Clarice: na Malásia, a hora da estrela

Clarice: na Malásia, a hora da estrela

Na primeira Carta da Malásia, descrevi um fim de semana passado em Penang. Esse é um estado malásio que compreende uma ilha de mesmo nome e uma faixa de território em terra firme. Na ilha situa-se a capital do estado, George Town.

Penang distingue-se por várias características, no contexto malásio. Dos onze estados na Malásia peninsular, é o único, com Malaca, e como os dois em Bornéu, Sabá e Sarawak, a não ser um sultanato. O chefe de estado local é um governador. Penang é o único estado onde a maioria da população é de origem chinesa e onde o primeiro-ministro, atualmente, não é malaio e muçulmano. George Town está listada pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade, mas Penang não parou no tempo, e é um dos centros econômicos e tecnológicos da Malásia, inclusive na indústria de semicondutores.

Com o apoio do governo estadual, George Town, há treze anos, sedia um respeitado festival literário. Na edição de 2023, Clarice Lispector foi uma das estrelas, por sugestão minha à sua diretora, Pauline Fan. Muitas vezes, ao longo do ano, conversei com Pauline sobre Clarice, de quem ela é admiradora. Que formato poderia ter a homenagem? O mais óbvio parecia ser uma mesa-redonda sobre sua obra.

Acontece que o Instituto Moreira Salles organizara, de 2021 a 2022, em São Paulo e no Rio de Janeiro, uma grande exposição, Constelação Clarice, coordenada pela escritora Veronica Stigger e o poeta Eucanaã Ferraz. Contactado pela Embaixada do Brasil em Kuala Lumpur, o Instituto aceitou ceder facsímiles de parte de seu material. O suficiente para, em Penang, montar uma sala evocando Clarice. Sobre móveis e paredes, cartas da autora, bilhetes seus, cadernos de anotações, páginas de manuscritos de seus livros, fotografias nos revelavam algo dela, mas não o suficiente para eliminar o fascínio, o mistério que sua personalidade e sua literatura provocam.

Fui a George Town para a abertura do Festival no dia 24 de novembro. Lá esteve presente o primeiro-ministro do Estado, Chow Kon Yeow. Não sei dizer se, alguma vez, algum governador do Rio de Janeiro abriu a FLIP em Paraty.

No dia seguinte, 25 de novembro, inaugurei a exposição sobre a vida e a obra de Clarice Lispector. O convidado de honra, representando o governo estadual, foi o secretário de Turismo e Economia Criativa. Em seu discurso, Wong Hon Wai elogiou o Rio de Janeiro, onde já esteve, focalizando particularmente o Jardim Botânico, que poderia servir, avaliou, de exemplo para o de Penang. Ele foi modesto ao dizer isso, porque o Jardim Botânico de Penang, que já visitei, é excelente.

Peguei o microfone. Tinha bem presente o que queria dizer. Mencionei a importância de Clarice Lispector na literatura não somente brasileira, mas universal. Citei o fato de sua obra já ter sido traduzida para mais de 30 idiomas e publicada em 40 países. Recomendei alguns de seus livros. Especulei que, se na minha adolescência A Paixão Segundo G.H. era sua obra mais célebre, hoje, possivelmente, esse papel cabe a Água Viva e A Hora da Estrela. Li, em inglês, trecho de sua primeira carta a Olga Borelli, que há muitos anos me intriga: “Sou uma pessoa insegura, indecisa, sem rumo na vida, sem leme para me guiar: na verdade não sei o que fazer comigo […] Não tenho qualidades, só tenho fragilidades. Mas às vezes tenho esperança”.

Indiquei a importância do Instituto Moreira Salles na vida cultural brasileira, e seu papel na preservação de arquivos literários, inclusive o de Clarice Lispector, e fotográficos. Informei que a exposição havia sido financiada pela unidade do Itamaraty responsável por difusão cultural e educacional do Brasil no exterior, o Instituto Guimarães Rosa, cujo nome expliquei.

A direção do Festival evitara colocar qualquer outro evento naquele horário, o que garantiu o máximo possível de público na cerimônia. Alguns tiveram de ficar do lado de fora da sala onde fora montada a exposição, por falta de espaço. O curador instalara o material como se estivéssemos em um ambiente pessoal, talvez a sala da autora. Clarice Lispector, reservada como era, provavelmente teria ficado surpresa em receber simultaneamente tantos convidados no seu apartamento.

Todos os autores mais famosos participantes do Festival estiveram na abertura da exposição, inclusive o inglês Geoff Dyer, o francês Édouard Louis e o malásio Tash Aw. Ver Geoff Dyer e Tash Aw permitiu-me acrescentar, em minha fala, que nunca, quando começamos uma leitura, sabemos se aquele livro específico ou aquele autor terão importância para nós. Minha curiosidade pela Ásia do Sudeste, até certo ponto, ficou aguçada quando, há muitos anos, li Yoga for People who Can´t Be Bothered to Do It, evocação por Geoff Dyer de algumas viagens suas, inclusive por alguns países do Sudeste Asiático, aonde até então eu nunca havia viajado. The Harmony Silk Factory, de Tash Aw, tendo sido o primeiro romance malásio que li, confinado em casa em Kuala Lumpur durante a pandemia de Covid-19, logo ao chegar à Malásia em 2020, era a única forma de evasão, de eu viajar pelo país, no caso ao estado de Perak, onde se passa a ação. Provavelmente por causa do livro, Perak é uma região de particular afeição para mim na Malásia; graças ao romance, lá pude viajar por meio da imaginação, antes de poder conhecer qualquer lugar no país que não fosse minha casa, meu local de trabalho e o supermercado.

Da mesma forma, por razões e rumos tortuosos que já procurei explicar anteriormente, e mencionei na abertura da exposição em Penang, minha primeira visita a Malaca me levou a reler a obra de Clarice Lispector, quando seus livros tomaram para mim nova dimensão.

A maior livraria da Malásia, a Kinokuniya de Kuala Lumpur, montara balcão no espaço principal do Festival, onde os livros de Clarice traduzidos ao inglês, em diversas edições, foram, durante os quatro dias, expostos de maneira proeminente. Iam sendo vendidos rapidamente, e substituídos por novos exemplares.

Os livros de Clarice bem visíveis na livraria temporária montada no Festival de George Town.

As falas, no Festival, de Geoff Dyer, Tash Aw e Édouard Louis sobre suas vidas e suas obras foram valiosas. Lotaram o auditório. A plateia achou graça na forma como Édouard Louis e Tash Aw, hoje melhores amigos, discorreram, na mesma mesa-redonda, sobre como se conheceram, em um festival literário na Escandinávia. Por uma dessas coincidências que parecem ficção irrealista, Tash Aw fora pouco antes morar na aldeia tacanha, no Norte da França, onde nascera o escritor francês, e da qual este escapara na juventude. O escritor malásio, então menos célebre do que é hoje, apresentou-se no festival escandinavo a Édouard Louis, mencionando a aldeia onde morava. À plateia em Penang, o francês explicou: “Fiquei com medo. Pensei que ele fosse um desses malucos que ficam acossando escritores em festivais literários”.

Gostei particularmente do depoimento de Geoff Dyer, em sua fala, sobre John Berger. Admirador dos seus livros, Geoff Dyer teve, chegado o momento de conhecer o escritor mais velho, medo de se decepcionar. O contrário aconteceu, porque he was the most wonderful human being. Dyer considerava Berger uma figura paterna. As pessoas, vendo desenvolver-se a amizade entre eles, avisaram que, um dia, ele “passaria a criticar Berger, cometeria patricídio”. Qualquer estudante de psicologia sabe que esse é um fenômeno comum, em interações intergeracionais. Mata-se figurativamente não somente o pai biológico, mas também o amigo mais velho, na crença de que isso é indispensável para o crescimento individual. No caso da sua amizade com Berger, apontou Geoff Dyer em George Town, isso não aconteceu, o que a meu ver diz muito sobre as qualidades de ambos.

Geoff Dyer, falando sobre John Berger em Penang

Alguns dias depois, já de volta a Kuala Lumpur, eu convidaria o escritor inglês para jantar. Cito suas obras com frequência nos meus ensaios. Se alguém tivesse me dito, há cerca de vinte anos, quando comecei a ler Geoff Dyer em Washington, em Quito, em Brasília, que um dia ele jantaria na minha casa, e que essa casa seria em Kuala Lumpur, eu teria considerado a pessoa desnorteada.

Voltemos a Penang, voltemos a Clarice Lispector. Membros do público disseram-me, após a cerimônia de abertura, que a exposição dera-lhes vontade de ler os seus livros. Uma artista gráfica, que visitara a exposição dias antes, enquanto era montada, já desenhara marcadores de livros com um retrato famoso de Clarice e trecho de carta sua.

É muito raro, na experiência profissional de um diplomata, ele ou ela ver de forma imediata o resultado de seu esforço. A estrela chegara à Malásia, enriquecera o festival literário de George Town e, por seu intermédio, era a literatura brasileira como um todo que brilhava.

O dia seguinte era o último domingo de novembro. Voltei para Kuala Lumpur feliz. No caminho, pensando em Clarice, satisfeito, realizado, eu não tinha ideia de que a vida, da sua maneira característica, naquele momento mesmo já me preparava, sorrateiramente, algumas armadilhas.

Clarice em Penang

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