentador da corte e sem veleidades de contestar o status quo. Ouvimos então Sokurov, em sua capacidade de narrador, despedir-se do marquês: “Adeus, Europa”.

Enquanto isso, em Francofonia, o diretor generosamente leva Napoleão a afirmar ter feito a guerra para trazer obras de arte para a França: Pour l´art j´ai fait la guerre; o que é falso, mas quase enternecedor. Mais verdadeira é a frase seguinte: “Eu tinha excelentes conselheiros, para decidir o que trazer e o que deixar para trás”. É uma fórmula edificante para resumir a rapacidade das espoliações francesas durante as guerras napoleônicas.

Em outra cena, o fantasma de Napoleão fica em admiração diante do famosíssimo quadro de David retratando a sua coroação, consagração de uma rápida e surpreendente ascensão, e exclama: Voilà, c´est mon couronnement. La beauté idéale. Mais inacreditável do que presenciar essa coroação, em 1804, seria prever que tudo terminaria com os últimos seis anos passados em uma ilhota no meio do Atlântico Sul, a 4 mil quilômetros do Brasil e a 2 mil quilômetros de Angola, talvez vestindo um velho uniforme virado pelo avesso.

As últimas palavras no conto de Tchekhov são para dizer que as cores do mar, enquanto o corpo de Gusev afunda, são “quase impossíveis de ser descritas em linguagem humana”. Nesse contraste entre a miséria humana e a beleza do mar, Tchekhov talvez nos diga que a razão de ser do artista é revelar aquilo mais precioso que percebe do mundo ao seu redor, superar as limitações da “linguagem humana” e trazer com isso algum consolo.

Sem as guerras napoleônicas, sem a invasão da Rússia, não teríamos Guerra e Paz. Sem o quadro de Géricault, o naufrágio da Méduse seria hoje um incidente ignorado. O sofrimento das 149 pessoas que embarcaram na jangada, a incompetência do capitão aristocrata estariam perfeitamente esquecidos. O quadro está, aliás, informa Julian Barnes, em processo irreversível de escurecimento, por causa de materiais misturados à tinta utilizada por Géricault. Um dia, não se distinguirá nada na enorme tela exposta no Louvre. Mas ela terá durado bem mais do que duram os seres humanos, frágeis e imperfeitos.

Sokurov nos faz ver que a história afeta a arte, mas que a arte preserva, na mente coletiva, as tragédias, e de alguma forma as resgata. Para as vítimas de guerras, bombardeios, torturas, genocídios e naufrágios, contudo, não há consolo algum em saber que talvez, um dia, seu sofrimento venha a inspirar pintores, compositores ou escritores. Pinturas podem eternizar Tiradentes esquartejado, transformar a figura histórica em símbolo, mas para isso terá sido preciso antes haver o enforcamento e o esquartejamento.

Enquanto a multidão desce as escadarias do Palácio de Inverno em Arca russa, Sokurov termina seu filme mostrando, por uma porta aberta no térreo, o rio Neva gelado, do qual emana um vapor, uma neblina, com o comentário: “O mar cerca tudo… estamos destinados a navegar para sempre… a viver para sempre”. Presumivelmente, é do povo russo que o diretor nos fala aqui.

Mas o mesmo vale para todos nós. Estamos sozinhos em nossas jangadas, navegando a esmo pela experiência solitária que é a vida, implorando a Nêmesis para que o nosso mal seja apenas o de ter de revirar as roupas ao avesso, penando até o momento final em que, inevitavelmente, seremos esquartejados, devorados e jogados ao mar.

Tirei a foto principal na Baía de Ha Long, no Vietnã

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O Casamento Secreto

O Casamento Secreto

Stendhal, é sabido, escreveu ele próprio seu epitáfio. Quem visita o túmulo do escritor no cemitério de Montmartre — e eu sou, ocasionalmente, um desses peregrinos — vê sobre a lápide, mais ou menos, a inscrição determinada por ele. Digo “mais ou menos” porque, como contei em O Dia em que vi o Crânio de meu Avô, seu primo e executor testamentário, Romain Colomb, inverteu a ordem dos três verbos escolhidos, e por isso lemos, em italiano: “escreveu, amou, viveu”, em vez do pretendido pelo romancista, que era “viveu, escreveu, amou”.

Outro desejo não respeitado de Stendhal é que o túmulo informasse o seguinte: Quest´anima/Adorava/Cimarosa, Mozart e Shakspeare [sic]. A vontade de que a declaração de amor aos três artistas fosse incluída no epitáfio aparece em Souvenirs d´égotisme, volume autobiográfico escrito em 1832, onde Stendhal declara que imaginara seu túmulo e o que nele deveria ser escrito. Mais tarde, em 1837, em um resumo de cinco páginas de sua vida, o autor acrescenta Correggio aos amados Cimarosa, Mozart e “Shakspeare” — e constatamos, então, que de fato faltava um pintor na lista anterior — mas já não parece querer incluir os artistas na inscrição na lápide.

O compositor Domenico Cimarosa (1749-1801), “essa bela planta napolitana”, como diz dele Stendhal em seu Diário, foi um dos objetos constantes da admiração do escritor. De Cimarosa, ouve-se hoje sobretudo uma ópera-bufa, Il matrimonio segreto (1792), a que assisti uma vez em Munique. Aos 25 anos, minha devoção ao escritor e a seus personagens tornava-se menos exclusiva do que fora até pouco tempo antes, mas perdurava então e perdura ainda. Stendhal já não dominava tanto meus pensamentos, mas foi o interesse por ele que me fez ouvir a ópera de Cimarosa. Sabia que conhecer o músico era uma forma de manter a proximidade com o escritor.

Conservo o programa. Nada nele escrevi, ao contrário do que frequentemente fazia naquela época, com comentários decididos em que destruía ou elevava aos céus uma obra, uma produção, uma atuação. Quatro anos antes, por exemplo, eu assistira em Londres a uma montagem da comédia inglesa em que Il matrimonio segreto é inspirada, The Clandestine Marriage (1766), de George Colman e do célebre ator David Garrick. Neste caso, escrevi em várias páginas do programa, elogiando os atores e julgando fraca a peça. Embora o programa da obra de Cimarosa nada contenha da minha mão, lembro bem que gostei da ópera e da produção, e saí feliz do teatro em Munique.

Sabemos, pela autobiografia de Stendhal escrita de 1835 a 1836 e denominada por ele Vie de Henry Brulard, que o escritor assistiu pela primeira vez a uma representação da ópera de Cimarosa em maio de 1800, em Ivrea. Ele tinha 17 anos, e estava na Itália acompanhando o exército francês. Era a segunda campanha da Itália, Napoleão Bonaparte tornara-se primeiro cônsul no ano anterior e o pintor David o retrataria atravessando o passo do Grande São Bernardo, casaco esvoaçante, jovem e heroico sobre seu cavalo empinado.

Sobre essa tela, diz o historiador americano David Bell, em seu livro de 2020, Men on Horseback: the Power of Charisma in the Age of Revolution, que ela se tornou “uma das imagens mais conhecidas da glória militar”, ao mostrar Bonaparte parecendo “se fundir na paisagem sublime que o quadro retrata, e comandar ao próprio vento”. A batalha de Marengo, em junho de 1800, se tornaria uma das etapas gloriosas da epopeia napoleônica, e a República Francesa triunfava das monarquias.

Em um dos prefácios em que pensou para a sua biografia de Napoleão, Stendhal escreveu: “Vi o general Bonaparte pela primeira vez dois dias após a sua passagem pelo São Bernardo, ao pé do forte de Bard [maio de 1800]; oito ou dez dias após a batalha de Marengo, fui admitido no seu camarote no La Scala”, portanto, em junho de 1800. Em Vie de Henry Brulard, ele não parece tão certo de ter visto Napoleão durante o assédio francês ao forte. Em todo caso, devemos supor que o general Bonaparte terá causado nele a mesma impressão que nos causa o quadro de David.

Mas estamos ainda em Ivrea onde, informa a Vie de Henry Brulard: “À noite, tive uma sensação que nunca esquecerei. Fui ao espetáculo”.

A ópera causou, afirma ele retrospectivamente, 35 anos depois, uma emoção mais forte do que ter atravessado os Alpes pelo Grande São Bernardo e passado por uma descarga de canhões perto do forte de Bard. Comparadas à ópera de Cimarosa, a guerra e a perigosa, por estreita, passagem pelos Alpes — Napoleão, na verdade, tivera de cruzar as montanhas em lombo de mula, e o cavalo empinado é parte da propaganda — pareceram-lhe algo “grosseiro e baixo”. No entanto, percebemos que as sensações causadas pela travessia das montanhas e os tiros de canhão lembram as experimentadas por Fabrice del Dongo na batalha de Waterloo, em La Chartreuse de Parme.

Em todo caso, assegura-nos Stendhal, ouvir Il matrimonio segreto aos 17 anos determinou-o a vivre en Italie et entendre de cette musique, e isso tornou-se para ele “a base de todos os meus raciocínios”. Aparentemente, apenas uma vez antes ele assistira a uma representação operística, em Paris, aos 15 anos, mas essa fora uma obra francesa contemporânea medíocre, Le Traité nul — ”un fio de vinagre” diz ele: ce filet de vinaigre continu et saccadé — de um compositor hoje esquecido, Pierre Gaveaux.

Com a descoberta de Cimarosa, ir à ópera torna-se uma de suas razões de viver e ele nos fala a respeito inúmeras vezes nas obras autobiográficas. Gosto desta frase, que está em Vie de Henry Brulard: “Eu andaria dez léguas a pé, pisando sobre excrementos, coisa que mais detesto no mundo, para assistir a uma representação de Don Giovanni bem interpretada”.

Textos autobiográficos de Stendhal, contudo, não são necessariamente confiáveis, e não é seguro que ele tenha ouvido Cimarosa pela primeira vez em Ivrea. Em 1808, em uma carta a sua irmã Pauline, ele diz: “Gostei de música pela primeira vez em Novara, alguns dias antes da batalha de Marengo. Fui ao teatro; davam Il matrimonio segreto”. Que a representação tenha sido em Novara ou Ivrea, o leitor percebe que nem tudo foi perfeito nessa iniciação musical. O escritor comenta: “Faltava um dos dentes da frente à atriz que cantava Carolina”. Esse detalhe ficou na sua memória como sendo “o que sobrou daquela felicidade divina”.

W. G. Sebald, em Vertigem (1990), no capítulo, não muito satisfatório, em que ficcionaliza a relação de Stendhal com o amor e a Itália, decide que o dente ausente é “o canino superior direito”. Pessoalmente, imagino que seria algum dos incisivos laterais; a falha ficaria mais visível, e a observação de Stendhal mais natural.

E, de repente, penso que talvez houvesse aí o tema de um conto, certamente não muito alegre, nessa história de uma soprano que, em 1800, era obrigada a cantar, para sobreviver, ostentando a falta de um dente, em uma pequena cidade no Norte da Itália, talvez deambulando de um teatro provinciano a outro. O autor não nos dá seu nome, mas afirma que, no dia seguinte, estava apaixonado por ela enquanto partia a cavalo de Ivrea. Obviamente, não é pela intérprete de Carolina que Stendhal se apaixonara, mas pela Itália, a sua própria juventude, a libertação do jugo familiar, a aventura e a música. É possível que Cimarosa tenha marcado de forma duradoura sua imaginação porque passou a cristalizar todos esses sentimentos.

Outro músico sobre quem Stendhal fala frequentemente é Rossini. Se a adoração por Cimarosa foi constante, o apreço pelo compositor de Il barbiere di Siviglia e La Cenerentola revela-se oscilante. Em Rome, Naples et Florence — uso a edição de 1826 — o romancista nos conta que, em 1817, viajando a Nápoles, em um albergue em Terracina, no Lácio, notou “um homem louro bonito, um pouco careca”, de cerca de 25 anos. Stendhal perguntou-lhe se podia ainda ter esperança de assistir, em Nápoles, de onde chegava o viajante, ao Otello de Rossini, e passa a elogiar o talento do compositor.

O interlocutor fica levemente embaraçado, seus companheiros de viagem sorriem: enfin, c´est Rossini lui-même. A frase seguinte resume bem a forma como Stendhal escreve sobre Rossini em seus textos autobiográficos: “Felizmente, e por um grande acaso, eu não falara nem da preguiça desse gênio admirável e nem dos seus numerosos plágios”. Rossini, como se sabe, frequentemente reutilizava suas próprias melodias em diferentes composições, mas Stendhal gosta de dizer que ele também tomava empréstimos de outros compositores. Ao ouvir O Barbeiro de Sevilha pela primeira vez, opina: “isso me pareceu um pouco pilhado de Cimarosa”, o que não o impede de escrever, uma página depois: J’admire de plus en plus le Barbier.

Henri Martineau, um dos especialistas clássicos de Stendhal, em seu estudo L´Oeuvre de Stendhal: histoire de ses livres et de sa pensée (1945) opina que o escritor apreciava o artista em Rossini, mas que “o homem, em troca, sempre despertou antipatia nele: o seu cinismo o chocava assim como o enorme apetite e a desenvoltura grosseira em relação às mulheres”.

Em 1823, Stendhal publicaria a primeira biografia do compositor em francês. Abro a Vie de Rossini ao acaso e leio o seguinte trecho: Vif, léger, piquant, jamais ennuyeux, rarement sublime, Rossini semble fait exprès pour donner des extases aux gens médiocres. Hagiográfico isso não é. Em todo caso, o primeiro encontro, em Terracina, transcorreu de forma idílica. O francês e o italiano ficaram “tomando chá até depois da meia-noite”. Escreve Stendhal: c´est la plus aimable de mes soirées d´Italie. E comenta: “despedi-me desse grande compositor com um sentimento de melancolia”.

Alguns estudiosos, porém, colocam em dúvida se Rossini e Stendhal realmente interagiram na Itália, como Rome, Naples et Florence e a correspondência do escritor afirmam. Em um ensaio intitulado Stendhal et Rossini: Une étude documentaire, de 1999, Stéphane Dado e Philippe Vendrix debruçam-se sobre essa questão. Apontam que mesmo o encontro em Terracina talvez nunca tenha acontecido e que Stendhal, em Milão, possivelmente só viu Rossini de longe, na qualidade de maestro, regendo suas óperas no La Scala. O ensaio dos dois pesquisadores belgas é bastante útil. Lista todas as vezes em que o compositor é citado na obra do escritor, e calcula que Stendhal terá assistido a 23, talvez 25, das 39 óperas de Rossini.

Enquanto eu escrevia o parágrafo acima, amigos vieram de Roma me visitar em Kuala Lumpur. Trouxeram-me de presente uma tradução para o italiano, por Donata Feroldi, publicada em 2019, de Promenades dans Rome, que conta com uma excelente apresentação do escritor e ensaísta Emanuele Trevi.

Logo na primeira frase, Trevi nos diz: L´Italia di Stendhal è una gigantesca soperchieria, un castello di carte truccate, una sistematica impudenza. Ao contrário do que poderia parecer, o ensaio é elogioso a Stendhal, ajudando a confirmar junto ao leitor que o amor do francês pela Itália é reciprocado pelos italianos. Mais adiante, Emanuel Trevi opina “não haver nada mais verdadeiro do que a Itália de Stendhal”, ou seja: a Itália descrita pelo francês é condizente com sua “reação subjetiva, alterada constantemente pela força dos seus mutáveis estados de ânimo”. Avalia Trevi ser Stendhal o primeiro entre os modernos a transformar a literatura em um punto di vista personale, necessariamente eccentrico perché generato dall´individuo e dal suo egotismo.

De maneira divertida, o ensaísta italiano comenta que os estudiosos de Stendhal se dedicam, paradoxalmente, a descobrir as inverdades nas obras de seu scrittore prediletto, e que cada um tem a sua mentira stendhaliana preferida. Para Trevi, justamente, il non plus ultra è l´incontro fortuito com Gioacchino Rossini em Terracina, onde o diálogo descrito por Stendhal é, na sua avaliação, una bellissima intervista immaginaria.

Vie de Rossini foi, em termos de vendas, a obra mais bem-sucedida de Stendhal, durante a existência do escritor. A publicação, provavelmente em novembro de 1823, coincidiu com a chegada do compositor a Paris, para uma temporada de um mês. Posteriormente, Rossini moraria na capital francesa mais de uma vez e lá morreria em 1868.

Frequentemente associo o compositor italiano, símbolo mesmo do bel canto, à França, e particularmente a Stendhal. O músico, aliás, entrou na minha vida antes mesmo do romancista, por causa de um dos meus álbuns prediletos de Tintin, Les Bijoux de la Castafiore, que terei lido pela primeira vez aos 7 ou 8 anos. Na história em quadrinhos, a cantora lírica Bianca Castafiore vem visitar Tintin e o Capitão Haddock no castelo de Moulinsart. Uma ópera de Rossini, La gazza ladra, ajuda a resolver o roubo de uma esmeralda. O enredo lembra o de uma ópera-bufa. Na capa, o gesto de Tintin revela que vamos adentrar um mistério e também nos convida a manter silêncio enquanto canta uma ária para a televisão aquela que é conhecida, no universo de Hergé, como “o rouxinol milanês”.

Rossini é tão associado a Paris para mim que suas óperas me fazem pensar na Restauração e na Monarquia de Julho e, portanto, em Stendhal e Balzac, cujas obras sintetizam, a meu ver, a vida durante esses sucessivos períodos da história francesa.

Julien Sorel, uma noite, vai à ópera assistir Le Comte Ory, penúltima ópera rossiniana, cuja estreia se deu em Paris em 1828. Durante a pandemia de Covid-19, quando a Metropolitan Opera passava gratuitamente, no que parece hoje o distante ano de 2020, gravações de algumas de suas produções, Le Comte Ory foi mostrada ao menos duas vezes, em uma montagem de 2011, com Juan Diego Flórez, Joyce DiDonato e Diana Damrau.

Essa nunca será minha obra predileta do compositor. Mas foram bons momentos, na solidão dos confinamentos na Malásia, ver Juan Diego Flórez, como o Conde Ory, e Diana Damrau, no papel de Condessa Agnès, cantando “Ce téméraire”. Ele tenta seduzi-la fantasiado, histrionicamente, de freira. Essa cena, que dura apenas três minutos, aparece na Internet, mas com outra soprano, Pretty Yende, fazendo o papel de Agnès. Vale a pena assistir. Levanta a alma.

Reli agora os parágrafos em Le Rouge et le Noir sobre a ida de Julien à ópera. Dá um certo reconforto saber que, na sua curta e penosa vida, ele pelo menos ouviu Rossini.

Um sábado de março, enquanto eu estava no teatro em Kuala Lumpur, Stendhal, seus personagens, suas obras reapareceram na minha imaginação, logo no início de um concerto. Naquele momento, eu estava imerso na realidade do Sudeste Asiático. Acabara, em duas semanas sucessivas, de ir a trabalho a Bornéu. Pela primeira vez viajara a Bandar Seri Begawan, capital de Brunei, e, poucos dias depois, a Kota Kinabalu, capital do estado malásio de Sabá. Preparando-me para as duas viagens, lera livros sobre a história de Bornéu e, ao chegar, visitara museus e mercados. Mergulhara na realidade local. As reuniões de trabalho que eu lá mantivera haviam revelado muito a mim sobre a economia, as relações diplomáticas, os interesses estratégicos dos países do Sudeste Asiático.

Sentado em Kuala Lumpur no Istana Budaya, ou Palácio da Cultura, a literatura francesa, a música italiana estavam bem longe da minha mente quando, de repente, iniciou-se o concerto. E no entanto, eu sabia o que me esperava, o programa era claro: abertura de Semiramide, de Rossini, e, de Respighi, o Concerto Gregoriano para violino e Os Pinheiros de Roma. Entre as duas obras de Respighi, uma composição do músico malásio contemporâneo Yeo Chow Shern.

Aberturas de óperas de Rossini representam uma forma hábil de iniciar um concerto. Sua energia motiva a plateia. A de Semiramide é particularmente rica, brilhante e tonitruante. Stendhal, em um artigo de imprensa que escreveu em 1825, logo após assistir a uma récita da ópera em Paris, opinou sobre a abertura: elle est jolie, mais a semblé un peu longue. Em gravações, ela dura cerca de 12 minutos. A mim, esse tempo pareceu curto. À medida que a orquestra tocava, Bornéu, a Associação de Nações do Sudeste Asiático, o Mar do Sul da China, a história da Malásia e de Brunei iam se fundindo, como em um casamento inesperado, improvável, secreto, com Henri Beyle, Julien Sorel, Mme. de Rênal, Fabrice del Dongo e a duquesa Sanseverina. Como tem acontecido com frequência, pensei que não nos ensinam, na escola, o suficiente sobre a história da Ásia.

Em 1830, ano em que Le Rouge et le Noir foi publicado e Julien Sorel guilhotinado, houve revoluções na Europa. Carlos X perdeu o trono, e Luís Filipe de Orléans tornou-se rei dos Franceses. Na Bélgica, durante uma representação de ópera no Teatro La Monnaie inicia-se a revolta que levaria à revolução e à independência. No Brasil, D. Pedro I estava a meses de sua abdicação, e pessoas escravizadas continuavam sofrendo e sofreriam ainda por muito tempo. Mas o que estaria acontecendo na China? A quantas andava a progressão do imperialismo britânico na Índia? Como se vivia em Java sob o colonialismo holandês? Como via o Sultanato de Aceh, em 1830, a crescente presença holandesa em Sumatra? Qual dos reis da dinastia Chakri reinava no Sião? Seriam felizes os seus súditos?

Após conhecer — ou não — Rossini em Terracina, Stendhal, em 1817, continuou rumo a Nápoles. Lá, maravilhou-se com o Teatro San Carlo, que estava sendo reinaugurado depois de ter pegado fogo no ano anterior. Em Rome, Naples et Florence, ele declara: je me suis cru transporté dans le palais de quelque empereur d’Orient. Mes yeux sont éblouis, mon âme ravie.

Nápoles significou, para Stendhal, ir à ópera. É sobretudo do Teatro San Carlo que ele fala nas muitas páginas sobre a cidade, descrevendo-o exaustivamente. E o Rio de Janeiro paga a conta. Segundo ele, somente em Nápoles há “uma tal mistura de mar, montanhas e civilização. Está-se no meio dos mais belos aspectos da natureza; e 35 minutos depois, pode-se ouvir cantar o Matrimonio segreto. Em Constantinopla e no Rio de Janeiro nunca se verá isso, ainda que fossem tão belas como Nápoles”.

Stendhal é injusto. Em D. João VI no Brasil (1908), Oliveira Lima nos fala da vida musical no Rio de Janeiro durante a estada entre nós daquele rei. Parece ter sido rica, embora o historiador e diplomata diga a respeito do Real Teatro de São João, inaugurado em 1813 no logradouro hoje conhecido como praça Tiradentes, e onde se davam apresentações operísticas: “a orquestra deixava um tanto a desejar, exceção feita de um flautista francês e de um excelente violinista”. A essa ideia opõe-se Vasco Mariz. Em artigo de 2008, “A música no Rio de Janeiro no tempo de D. Joao VI”, o musicólogo, e também diplomata, escreve sobre o São João: “Viajantes de passagem pelo Rio louvaram a qualidade da execução e consideraram a orquestra como uma das melhores do mundo de então”. O teatro, porém, queimou em 1824, e seu substituto não se lhe podia comparar. Admite Vasco Mariz: “Aquele grande fausto musical dos anos anteriores acabara. Não havia mais meios financeiros para manter o mesmo nível dos espetáculos”.

O Padre Perereca, ardente bajulador da monarquia, ao descrever o Teatro de São João, em Memórias para servir à História do Reino do Brasil (1825), parece tão maravilhado como Stendhal com o San Carlo, embora demonstre menos competência literária: “Este Real Teatro, traçado com gosto e construído com magnificência, a ponto de emular os melhores teatros da Europa, tanto pelo aparato de formosas decorações, pompa do cenário, e riqueza do vestuário, quanto pela grandeza e suntuosidade do real camarim…”. No mesmo local onde se erguia o São João hoje está, após vários sucessores, o Teatro João Caetano.

As fontes sobre a vida musical no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX são numerosas. Um ensaio de 2005 do musicólogo Rogério Budasz, intitulado “New sources for the study of early opera and musical theatre in Brazil”, menciona que uma ópera de Cimarosa, L´Italiana in Londra, já havia sido apresentada antes mesmo da chegada da família real. Não encontrei registro, nos diversos textos que consultei, de alguma apresentação de Il matrimonio segreto. No caso de Rossini, entre 1820 e 1826 — ano de publicação da edição revista de Rome, Naples et Florence — oito de suas óperas foram apresentadas no Rio, informa Budasz citando outro musicólogo, Ayres de Andrade. Segundo Oliveira Lima, antes disso, em 1819, Tancredi já havia sido montada no São João. Essa era uma das óperas de Rossini que Stendhal preferia.

Oliveira Lima lembra que, em fevereiro de 1821, tendo D. João VI jurado a contragosto, sob a pressão popular, fidelidade à futura Constituição portuguesa, na noite do mesmo dia, depois de ter cedido “ao pavor, desfazendo-se em pranto e quase desmaiando”, foi ao Teatro São João, para assistir à Cenerentola. Como no caso de Julien Sorel, esperemos que ouvir Rossini tenha trazido alguma alegria ao contrariado monarca.

Enquanto isso, em um teatro em Kuala Lumpur, estou ainda escutando a abertura de Semiramide, com os pensamentos vagando de Stendhal para o estado malásio de Sarawak, onde ainda não estive. Lia por aqueles dias a biografia do “Rajá Branco”, o inglês James Brooke, que fizera daquele pedaço da ilha de Bornéu um território independente em 1841. A história de Sarawak é inusual, rica, cheia de reviravoltas. E é tão violenta quanto a história do Brasil ou de qualquer outro lugar na Terra. Onde há seres humanos há ambições, vinganças, crueldades, assassinatos, guerras; e há também o teatro, a literatura e a música. É uma combinação paradoxal, um consternante casamento.

Terminara a abertura da ópera de Rossini. Aplausos. Aparece no palco o violinista italiano Domenico Nordio, estrela da noite, prestes a tocar o Concerto Gregoriano de Respighi, que eu não conhecia e viria a considerar, possivelmente de forma errônea, um pouco maçante. Sentado na segunda fila na plateia, ouço com clareza Nordio queixar-se com os músicos ao seu redor da temperatura do ar condicionado no teatro, de fato excessivamente fria.

No dia seguinte, domingo, acordei gripado. Não pude sair de casa.

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A alma dos belos corpos

A alma dos belos corpos

A troca de mensagens inesperada, uma noite em Kuala Lumpur, desviou minha atenção do texto que eu escrevia sobre Castro Alves. Um amigo virtual no Twitter, Hudson Rabelo, residente no Rio de Janeiro, mandava-me a foto de um livro que conseguira na Berinjela, conceituado sebo carioca, e de um recibo. Nunca tínhamos nos correspondido antes. O recibo, onde meu nome aparece impresso, é o de uma compra que fiz em Quito, onde eu então morava, na livraria Libri Mundi. Lista sete obras, uma delas La guerra del fin del mundo, de Mario Vargas Llosa, justamente o mesmo exemplar adquirido por Hudson Rabelo na Berinjela. Esse foi o último romance que me dispus a ler do escritor peruano. Antes de ele virar espanhol, antes de ele virar marquês, antes de ele virar companheiro de Isabel Preysler, heroína das revistas espanholas de fofocas e ex-senhora Julio Iglesias. Preferi não ler nenhum dos subsequentes.

A Berinjela fica em frente à livraria Leonardo da Vinci. Essa não é mais a Leonardo da Vinci especializada em obras estrangeiras que conheci criança, levado pela minha mãe, e frequentei, ao longo da vida, até que fechasse em 2015. Um ano depois, surgiu novo estabelecimento com o mesmo nome, no mesmo local, no subsolo do prédio Marquês do Herval, na Avenida Rio Branco no Centro do Rio de Janeiro. O perfil mudou. Transformou-se em uma boa livraria de obras brasileiras e dispõe de um ótimo café. Compete, para mim, com a Livraria da Travessa de Ipanema na categoria de mais charmosa do Rio de Janeiro. Outros, eu sei, preferem a elas a Argumento.

É um mistério como La guerra del fin del mundo foi parar no alfarrabista. Tenho uma teoria a respeito, mas ela não explica tudo. Tampouco sei o motivo de eu ter comprado esse exemplar na Libri Mundi, pois já lera o romance anos antes. Igualmente estranho é o recibo, que considero um documento de caráter pessoal, ainda estar dentro do volume e ter podido ser lido por todos os que o abriram no sebo.

Lembro, para quem tiver esquecido, que La orgía perpetua não é um livro erótico, mas outra obra de Vargas Llosa, um estudo sobre Flaubert. Esse exemplar, também listado no recibo, continua a existir em nossas estantes, e posso vê-lo neste exato momento aqui em Kuala Lumpur.

Em Quito, naquele tempo, nosso programa predileto, aos domingos, era almoçar no restaurante italiano de um hotel no centro da cidade — nossa filha, então muito criança, encomendava sempre o mesmo prato, um farfalle ao salmão — e, depois, ir visitar ali perto a Libri Mundi. Como o nome indica, a livraria oferecia obras em diversos idiomas. Era como ter, em Quito, a Leonardo da Vinci de antigamente, que ainda então existia. A Libri Mundi ficava instalada em uma casa de dois ou três andares em rua bucólica. Vejo na Internet que, nessa localização, ela fechou em 2015, portanto no mesmo ano da velha Leonardo da Vinci, mas continua a existir em centros comerciais da cidade.

Rever o recibo esquecido da Libri Mundi foi como viajar no tempo. Relembrei a infância da minha filha; relembrei nossos animais de estimação, todos agora mortos, que eram felizes na casa em Quito; relembrei detalhes da vida no Equador; relembrei amigos. Saber do fechamento da sede da Libri Mundi na rua Juan León Mera doeu, como dói o fechamento de toda livraria. A verdade, contudo, é que se os humanos desaparecem, não deve surpreender que o mesmo aconteça aos lugares mágicos onde compramos livros.

Em Seis livrarias, em 2018, escrevi sobre aquelas de que mais tinha gostado no ano anterior. A primeira frase dessa minha crônica é absolutamente verdadeira: “Livrarias tendem a aparecer magicamente diante de mim”.

A lembrança da Libri Mundi, ressuscitada inocentemente por uma mensagem no Twitter, deu-me vontade de voltar a falar em livrarias. Omito aqui as lisboetas, descritas em um texto meu de 2021, Um dia em Lisboa, e aquelas de que tratei em “Seis Livrarias”. Todas as fotos foram tiradas por mim menos, naturalmente, a que revela o recibo da livraria quitenha e o romance de Vargas Llosa dentro do qual ele reside há anos.

Em sua essência, livrarias são todas parecidas, e podemos considerá-las de maneira descomplicada. São espaços onde não há suspense. No entanto, algumas se diferenciam das demais. A razão para isso é o ambiente. Entramos, e recebemos a sensação agradável que aquele espaço provoca. Pode ser por causa da arquitetura, ou da decoração, ou do espírito reinante, generoso e simpático ou, ao contrário, imponente. Às vezes o estoque também se destaca, e pode ser mais dirigido aos nossos interesses pessoais.

Há por exemplo, em Paris, uma livraria, Les Cahiers de Colette, xodó de intelectuais, que a rigor em nada se distingue de qualquer outra boa livraria da capital francesa, onde elas pululam. Dois detalhes, porém, a tornam particularmente atraente, a presença magnética no recinto da proprietária e fundadora, Colette Kerber, e um painel em que ela afixa fotografias de escritores que admira. Esses dois detalhes bastam para conceder ao local uma atmosfera única. Nas fotos abaixo, a segunda mostra o que torna Les Cahiers de Colette uma típica livraria parisiense de alta qualidade. A terceira revela um dos detalhes que a transformam em algo fora do comum.

Deveríamos porém iniciar pela mais nobre das livrarias, a Hatchards, em Londres, que frequento desde o final da adolescência. É tão distinta — “livreiros desde 1797” — que expõe, no patamar entre dois dos andares, um retrato a óleo de seu fundador, John Hatchard. A fachada, debruçada sobre a Piccadilly Street, apresenta três alvarás reais, de Elizabeth II, do duque de Edimburgo e daquele que era até setembro de 2022 o príncipe de Gales. Com a morte da rainha e de seu marido, e a ascensão ao trono de Carlos III, suponho que os alvarás terão de ser retirados, e um deles, o do novo rei, novamente concedido. Em julho de 2022, quando lá estivemos pela última vez, os três continuavam na fachada, embora o príncipe Philip tenha morrido em abril de 2021.

Perto do hotel em que minha mulher e eu ficamos hospedados em Londres, em julho, caminhando ao acaso descobri a mais charmosa das livrarias, a John Sandoe. Em um tuíte, durante a viagem, escrevi sobre ela: “a própria ideia de paraíso sereno”. É assim, elas realmente aparecem magicamente diante de mim. Entrei na John Sandoe várias vezes em julho. Era como a livraria do bairro para mim. Situada quase na esquina da agitada King’s Road, o seu silêncio, quando se entra, faz com que pareça a sólida biblioteca de uma casa no campo. Eu subia e descia pelos seus três andares. Às vezes, ficava em pé no térreo, frente às janelas, lendo algum volume retirado de uma das estantes. O verdadeiro luxo, durante uma viagem, é este: não sentir urgência em correr de museu em museu e em visitar exposições, enfrentando trânsito e multidões, mas ficar em um ambiente protegido, longe de todo burburinho, sonhando com frases escritas por outros.

Embora Machado de Assis fosse todo dia à livraria Garnier, não era essa a sua predileta. Isso mostra Brito Broca em A Vida Literária no Brasil – 1900, obra de 1956. Estima ele que Machado “não devia apreciar muito aquele recinto, onde os intelectuais se cruzavam e tropeçavam uns nos outros”, e conta que, uma vez, o escritor comentou com o gerente de outra livraria, a Quaresma, aonde também ia todo dia: “Sabe? Gosto mais da sua casa porque é silenciosa, não há aquele zunzum da Garnier”. Machado teria adorado a John Sandoe.

Em viagem anterior a Londres, em setembro de 2019, eu conhecera, acredito que pela primeira vez, outra livraria famosa da cidade, a Daunt Books de Marylebone, original do que hoje é uma rede. A seção sobre o Sudeste Asiático é importante, e isso despertou minha curiosidade, já que poucos meses depois, eu sabia, estaria de mudança para Kuala Lumpur. Os vitrais e a claraboia na galeria principal fazem dela um espaço particularmente agradável.

A Daunt Books possui uma característica: é ainda, verdadeiramente, uma cadeia de livrarias independentes, cujo proprietário é até hoje seu fundador, James Daunt. Nem a Hatchards preserva mais essa qualidade, pois embora mantenha personalidade própria, pertence agora à rede Waterstones. Esta, por sua, vez, é controlada majoritariamente por uma firma de investimentos americana, proprietária também da rede, colossal, Barnes & Noble. As redes Barnes & Noble e Waterstones são presididas pelo mesmo James Daunt, que já não dirige as livrarias de que é dono.

A maior livraria de Londres, e certamente uma das maiores do mundo, é a Foyles. Faz dez anos que ela já não ocupa o prédio onde a conheci, onde permaneceu por 90 anos, na Charing Cross Road, mas continua na mesma rua, reduto histórico de livreiros. Muitas vezes, quando estudante, perdi-me nos corredores, nos vários andares do edifício anterior. No novo prédio, o interior da Foyles é bem diferente de quando eu era adolescente. É mais nítido, mais claro, mais arrumado. Talvez, por isso, menos original. Possivelmente, a razão seja que a livraria já não é independente, mas pertence à Waterstones. Sem dúvida, eu gostava mais do prédio e do ambiente anteriores. No entanto, sempre acabo entrando no espaço atual, apesar do zunzum.

Charing Cross Road deve muito de sua fama como paraíso de literatos ao filme de 1987 dirigido por David Jones, 84 Charing Cross Road, estrelado por Anne Bancroft, Anthony Hopkins e Judi Dench, e inspirado em uma peça de teatro de James Roose-Evans, a qual era uma adaptação do livro de mesmo título de Helene Hanff. Esta, como o mundo inteiro hoje sabe, graças ao filme, manteve durante cerca de vinte anos uma amizade epistolar com Frank Doel, gerente da livraria de segunda mão londrina Marks & Co. Livros eram encomendados de Nova York por Helen Hanff, Frank Doel os providenciava, muitas cartas eram trocadas pelo Oceano Atlântico, e presentes também. Os dois amigos epistolares nunca se encontraram. Marks & Co já não existe, e o prédio na Charing Cross Road é hoje um McDonald’s.

Assisti à peça em Londres, na adolescência, e revi o filme faz talvez dois anos. O enredo é a celebração de como a relação entre seres humanos pode ser baseada em amor pelos livros. Essa é a minha experiência pessoal. Discutir livros, oferecer e receber livros são gestos que aproximam as pessoas.

Além da Foyles, sobrevivem algumas livrarias na rua. Há pelo menos dois bons sebos, Henry Pordes e Any Amount of Books, ao lado um do outro. Uma pequena rua transversal, de pedestres, Cecil Court, é quase que exclusivamente povoada de alfarrabistas. Ao entrar em Any Amount of Books, em julho, recebi uma surpresa e ouvi uma novidade, ao me ver face a face com um amigo livreiro malásio, Nazir Harith Fadzilah. Eu sabia que ele estava em Londres, acompanhando a mulher, mestranda na Inglaterra. Não sabia que trabalhava no sebo em Charing Cross Road. Nazir é o fundador de uma livraria encantadora, Tintabudi, em uma pequena sala em Kuala Lumpur, sobre a qual escrevi em uma Carta da Malásia, A Tinta dos Seres Bons. A surpresa, boa, foi encontrar Nazir em Any Amount of Books. A novidade, menos boa, foi saber por ele que a Tintabudi, fechada enquanto seu proprietário está na Inglaterra, já não reabrirá no mesmo endereço quando Nazir voltar à Malásia.

Notei a ausência, nessa última viagem, de um terceiro sebo na Charing Cross Road. A Internet me informa que Francis Edwards e Quinto — duas antigas livrarias que se haviam fundido em um só estabelecimento — fecharam em 2020, por causa da Covid. Novamente separados, os dois alfarrabistas continuam a existir, embora não mais em Londres; Quinto, na verdade, agora é apenas virtual. Descubro, meio por acaso, que Francis Edwards esteve instalada, originalmente, no prédio onde hoje fica a Daunt Books original, a de Marylebone.

Fica o registro de como a fachada do local na Charing Cross Road se apresentava ao transeunte em 2019, quando a fotografei.

Assim como Londres, Paris e Bruxelas são povoadas de livrarias irresistíveis, em cuja companhia as horas passam agradavelmente.

A maior de Bruxelas é provavelmente a Filigranes. Quando eu trabalhava na capital da Bélgica, ficar lá ouvindo o piano, selecionando livros, tomando um chocolate quente era uma boa forma, aos domingos, de passar as tardes de inverno. Menor, porém mais bonita, é a Tropismes. O nome, suponho, é homenagem à obra mais famosa da escritora Nathalie Sarraute. A livraria fica dentro das Galeries Royales, três passagens interligadas, de meados do século XIX, com teto de vidro, no centro histórico de Bruxelas. Seu estoque é particularmente valioso nas áreas de literatura e poesia francófonas e de história e outras ciências humanas.

Muitas vezes mencionei a livraria Galignani, em Paris, de passado tão ilustre que há na sua página eletrônica um opúsculo ilustrado, em francês e inglês, narrando sua história e a da família que a fundou. Existente desde os primeiros anos do século XIX, instalou-se na rue de Rivoli em meados do mesmo século. Já no início era também uma livraria, e uma editora, de livros em inglês. O espírito que reina nela é semelhante ao da Hatchards e ao da Ferin de Lisboa. Trata-se de um ambiente aristocrático, acolhedor, a anos-luz das vicissitudes e tragédias humanas. Deti-me sobre a Galignani, particularmente, em Um lugar encantado, em que comentei o guia de François Busnel, Mon Paris littéraire.

Um leitor, na época, referindo-se ao título que eu dera àquela crônica, perguntou-me qual era o “lugar encantado”: Paris, a rue de Richelieu, livrarias em geral, alguma específica, livros ou o guia de François Busnel? Ou se seria minha imaginação vagando por todos esses elementos? O sentido do título, a mim, parece evidente.

Além da Galignani e de Les Cahiers de Colette, em “Um lugar encantado” eu citava outra livraria entre minhas prediletas, a Delamain. Sobre a permanência de outra favorita, L´écume des pages, e os infortúnios de La Hune, talvez um dia eu escreva no futuro. Convém, aqui, fazer um comentário a respeito da Shakespeare and Company, possivelmente a mais célebre de Paris, se não do mundo.

Antes de mais nada, é preciso saber que essa não é a livraria homônima fundada e mantida por Sylvia Beach entre 1919 e 1941. Deve-se ler seu livro de memórias de 1956, intitulado naturalmente Shakespeare and Company, para entender a personalidade da autora. Obra mais encantadora nunca foi escrita. Revela uma visão do mundo espirituosa, não-conflitiva, sem dramas. Assim, pelo menos, Sylvia Beach quis passar para a posteridade. Narra com pluma leve os dissabores de sua vida. Sobre os seis meses que passou presa pelos alemães em Vittel, em 1941, diz apenas: After six months in an internment camp, I was back in Paris, but with a paper stating that I could be taken again by the German military authorities at any time they saw fit. Comenta rapidamente o fato de que a igreja presbiteriana de que seu pai era pastor, em Princeton, contava, entre os membros da congregação, com o futuro presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson. Sylvia Beach descreve de maneira vívida os muitos escritores de quem foi amiga, como Valery Larbaud, André Gide, Paul Valéry, Gertrude Stein, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. Este, em suas próprias memórias dos anos passados em Paris, A Moveable Feast, incluiu um capítulo sobre a livraria. De forma pouco característica, Hemingway tem apenas elogios sobre a livreira, dizendo: No one that I ever knew was nicer to me.

Acabo de reler Shakespeare and Company, onde aprendo que Sylvia Beach also translated Barbarian in Asia by Henri Michaux. Em julho, em Paris, minha mulher e eu, depois de muito buscar, encontramos um exemplar de Un barbare en Asie na livraria L’écume des pages. Nesse livro, que procurávamos há tempos, o escritor franco-belga fala sobre sobre sua experiência da Ásia, inclusive da Península Malaia e de Singapura. Diz sobre os malaios o que penso cotidianamente em Kuala Lumpur: Il n´y a pas une chose que je n´aime en eux. Foi em Quito que li pela primeira vez um livro de Henri Michaux, comprado na Libri Mundi, que trata do período, em 1928, em que morou no Equador, e de como tomou o caminho de regresso à Europa a pé, em lombo de mula e em canoa, descendo o rio Napo e, depois, de barco, o Amazonas até Belém do Pará, de onde finalmente tomou o navio para casa. Só em canoa foram dois mil quilômetros percorridos. Em Iquitos, acorda um dia e pensa que terá ainda tout le Brésil à traverser.

E é como se tudo fizesse sentido no mundo, como se todos os pontos esparsos da minha vida se juntassem na nossa biblioteca, hoje dividida entre Kuala Lumpur e Singapura.

Nosso exemplar de Shakespeare and Company também foi comprado em Quito, em um sebo chamado Confederate Books, que ainda existe, embora hoje sob outro proprietário e em outra localização. Naquela época, situava-se em uma esquina da Juan León Mera, a rua onde ficava a Libri Mundi. De repente, lembro que aquele era um canto da cidade bem perto do meu escritório, e que às vezes, na hora do almoço, eu caminhava até lá, ia de livraria em livraria, fuçando. Abro A Moveable Feast e encontro dentro um recibo da Confederate Books, listando à mão a compra do livro do Hemingway com mais dois, um deles o Seven Gothic Tales da Isak Dinesen, que considero notável e no qual penso com frequência.

A Shakespeare and Company era na verdade um centro intelectual. Também biblioteca de empréstimo, servia de ponto de referência, de encontro, para os escritores da Lost Generation, conterrâneos de Sylvia Beach — all those pilgrims of the twenties, ela nos diz, who crossed the ocean and colonized the Left Bank of the Seine — naquela época hoje venerada, em que Paris, entre as duas Guerras Mundiais, ainda era o centro do mundo, em termos artísticos e culturais. A livreira tornou-se uma editora famosa na história da literatura ao financiar, apesar de seus escassos recursos monetários, a publicação de Ulysses de James Joyce, em 1922, quando isso não teria sido possível na Inglaterra ou nos Estados Unidos, onde o romance era considerado obsceno. Sylvia Beach idolatrava James Joyce e gerenciava sua vida, a pessoal e a profissional. Menciona apenas discretamente que o autor irlandês, quando pôde por fim publicar o livro em países anglófonos, mostrou-se ingrato com ela, financeiramente: I understood from the first that, working with or for Mr. Joyce, the pleasure was mine—an infinite pleasure: the profits were for him.

A primeira e ilustríssima Shakespeare and Company, que ficava na rue de l´Odéon, fechou em 1941. Sua história, por causa da importância que livraria e livreira tiveram, foi narrada muitas vezes. A atual usa o mesmo nome, mas em outro endereço. Situada em um dos bairros mais antigos de Paris, seu charme é inquestionável. Pouco vou lá, porém. Não sei se faz sentido, em Paris, frequentar uma livraria que vende obras exclusivamente em inglês. Talvez faça para turistas que não falam francês ou para franceses sedentos pela civilização americana. Ela exerce o papel, na capital da França, de bastião da cultura anglo-americana.

Quando lá estive pela última vez, em 2019, senti-me asfixiado. Poucos dias antes, eu havia chegado de Londres, onde dedicara boa parte de meu tempo a frequentar livrarias como a Daunt e a Hatchards. Com minha filha, eu tinha visitado na véspera, no Musée du Luxembourg, uma exposição excelente dedicada à obra de pintores ingleses do período de 1760 a 1820, L´âge d´or de la peinture anglaise. Estava, assim, saturado de anglofonia. Era agora a cultura francesa que eu buscava. Fiquei poucos minutos na Shakespeare and Company e saí.

É proibido fotografar seu pitoresco interior. Tirei fotos da fachada. Os escritos nos painéis são do livreiro que fundou o novo estabelecimento, George Whitman. Como ele, considero Tolstoi e Dostoievski more real to me than my next door neighbors.

Em 2013, o escritor espanhol Jorge Carrión publicou um livro singelamente intitulado Librerías, sobre sua experiência de andar pelo mundo frequentando-as. Em algum momento, decidi comprá-lo, após ler comentários a respeito na imprensa brasileira, em especial em um artigo de Rodrigo Casarin.

Encomendei a edição espanhola, dando como local de entrega o hotel onde se hospedava o escritor Alexandre Vidal Porto, de passagem por Madri, que se dispôs a trazê-lo para mim. A encomenda atrasou e, se jamais chegou ao hotel, terá sido tarde demais para encontrar Alexandre. Meses mais tarde, fiz novo pedido e recebi o livro pelo correio em Brasília. Minha pertinácia e a dupla despesa não me renderam frutos. Logo depois, em 2020, parti para trabalhar na Malásia, minha mulher para Singapura, e o livro viajou na mudança dela. Tornou-se inacessível para mim até este ano, quando as fronteiras dos dois países foram reabertas, depois da pandemia.

Vi-o na estante em minha última ida a Singapura. Quis ver o que diz sobre a John Sandoe, o que mostra bem o quanto a livraria na rua Blacklands Terrace, a um pé da King’s Road e da Sloane Street, me impressionara em julho. O espanhol também cedeu aos seus encantos. Escreve que o interior da John Sandoe tiene todo lo que desea un fotógrafo aficionado. Contudo, avisa, ela é mais do que una imagen pintoresca, pois ese cuerpo precioso tiene alma.

O atual dono da Leonardo da Vinci, Daniel Louzada, comprou-a em 2016 de sua fundadora, Vanna Piraccini, que durante décadas foi amiga e inspiradora da intelligentsia carioca e com quem, por timidez, nunca tive coragem de conversar. Em janeiro de 2022, Vanna Piraccini morreu, aos 96 anos. Também faleceu este ano, em fevereiro, Brigitte de Meeûs, fundadora da Tropismes, aos 76. Em janeiro de 2017 já morrera José Ferreira Vicente, fundador de um de meus sebos prediletos em Lisboa, Olisipo, que desde então mudou-se para novo endereço.

Assim são as livrarias e seus criadores, mortais como nós, seus clientes, admiradores e amigos. Elas surgem, muitas prosperam, criam um impacto cultural, algumas tornam-se míticas, mudam de lugar, de proprietário, desaparecem ou parecem-nos, ilusoriamente, destinadas a durar para sempre, mas evoluem, transformam-se. Afetam nossas vidas, permitem sonhos, tornam-se nossa segunda casa. Quando uma fecha, é como um golpe no coração. Mas como um amigo querido, um parente carinhoso, em nós elas vivem para sempre. Como a Libri Mundi de Quito, no bairro La Mariscal, na rua Juan León Mera. Trazida de volta à memória, um dia em Kuala Lumpur, por uma foto casualmente recebida pelo Twitter. Voltou assim a existir.

Há algo insondável nisso tudo, pois assim é a vida.

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Quatro telefonemas

Quatro telefonemas

Colette amava os gatos. Teve vários ao longo da vida. Quando era ainda casada com seu primeiro marido, Henry Gauthier-Villars, cujos romances ela escrevia para que ele os assinasse como se fossem seus, com o pseudônimo de Willy, existia um gato chamado Kiki. Mais precisamente Kiki-la-Doucette. Era um angorá. Morreu em 1903, nos diz Judith Thurman em sua biografia da escritora, Secrets of the Flesh, sem especificar a razão da morte e a idade do gato.

Kiki-la-Doucette, gato bem real, inspirou um personagem literário. No livro de Colette Dialogues de bêtes, publicado em 1904, portanto após a morte de Kiki, o gato aparece em vários diálogos conversando com Toby-Chien, o buldogue francês que também existiu. De angorá, Kiki-la-Doucette vira um chartreux, embora sua descrição física — “um corpo listrado” — não se pareça à dos gatos dessa raça. Em 1930, Colette ainda estava revisitando essa obra. Em suas memórias sobre o casamento com Willy publicadas em 1936, Mes apprentissages, a escritora assim descreve o angorá: “Longo, opulento, sutil”.

Nos diálogos com Toby, Kiki-la-Doucette mostra-se intrinsicamente felino, ou como imaginamos que um gato deva ser. É dado a dizer ao buldogue frases como: “Só vejo extravagâncias ao meu redor”; “as sutilezas psicológicas sempre ficarão inacessíveis a você”; “sinto vergonha por você, você ama todo mundo, aceita todas as rejeições de forma servil”; “anda, imita minha divina serenidade”.

Os dois, Kiki e Toby, amam seres diferentes. O gato prefere “Ele”, alter ego de Willy, enquanto o buldogue entrega sua devoção a “Ela”, a própria Colette. Um dos diálogos acontece durante uma viagem de trem, de que participam Ela, Ele, Kiki e Toby. O cachorro está solto, e o gato está em uma cesta fechada. Kiki exclama: “As torturas que sofro são morais. Estou sendo submetido ao mesmo tempo ao enclausuramento, à humilhação, à obscuridade, ao esquecimento e aos sacolejos”. Seu desconforto logo termina. “Ele” retira o gato da cesta, dizendo: “Venha, meu belo Kiki, meu enclausurado, venha, você agora terá rosbife frio e peito de frango”.

Kiki explica a Toby como consegue evitar, ao contrário do seu interlocutor, o óleo de rícino:

Uma vez Ela quis — eu era ainda pequeno — me purgar com o óleo. Eu a arranhei e mordi tanto, que nunca mais Ela tentou. Por um minuto, Ela deve ter achado que estava com um demônio sobre os joelhos. Eu me contorci em uma espiral, soprei fogo, multipliquei por cem as minhas garras, por mil os meus dentes, e fugi, como em um passe de mágica.

Kiki também transmite a Toby sua tática para evitar aquilo que o buldogue classifica como “o suplício do banho”. Explica que, ao ser submetido à experiência, deitara-se de costas e adotara o olhar “clemente e aterrorizado do cordeiro no altar”.

Apenas este ano tomei conhecimento da existência dos dois Kiki-la-Doucette, o real e o fictício. Quando isso aconteceu, minha família havia perdido uma outra Kiki. Muitas vezes escrevi sobre nossa gata persa dourada, que emprestou mesmo seu nome para o título de uma crônica de abril de 2020, Kiki em Kuala Lumpur.

A viagem para trazê-la de Brasília à Malásia, em janeiro daquele ano, durara, de porta a porta, 36 horas, atravessando dois oceanos, a bordo de três aviões. Um percurso, sem dúvida, mais penoso do que o trajeto de trem dos personagens de Colette. Trancada em uma jaula nos três diferentes voos conosco, emulando Kiki-la-Doucette a nossa Kiki miou praticamente as 36 horas. No último trecho, Istambul-Kuala Lumpur, puxei-a um momento para fora da pequena jaula, segurei-a nos braços, e passeamos juntos pela cabine. Os membros da tripulação, em vez de me censurar, começaram a me mostrar fotos dos seus próprios gatos.

Não foi à toa que escrevi sobre Kiki em abril de 2020, quando vigorava na Malásia o primeiro confinamento e o pavor do vírus se iniciava. Era proibido sair de casa, a não ser para comprar comida e remédio. Enjaulado em um apartamento vazio em Kuala Lumpur, sem a biblioteca e sem a mobília, que estavam em um container no cais de Port Klang, sem conhecer quase ninguém na Malásia, onde eu chegara cinco semanas antes do início do confinamento, forçosamente separado da minha família amparei-me na gata persa dourada. Tínhamos apenas, como companhia, um ao outro. Cuidar dela tornou suportável o isolamento provocado pela pandemia. Para mim, a única exceção, além dos livros que eu previdentemente fora comprando depois da chegada, era um amigo brasileiro que, uma vez por semana, me dava carona até o supermercado. Para Kiki, não havia o alívio da quebra da rotina. Era eu apenas em seu universo, e mais ninguém.

Houve, depois disso, outros confinamentos. Aconteceu assim o que sempre acontece quando dois seres que se amam são obrigados a viver encerrados, na presença exclusiva e constante um do outro. O amor cresceu ainda mais.

Em novembro de 2021, as fronteiras entre Malásia e Singapura foram parcialmente reabertas, sob diversas condições. No início de dezembro, viajei a Singapura. Como contei na carta da Malásia de janeiro de 2022, Tchekhov e os tigres, rever minha mulher, conhecer sua casa, pareceu-me um paraíso, após as agruras dos confinamentos. Durante uma semana, tudo transcorreu de maneira perfeita. Até que veio o primeiro telefonema.

Em Kuala Lumpur, Kiki parara de comer. Videoconferências entre nós não a motivaram. Liguei para o veterinário. Ao visitá-la, ele recomendou uma alimentação especial e vitamina B. Avisou que, se ela não voltasse a comer em poucos dias, teria de ser internada.

Dois dias depois, um domingo de tarde, regressei à Malásia. Ao entrar no apartamento, notei um silêncio pouco habitual. Não houve miados. Não houve corrida até a porta para me receber. Chamei. Procurei. Sem resultado. Supus que ela estaria dormindo em algum novo esconderijo.

Desfiz a mala. Guardei as roupas. Liguei para minha mulher. Tomei um chá. Chamei. Procurei. O silêncio continuava. A solidão também. Àquela altura, fazia já duas horas desde minha chegada a casa. O sol se punha. Tentei novamente.

Foi embaixo de um móvel que a encontrei.

Nunca ela havia se escondido ali. Estava acocorada, ensimesmada. O olhar era opaco, indiferente. Ofereci comida, que ela rejeitou. Peguei-a no colo. Trouxe-a para cima da cama. Ela imediatamente saiu do quarto.

Na segunda-feira, levei-a uma clínica. A veterinária declarou: “Ela sofreu um trauma emocional com sua viagem. Por isso parou de comer e daí desenvolveu uma doença típica de gato idoso, lipidose hepática”. Perguntei sobre seu prognóstico. A veterinária hesitou apenas um pouco antes de responder: “Bem, ela tem 17 anos. Já está no bônus”. À noite, recebi da clínica o segundo telefonema de más notícias: “O resultado do exame de sangue é muito ruim”.

Começamos então, Kiki e eu, uma nova existência. Ela não comia de forma espontânea. Trancada em uma jaula, recebia soro por via intravenosa. A comida era forçada pela garganta. Eu ia à clínica na hora do almoço. Abria a porta da jaula. Conversava com ela. Às vezes, ela ronronava, enquanto eu fazia carinho. Muitas vezes, me ignorava. Sugeriram-me que eu a fizesse escutar música. Selecionei árias de Mozart, sobretudo de As bodas de Figaro e de Don Giovanni. A escolha não era arbitrária. Durante os confinamentos, como narrei em Cleópatra no Escritório, à noite eu costumava assistir às gravações oferecidas gratuitamente pela Metropolitan Opera. Chamara minha atenção o fato de que Kiki levantava a cabeça com frequência, atenta, quando a ópera era de Mozart.

As árias de Cherubino e de Don Ottavio, apesar de encantadoras, não pareciam causar efeito algum. A gata persa dourada continuava sem comer.

Eu insistia em falar com a veterinária a cada visita, o que significava esperar que terminasse alguma consulta. Isso determinava quanto tempo eu teria com Kiki. Às vezes, conseguia ficar 45 minutos parado diante da porta aberta da jaula, dizendo-lhe palavras de carinho; às vezes, só podia ficar dez minutos antes de voltar para o escritório.

Chegar em casa de noite significava enfrentar, ao sair do elevador, a perspectiva de entrar no apartamento vazio, sentir sua ausência e enfrentar sozinho o silêncio e a escuridão.

O Natal se aproximava. Viajei a Singapura para passá-lo em família.

Todo dia, ligava para a clínica. A resposta era sempre a mesma:
“Ela continua sem comer”. Uma vez, perguntei à veterinária se ela me avisaria se fosse necessário administrar o que eu prefiro chamar de “a injeção da felicidade eterna”. A veterinária declarou-se, por razões éticas, contra a eutanásia. Imaginei a gata persa dourada talvez definhando por semanas, meses. Conversei com a outra sócia da clínica, que se mostrou mais receptiva.

Na tarde do dia seguinte, 31 de dezembro, estávamos todos assistindo no cinema, em Singapura, a um filme muito ruim, House of Gucci, quando entrou no meu celular o terceiro telefonema portador de más notícias. Saí da sala e fui para o corredor. Não havia ninguém por perto. Atendi. O ultrassom mais preciso que eu insistira fosse feito em outra clínica mostrara que vários órgãos estavam afetados. A veterinária, categórica, afirmou que Kiki estava sofrendo. Não havia esperança.

Enquanto eu analisava o dever exigido de mim, a ligação continuava ativa. A veterinária esperava uma decisão. Era a terceira vez que eu passava por esse momento. Em 2012, já tivéramos de sacrificar nossa cachorra Missy, e, em 2018, outro gato, o majestático James. Dispomos da faculdade de poupar sofrimento aos animais que amamos. Mas se esperamos demais, depois nos sentimos culpados por ter prolongado a sua dor. Se não esperamos, fica a dúvida se não nos precipitamos.

Dei a autorização. Opinei porém que alguns dias, até a minha volta a Kuala Lumpur, não fariam diferença alguma para a Kiki, mas toda para mim, pois permitiriam uma despedida. A veterinária soterrou minha autocomiseração. Repetiu que o animal sofria; seria cruel esperar um dia a mais sequer. Quanto à despedida, ofereceu-me uma videoconferência com Kiki. Colocou o celular frente a ela, que estava solta em cima da mesa de metal do consultório.

Falei longamente de amor e gratidão. Ela miava, se agitava e ronronava sobre a mesa de metal. Desliguei.

Minha mulher apareceu. Conversamos sobre como dar a notícia à nossa filha, que crescera com Kiki, escolhera o seu nome e, dentro da sala de projeção, sabia que algo estava acontecendo. Nesse momento, entrou a quarta chamada. Atendi, aceitando ter de ouvir que tudo terminara.

Não era isso o que nos esperava.

A veterinária ligava para avisar que, após três semanas sem se alimentar espontaneamente, Kiki, na hora em que iria receber a injeção, se jogara sobre um prato de comida destinado a outro gato. Comera.

Dos quatro telefonemas, esse foi o pior. Nosso nível de responsabilidade moral acabara de aumentar consideravelmente. Indaguei: “Ela pode ser salva, então?”. A veterinária, cautelosa, explicou: “Não creio. O que o ultrassom revelou não pode ser ignorado. Os órgãos estão comprometidos. E é também provável que a refeição de agora seja um caso isolado. Mesmo que ela volte a comer sozinha, seriam poucas semanas de vida a mais, talvez alguns meses, em condições difíceis e desconfortáveis para ela”. Assenti.

Pensei no jardim em Brasília e no jardim em Bruxelas, nos quais Kiki crescera e correra, livre, caçara pássaros e lagartixas e fora feliz. Recebi então a mensagem por WhatsApp: “Foi indolor, e ela agora descansa no paraíso dos gatos”.

Kiki, bebê espevitado. Kiki, bela, inteligente e afetuosa. Kiki, ainda viva enquanto eu viver.

Crônica originalmente publicada, em 8 de julho de 2022, no jornal de literatura Rascunho, ilustrada com o desenho de Carolina Vigna, a quem agradeço, assim como ao editor do Rascunho, Rogério Pereira, a autorização para reproduzi-lo nesta página.

Dedico esta crônica a dois amigos que conheceram a gata persa dourada,

Cora Rónai, solidária na perda,

Hudson Caldeira Brant, graças a quem alimentei Kiki na pandemia

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O peso do Universo

O peso do Universo

É possível que haja formas melhores de passar uma manhã de sábado do que lendo poemas de Jorge Luis Borges. Mas é possível também que não, como deduzi em junho, em Kuala Lumpur. Era um sábado ensolarado, mas a semana fora árdua e, à noite, eu teria um compromisso de trabalho, e outro no domingo à tarde. Passar as poucas horas de liberdade disponíveis no fim de semana em casa lendo a poesia de Borges pareceu a melhor opção.

Nossos livros do escritor argentino estão todos em Singapura. Isso é justo, porque foi minha mulher quem, quando namorávamos, fez com que eu me apegasse à força das suas obras. Um dos primeiros presentes que ela me deu foi uma edição de bolso, com o selo conjunto Alianza/Emecé, de El informe de Brodie. A capa era azul clara, com a imagem de um relevo de mármore branco representando o rosto de uma criança. A boca era coberta por duas bandagens, também brancas, cruzadas sobre o mármore.

Um dia, o volume desapareceu. Nunca soubemos o que aconteceu. Talvez tenha caído atrás de um móvel e, por isso, sido deixado para trás em alguma mudança. Talvez nós o tenhamos emprestado a alguém que nunca o devolveu. Tampouco está claro o ano em que desapareceu. Quando um de nós quis reler o livro, ou consultá-lo, não se pôde encontrá-lo. Descobriu-se que, em algum momento, ele deixara de existir nas nossas estantes.

O sumiço de El informe de Brodie tomou ares de mistério. Anos ou décadas depois, ainda é tema de conversa. O desaparecimento do livro condiz com o enigma da capa, com aquela criança — ou figura angelical — de mármore impedida de falar. O exemplar foi substituído por outro, com o selo apenas da Alianza e capa diferente. Não era porém o volume que indicara o início do namoro, e do qual se esperava que nos acompanhasse pelo resto da vida. Em seu opúsculo sobre Borges, com quem conviveu, Alberto Manguel comenta que uma biblioteca particular é como a autobiografia de seu proprietário. Se isso é verdade, há então uma lacuna na história do meu casamento.

A reabertura das fronteiras no Sudeste Asiático, depois de dois anos de pandemia, permitiu-me não somente voltar a ver minha mulher, mas também a estudar a biblioteca familiar em sua casa. Voltei assim a ler Borges, o que me ajudou inclusive a entender melhor a noção de Ásia, como explico na XV Carta da Malásia, Além da aurora e do Ganges. Retornando a Kuala Lumpur de alguns dias de férias em Singapura, trouxe comigo o terceiro dos quatro volumes das obras completas de Borges pela editora Emecé, que inclui os livros do escritor publicados entre 1975 e 1985. Os seus últimos, portanto, tendo ele morrido em 1986. É uma edição insatisfatória. Vem sem notas. Há também ao menos um erro de diagramação e outro de acentuação. Naquele sábado em Kuala Lumpur, absorto nos poemas de Borges, tive um pensamento herético, logo rejeitado por absurdo, o de encomendar os dois volumes de sua obra publicados pela Gallimard, na Bibliothèque de la Pléiade. Obviamente, não faria sentido deixar de ler Borges em espanhol para lê-lo em francês. Sonhei porém com o extenso aparato crítico que a edição deve conter, como todo volume da coleção da Pléiade.

Precisei contentar-me com o que estava ao meu alcance em Kuala Lumpur, aquele único volume da edição seca da Emecé. Afinal, como o próprio Borges nos diz, na sua palestra em Siete Noches (1980) sobre a poesia, deve-se ler a obra, e não obras sobre a obra. Explica ele: “Cuando mis estudiantes me pedían bibliografía, yo les decía: ‘no importa la bibliografía; al fin de todo, Shakespeare no supo nada de bibliografia shakespeariana […] ¿Por qué no estudian directamente los textos?”.

Minha repentina mas temporária cobiça pela edição da Pléiade, porém, se justificava. Eu não queria uma obra sobre a obra, mas comentários sobre alguns versos. Depois do almoço, já pensando que em poucas horas teria de me arrumar para trabalhar de noite, passei à leitura de algumas das palestras de Siete Noches, aquelas dedicadas ao budismo, à Divina Comédia e à poesia. Esta última pareceu-me mais árida do que as duas outras. Talvez Borges não estivesse em forma quando a proferiu. É um texto certamente menos recompensador para o leitor do que as seis conferências sobre poesia que deu em inglês na Universidade de Harvard de outubro de 1967 a abril de 1968. Naquele ano universitário, Borges proferiu as Charles Eliot Norton Lectures; elas foram publicadas em um livro lançado em 2000, This Craft of Verse.

Também Siete Noches é uma coleção de conferências, dadas em Buenos Aires em 1977. Apenas uma delas é sobre arte poética, embora outra, tratando da Divina Comédia, seja sobre um poema específico. É injusto, eu bem sei, comparar uma única palestra curta de 1977 com as seis de 1967-1968. O fato porém é que o texto em Siete Noches, onde o escritor parece distante, pouco entusiasmado, empolga menos do que This Craft of Verse. Nesse livro, ao terminar a quinta palestra ele anuncia o tema que abordará na seguinte, a última: “I am sorry to say that in the last lecture I shall be speaking of a lesser poet — a poet whose works I never read, but a poet whose works I have to write”, sendo esse poeta “menor” ele mesmo.

Acontece que nada em Borges é inútil, tudo dele merece ser lido, e mesmo a aula sobre poesia proferida em Buenos Aires em 1977 contém frases memoráveis, como esta, que parece extraída de uma obra de Oscar Wilde: “Hay personas que sienten escasamente la poesía; generalmente se dedican a enseñarla”.  Ou estas, que parecem ecoar Ralph Waldo Emerson: “La belleza está acechándonos e La belleza está en todas partes, quizá en cada momento de nuestra vida”. Essa última frase, aos meus ouvidos, possui o mesmo ritmo daquela com que Emerson inicia seu ensaio sobre a amizade: “We have a great deal more kindness than is ever spoken”.

Naquele sábado em Kuala Lumpur, toda hora eu voltava a um poema intitulado “Tríada”, publicado no último de seus livros, Los Conjurados, de 1985. Antes de citar o poema, convém mencionar o prólogo de Los Conjurados. Ali, Borges, chegando ao final da vida, cego, escreveu: “Al cabo de los años he observado que la belleza, como la felicidad, es frecuente. No pasa un día en que no estemos, un instante, en el paraíso. No hay poeta, por mediocre que sea, que no haya escrito el mejor verso de la literatura, pero también los más desdichados. La belleza no es privilegio de unos cuantos nombres ilustres. Sería muy raro que este libro, que abarca unas cuarenta composiciones, no atesorara una sola línea secreta, digna de acompañarte hasta el fin”.

Há muita coisa, em Los Conjurados, que eu espero possa me acompanhar “hasta el fin”. A começar por “Tríada”. Este é o poema:

El alivio que habrá sentido César en la mañana de Farsalia, al pensar: Hoy es la batalla.

El alivio que habrá sentido Carlos Primero al ver el alba en el cristal y pensar: Hoy es el día del patíbulo, del coraje y del hacha.

El alivio que tú y yo sentiremos en el instante que precede a la muerte, cuando la suerte nos desate de la triste costumbre de ser alguien y del peso del universo.

São versos que impressionam; “cuando la suerte nos desate de la triste costumbre de ser alguien” parece mesmo magnífico. Há um contraste entre as duas primeiras estrofes. As duas figuras históricas são mostradas em momentos discordantes. Júlio César está aliviado porque chegou a hora da definição de seu futuro. Dependendo do resultado da batalha, sua vida tomará um rumo ou outro. Terminará a incerteza. Mas ele tem — só pode ter tido — esperança de derrotar Pompeu. Para Carlos I, a única esperança possível é comportar-se com coragem diante da decapitação iminente. Ambos sentem alívio, mas suas perspectivas são diferentes.

As duas primeiras estrofes, de tom ligeiramente distinto, preparam-nos para a terceira: no cotidiano, estamos ainda no mesmo plano de César, com expectativas de algum êxito possível. Um dia, porém, estaremos, como Carlos I, diante do inelutável.

Júlio César, cujo assassinato é objeto de outro poema em Los Conjurados, é personagem recorrente em Borges. O mesmo acontece, embora em grau menor, com o rei Carlos I da Inglaterra. Mais especificamente, é a sua decapitação que é tema frequente na obra do autor argentino. A morte do rei mereceu inclusive um poema próprio, “Una mañana de 1649”, publicado na coleção El otro, el mismo, de 1964.

Em “Tríada”, vemos César prestes a enfrentar, no campo de batalha, seu ex-genro e rival, Pompeu. Ele não podia ter certeza de que ia ganhar a batalha. Escreve, nos seus Comentários sobre a Guerra Civil, que sua infantaria era de 22 mil soldados, enquanto a de Pompeu era de 45 mil. A cavalaria na tropa de Júlio César não passava de mil homens, e havia sete mil na de Pompeu.

O que Borges mostra é o alívio de César de ter chegado por fim o dia da decisão sobre a quem ficaria aberto o caminho para governar Roma sozinho. Sabemos que César ganhou a batalha de Farsália; Pompeu fugiu, refugiou-se no Egito e lá foi morto a mando dos ministros do faraó adolescente Ptolomeu XIII, irmão e provavelmente marido de Cleópatra VII. César chegou a perseguir Pompeu até o Egito e envolveu-se nas disputas fratricidas da família real.

Ao escolher a figura de César para a primeira estrofe, Borges recorre ao personagem histórico mais célebre possível, sobre o qual seus leitores terão já uma imagem. Essa imagem é a de um grande chefe militar, com vocação ditatorial, portanto poderoso, mas sobre quem há também uma aura romântica, pelo que conhecemos de sua relação com a rainha do Egito.

Os leitores de Borges sabem como César terminou: esfaqueado por senadores romanos, ele morreu, nos diz Plutarco, aos pés de uma estátua de Pompeu, “que ficou toda ensanguentada”. O fato de haver por perto uma estátua do rival derrotado por César na planície de Farsália não deve nos surpreender, já que a sala onde o assassinato foi cometido pertencia a um complexo arquitetônico mandado edificar por Pompeu. Assim, o leitor do poema de Borges sabe que César saiu vitorioso em Farsália, mas sabe também que sua vida terminaria de maneira dramática, o que aperfeiçoaria aliás a construção de seu mito.

Na verdade, entre a batalha de Farsália e os Idos de Março transcorreram apenas quatro anos. Como se trata de César, foram quatro anos de grande intensidade, em que houve mais vitórias militares, acréscimo de poder, e o romance com Cleópatra.  Em sua história da Roma antiga, Lucien Jerphagnon explica: “la portée symbolique de Pharsale, jour de deuil pour les uns, jour de gloire pour les autres, marquera longtemps la mémoire des siècles”. Dia de luto para uns, dia de glória para outros, que ficará por muitos séculos na memória coletiva.

Ao descrever a batalha em Comentários sobre a Guerra Civil, o próprio César inaugurou uma tradição literária. Seria impossível listar todos os autores que escreveram sobre Farsália, mas deve-se citar Lucano, Plutarco e Corneille, cuja peça La Mort de Pompée inicia-se com uma fala de Ptolomeu XIII, em seu palácio em Alexandria, em que faz referência à batalha. Menciono Corneille propositalmente, com um certo prazer, porque Alberto Manguel nos diz que Borges “não admirava” o dramaturgo francês, mas que, um dia, andando os dois juntos pela Calle Florida em Buenos Aires, o autor de El Aleph de repente parou e declamou um verso de Le Cid: “Cette obscure clarté qui tombe des étoiles”. A cena deve ter sido bonita de ver.

Ao longo da vida, li e reli Le Cid muitas vezes e assisti a diferentes produções da peça. No entanto, esse verso nunca chamou minha atenção. Visualizar Borges declamando-o repentinamente na Calle Florida ajuda a desvendar toda a sua beleza. Graças a ele, que nem admirava Corneille, e por intermédio do curto livro de Alberto Manguel, pela primeira vez palavras que eu deveria conhecer bem entraram em minha consciência. Quando abrimos uma obra, nunca sabemos o que lá encontraremos que mudará nossa percepção das coisas, que nos revelará algo que a rigor já conhecemos.

Sem dúvida, apesar de seu assassinato, César inspira um mito baseado na percepção popular de sua vida como excepcionalmente exitosa. Bem diferente é o caso de Carlos I. Rei incapaz, perdeu a guerra civil contra o Parlamento, foi aprisionado, julgado e executado em janeiro de 1649. A memória que deixou é de fracasso.

Carlos, contudo, se beneficia postumamente da reputação trágica de sua família, os Stuart, certamente a dinastia mais infeliz da história europeia. Era neto de outra célebre decapitada, Maria Stuart. Seu filho mais velho, Carlos II, conseguiria voltar ao trono, mas seria sucedido pelo irmão, Jaime II, outro incapaz, que o perderia. O filho e os netos de Jaime II, inclusive o famoso Bonnie Prince Charlie, viveriam no exílio, na França e na Itália, sempre em tentativas malogradas de recuperar o trono. Reis sem coroa, confirmariam a fama trágica e romântica da família.

Carlos I foi um importante colecionador e patrono das artes e essa faceta de sua personalidade de certa forma redime suas falhas como rei. De resto, ele usava a arte como ferramenta para tentar consolidar uma visão gloriosa de si mesmo. Como inúmeras vezes já notei, pintores, escritores, músicos ajudam a perenizar uma imagem glamorosa ou admirável de governantes frequentemente medíocres. Assim, quadros da fase inglesa de Antoon van Dyck eternizam uma imagem do rei decapitado e de sua mulher e seus filhos como belos, profundos, majestáticos.

É praxe mostrar em filmes ou séries passados em castelos no campo inglês pinturas que evocam a família ou a corte de Carlos I, pois esses são retratos facilmente identificáveis na percepção popular, a ilustrar uma visão idealizada da realeza e da nobreza. É o caso, por exemplo, da série Downton Abbey. Na sala de jantar do imaginário Conde de Grantham aparece cópia de uma tela bem real e celebrada pintada por Van Dyck, um retrato do rei a cavalo, sob um arco, acompanhado de seu mestre de equitação. A réplica, possivelmente da mão do próprio Van Dyck, pertence ao Conde de Carnarvon, dono da propriedade rural usada como cenário para a série. Ao ver essa tela pendurada na sala de jantar do “Conde de Grantham”, o público compreende desde logo a imponência da família cuja história vai acompanhar.

Em julho, em Londres, em Apsley House, casa e museu do Duque de Wellington, eu veria outra cópia do quadro de Van Dyck.

O talento do artista flamengo fez do futuro decapitado, para a posteridade, um dos símbolos de como deve apresentar-se um monarca. A presença do rei medíocre, como pintado por Van Dyck, ironicamente engrandece o ambiente. O historiador Jerry Brotton inicia seu livro The Sale of the King’s Goods: Charles I & His Art Collection, de 2006, justamente analisando a versão original desse retrato pintado por Van Dyck, conhecido como Carlos I com M. de St Antoine, sendo Saint-Antoine o instrutor de equitação do rei. Na primeira página, o historiador nota que, ao contrário da vida real, a obra mostra Carlos como “the resplendent monarch, surrounded by the trappings of power and authority, mastering his horse as imperiously as he managed his kingdom”.

A coleção de Carlos I foi desfeita após sua execução. Colocaram-se à venda, ao longo de quatro anos, cerca de 1.570 obras de arte. É essa a razão pela qual muitos quadros que pertenceram ao rei podem ser vistos hoje em museus na Europa e nos Estados Unidos. Com a restauração ao trono de Carlos II, a Coroa conseguiu porém recuperar várias das obras vendidas. O retrato original do rei a cavalo sob o arco fica exposto no castelo de Windsor.

O Carlos I que Borges mostra não é o rei fracassado, incompetente, ou mesmo trágico ou majestático, mas um jogador conformado com o resultado final do jogo. Em seu livro Kings & Connoisseurs, de 1995, em que estuda, entre outras, a coleção de Carlos I, Jonathan Brown nos diz que o rei fez face à morte “with remarkable serenity and dignity”. Na elite europeia do século XVII, saber morrer redimia todas as falhas ou os pecados de uma vida.

O Carlos I de Borges é um homem que, ao saber que sua vida terminará naquele mesmo dia, se vê, talvez como todo nós quando chegue essa hora, “liberado de la necesidad de la mentira”, segundo o poema “Una mañana de 1649”. Vê-se liberado do peso de ser alguém. Carlos I é apeado de um poder ilusório; César está prestes a chegar ao ápice do poder, que não será necessariamente mais real. Em “Tríada”, a atitude dos dois, no fundo, é a mesma: finalmente, chegou o momento decisivo.

Borges já havia, anteriormente, colocado Júlio César e Carlos I no mesmo poema, “Las causas”, presente na coleção Historia de la noche, de 1977. Os últimos versos dizem:

Se precisaron todas esas causas
para que nuestras manos se encontraran

Os versos anteriores enumeram as “causas” que, cumulativamente, geram o efeito mencionado no final do poema, o encontro de duas pessoas que se amam. As causas pretéritas que se acumulam podem ser de ordem filosófica (“Chuang-Tzu y la mariposa que lo sueña”) ou literária e mitológica (“El infinito lienzo de Penélope”) ou simplesmente da realidade do cotidiano (“Cada gota de agua en la clepsidra”). Mas podem pertencer também ao terreno da História. O que de fato aconteceu, no passado, afeta nossa vida. Duas dessas causas históricas que tornam possível, hoje, o amor entre as duas pessoas no poema são “César en la mañana de Farsalia” e “El rey ajusticiado por el hacha”.

Voltando a “Tríada”, pensei longamente, em torno do verso “Hoy es el día del patíbulo, del coraje y del hacha, sobre a ordem em que são colocados os três elementos. De início, julguei que a ordem correta deveria ser patíbulo, machado e coragem. O rei verá o patíbulo primeiro, depois o machado, e precisará de coragem para enfrentá-los. Depois, pensei em outra ordem possível: coragem, patíbulo e machado. O rei decide que será corajoso no momento de subir ao patíbulo para enfrentar o golpe do machado na nuca. Finalmente, acabei aceitando a ordem escolhida por Borges, que possui o ritmo certo. As três palavras vão se tornando menores enquanto lemos o verso. A palavra final, “hacha”, deixa no ar uma terrível vibração.

Ao chegarmos à última estrofe, em vez de sentirmos pessimismo por sermos lembrados de que um dia morreremos, ficamos consolados. Aprendemos que, como para Carlos I, a morte nos libertará “do triste hábito de ser alguém” e tirará de nós o peso do universo.

Este ensaio foi originalmente publicado em O Estado da Arte, em 2 de julho de 2022

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Além da aurora e do Ganges

Além da aurora e do Ganges

Em Tchekhov e os tigres contei que, em Singapura, em dezembro, fui de teleférico com minha mulher à ilha de Sentosa. Esse foi um dos passeios mais encantadores naquele nosso reencontro, após uma separação de quase um ano por causa do fechamento das fronteiras.

O tempo, desde então, acelerou-se. Enquanto eu estava ainda, na minha imaginação, preparando-me em dezembro para viajar a Singapura e passar o Natal em família, sem eu notar março chegou rapidamente. Um sábado, naquele mês, almocei na Malásia, no estado de Pahang, a uma hora de carro de Kuala Lumpur, em outro lugar chamado Sentosa.

Na verdade, o nome da aldeia é Janda Baik. Traduzido do malaio para o português, daria A Viúva Bondosa. Sentosa é a propriedade rural, perto da aldeia, onde almocei naquele sábado. Devo, na verdade, usar o plural, pois eu não estava só.

Assim como, em alto mar, algum movimento das ondas ou do vento faz prever uma tempestade, na Malásia, desde janeiro, pequenas mudanças haviam começado a surgir, deixando antever que a vida voltaria a um grau maior de normalidade. Após dois anos de restrições, confinamentos, dificuldades, toda evolução positiva, mesmo restrita, pode parecer um furacão ao modificar, embora para melhor, a vida cotidiana.

Ao regressar a Kuala Lumpur depois das festas de final de ano em Singapura, percebi sinais de tsunami. Antes de mais nada, minha mãe, Thereza Quintella, foi autorizada a vir me visitar, embora as fronteiras continuassem, em grande parte, fechadas. Sua chegada, no início de fevereiro, coincidiu com a retomada, pela população de Kuala Lumpur, de uma sociabilidade sem culpa.

Apesar de a Covid estar ainda bem presente — havia, no começo do ano, entre 20 mil e 30 mil novos casos todo dia — podia-se supor, graças ao alto grau de vacinação, que os perigos da pandemia pertenciam ao passado. Fevereiro, março transcorreram em ritmo intenso, com muito trabalho, reuniões presenciais normalizadas e uma vida social que poucas semanas antes seria considerada inconcebível.

Algum leitor talvez se lembre do livro The Incredible Fruits of Perak, que recebi de presente, em novembro de 2020, do sultão de Perak. A Sentosa de Pahang pertence aos pais do autor daquela obra, o fotógrafo Omar Ariff Kamarul Ariffin. Foi com toda a sua família que minha mãe e eu almoçamos no sábado 26 de março.

A calma era absoluta; “sentosa” significa textualmente paz, tranquilidade. Os pais de Omar Ariff, nossos anfitriões, cuidam da propriedade há cinquenta anos; sua mãe, Frances, australiana de nascimento, é a responsável pelo paisagismo. Ela cultiva no sítio apenas plantas nativas. Há no terreno quatro ou cinco casas de madeira em estilo malaio tradicional, uma delas tendo sido a do bisavô de Omar, onde seu pai, tan sri Kamarul Ariffin, foi criado. “Tan sri” é um título malásio elevado, não hereditário, altamente valorizado, que o rei da Malásia concede em recompensa a méritos pessoais.

A atmosfera de felicidade na chácara de Sentosa era acentuada pelo fato de que Frances e Kamarul Ariffin, naquele dia, pisavam na sua propriedade pela primeira vez após uma ausência de dois anos, ditada pela pandemia. Estarmos todos ali, naquele sábado 26 de março, era de alguma maneira uma forma de celebrar a vitória sobre a Covid-19.

Era maravilhoso e inesperado que minha mãe, que dois meses depois faria 84 anos e que sobrevivera em 2021 a uma infecção do vírus, estivesse ao meu lado em Sentosa, no estado de Pahang, na Península Malaia, admirando os nenúfares, as palmeiras e as diversas coleções da família de Kamarul Ariffin, a 16 mil quilômetros de seu apartamento no Rio de Janeiro, onde passara boa parte dos últimos dois anos confinada.

Em uma das casas de Sentosa está aos poucos sendo organizado um pequeno museu de arte islâmica, com peças colecionadas por tan sri Kamarul Ariffin. Particularmente vistoso é um baú usado, no passado, por viajantes que faziam a peregrinação a Meca. O baú é exposto em uma sala onde as paredes são de madeira rendada.

Outra casa, pintada de branco e verde, foi trazida do estado de Kelantan — o mais setentrional do país, na costa leste, fazendo fronteira com a Tailândia — e reconstruída em Sentosa. Nela são conservadas outras coleções de Kamarul Ariffin, por exemplo numerosas esculturas representando mães e filhos.

O passeio a pé pela propriedade e a visita às coleções nos ocuparam mais de uma hora, talvez duas. Caminhamos de volta à casa principal, na varanda da qual almoçaríamos. Uma surpresa adicional nos esperava. A refeição seria preparada diante de nós. Para o leitor, e para mim, talvez isso não signifique tanto, mas para quem gosta de cozinhar e cozinha bem, como é o caso da minha mãe, presenciar como os ingredientes são combinados trouxe uma perspectiva única àquele momento de confraternização.

O almoço era um delicioso laksa. Prato típico da culinária malásia e de outros países do sudeste da Ásia, o laksa é, em sua base, um caldo de massa — em geral de arroz — perfumado com ervas. Os demais ingredientes variam de acordo com a região, mas leite de coco parece ser quase obrigatório. O laksa que estávamos prestes a provar incluía anchovas, camarão fresco, camarão seco, gengibre, bastão do imperador, cúrcuma, galanga, garcinia cambogia, noz da Índia, menta vietnamita e garcinia atroviridis.

Eu já tinha experimentado esse prato outras vezes. Em setembro de 2020, de férias em uma praia na costa leste, no estado de Terengganu — experiência que contei em A Viagem a Balbec — meu café da manhã costumava ser um laksam, variação local com peixe. Minha mãe, do Rio de Janeiro, manifestara na ocasião, por whatsapp, surpresa de que se pudesse tomar no desjejum o que era essencialmente uma sopa de peixe e macarrão. Eu respondera lembrando a ela que, quando morávamos em Londres, considerávamos normal comer de manhã ovos e toicinho fritos, com salsicha, tomate e feijão. Da mesma forma, em Terengganu parecera-me natural tomar um laksam ao acordar, antes de nadar no Mar do Sul da China.

Em Janda Baik, enquanto almoçávamos, eu ouvia Frances explicar que há em Sentosa uma proliferação de macacos, resgatados de regiões em processo de urbanização. De fato, tanto no passeio a pé como durante o almoço, os únicos sons que ouvíamos eram os dos pássaros e das conversas das famílias de macacos.

Omar nos contava suas experiências como fotógrafo da natureza. Essa não é, descobri ali, uma atividade isenta de riscos, já que uma vez ele e sua filha, então ainda pequena, escaparam por pouco de serem esmagados por um elefante agressivo. Houve também um encontro inamistoso com um urso-malaio. Dias depois, ele me daria de presente um livro seu de fotografias sobre a flora e a fauna da Malásia. As fotos mostram uma enorme variedade de espécies, insetos extraordinários e répteis nativos, um deles uma cobra-real em posição de ataque. A Malásia é, assim como o Brasil, um dos países mais megadiversos do mundo.

O laksa de Sentosa foi certamente o melhor que já provei. Cada colherada criava uma impressão nova ao paladar. Pensei no comentário de um amigo que, no passado, morara na China e me dissera: “Na Ásia, cada garfada de comida é uma explosão de sabores”. Eu teria preferido que a cumbuca nunca terminasse. Estar ali, naquela varanda, com aquela família tão amistosa, saboreando aquele prato enquanto admirava a vegetação tão parecida com a da Mata Atlântica era sem dúvida um privilégio. Teria sido uma perfeita ocasião para suspender o tempo, se essa possibilidade existisse.

Prestando atenção na comida, na conversa dos meus anfitriões, na minha mãe, no verde diante dos meus olhos, percebi que, de certa maneira, eu vivera antes aquela cena. Tudo ali lembrava-me as fotos de Tolstoi, já ancião, sentado à mesa com sua família, ao ar livre, debaixo das árvores em sua propriedade rural, Iasnaia Poliana. Os grandes artistas possuem a capacidade, como muitas vezes eu já notei, de aparecer na nossa imaginação nas circunstâncias menos prováveis. A varanda de uma propriedade rural, na paisagem tropical de Janda Baik, no interior da Malásia, pode evocar as mesmas sensações de quando vemos imagens do autor russo almoçando ou tomando chá, rodeado de mulher, filhos e netos, no campo na província de Tula, frente a uma vegetação bem diferente.

O almoço terminou. Era hora de partir. As horas são fugitivas, mas sua lembrança nem sempre. Aquelas passadas em Sentosa, eu já sabia, ficariam na minha mente.

Minha mãe e eu teríamos, à noite, outro compromisso. O jantar, naquele sábado, complementaria as experiências proporcionadas em Sentosa pela natureza do sudeste asiático, a coleção de arte islâmica, a arquitetura tradicional malaia e o laksa. De volta a Kuala Lumpur, iríamos à casa de um amigo, John Ang, colecionador de indumentária e tecidos antigos malaios. Sentados à sua mesa com outros poucos convidados, provaríamos uma refeição indiana, ouviríamos a música tocada por Kumar Kathigesu, na cítara, e Kamrul Hussin, no rebab, enquanto dançarinos de Odissi apresentariam, de forma coreografada, exemplares das 5 mil peças da coleção histórica do dono da casa. Alguns dos trajes poderiam ter sido usados pelos sultões, heróis e princesas de Os Anais Malaios ou, alternativamente, por Simbad, Aladim, Sherazade e Harun al-Rashid. Haveria uma pequena apresentação de mak yong, arte dramática malaia antiga, cantada.

Seriam vários dias até eu assimilar plenamente a vivência sensorial, cultural, ambiental, gastronômica daquele sábado. Como frequentemente acontece, um livro me ajudou. Relendo os textos de Jorge Luis Borges sobre As Mil e Uma Noites, caí na seguinte frase sua: “Un acontecimiento capital de la historia de las naciones occidentales es el descubrimiento del Oriente”. E, na página seguinte: “Para hablar de un lugar lejano, Juvenal dice: ultra Auroram et Gangem, ‘más allá de la aurora y del Ganges´. En essas cuatro palabras está el Oriente para nosotros”.

Sem dúvida, naquele sábado de março, na Malásia, bem mais além do Ganges e na direção do nascer do sol, o Oriente revelou-se a mim um pouco mais.

Esta XV Carta da Malásia foi primeiro publicada, em 23 de abril, no Estado da Arte

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Burle Marx da minha janela

Burle Marx da minha janela

Agradeço ao semanário econômico malásio The Edge a matéria sobre mim na edição corrente de sua revista trimestral Haven.

Nas fotos, uso batik, camisa formal malásia, equivalente a terno e gravata.

Clique no link acima para ler o texto

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Álbum de fotos – Dia das Mães em Kuala Lumpur

Álbum de fotos – Dia das Mães em Kuala Lumpur

No Dia das Mães, nada mais justo do que eu celebrar a minha, Thereza Quintella, que atravessou dois oceanos, onze fusos horários, e mais de um continente para me visitar em Kuala Lumpur, entre fevereiro e abril. Depois de dois anos de pandemia, em que não pudemos ver um ao outro, pareceu algo milagroso que ela, prestes a completar 84 anos, tivesse chegado à Malásia.

Essa viagem merece registro, o que faço por meio das fotos abaixo. Formam um resumo da sua passagem de nove semanas pelo Sudeste Asiático, com o mínimo de explicações. É um registro incompleto, naturalmente. Na XV Carta da Malásia, “Além da aurora e do Ganges”, publicada há duas semanas, falei de um dia específico, 26 de março, em que fomos a uma propriedade rural paradisíaca no interior do país e depois jantamos, de volta à capital, com um amigo colecionador de vestimentas malaias tradicionais.

A visita da minha mãe coincidiu com a retomada de uma vida social normal, pós-Covid, em Kuala Lumpur. Isso me permitiu apresentar a ela muitas das pessoas com quem me dou na Malásia. Duas semanas depois da sua partida, em um almoço de trabalho onde todos os convidados a conheceram, ouvi de um deles, uma amiga malásia com quem minha mãe esteve várias vezes, em Kuala Lumpur e em Penang: “Your mother was a hit“. Isso talvez esteja refletido em uma das fotos, exemplo das matérias de imprensa que cobriram a cerimônia que fiz de condecoração de um cidadão malásio com a Ordem de Rio Branco.

A sua temporada na Malásia correspondeu também à reabertura gradual das fronteiras no Sudeste Asiático, após dois anos de fechamento. Por isso, tirei uns poucos dias de férias, em sua última semana, e fomos a Singapura visitar minha mulher.

Em dois meses, minha mãe provou várias cozinhas asiáticas. Sua primeira saída depois da quarentena foi para ir a um clube de que sou sócio, para uma refeição indiana sobre folha de bananeira. A segunda foi a um restaurante tailandês, a convite de um casal de grandes amigos que ela já conhecia do Brasil, e que logo partiriam da Malásia. Houve a seguir refeições cantonesas, malaias, japonesas, indianas, srilanquesas e peranakanesas — se este último gentílico não existe ainda em português, deveria. Refere-se aos malásios descendentes de chineses; eles criaram uma culinária própria.

Esta semana, minha mãe ofereceu, no apartamento no Rio, um almoço a amigos seus. O cardápio era totalmente do Sudeste da Ásia, com pratos que ela descobriu na Malásia e em Singapura. Maior demonstração de que gostou de vir e de estar conosco não poderia haver.

Nove semanas passam rápido. Minha mãe chegou em plena comemoração do Ano Novo Chinês, e partiu logo antes da Páscoa. Quase quatro semanas depois, voltar do trabalho à noite e não vê-la em casa ainda me causa surpresa. Durante pouco mais de dois meses, todo dia foi Dia das Mães para mim.

Se você quer saber mais sobre nasi lemak, o prato mais famoso da culinária malásia, leia As Cartas em Istana Negara

Se você quer saber mais sobre as fotos de Robert Zhao sobre árvores em Singapura e a relação das pessoas com elas, leia Tchekhov e os tigres

Se você quer saber mais sobre Penang, tema da primeira Carta da Malásia, leia A Ásia em Penang

Se você quer saber mais sobre o Museu de Artes Islâmicas de Kuala Lumpur, leia Os Bois de Mirza Babur

Se você quer saber mais sobre Odissi, leia Sibelius e as Ilusões

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Tchekhov e os tigres

Tchekhov e os tigres

O grito de “fogo!” foi ouvido a bordo às oito e vinte da noite, a 80 quilômetros da costa. Dez minutos depois, com o navio já em chamas, os passageiros e a tripulação, 41 pessoas ao todo, estavam em dois botes no mar. Ao abandonar o barco, o comandante levou uma bússola. A luz do próprio incêndio, que ficou queimando até a meia-noite, também ajudou os remadores a colocar os botes no rumo certo. Na descrição de um viajante ilustre, no final do incêndio o salitre que o navio transportava iluminou o horizonte inteiro: “one of the most splendid and brilliant flames that ever was seen, illuminating the horizon in every direction, to an extent of not less than fifty miles”.        

Ao amanhecer, viram a costa. Todos se salvaram. Não houve mortes humanas. Foram de outro tipo as perdas registradas.

O navio se chamava Fame. Ele queimou na noite do dia em que zarpara de Bencoolen — hoje Bengkulu — em Sumatra, a caminho da Inglaterra, em 2 de fevereiro de 1824. A bordo iam Sir Thomas Stamford Raffles, ex-governador de Bencoolen, autor da frase acima, e sua mulher. Eles regressavam de vez para a Inglaterra. No mês seguinte, pelo Tratado Anglo-Holandês de março de 1824, Bencoolen seria entregue aos Países Baixos.

Raffles é famoso por ser considerado o iniciador, em 1819, da história moderna de Singapura. Dependendo do ponto de vista, pode-se considerá-lo como o visionário que deu início à transformação de Singapura em um dos centros mais importantes e prósperos do comércio internacional; ou como o imperialista que, por meio de artimanhas, ao perceber a importância estratégica da ilha asiática, situada a meio caminho entre a Índia e a China, plantou ali a Union Jack para lucro de seu empregador, a Companhia das Índias Orientais.

Se todas as pessoas a bordo do Fame se salvaram, o mesmo não pode ser dito da importante coleção de documentos levada por Raffles, conforme ele explica em relatos em que descreveu o incidente. Como os outros passageiros humanos, ele e a mulher desceram aos botes com a roupa do corpo; Lady Raffles, inclusive, sem sapatos ou meias, por já estar deitada quando o alarme foi dado. Raffles conta que perdeu no naufrágio todas as notas e coleções que reunira como administrador colonial: “all my notes and observations, with memoirs and collections, sufficient for a full and ample history, not only of Sumatra but of Borneo and almost every other Island of note in these seas; my intended account of the establishment of Singapore; the history of my own administration; eastern grammars, dictionaries and vocabularies”. Foram mais de dois mil os desenhos de história natural desaparecidos. A coleção que ia a bordo ocupava pelo menos 122 caixotes.

Se todos os humanos sobreviveram, outros seres vivos tiveram menos sorte. Raffles levava com ele, para a Inglaterra, “uma anta, uma nova espécie de tigre, esplêndidos faisões &c, domesticados para a viagem; éramos em suma, uma perfeita arca de Noé”. Que outros animais do Arquipélago Malaio, incluídos sob aquele “&c”, terão morrido queimados ou afogados?

Os relatos de Raffles sobre o naufrágio podem ser lidos no livro celebrando sua memória que Lady Raffles, viúva desde 1826, publicou em 1830. Jorge Luis Borges poderia ter criado um conto sobre o incêndio do Fame, descrevendo algum manuscrito que ele inventaria e incluiria entre os efetivamente perdidos. Borges ficaria fascinado com a presença, a bordo, de um tigre, animal que é uma imagem recorrente em tantos de seus contos e poemas. Em versos recolhidos em 1960 em El hacedor, ele contrasta a figura do tigre como “serie de tropos literarios” ao animal verdadeiro, “el tigre fatal”,

que, bajo el sol o la diversa luna,
va cumpliendo en Sumatra o en Bengala
su rutina de amor, de ocio y de muerte.

Existe no Museu Nacional de Singapura uma gravura que ilustra o incêndio do Fame. Ela me faz pensar no quanto a coleção destruída naquela noite de 2 de fevereiro poderia modificar nosso conhecimento sobre a história do Arquipélago Malaio. Os relatos de Raffles também incomodam por causa da morte dos animais, vítimas da vaidade de quem quis exibi-los na Inglaterra, a milhares de quilômetros de distância, como exemplares exóticos de uma remota província do império.

Em dezembro de 2021, quando revisitei o Museu Nacional de Singapura e revi a gravura sobre o incêndio do Fame, não era porém Jorge Luis Borges que ocupava meus pensamentos, mas Anton Tchekhov.

Tudo começara na segunda-feira 8 de novembro. Naquele dia, Tchekhov entrou no supermercado em Kuala Lumpur onde eu fazia compras depois do expediente. Na seção de frutas, eu examinava peras coreanas. Elas são grandes, redondas, douradas.

Imerso na escolha das peras, ouvi que eu recebera uma mensagem no celular. Era de um amigo que me enviava uma notícia importante: Malásia e Singapura acabavam de anunciar que viajantes de um país para o outro passariam a ser poupados de quarentena, desde que cumprissem diversas exigências burocráticas e sanitárias. 

O amigo que me enviara a mensagem sabia que a notícia me deixaria feliz. Minha mulher, em Singapura, e eu, em Kuala Lumpur, nunca podíamos nos ver, por causa do fechamento das fronteiras na Ásia do Sudeste desde o início da pandemia. Esta é uma das regiões do planeta em que as medidas mais restritivas foram adotadas de forma mais prolongada. Com o anúncio feito com Singapura de um corredor bilateral para viajantes vacinados, a Malásia, pela primeira vez desde março de 2020, abria parcialmente as suas fronteiras com algum país.  

A visita ao supermercado acelerou-se. Precisei apenas comprar comida para Kiki, a gata persa dourada. Meu objetivo agora era chegar em casa o mais rapidamente possível e telefonar para minha mulher.

Desde que, na seção de frutas, eu lera a mensagem no celular, Tchekhov não me saía da cabeça. Estudante em Londres, nunca perdi nenhuma produção de suas peças, mas são já muitos anos desde que assisti a alguma delas no palco. Em 2008, em Nova York, vi uma produção muito elogiada pela crítica de A Gaivota, com Kristin Scott Thomas no papel de Arkadina.

Nos últimos anos, Tchekhov tem sido para mim sobretudo um contista e, particularmente, o autor de “A Dama do Cachorrinho”, publicado em dezembro de 1899. O célebre conto começou a ser escrito em Ialta a partir de agosto ou setembro do mesmo ano, enquanto, do outro lado do mundo, em outro universo, em uma realidade paralela, Borges nascia em Buenos Aires, em 24 de agosto.

É depois de ler “A Dama do Cachorrinho” que Maksim Gorki escreve a Tchekhov, em uma carta frequentemente citada, que “com seus pequenos escritos, você alcança uma grande coisa, ao despertar nas pessoas a repugnância pela vida sonolenta, semi-morta”.

Um homem em vilegiatura em Ialta sem a família, Gurov, conhece uma mulher bem mais jovem, Ana, que também passa férias, sem o marido, na Crimeia. Ela chama a atenção por nunca ter sido vista lá anteriormente e por estar acompanhada de seu cachorro, um lulu da Pomerânia. Quanto a Gurov, nada há de admirável em seu caráter, fato de que ele mesmo tem consciência.

Gurov e Ana começam um caso. Um dia, a vilegiatura termina; ele tem de voltar a Moscou e ela à cidade provinciana onde mora. Ao contrário do que esperava e do que acontecera com suas aventuras anteriores, Gurov não esquece Ana. Então, tudo aquilo que sempre preenchera o seu cotidiano começa a tornar seus dias desinteressantes e desperdiçados. Gurov decide ir à cidade de Ana e sua esperança de reencontrá-la se concretiza. Começam a se ver furtivamente, a cada dois ou três meses — algumas traduções dizem “duas ou três vezes por mês” — em Moscou, para onde Ana viaja dando razões mentirosas ao marido. No último parágrafo, pensam se há alguma forma de poderem ficar juntos, sonham com isso e reconhecem que as dificuldades, as complicações em atingir esse objetivo estão apenas começando.     

O amor de Gurov por Ana torna-o mais simpático ao leitor. De quarentão libidinoso, cínico, medíocre, ele é elevado, literariamente falando, à posição romântica de vítima de um amor impossível com uma mulher igualmente casada, morando em outra cidade.

Tenho em casa traduções do conto em francês e em inglês. Na Internet, encontrei uma tradução para o português, sem referência ao nome do tradutor. Trata-se, acredito, da versão de Boris Schnaiderman para a Editora34. É a que citarei aqui, ao mencionar o parágrafo de “A Dama do Cachorrinho” que aponta uma grande verdade psicológica, razão pela qual penso frequentemente no conto.

Gurov passa a levar duas vidas — aquela passada no trabalho, com a família, com os amigos, e os momentos vividos com Ana, ou longe dela mas pensando nela. Ana e, portanto, “tudo o que era para ele importante, interessante, indispensável, aquilo em que ele era sincero e não enganava a si mesmo, o que constituía o cerne de sua vida, ocorria às ocultas dos demais”. Todo o resto, trabalho, clube, relações sociais e familiares era mentira e, no entanto, transcorria à luz do dia. Gurov conclui que “em cada homem decorre, sob o manto do mistério, como sob o manto da noite, a sua vida autêntica e mais interessante”.

Não encontro, na obra de Borges ou em suas entrevistas, referência a Tchekhov. Não sei, por isso, se leu o conto russo. Se o fez, terá apreciado a moral tirada por Gurov sobre a discrepância entre a vida mostrada publicamente e a realidade interna, emocional. “El Zahir”, um dos contos em El Aleph, de 1949, parece elevar ao paroxismo, cinquenta anos depois de Tchekhov, a percepção de Gurov de que nossa mente pode estar continuamente envolvida com algo diferente da vida que nos ocupa em público. Zahir, diz Borges, são os seres ou as coisas “que tienen la terrible virtud de ser inolvidables”. Entre os exemplos, cita um “tigre mágico” na Índia, “que fue la perdición de cuantos lo vieron, aun de muy lejos, pues todos continuaron pensando en él, hasta el fin de sus días”. 

Em Kuala Lumpur, enquanto a vida e o trabalho acontecem, e a eles me dedico com empenho, lá atrás existe um pensamento constante, mas sempre repudiado, pois prefiro não torná-lo consciente demais.  

Trata-se da percepção de que houve, por causa da Covid-19, uma dissolução da minha vida familiar. Minha mulher trabalha em Singapura, nossa filha em Bruxelas e minha irmã em Lisboa; minha mãe mora no Rio. Durante dois anos, nunca as vi, já que viajar ou receber visitas, para quem está na Ásia do Sudeste, tornou-se nesse período uma grande complicação. O convívio familiar reduziu-se à Kiki.  Não poucas vezes, nos dois anos de pandemia, perguntei-lhe, aliás com gratidão: “Como foi acontecer de só nós dois estarmos juntos?”  

A situação vivida por Gurov e Ana — não o adultério, mas o afastamento forçado entre os dois — era a do próprio autor. Ao escrever “A Dama do Cachorrinho”, Tchekhov buscava, no clima mais ameno de Ialta, controlar a tuberculose. No ano anterior, conhecera em Moscou uma atriz, Olga Knipper, que interpretaria personagens em suas peças: Arkadina em A Gaivota, Helena em Tio Vânia, Masha em As Três Irmãs e Liubov em O Jardim das Cerejeiras. Masha e Liubov foram papéis escritos especificamente para Olga Knipper. Foi em um ensaio de A Gaivota no Teatro de Arte de Moscou que eles se conheceram, no outono de 1898. Viriam a se casar em 1901, três anos antes de Tchekhov morrer.

No outono e no inverno, Tchekhov e Olga Knipper ficavam afastados, ele em Ialta, ela em Moscou, atuando na temporada do Teatro de Arte. Compensavam a separação escrevendo quase que diariamente um ao outro. 

Essa correspondência foi editada em 1996 pelo inglês Jean Benedetti, em um volume intitulado Dear Writer, Dear Actress. Ali vemos, em uma carta de 3 de setembro de 1899, justamente quando “A Dama do Cachorrinho” estava sendo escrito ou ao menos sendo concebido no cérebro de Tchekhov, a importância que a atriz já adquirira para ele. Descrevendo seu cotidiano, o autor diz de repente: “Mal tenho saído para o jardim. Fico dentro de casa, pensando em você […] não suporto a ideia de que não poderei vê-la antes da primavera, isso me leva à loucura”.

Em sua biografia de Tchekhov, lançada originalmente em 1997 e reeditada em 2021, o também inglês Donald Rayfield avalia que o caso entre o escritor e a atriz se iniciara no primeiro semestre de 1899. De fato, entre julho e agosto de 1899, logo antes de “A Dama do Cachorrinho” começar a ser escrito, Olga Knipper visitou o escritor em Ialta por duas semanas. Algumas das cenas do conto passadas na Crimeia podem ter sido fruto de experiência pessoal. Em tom que soa como uma repreensão, o biógrafo comenta que, por causa da visita da atriz, “for a fortnight Anton had written nothing”.

No dia 1º de dezembro de 2021, ostentando, além do passaporte, oito documentos, formulários e aplicativos obrigatórios, eu desembarcava em Singapura, onde não pisava desde março de 2020. Minha mulher não pudera vir a Kuala Lumpur desde janeiro de 2021. Antes disso, já havíamos ficado nove meses sem poder nos ver. Por causa da pandemia, nós nos encontramos nesses dois anos menos frequentemente do que Gurov e Ana ou do que Anton Tchekhov e Olga Knipper.

Os dias foram ensolarados. Revisitei museus. Descobri recantos até então desconhecidos da cidade. Passeei pelos parques. Fiz um passeio de barco pelo rio Singapura. Atravessei o mar em teleférico para ir ao balneário de Sentosa. Conheci amigos de minha mulher. Almocei com colegas. Um dos momentos mais encantadores foi um jantar a dois, em um bairro animado, à beira do rio, em um restaurante belga.

No Museu Nacional, gostei especialmente de uma exposição intitulada Singapore, Very Old Tree. A mostra exibe fotos do artista singapurense Robert Zhao que retratam 17 árvores locais e, ao lado delas, pessoas para as quais elas são importantes, e cujas existências talvez sejam, em parte, definidas por essas árvores.

Singapura é uma cidade notavelmente verde. Versos de um poeta singapurense, Gilbert Koh, lembram ser essa abundância de árvores o resultado deliberado de um projeto pessoal de planejamento urbano de Lee Kuan Yew, o fundador do país e seu primeiro-ministro até 1990:  

Let there be trees, the man said, and lo and behold,
there were trees — rain trees, angsanas, flames of the forest,
casuarinas, traveller´s palms and more — springing up against
the steel and concrete of the expanding city.  

Cada foto de Robert Zhao é acompanhada de explicações sobre a localização daquela árvore específica, sua importância para a pessoa mostrada ao seu lado.

A foto mais simétrica e despojada é a de uma casuarina conhecida como “The Wedding Tree”, onde recém-casados gostam de ser retratados. Sentado ao pé da bela árvore solitária, vemos o fotógrafo especializado em casamentos que já registrou ali mais de cem retratos de jovens recém-casados.

Uma história, mais do que outras, me deteve. É a que trata da foto de uma árvore imponente em frente ao prédio da Escola de Artes, diante do qual minha mulher e eu havíamos passado a pé, poucos minutos antes, a caminho do museu. Trata-se de uma angsana, ou jacarandá da Birmânia, ou pau-brasil de Andaman. Seu nome científico é Pterocarpus indicus. O texto do artista explica que a fachada da Escola de Artes foi planejada de forma a preservar essa árvore. Cita uma ex-aluna de teatro lembrando que uma vez, ao se deitar à sua sombra antes de uma representação, conseguira acalmar o seu medo do palco.

Fiquei incomodado de não ter notado a árvore, ao passar frente ao prédio. Mais tarde, em casa, descobri que ela na verdade já não existe. Foi abatida em 2018, porque seu estado de conservação precário — tinha 40 anos segundo a imprensa, 60 segundo Robert Zhao — colocava em risco a segurança dos alunos. A retirada da angsana, tratada como celebridade, foi extensamente divulgada na época. Houve homenagens nos dias anteriores. Alunos e professores despediram-se da grande árvore. Passando frente à Escola de Artes uns dias depois, notei que, no lugar onde existira a angsana, há agora uma escultura verde, no degrau, representando a sua semente. Não se pode deixar de respeitar uma sociedade que homenageia com uma escultura o exemplar específico, desaparecido, de uma árvore.

Assim como o convívio de Gurov e Ana na Crimeia precisou terminar, minhas férias singapurenses atingiam a reta final. Veio o momento do regresso a Kuala Lumpur. Sabíamos, porém, que logo nos veríamos novamente, por causa das festas de final de ano. O relativo abrandamento das restrições às viagens entre os dois países parecia permitir algum otimismo.

“Começaria uma vida nova e bela”, esperam Gurov e Ana no final do conto de Tchekhov. Nesse mesmo espírito, embarquei para Kuala Lumpur, desejoso aliás de rever Kiki, que por causa da minha ausência começara uma greve de fome. O voo já ia decolar quando lembrei ser aquele mesmo dia o aniversário da morte brutal, na adolescência, do meu irmão. Nunca, nos anos anteriores, eu passara tão incólume por essa data.  

Não podia imaginar no avião que, por causa da nova variante do vírus, as regras para viagens mudariam novamente. E que, menos de três semanas depois, em 31 de dezembro, eu teria de autorizar o veterinário a dar a Kiki a injeção fatal.  

As dificuldades e as complicações apenas se iniciavam. Começava o Ano do Tigre.

Esta XIV Carta da Malásia foi primeiro publicada, em 22 de janeiro, na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte

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Os Bois de Mirza Babur

Os Bois de Mirza Babur

Duas vezes, em 2021, assisti na Malásia ao filme de 1977 dirigido por Satyajit Ray, Os Jogadores de Xadrez. O enredo é sobre como a Companhia Britânica das Índias Orientais decidiu, em 1856, arrogar-se a posse do reino de Awadh, no Norte da Índia, sobre o qual há décadas já exercia um protetorado e do qual recebia vantagens financeiras e soldados.

O roteiro, do próprio Satyajit Ray, é baseado em um conto de Munshi Premchand, escritor de que só tomei conhecimento graças ao filme. Enquanto os ingleses complotam, e o reino se desfaz, os aristocratas locais, simbolizados por dois amigos que passam o tempo jogando xadrez, reagem com indolência e total indiferença aos acontecimentos políticos ao seu redor.

Os Jogadores de Xadrez conta com atuações brilhantes, inclusive a de Richard Attenborough como o comandante militar que decide pôr fim à independência nominal do reino, e a de Amjad Khan como o soberano que logo será deposto, Wajid Ali Shah. Poeta e compositor, esse rei fazia da sua corte um centro das artes. Um monarca mais preocupado em escrever poesia e compor canções parece, por alguma razão, tirado de algum conto de Jorge Luis Borges.

Em uma das primeiras cenas do filme, o personagem de Richard Attenborough, que existiu realmente e se chamava James Outram, conversa com um subordinado. Funcionário monotemático e sem imaginação, Outram manifesta desprezo pelo rei, sugerindo que as atividades artísticas impedem que ele tenha tempo de se ocupar de suas concubinas — pouco depois ouviremos que elas são quatrocentas — e menos ainda dos assuntos de estado. Sequioso por razões para colocar Awadh sob domínio britânico, diz considerar Wajid Ali Shah “a bad king”. Já o militar menos graduado manifesta admiração pelos talentos artísticos do rei: “he´s really quite gifted, sir”.

O primeiro-ministro de Wajid Ali Shah vem comunicar a ele que os ingleses decidiram destroná-lo. Precisa esperar, porém, pois o rei, em uma das cenas mais bonitas do filme, assiste embevecido, alheio a tudo mais, a uma dança. Quando a bailarina termina, quando a música cessa, Wajid Ali Shah nota o ar aflito de seu primeiro-ministro e diz a ele: “O que é isso? Controle-se. Só o amor e a poesia podem molhar de lágrimas os olhos de um homem”. Novamente penso em Borges, sem conseguir definir por quê.

Depois de ouvir a notícia do projeto britânico, o rei, caminhando de forma soturna pela sala do trono, frente a seus ministros, monologa e faz pensar em outro soberano deposto, Ricardo II, como caracterizado na peça de Shakespeare.

Em minha primeira visita ao Museu de Artes Islâmicas de Kuala Lumpur, em janeiro de 2020, uma semana depois de ter chegado à Malásia, notei em uma das vitrines os retratos a óleo, pintados em torno a 1830 por um artista indiano, Muhammad Azam Musavvir, de dois dos predecessores — seu tio e seu primo-irmão — de Wajid Ali Shah. Um dos quadros, representando Nasiruddin Haidar, morto em 1837 aos 33 anos, chamou minha atenção pela melancolia e a falta de energia refletidas no rosto do monarca. O retrato parece uma alegoria da situação dos príncipes destronados ou submetidos a vassalagem.

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Seria um engano eu supor que nunca antes o reino de Awadh chegara a meu conhecimento. Em casa, é extensa a biblioteca — ela está hoje em Singapura — sobre a Índia e sua história. Eu terei lido sobre Awadh sem registrar esse nome, vendo nele apenas mais uma etapa na gradual e absurda conquista do subcontinente indiano pela East India Company. A arte possui o poder de tornar concreto e palpável mesmo aquilo que já conhecemos, e o filme de Satyajit Ray e a expressão de Nasiruddin Haidar no retrato do museu em Kuala Lumpur transformaram Awadh em um conceito sólido em minha mente.

O Museu de Artes Islâmicas em Kuala Lumpur fica ao lado de um vasto parque, eternamente verde e luxuriante, que reúne o Jardim Botânico, o Parque de Borboletas, o Jardim de Orquídeas e Hibiscos e um gigantesco aviário — o Parque dos Pássaros.

Apesar dos sucessivos confinamentos a que a pandemia me condenou na Malásia, estive já seis ou sete vezes no museu. Fico em geral sozinho pelas galerias, pois desde março de 2020 não há turistas estrangeiros no país.

Vários dos objetos da coleção são extremamente raros. Podemos descobrir muito sobre eles na Internet, mais do que no próprio museu, onde a explicação sobre cada peça é reduzida ao mínimo. Uma das mais importantes é uma bandeja redonda de cerâmica de Iznik, datada de cerca de 1480, quando ainda reinava Maomé II, o conquistador de Constantinopla. Sobreviveram apenas cinco bandejas desse estilo, conhecido como Baba Nakkash.

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A bandeja foi comprada, em 2018, em um leilão na Sotheby´s, durante o qual despertou forte interesse. Bateu o recorde de preço alcançado até então por um objeto de arte islâmica. Podemos mesmo conhecer os detalhes de como transcorreu o leilão, que um representante da Sotheby´s declarou ter sido “fiercely competitive”. Os lances duraram vinte minutos e foram feitos por nove colecionadores. A bandeja ilustra a capa do guia geral do museu.

A coleção contém móveis, tecidos, armas, objetos do dia a dia, exemplares do Alcorão de todas as eras e regiões onde há comunidades muçulmanas, porcelanas chinesas com inscrições em árabe e miniaturas persas e do Império Mogol. Há numerosos exemplares da adaga tradicional do povo malaio, o kris, de lâmina ondulada, hoje em dia usado apenas em cerimônias, particularmente por noivos no dia do casamento.

Em uma vitrine são expostos Alcorões tão pequenos, que provavelmente serviam mais como amuleto do que para a leitura. No entanto, alguns possuem belíssimas iluminuras, como este, de dimensões mínimas (5,4 cm por 5,5 cm), copiado na Turquia no século XVI por ‘Ali al-Tabbakh al-Shirazi.

Em minha visita mais recente, admirei o Divã de Hafiz — compilação dos seus poemas — copiado, em 1613, na Pérsia, por Muhammad Qasim Shirazi. Ficarei sem saber que poema é ilustrado pela iluminura na página em que o manuscrito é exposto aberto no museu. A imagem mostra um jardim, e nele parecem reinar a harmonia e a sociabilidade.

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Em 30 de setembro, almocei com Syed Mohamad Albukhary, o diretor do Museu de Artes Islâmicas. Queria conversar com ele sobre a coleção. A refeição foi no restaurante do museu. Ele estava acompanhado de Rekha Verma, diretora das coleções, que é quem, gentilmente, me enviou posteriormente as fotos para este ensaio.

O almoço foi delicioso: húmus com pão árabe, salada de pepino e tomate cortados em cubos, nasi goreng com peixinhos fritos (talvez anchovas) e, de sobremesa, um bread and butter pudding ao molho de leite.

O diretor deu-me de presente um exemplar do livro editado pelo British Museum, em 2018, sobre a reforma, efetuada em colaboração com a Fundação Albukhary, da Malásia, de uma ala do museu londrino, para que este pudesse expor melhor a sua coleção de arte islâmica. O espaço se chama “The Albukhary Foundation Gallery of the Islamic World”. O primeiro texto no livro, assinado pelo príncipe Charles, nos diz que “in our short time here, we are duty bound to keep the past in our sights and to pass it on as best we can”. É uma boa definição de uma das funções de um museu.

Enquanto comíamos o nasi goreng, explicou-me o diretor do museu de Kuala Lumpur haver forte competição entre colecionadores de arte islâmica. Sem dar os detalhes que eu depois leria na Internet, comentou como fora acirrado o leilão para obter a bandeja Baba Nakkash. Citou, como exemplos de boas coleções, a do museu em Doha — que visitei em 2016 — a do museu no Kuaite, a do Metropolitan Museum, a do Museu Aga Khan em Toronto e a do Gulbenkian em Lisboa. Mencionei a seção de arte islâmica do Louvre, que foi para mim, em 2014, uma boa surpresa; ele então manifestou a opinião, que registrei em O Sonho do Louvre, sobre como visitar aquele museu pode ser uma experiência labiríntica.

Perguntei a Syed Mohamad Albukhary que peças prefere na coleção que dirige. Primeiro, ele indicou as miniaturas da arte mogol; depois, falou também nos quadros orientalistas, dos quais há mais de cem no subsolo do museu, que não são exibidos por falta de espaço, e com os quais, em 2023, para comemorar os 25 anos do museu, Syed Mohamad Albukhary tenciona montar uma exposição.

Dezenas dos quadros orientalistas foram mostrados, entre outubro de 2019 e janeiro de 2020, em uma exposição no British Museum, em colaboração com o museu de Kuala Lumpur, intitulada Inspired by the East: how the Islamic world influenced Western art. Foi um desencontro eu passar três dias em Londres uma semana antes da abertura da mostra; esta teria vindo depois para o museu malásio, se não tivesse surgido a pandemia.

A capa do catálogo da exposição no British Museum é um quadro de cerca de 1580 por um seguidor de Veronese retratando Bajazeto I. Esse sultão otomano, bisavô de Maomé II, o Conquistador, foi derrotado em batalha por Tamerlão, antepassado dos imperadores mogóis. Na peça Tamburlaine, que Christopher Marlowe escreveu em 1587 e que inspiraria quatro séculos mais tarde um bom poema de Borges, Bajazeto I nos aparece mantido dentro de uma jaula, prisioneiro de Tamerlão, obrigado a comer os restos de comida de seu inimigo. Indômito, ofende, em toda oportunidade, o seu algoz e se suicida — como ele próprio anuncia, em um verso de sua última fala: “Since other means are all forbidden me” — da única maneira acessível a quem está preso em uma jaula. Marlowe indica, logo após a última fala de Bajazeto: “He brains himself against the cage”.

Uma semana depois do nasi goreng, Rekha Verma mostrou-me, em um depósito no subsolo do museu, os quadros orientalistas, pendurados dentro de cofres. Vi assim de perto, sozinho, a surpreendente coleção. Não pudera esperar uma semana em Londres, em 2019, para conhecê-los no British Museum, mas agora eles estavam todos ali, e apenas meu olhar os examinava. Bajazeto I, tal como idealizado pelo contemporâneo veneziano de Veronese, ficou próximo do meu nariz, mostrando, em vez da vaidade esperada de um sultão, ou do desespero próprio de um prisioneiro de Tamerlão, uma certa afabilidade um tanto desconfiada.

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De todas as obras expostas no museu, a que mais me intriga é talvez uma aquarela intitulada A carruagem puxada por bois do príncipe Mirza Babur. Esse príncipe era um dos muitos filhos do penúltimo imperador mogol, Akbar II. Morreu em 1835, aos 38 anos. Viveu durante os estertores do outrora poderoso império de seus antepassados, fundado no século XVI por Babur, o descendente dos temíveis Tamerlão e Gengis Khan. Em 1857, os ingleses poriam fim oficialmente à dinastia, depondo o último imperador, Badur II, outro soberano poeta, irmão de Mirza Babur. A rainha Vitória se tornaria Imperatriz da Índia em 1876.

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Entre 1815 e 1820, o artista escocês James Baillie Fraser e seu irmão William Fraser, funcionário da Companhia, encomendaram na Índia cerca de 90 aquarelas de artistas indianos, ilustrando a vida em Delhi e seus arredores. O conjunto, descoberto em 1979 em papéis da família, na Escócia, formava o “Álbum Fraser”.

Depois de 1979, o álbum se desfez; as aquarelas foram vendidas e dispersadas. Dezesseis delas estiveram, de dezembro de 2019 a setembro de 2020, entre as cem obras de arte de artistas indianos dos séculos XVIII e XIX, muitos deles anônimos, mostradas pela Wallace Collection em uma exposição, Forgotten Masters: Indian Painting for the East India Company, com curadoria do historiador William Dalrymple.

Este escocês, autor de livros magníficos sobre a história da Índia, ganhou notoriedade mundial no final de 2019, quando sua obra The Anarchy foi incluída por Barack Obama em sua lista de melhores livros do ano. O livro explica como, ao longo da segunda metade do século XVIII e nos primeiros anos do século XIX, a Companhia das Índias Orientais, empresa de capital privado sediada em Londres, pouco a pouco se tornou a potência predominante no subcontinente indiano, no que Dalrymple descreve como “the supreme act of corporate violence in world history”.

A aquarela do “Álbum Fraser” no Museu de Artes Islâmicas de Kuala Lumpur, O carro de boi do príncipe Mirza Babur, teve como dono, depois da dispersão das 90 obras em 1979, o cineasta Ismail Merchant, que aparentemente a comprou em um leilão em 1980. Merchant, até sua morte em 2005, produziu quantidade de filmes elegantes, dirigidos por seu companheiro, James Ivory. Saber que ele admirou essa aquarela torna-a mais preciosa, concede-lhe valor adicional. Durante anos, assistir a uma nova “produção de Merchant Ivory”, extraída de algum romance de Henry James, de E.M Forster ou de algum autor contemporâneo, com roteiro de Ruth Prawer Jhabvala, era uma perspectiva tão instigante quanto ver o novo Woody Allen, embora fossem universos cinematográficos diferentes.

Sobre Mirza Babur, Dalrymple nos diz em outro de seus livros, The Last Mughal, de 2006, que conta o fim da dinastia em 1857, que ele era anglófilo inclusive na forma de se vestir. O historiador narra o destino infeliz de sua viúva — ou uma delas — e de um de seus filhos, após o destronamento de Badur II. Ainda em 1917, velhíssimo, com uma existência obscura e humilde, tendo tido de ganhar a vida primeiro como faquir e depois como trabalhador braçal, o filho de Mirza Babur não deixava esquecerem que era descendente do terrível Tamerlão.

Uma das inscrições em persa sobre a aquarela nos informa o nome do cocheiro, Zana, e sua casta e seu grupo étnico. É esplêndido que possamos herdar tanta informação sobre o condutor dos bois do filho do imperador.

A ilustre história do desenho representando a carruagem do príncipe Mirza Babur me comove menos, porém, do que os dois bois que a puxam. Na fazenda de café do meu avô, na Zona da Mata em Minas Gerais, costumavam também ser brancos os animais que puxavam o carro de boi no qual muitas vezes andei. Embora a fazenda de Sant´Anna pertencesse ao meu avô materno, meu pai, criança, a frequentara, por razões que um dia eu talvez dê a conhecer. Obviamente, os carros de boi da infância dele e da minha não tinham o aparato da carruagem de Mirza Babur.

Meu pai me contou que, ao menos uma vez, chegando a Leopoldina de trem, vindo do Rio de Janeiro, um carro de boi da fazenda de Sant´Anna viera buscá-lo na estação. Terá sido longa a viagem, no carro puxado pelos bois, da estação até a fazenda, pois de automóvel, hoje, ainda seriam uns bons vinte minutos.

Para o Narrador de Marcel Proust, “Combray et ses environs, tout cela qui prend forme et solidité”, tudo emerge, “ville et jardins”, para fora da sua taça de chá. Para mim, os dois soberbos bois brancos pintados há duzentos anos por um artista indiano, como registro dos aspectos luxuosos ou pitorescos do Império Mogol, fazem entrar, dentro da sala de um museu em Kuala Lumpur, toda a vastidão de Minas Gerais.

Este ensaio, a XIII Carta da Malásia, foi originalmente publicado na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte, em 6 de novembro de 2021. Posteriormente, em janeiro de 2022, tradução reduzida foi publicada, em inglês, na versão impressa da revista malásia Options.

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