Os Rastignac de Bornéu

Os Rastignac de Bornéu

Visitando um pequeno museu em Kuching, cidade à beira do Rio Sarawak, na Malásia, deparei-me com o sobrenome Rastignac. Para o leitor apaixonado por Balzac, foi como ser atingido por um raio. Eu me via confrontado, em plena ilha de Bornéu, com a existência bem real de uma família com o mesmo sobrenome de um dos personagens mais famosos do escritor, Eugène de Rastignac, símbolo do jovem ingênuo transformado em ambicioso calculista. Ler aos quatorze ou quinze anos Le Père Goriot (1835), obra cruel até para os padrões de Balzac, gerou em mim uma impressão permanente. 

Despertada minha curiosidade sobre como o nome – tão francês – de Rastignac fora aparecer na parede de um museu em Bornéu, acabei mergulhado em uma história muito inglesa – a de Charles e Margaret Brooke. Passei quase um ano lendo e pesquisando com estupefação biografias, memórias, volumes de história e genealogias em busca de explicação sobre como uma família de classe média do interior da Inglaterra chegara a se transformar em dinastia de rajás à frente de um vasto entreposto do império britânico na Ásia. 

Margaret nos conta ela própria a sua vida. Casada com seu parente Charles Brooke, o segundo “Rajá Branco” de Sarawak, perdeu em seis dias os três filhos, mortos de cólera no navio, em viagem de Kuching à Inglaterra via Singapura. Os corpos foram atirados ao Mar Vermelho. Uma quarta criança havia nascido morta, uns meses antes. Era 1873 e ela tinha 24 anos. Estava casada desde 1869 apenas. Décadas depois, Margaret Brooke se tornaria amiga da escritora inglesa Marie Belloc Lowndes. Em suas memórias, The Merry Wives of Westminster (1946), esta conta que apenas uma vez ouviu Margaret referir-se à morte dos filhos, e mesmo assim de forma vaga, “de uma maneira tal que, se eu já não tivesse sabido a respeito, não teria entendido a alusão”. Três filhos adicionais viriam a nascer, chegariam à idade adulta, e o mais velho, Vyner, reinaria em Sarawak depois do pai. 

Charles Brooke era o administrador colonial de Sarawak, que governava como chefe de Estado hereditário. Sucedeu ao tio, James Brooke, o primeiro Rajá Branco, e legou por sua vez o território ao filho. Metodicamente, em detrimento do sultão de Brunei, foi acrescentando terras ao seu domínio, que acabou ficando tão extenso quanto a própria Inglaterra. Margaret Brooke era a Rani de Sarawak, a mulher do Rajá. O casamento não era feliz. Em seu livro de memórias My Life in Sarawak (1913) — que Joseph Conrad elogiaria em uma carta à autora escrita em 1920 — e na autobiografia Good Morning and Good Night (1934), Margaret descreve o marido como homem silencioso e metódico, totalmente voltado para a administração do território que comandava em Bornéu, e quite incapable of showing sympathy or feeling about anything that did not touch Sarawak.

Charles Brooke em meados da década de 1860

Good Morning and Good Night revela-nos a falta de opções à disposição da autora quando solteira, apesar do dinheiro da mãe. Nascera em Paris, crescera até os dez anos no castelo da avó na França, em Épinay, e desde a morte do pai de uma queda de cavalo, que a deixara órfã aos quatorze anos, levava uma vida errante pela Europa, com a mãe, Elizabeth Sarah de Windt, conhecida como Lily, os dois irmãos e umas amigas antigas de Lily, parasitical spinsters, como Margaret as classifica: From Paris to Florence – from Florence to Rome – Switzerland – the Tyrol, on we would move, always living in hotels. 

Charles Brooke era primo-irmão de sua mãe. Um dia, aos 42 anos, solteiro, ele aparece na casa de campo da família, na Inglaterra, em busca de uma noiva rica cuja fortuna pudesse saldar as dívidas de Sarawak. Ele próprio não tinha conhecidos na Europa, pois desde os 13 anos estivera na Marinha britânica, e a partir dos 23 vivera em Sarawak, a serviço do tio, de quem herdara o poder em 1868. 

Não é impossível que Margaret tenha tido alguma noção romântica da figura de Charles. Antes de conhecê-lo, ela lera já o livro, publicado em 1866, em que ele relata sua vida em Sarawak, onde morara dez anos em fortes à beira de algum rio, na floresta, controlando etnias inimigas entre si e jogando uns contra os outros os caçadores de cabeças. O aparecimento do primo mais velho, soberano em uma terra distante, sobrinho de uma figura mítica como fora James Brooke, deve ter sido acompanhado de uma aura de mistério e aventura.

Não faltam certos trechos de algum valor literário no livro de Charles, como este, inserido no meio da descrição de um ataque que ele organiza e lidera à terra dos Kayans, que estavam depredando bens dos Dayaks e prejudicando o comércio: the only sounds to be heard were those of nature alone, – the murmuring of the jungle insects, the low rumbling of the distant rapids, and the stream pouring over the pebbles close to us. Charles sentia-se inteiramente adaptado à vida em Sarawak e pouco à vontade no país onde nascera. Na floresta, costumava andar descalço como os Dayaks. Tendo de viajar à Inglaterra, após dez anos ininterruptos na Malásia, ele comenta: little did I care for the prospect of European pleasures, so much thought of and sought after as an Elysium by many living so far away. They are invariably found disappointing when England is reached.

Nas memórias e biografias dos diferentes atores envolvidos, há frequentes referências ao fato de que Charles pode ter primeiro pensado em se casar com a mãe de Margaret, Lily de Windt, então com 43 anos. A escolha acaba recaindo sobre a filha, que, aos 19 anos, lhe permitiria o mesmo nível de acesso aos recursos financeiros da família. A oferta de casamento e sua aceitação não refletiam sentimentos amorosos. No hotel em Innsbruck, aonde acompanhara os primos, Charles atira sobre as teclas do piano, no qual a moça supostamente teria estado tocando um noturno de Chopin, um poema sobre casamento – mas não sobre amor. I do not imagine the poor dear man could ever have been madly in love with me, admite ela; on my side, although I respected him and admired his achievements, I was never in love with him.

Desde o início, o marido foi parcimonioso com dinheiro, inclusive o da mulher. Com o tempo, o casamento torna-se uma ficção. Margaret vive na Europa, sob o pretexto de cuidar da educação dos filhos. A partir de 1880, os períodos que ela passa na Malásia são cada vez mais raros e curtos. Em 1887, esteve em Sarawak por poucos meses. A viagem seguinte a Bornéu aconteceria somente em 1896. Seria a última. Quando My Life in Sarawak foi publicado, fazia dezessete anos que a Rani não via sua terra de adoção. Ela morreria em 1936, sem ter voltado a Bornéu nos últimos quarenta anos de vida. Durante alguns anos, em Londres, morou com os filhos ainda pequenos em Cornwall Gardens.  Minha mãe, minha irmã e eu moraríamos na mesma pequena rua cem anos depois. Entre os dois períodos, lá viveu também Joaquim Nabuco.

A história contada em My Life in Sarawak é a de uma jovem vitoriana que descobre aos vinte anos, com fascinação, a realidade tropical de Bornéu. Ela se adapta às suas novas circunstâncias, faz amizades locais. Viaja no iate do marido e em pequenas embarcações fluviais, acompanhando o Rajá Branco em seus roteiros de inspeção. Enfrenta sem o marido, sozinha em um forte longe da capital, querreiros Kayans, que teria conseguido apaziguar. Passa a usar trajes típicos de Sarawak. Aprende a língua malaia. Descobre que o canto do bulbul é mais bonito que o do rouxinol.

A primeira frase resume o espírito de todo o volume: When I remember Sarawak, its remoteness, the dreamy loveliness of its landscape, the childlike confidence its people have in their rulers, I long to take the first ship back to it, never to leave it again. Por um lado, a declaração de amor pela terra que não verá mais chega a ser tocante. Por outro, a referência à “confiança infantil que seu povo deposita nos governantes” irrita e nos faz lembrar estarmos diante de um casal inglês, representante do espírito colonialista britânico, transformado em rei e rainha nos trópicos asiáticos. Desde o início, em 1841, quando James Brooke passara a governar Sarawak, esta fora a ambiguidade da curiosa dinastia: reinavam na Ásia do Sudeste, mas não abandonavam a nacionalidade inglesa. Eram simultaneamente senhores e súditos.

O segundo livro, Good Morning and Good Night, é mais pessoal e revelador – e ainda assim de maneira relativa, como veremos. No texto de 1934, Margaret atribui o insucesso matrimonial aos ciúmes que o marido teria da sua popularidade em Sarawak: he wished to remain alone and supreme in the love and affection of his subjects. Ao mesmo tempo, depreende-se que, em Bornéu, ela estava sempre adoentada, talvez com depressão, talvez com malária. Há uma contradição entre o amor professado por Sarawak e suas constantes doenças. O médico britânico em Kuching entende que ela sofre de histeria, clássico “diagnóstico” do século XIX para deslegitimizar mulheres. Ela própria nos diz: Hysteria! – that blessed refuge of somewhat unskilful doctors who find themselves unable to diagnose a disease!

Nos dois livros, Kuching, onde viviam 30 mil habitantes quando Margaret lá aportou pela primeira vez, é simultaneamente apresentada como uma espécie de paraíso, mas também com outras cores, como aldeia insalubre infestada de malária, mosquitos e ratos. No rio Sarawak, nadavam crocodilos. Se é verdade que a Rani teria sido acordada uma noite, como relata, por migração de “milhares” de ratos que atravessavam seu quarto, não sei. Mas posso testemunhar que na ilha de Bornéu a questão dos ratos não pode ser minimizada. O maior que vi em minha vida cruzou frente aos meus pés, em fevereiro de 2023, no mercado noturno de Kota Kinabalu, capital de Sabá, o outro estado malásio da ilha. Eu me preparava para acomodar-me em uma cadeira de plástico e jantar um peixe que vira ser preparado. A aparição do rato, grande como um gato e com sinais de doença na pelagem, me fez desistir.

Margaret de Windt passou proporcionalmente pouco tempo em Sarawak. Era porém seu título de Rani que lhe conferia prestígio na Europa. Frequentava a corte inglesa, junto à qual conseguiu diversas vantagens cerimoniais para Sarawak e o marido – para desgosto dele, que não apreciava suas interferências. Em 1901, obteve do novo rei, Eduardo VII, uma definição protocolar do status de Charles e, portanto, dela própria. O Rajá nascido na paróquia provinciana de Berrow, no interior de Somerset, ficava formalmente reconhecido como soberano de um Estado independente sob proteção britânica; os dois recebiam o título de altezas e eram inscritos, na ordem de precedência, logo após os príncipes reinantes indianos.

A facilidade com que Margaret, e, antes dela, o marido, construíam para si, por meio de suas memórias, uma imagem de exotismo e heroísmo tampouco atrapalhava sua popularidade. Próxima do príncipe Alberto I de Mônaco e sua mulher, a “soberana” de Sarawak frequentava artistas e escritores na França e na Inglaterra. Good Morning and Good Night narra episódios de sua amizade com Henry James, iniciada na década de 1890 e que durou até a morte do romancista. No primeiro encontro entre os dois, em Londres, na casa de uma conhecida comum, o escritor é descrito como um homem condescendente. A Rani afirma já haver então lido Roderick Hudson, Daisy Miller e The Princess Casamassima e elogia essas obras. Henry James levanta a mão ao ar e afirma: No, my dear lady, no, I can do better – I can do better than that. Margaret retruca: Oh, how can you say so? Surely they are quite perfect? A mão do escritor desce. Henry James olha para Margaret Brooke com sorriso de comiseração e responde: Well, as you will! But why are you here? You come from a land where the bulbul sings.

O livro menciona Pierre Loti – que dedicou um conto a Margaret – Maupassant, Rudyard Kipling, Swinburne, o pintor Edward Burne-Jones, a atriz Sarah Bernhardt. Parece haver consenso de que a Rani de Sarawak chegou a viver um romance, na década de 1890, com o jornalista americano William Morton Fullerton, quinze anos mais jovem, que não é mencionado em seus livros. Fullerton é hoje lembrado sobretudo pelo relacionamento amoroso com a escritora Edith Wharton e a amizade intensa que despertou em Henry James. Foi um desses personagens, como de uma certa forma a própria Margaret Brooke, que existem em toda parte, atraídos por escritores mais talentosos do que eles próprios. Ao fazerem parte da biografia alheia, preservam alguma fama após a morte.

Oscar Wilde, que lhe dedicou o primeiro conto de seu livro A House of Pomegranates (1891) – “To Margaret, Lady Brooke” – tampouco é mencionado, o que pode parecer estranho para nós, leitores do século XXI, cientes da perenidade de algumas de suas obras. Ocorre que quando Margaret escreveu seus livros de memórias, Wilde já morrera em desgraça, após o escândalo do seu processo e prisão. A mulher dele, Constance, precisara adotar outro sobrenome para si e os filhos, tal o constrangimento que passara a ser associado ao nome de Wilde. A Rani não viveu o suficiente para presenciar sua reabilitação.

Elemento constante na vida mutável de Margaret de Windt parece ter sido a busca por respeitabilidade, por afirmação de uma posição social. Não deixou, apesar disso, de prestar apoio a Constance, durante a prisão do escritor. Vyvyan Holland, filho de Wilde, escreve com gratidão a seu respeito, rememorando os dias passados perto de Gênova ao seu lado, e contando como sua mãe reencontrou alguma felicidade in the companionship of the Ranee, who was a comfort and a consolation to her until the time of her death three years later. Marie Belloc Lowndes afirma que o político trabalhista Richard Haldane visitou Oscar Wilde na prisão a pedido de Margaret. Foi graças a essa visita, é sabido, que o prisioneiro pôde receber livros e, mais tarde, caneta e papel, o que lhe permitiu escrever De Profundis, a longa carta da prisão de Reading. 

É no afã de procurar demonstrar respeitabilidade que tem início Good Morning and Good Night. O castelo da avó em Épinay, onde Margaret crescera, é apresentado, nas primeiras páginas, como the home of the Rastignacs for generations. O “Reino do Terror” da Revolução Francesa, wreaking its hatred on the aristocrats, teria confiscado a propriedade e guilhotinado o marquês e a marquesa de Rastignac, “junto com tantos de seus amigos”. A única prole do casal, Elisabeth, bisavó de Margaret, teria sido “escondida pelos aldeões, que amavam os Rastignac”, e enviada à Holanda, para ser criada em segurança por um casal amigo, que a teria adotado. Mais tarde um filho do casal, Peter de Witt, casou-se com Elisabeth. Peter e Elisabeth de Witt teriam recuperado o castelo na França, onde foram viver, e o nome de Witt teria sido deturpado – pelos camponeses, afirma Margaret – em de Windt.

É um inteiro conto de fadas. Existem dois museus em Kuching celebrando o reinado de cem anos – de 1841 a 1946 – da dinastia Brooke. Ambos são administrados, com apoio do governo estadual, por uma entidade inglesa, Brooke Heritage Trust, presidida por Jason Brooke, descendente da família. Um dos museus, sediado no antigo Forte Marguerita, construído por Charles e nomeado em homenagem à mulher, é dedicado aos três Rajás Brancos.  O outro, instalado no antigo Tribunal de Justiça, à vida de Margaret. O percurso pelas suas poucas salas começa com a reprodução de um quadro a óleo que representaria “o Marquês e a Marquesa de Rastignac, trisavós de Marguerite, por volta de 1780”. 

As explicações do museu repetem, de forma acrítica, a versão fantasiosa oferecida por Margaret de suas origens. O tom esnobe da narrativa, com sua ingênua redução da Revolução Francesa ao “Reino do Terror”, ao “ódio pelos aristocratas” e à guilhotina é reproduzido pelo museu. Curiosamente, Margaret de Windt lembra nessa hora Lady Bracknell, personagem cômico de The Importance of Being Earnest, porta-voz assertivo, na peça, de valores sociais conservadores.

A realidade é diferente do seu conto. Margaret fala da “bisavó Rastignac adotada pela família de Witt” como se a tivesse conhecido: “ela morreu quando eu tinha quatro anos”. Cita até, entre aspas, uma frase que a bisavó costumava dizer, falando dos casamentos da filha e da neta com ingleses: Ces Anglais, ces Anglais, toujours ces Anglais. Denomina-a “baronesa de Windt”. Essa pessoa, porém, nunca existiu. Ninguém usando o título de marquês ou marquesa de Rastignac jamais morreu guilhotinado. A avó materna de Margaret, Elisabeth, era uma de Windt adotada e transformada em herdeira pela tia, Judith de Windt. Esta, sim, enviuvara em 1817 de Jacques Gabriel Chapt, visconde de Rastignac. Os de Windt estavam instalados desde o início do século XVIII no Caribe – onde terão feito fortuna com lavoura de açúcar à base de trabalho escravo – e escreviam seu nome com essa grafia desde pelo menos o século XVII. A avó de Margaret, Elisabeth de Windt, casou-se com um inglês, que adotou seu sobrenome, e não com um holandês chamado Peter de Witt. Margaret não teve nem avô nem bisavô com esse nome. A sua bisavó de Windt, nascida Sarah Roosevelt, no Caribe — e não Elisabeth de Rastignac, na França —, morreu em Paris, em 1850, um ano após o nascimento da bisneta. Essas informações encontram-se em diferentes estudos genealógicos, todos de acesso público. 

A história da família Chapt de Rastignac foi publicada em 1858 por sua última representante, Zénaïde, duquesa de La Rochefoucauld. Os Chapt de Rastignac são consistentemente descritos como de nobreza antiga. Pode-se deduzir a satisfação de Margaret de Windt em conseguir fazer crer, por meio das suas alegações, que descendia da família. 

Terá Margaret sabido que na verdade não descendia dos Rastignac? Inventou ela própria essa fábula ou herdou-a da mãe ou da avó? A resposta pode estar em livro autobiográfico de seu irmão caçula, Harry de Windt, célebre em sua época como viajante incansável e também ele autor prolífico de narrativas de viagens. Vyvyan Holland é quem, mais uma vez, nos conta que Harry de Windt was a famous explorer at the end of the last century, his most remarkable feat being to travel from Pekin to Paris overland in 1887. É sobriamente, sem fantasias, que o irmão mais novo explica, em My Restless Life (1909), que o castelo em Épinay “tinha sido herdado de um parente, o visconde de Rastignac”.

O museu em Kuching perpetua no entanto as invencionices de Good Morning and Good Night. De um museu, mesmo um museu familiar, espera-se algum apego à realidade. Mais extraordinário ainda é que o mito dos antepassados aristocráticos franceses seja recolhido na obra da historiadora australiana Cassandra Pybus, que estudou as vidas de Charles e Margaret em The White Rajahs of Sarawak (1996) e compra, sem crivo, a versão de que Margaret de Windt descendia de “aristocratas franceses” e era por isso socialmente superior aos Brooke.

Viúva desde 1917, Margaret morreu em 1936, aos 87 anos. Foi poupada de ver o filho Vyner ter de renunciar, em 1946, ao reino de Sarawak, que se tornou formalmente apenas mais uma entre as colônias de um império britânico em declínio. 

Em uma família onde cada um parece haver deixado seu próprio livro de memórias, sua nora, Sylvia Brett, mulher do terceiro e último Rajá Branco, também publicou as suas, com um título sensacionalista, Queen of the Headhunters (1970). Sylvia Brooke visitou a sogra poucos dias antes de sua morte e não foi por ela reconhecida. She had been a woman of note, escreve a nora, the friend of Henry James, H. G. Wells and Elgar. Now there was nobody; and she was just a lonely woman, living in a small flat, and already separated from life. There was something regal and tragic in her isolation. 

Oscar Wilde não é a única omissão notável em Good Morning and Good Night. Quando Margaret descreve a morte de seus três filhos pequenos a bordo do navio – “aquelas flores belas e encantadoras cortadas em poucas horas, arrancadas de nós e jogadas ao mar” – e lista todos os presentes no seu grupo, “marido, irmão, os três bebês, a babá inglesa, a empregada doméstica”, deixa de lado uma pessoa.

Viajando com eles, ia uma outra criança, um menino de seis anos. Ele se chamava Esca Brooke e era filho de Charles Brooke com uma mulher malaia, de origem nobre, Dayang Mastiah. Charles e a mãe da criança podem ter se casado em um rito muçulmano. O garoto passou a ser criado no Astana, como é chamado o palácio em Kuching, e sua existência em Sarawak nunca foi um mistério. 

Pode-se imaginar a reação de Margaret ao ver seus três filhos morrerem e serem atirados ao mar, enquanto o outro menino, que também adoeceu, sobrevivia. Cassandra Pybus especula ser possível que Esca, nascido na terra de Sarawak, filho mais velho do Rajá, fruto talvez de um casamento que as populações locais considerariam legítimo, viesse a ser um candidato sólido a suceder ao pai, em detrimento dos filhos da Rani. Cita uma frase de Margaret a um sobrinho, em carta de 1927: “Tive o bom senso de perceber que ele seria um problema se ficasse em Sarawak”. 

Deixado na Inglaterra, em 1873, para ser criado por um reverendo anglicano, Esca Brooke emigrou com sua família adotiva para o Canadá. Ele nunca mais veria o pai; nunca receberia um bilhete sequer dele, apenas uma pequena pensão; nunca retornaria a Sarawak. Morreu em Toronto em 1953.

Quantas facetas cabem em um único personagem? Ao longo da história de Margaret de Windt, como ela a quis contar, vemos sucessivamente a jovem vitoriana ingênua, isolada embora de família rica; a soberana corajosa de uma terra tropical, distante do seu país de origem; a mulher infeliz no casamento e enlutada pela morte de vários filhos; a alteza detentora de um título espetacularmente insólito, amiga, na Europa, de príncipes e artistas; a personalidade pública ciosa de estabelecer uma posição de brilho para si, o marido e os filhos. 

O que não vemos em momento algum, ao longo das suas memórias, é uma dimensão importante – que talvez seja o seu aspecto mais fascinante. Margaret entrou na vida do pequeno Esca Brooke, possível herdeiro de Sarawak, como presença nefasta, a clássica madrasta má. Com isso, conseguiu tornar-se, de fato, não uma Rastignac real, como fantasiou ser, mas uma personagem digna de Balzac.

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Clarice: na Malásia, a hora da estrela

Clarice: na Malásia, a hora da estrela

Na primeira Carta da Malásia, descrevi um fim de semana passado em Penang. Esse é um estado malásio que compreende uma ilha de mesmo nome e uma faixa de território em terra firme. Na ilha situa-se a capital do estado, George Town.

Penang distingue-se por várias características, no contexto malásio. Dos onze estados na Malásia peninsular, é o único, com Malaca, e como os dois em Bornéu, Sabá e Sarawak, a não ser um sultanato. O chefe de estado local é um governador. Penang é o único estado onde a maioria da população é de origem chinesa e onde o primeiro-ministro, atualmente, não é malaio e muçulmano. George Town está listada pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade, mas Penang não parou no tempo, e é um dos centros econômicos e tecnológicos da Malásia, inclusive na indústria de semicondutores.

Com o apoio do governo estadual, George Town, há treze anos, sedia um respeitado festival literário. Na edição de 2023, Clarice Lispector foi uma das estrelas, por sugestão minha à sua diretora, Pauline Fan. Muitas vezes, ao longo do ano, conversei com Pauline sobre Clarice, de quem ela é admiradora. Que formato poderia ter a homenagem? O mais óbvio parecia ser uma mesa-redonda sobre sua obra.

Acontece que o Instituto Moreira Salles organizara, de 2021 a 2022, em São Paulo e no Rio de Janeiro, uma grande exposição, Constelação Clarice, coordenada pela escritora Veronica Stigger e o poeta Eucanaã Ferraz. Contactado pela Embaixada do Brasil em Kuala Lumpur, o Instituto aceitou ceder facsímiles de parte de seu material. O suficiente para, em Penang, montar uma sala evocando Clarice. Sobre móveis e paredes, cartas da autora, bilhetes seus, cadernos de anotações, páginas de manuscritos de seus livros, fotografias nos revelavam algo dela, mas não o suficiente para eliminar o fascínio, o mistério que sua personalidade e sua literatura provocam.

Fui a George Town para a abertura do Festival no dia 24 de novembro. Lá esteve presente o primeiro-ministro do Estado, Chow Kon Yeow. Não sei dizer se, alguma vez, algum governador do Rio de Janeiro abriu a FLIP em Paraty.

No dia seguinte, 25 de novembro, inaugurei a exposição sobre a vida e a obra de Clarice Lispector. O convidado de honra, representando o governo estadual, foi o secretário de Turismo e Economia Criativa. Em seu discurso, Wong Hon Wai elogiou o Rio de Janeiro, onde já esteve, focalizando particularmente o Jardim Botânico, que poderia servir, avaliou, de exemplo para o de Penang. Ele foi modesto ao dizer isso, porque o Jardim Botânico de Penang, que já visitei, é excelente.

Peguei o microfone. Tinha bem presente o que queria dizer. Mencionei a importância de Clarice Lispector na literatura não somente brasileira, mas universal. Citei o fato de sua obra já ter sido traduzida para mais de 30 idiomas e publicada em 40 países. Recomendei alguns de seus livros. Especulei que, se na minha adolescência A Paixão Segundo G.H. era sua obra mais célebre, hoje, possivelmente, esse papel cabe a Água Viva e A Hora da Estrela. Li, em inglês, trecho de sua primeira carta a Olga Borelli, que há muitos anos me intriga: “Sou uma pessoa insegura, indecisa, sem rumo na vida, sem leme para me guiar: na verdade não sei o que fazer comigo […] Não tenho qualidades, só tenho fragilidades. Mas às vezes tenho esperança”.

Indiquei a importância do Instituto Moreira Salles na vida cultural brasileira, e seu papel na preservação de arquivos literários, inclusive o de Clarice Lispector, e fotográficos. Informei que a exposição havia sido financiada pela unidade do Itamaraty responsável por difusão cultural e educacional do Brasil no exterior, o Instituto Guimarães Rosa, cujo nome expliquei.

A direção do Festival evitara colocar qualquer outro evento naquele horário, o que garantiu o máximo possível de público na cerimônia. Alguns tiveram de ficar do lado de fora da sala onde fora montada a exposição, por falta de espaço. O curador instalara o material como se estivéssemos em um ambiente pessoal, talvez a sala da autora. Clarice Lispector, reservada como era, provavelmente teria ficado surpresa em receber simultaneamente tantos convidados no seu apartamento.

Todos os autores mais famosos participantes do Festival estiveram na abertura da exposição, inclusive o inglês Geoff Dyer, o francês Édouard Louis e o malásio Tash Aw. Ver Geoff Dyer e Tash Aw permitiu-me acrescentar, em minha fala, que nunca, quando começamos uma leitura, sabemos se aquele livro específico ou aquele autor terão importância para nós. Minha curiosidade pela Ásia do Sudeste, até certo ponto, ficou aguçada quando, há muitos anos, li Yoga for People who Can´t Be Bothered to Do It, evocação por Geoff Dyer de algumas viagens suas, inclusive por alguns países do Sudeste Asiático, aonde até então eu nunca havia viajado. The Harmony Silk Factory, de Tash Aw, tendo sido o primeiro romance malásio que li, confinado em casa em Kuala Lumpur durante a pandemia de Covid-19, logo ao chegar à Malásia em 2020, era a única forma de evasão, de eu viajar pelo país, no caso ao estado de Perak, onde se passa a ação. Provavelmente por causa do livro, Perak é uma região de particular afeição para mim na Malásia; graças ao romance, lá pude viajar por meio da imaginação, antes de poder conhecer qualquer lugar no país que não fosse minha casa, meu local de trabalho e o supermercado.

Da mesma forma, por razões e rumos tortuosos que já procurei explicar anteriormente, e mencionei na abertura da exposição em Penang, minha primeira visita a Malaca me levou a reler a obra de Clarice Lispector, quando seus livros tomaram para mim nova dimensão.

A maior livraria da Malásia, a Kinokuniya de Kuala Lumpur, montara balcão no espaço principal do Festival, onde os livros de Clarice traduzidos ao inglês, em diversas edições, foram, durante os quatro dias, expostos de maneira proeminente. Iam sendo vendidos rapidamente, e substituídos por novos exemplares.

Os livros de Clarice bem visíveis na livraria temporária montada no Festival de George Town.

As falas, no Festival, de Geoff Dyer, Tash Aw e Édouard Louis sobre suas vidas e suas obras foram valiosas. Lotaram o auditório. A plateia achou graça na forma como Édouard Louis e Tash Aw, hoje melhores amigos, discorreram, na mesma mesa-redonda, sobre como se conheceram, em um festival literário na Escandinávia. Por uma dessas coincidências que parecem ficção irrealista, Tash Aw fora pouco antes morar na aldeia tacanha, no Norte da França, onde nascera o escritor francês, e da qual este escapara na juventude. O escritor malásio, então menos célebre do que é hoje, apresentou-se no festival escandinavo a Édouard Louis, mencionando a aldeia onde morava. À plateia em Penang, o francês explicou: “Fiquei com medo. Pensei que ele fosse um desses malucos que ficam acossando escritores em festivais literários”.

Gostei particularmente do depoimento de Geoff Dyer, em sua fala, sobre John Berger. Admirador dos seus livros, Geoff Dyer teve, chegado o momento de conhecer o escritor mais velho, medo de se decepcionar. O contrário aconteceu, porque he was the most wonderful human being. Dyer considerava Berger uma figura paterna. As pessoas, vendo desenvolver-se a amizade entre eles, avisaram que, um dia, ele “passaria a criticar Berger, cometeria patricídio”. Qualquer estudante de psicologia sabe que esse é um fenômeno comum, em interações intergeracionais. Mata-se figurativamente não somente o pai biológico, mas também o amigo mais velho, na crença de que isso é indispensável para o crescimento individual. No caso da sua amizade com Berger, apontou Geoff Dyer em George Town, isso não aconteceu, o que a meu ver diz muito sobre as qualidades de ambos.

Geoff Dyer, falando sobre John Berger em Penang

Alguns dias depois, já de volta a Kuala Lumpur, eu convidaria o escritor inglês para jantar. Cito suas obras com frequência nos meus ensaios. Se alguém tivesse me dito, há cerca de vinte anos, quando comecei a ler Geoff Dyer em Washington, em Quito, em Brasília, que um dia ele jantaria na minha casa, e que essa casa seria em Kuala Lumpur, eu teria considerado a pessoa desnorteada.

Voltemos a Penang, voltemos a Clarice Lispector. Membros do público disseram-me, após a cerimônia de abertura, que a exposição dera-lhes vontade de ler os seus livros. Uma artista gráfica, que visitara a exposição dias antes, enquanto era montada, já desenhara marcadores de livros com um retrato famoso de Clarice e trecho de carta sua.

É muito raro, na experiência profissional de um diplomata, ele ou ela ver de forma imediata o resultado de seu esforço. A estrela chegara à Malásia, enriquecera o festival literário de George Town e, por seu intermédio, era a literatura brasileira como um todo que brilhava.

O dia seguinte era o último domingo de novembro. Voltei para Kuala Lumpur feliz. No caminho, pensando em Clarice, satisfeito, realizado, eu não tinha ideia de que a vida, da sua maneira característica, naquele momento mesmo já me preparava, sorrateiramente, algumas armadilhas.

Clarice em Penang

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La Vida es Sueño

La Vida es Sueño

O convite partiu do embaixador da Espanha. Perguntou-me se eu aceitaria ser incluído no grupo. Concordei sem hesitar. A ideia era celebrar em Kuala Lumpur o “Dia do Idioma Espanhol”. O cenário seria o pequeno palco da livraria Eslite Spectrum, inaugurada há pouco tempo e pertencente a uma cadeia de Taiwan. Cada participante leria um texto em espanhol, de sua escolha, por não mais do que cinco minutos.

Fiquei pensando sobre o que selecionar. Lembrei de um soneto de Jorge Luis Borges que é, de certo modo, um tributo à língua portuguesa, cuja data se celebraria dois dias depois da leitura na Eslite.

O embaixador da Argentina leu o prefácio de Ernesto Sabato (1911-2011) para seu livro de recordações, seu “testamento”, Antes del fin, publicado em 1998. A frase este complejo, contradictorio e inexplicable viaje hacia la muerte que es la vida de cualquiera, foi dita no tom certo, sem entonação melodramática.

O embaixador do México optou por “Hombres necios que acusáis”, de Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695), cuja primeira estrofe é:

Hombres necios que acusáis
a la mujer sin razón,
sin ver que sois la ocasión
de lo mismo que culpáis

Chile escolheu o poema de Nicanor Parra (1914-2018) em homenagem à sua irmã, “Defensa de Violeta Parra”; Colômbia, parágrafos de uma das novelas de Empresas y tribulaciones de Maqroll el Gaviero, de Álvaro Mutis (1923-2013). Cuba leu o conto “Francisca y la muerte”, de Onelio Jorge Cardoso (1914-1986); Peru, o poema “Hallazgo de la vida”, de César Vallejo (1892-1938). 

A embaixadora do Uruguai selecionou parágrafos de La insumisa, autobiografia romanceada, publicada em 2020, de Cristina Peri Rossi (1941- ), único autor vivo escolhido. Teria sido uma felicidade poder escutar a obra por mais do que cinco minutos.

Nascida em Montevidéu, Cristina Peri Rossi exilou-se em 1972 na Espanha. Autora prolífica, é também tradutora, inclusive de literatura brasileira: Clarice Lispector, Osman Lins, Ignácio de Loyola Brandão, Graciliano Ramos e Fernando Gabeira. Ganhou o Prêmio Miguel de Cervantes em 2021. Havia, aliás, concentração de ganhadores do prêmio entre os autores selecionados: Borges o recebeu em 1979, Sabato em 1984, Álvaro Mutis em 2001, Nicanor Parra em 2011.

O trecho lido pela embaixadora uruguaia incluía a seguinte frase: Al exiliarnos juntas, fue, en realidad, como si no nos hubiéramos exiliado, como si transportáramos con nosotras todo aquello que amábamos hasta entonces. Na lista das coisas amadas em comum estavam las canciones de María Bethânia. Sobre a ruptura dessa relação amorosa, um ano depois, a autora diz: comprendí que el exilio no era solo cambiar de espacio, el exilio era separarse de la persona amada.

Assim vivi eu entre 2020 e 2022, por causa da pandemia e o fechamento das fronteiras no Sudeste asiático, sem nunca poder ver a mulher amada, eu morando na Malásia, ela em Singapura. No dia seguinte, telefonei para minha colega uruguaia e pedi emprestado seu exemplar do livro.

La insumisa já começa de maneira surpreendente, com a frase: La primera vez que me declaré a mi madre, tenía tres años. É a história de uma infância e uma adolescência anticonformistas. Com ironia, Cristina Peri Rossi descreve um mundo soturno. Um hospital é palco de um estupro. O pai mantém com ela uma relação conflitiva; ele é agressivo, e sua vida, nos diz a autora, foi una larga, única y sostenida depresión. Um capítulo quase nos ilude, parecendo ser a poética descrição de uma estação de trem provinciana, no campo, chefiada por um tio-avô. A narradora tem agora quatro anos e atravessa um período feliz, correndo livre entre animais domésticos e avestruzes: El pueblo se llamaba Casupá, en honor a un cacique indio especialmente resistente a la Conquista.

Pesquiso e vejo que o povoado fica em terras que pertenceram ao avô do General Artigas. Chego a lamentar, a essa altura do livro, que, tendo vivido três anos em Montevidéu na infância, nunca tenha ido a Casupá, não tenha conhecido aquele cenário idílico.

Mas o tom logo muda. As vias ferroviárias são fechadas, os vagões abandonados no campo, alejados de cualquier camino y sin destino. Na ditadura militar uruguaia, serviram de campos de concentração, pois las cárceles y los cuarteles no fueron suficientes para encerrar a todos los presos políticos. Lemos detalhes do que significava viver trancado, amontoado, sem luz, sem banheiro, no ar rarefeito dos vagões. A narrativa, encantadora e bucólica poucos parágrafos atrás, torna-se agora terrível. Afinal, como observa a autora, los seres humanos tenemos una capacidad extraordinaria para hacer sufrir a los demás.

O príncipe Segismundo, esse Hamlet espanhol, teria também algo a nos contar sobre o sofrimento de viver, e na verdade contou-nos, aos ouvintes na livraria em Kuala Lumpur. Personagem principal da peça mais conhecida de Calderón de la Barca (1600-1681), La vida es sueño, ele foi interpretado pelo Embaixador da Espanha. Versos de suas duas falas mais famosas, habilmente mesclados, foram declamados, no pódio, com verdadeiro talento teatral.

Herdeiro do trono da Polônia, Segismundo cresce, por ordem do rei Basilio, seu pai, preso em uma torre nas montanhas. O rei é também astrólogo; os astros lhe comunicaram, ao nascer seu filho, que este — víbora humana del siglo — causaria grandes dores ao país e a ele próprio, o pai. O nascimento, de fato, dá-se sob algum signo infeliz: a rainha morre no parto, e isto coincide com um eclipse apocalíptico, descrito por Basilio em versos que me fazem pensar mais em outro fenômeno natural, as erupções vulcânicas que testemunhei em Quito:

Los cielos se oscurecieron,
temblaron los edificios,
llovieron piedras las nubes,
corrieron sangre los ríos.

Com a consciência inquieta diante da longa prisão a que submeteu o filho, o rei decide um dia testar se os astros estavam certos. Manda trazerem Segismundo ao palácio real. Ao descobrir-se príncipe, e que apesar disso fora criado de maneira solitária, como um animal capturado, Segismundo torna-se violento, o que parece confirmar a profecia. É enviado de volta à torre. Convencem-no de que a ida ao palácio, o encontro com o rei, a revelação de sua verdadeira condição foram apenas cenas de um sonho.

Uma revolta de soldados, que querem aclamá-lo, liberta-o, no entanto, do enclausuramento. No final, pai e filho se reconciliam, Basilio abandona o trono, Segismundo se torna rei, deduzimos que governará com moderação, e seu casamento com a prima Estrella é anunciado.

La vida es sueño causou-me impacto quando a li pela primeira vez, aos 21 anos. Meu objetivo era familiarizar-me com o texto antes de assistir, em Londres, a uma produção da Royal Shakespeare Company, no The Pit, sala menor do Barbican Centre, teatro onde a companhia naquela época se apresentava na capital, em alternância com Stratford-upon-Avon. No meu programa da peça, anotei ter gostado das atuações e da produção, mas considerei o texto em inglês mais uma adaptação do que uma tradução. Nunca esqueci essa montagem.

Este ano, em abril, outra companhia de teatro, a fenomenal Cheek by Jowl, fez quatro apresentações da peça, em espanhol, e com atores espanhóis, na sala grande do Barbican. Essa produção, muito comentada, fora primeiro mostrada na Espanha, em turnê, nos últimos meses de 2022, e terminou no Festival de Edimburgo, em agosto. Uma das resenhas menciona que, na torre, o único consolo de Segismundo é ouvir Carmen Miranda cantando “Cuanto le gusta”, em uma gravação com as Andrews Sisters.

Se eu não tivesse, no começo de junho, rompido dois ligamentos no tornozelo direito, teria sonhado em tirar férias e viajar a Edimburgo em agosto. Fundada por Declan Donnellan e Nick Ormerod, Cheek by Jowl é uma companhia que apresenta peças em diversos idiomas, em diferentes países. Há muitos anos, assistimos à sua produção de Macbeth, em inglês, em Namur, e a Andromaque, em francês, em Bruxelas. A montagem da peça de Racine era particularmente notável.

Mas voltemos a Kuala Lumpur, onde o embaixador da Espanha declama versos do primeiro solilóquio de Segismundo na torre, no início de La vida es sueño:

Apurar, cielos, pretendo,
ya que me tratáis así
qué delito cometí
contra vosotros, naciendo;
aunque si nací, ya entiendo
qué delito he cometido;
bastante causa ha tenido
vuestra justicia y rigor,
pues el delito mayor
del hombre es haber nacido.

Para emendar, em seguida, com as igualmente célebres linhas do regresso à prisão. Convencido por Clotaldo, seu tutor e cortesão do rei, de que as experiências que viveu no palácio foram apenas uma miragem, Segismundo conclui:

Es verdad, pues: reprimamos
esta fiera condición,
esta furia, esta ambición,
por si alguna vez soñamos.
Y sí haremos, pues estamos
en mundo tan singular,
que el vivir sólo es soñar;
y la experiencia me enseña,
que el hombre que vive, sueña
lo que es, hasta despertar.
Yo sueño que estoy aquí,
de estas prisiones cargado;
y soñé que en otro estado
más lisonjero me vi.
¿Qué es la vida? Un frenesí.
¿Qué es la vida? Una ilusión,
una sombra, una ficción,
y el mayor bien es pequeño;
que toda la vida es sueño,

Y los sueños sueños son.

Borges menciona Calderón com alguma frequência em suas obras, e até Segismundo uma ou outra vez. É, porém, em uma entrevista concedida a Fernando Sorrentino e publicada por este em 1974 no livro Siete conversaciones con Jorge Luis Borges que encontro a opinião mais contundente, e surpreendentemente negativa: En cuanto a la versificación de Calderón, la encuentro excesivamente pobre y será, quizá, porque no lo he leído bien. Quem sou eu para condenar Borges? E no entanto, eu o faço.

La vida es sueño é uma peça filosoficamente complexa, e a qualidade poética do texto não é menos sofisticada. Relendo-a no amarelado exemplar comprado em Londres há tantos anos, duas ideias me capturam. Primeiro, a beleza estética que encontro na linguagem:

que hoy he de dar la batalla,
antes que las negras sombras
sepulten los rayos de oro
entre verdinegras ondas.

Parece-me extraordinário que a língua espanhola possa acomodar um vocábulo específico, verdinegro, para definir uma cor indefinida, aquela tonalidade verde, quase negra que, de fato, o mar adquire, em um entardecer ensolarado, logo antes de ficar completamente escuro.

A segunda ideia é o dilema metafísico vivido por Segismundo. É curioso que Borges, cuja obra ilumina nossa leitura atual de Calderón, minimize o dramaturgo espanhol.

Mesmo Manuel Bandeira, em geral tão clarividente, oferece em Noções de História das Literaturas (1942) uma interpretação meramente moralista, ou talvez cristã, de La vida es sueño. Considera uma fala de Clotaldo a Segismundo — aun en sueños no se pierde el hacer bien — a síntese da peça, e comenta: “realidade ou sonho que seja a vida, o que importa é voltarmo-nos para o que é eterno”. Essa visão se aproxima daquela de Borges sobre a peça. Na entrevista de 1974, o escritor argentino afirma que, para Calderón, a frase la vida es sueño possui um sentido teológico, e não metafísico. Estima que, para o dramaturgo espanhol, a vida é apenas una breve parte de la realidad, pois lo verdadero son el cielo y el infierno. La idea de Calderón es una idea cristiana. Creo que Calderón le daba el énfasis a la idea de lo transitorio de la vida, comparado con lo transitorio de un sueño.

Na verdade, a peça do “Siglo de Oro”, montada pela primeira vez por volta de 1635, coloca em questão, de uma maneira muito borgiana, a própria realidade da realidade. Segismundo é um prisioneiro que sonha em ser príncipe? É um príncipe resgatado do pesadelo de uma prisão? A vida é real? Ou é um sonho? “Uma sombra”? “Uma ficção”?

O que significa estar vivo, existir? Os versos pues el delito mayor / del hombre es haber nacido são citados com reverência por Arthur Schopenhauer, que por sua vez foi uma forte influência intelectual sobre Borges. Este aliás opina, na entrevista supracitada, que Calderón es una invención de los alemanes. A resolução edificante do enredo — Segismundo vira um bom rei, pai e filho se reconciliam — era apropriada para a Espanha do século XVII, e em nada diminui a profundidade das questões metafísicas suscitadas.

Se Jorge Luis Borges tinha reticências em relação a Pedro Calderón de la Barca, eu nenhuma tenho quanto a seu soneto “A Luis de Camoens”, da coleção El hacedor (1960). É esse o poema que decidi ler, em 3 de maio, ao público presente na livraria em Kuala Lumpur.

Expliquei à plateia que o “Dia da Língua Portuguesa” seria logo em seguida, em 5 de maio. Mencionei ser Camões o poeta nacional de Portugal, e um dos pilares das literaturas de língua portuguesa. Comentei que a colonização do Brasil começara simultaneamente à derrocada pelos portugueses do Sultanato de Malaca (1511), quando Portugal se instalara naquela área da Península Malaia, primeira potência europeia a fazê-lo. Como consequência, o malaio contém vários vocábulos derivados do português. O próprio Luís de Camões vivera em Malaca. Apontei os versos em que Borges lembra ter o poeta voltado à patria nostálgica para morir en ella y con ella, já que em 1580, mesmo ano de sua morte, Portugal e suas colônias passaram sob o domínio espanhol.

É este o soneto:

Sin lástima y sin ira el tiempo mella
las heroicas espadas. Pobre y triste
a tu patria nostálgica volviste,
oh capitán, para morir en ella
y con ella. En el mágico desierto
la flor de Portugal se había perdido
y el áspero español, antes vencido,
amenazaba su costado abierto.
Quiero saber si aquende la ribera
última comprendiste humildemente
que todo lo perdido, el Occidente
y el Oriente, el acero y la bandera,
perduraría (ajeno a toda humana
mutación) en tu Eneida lusitana.

Os últimos versos são uma celebração do ofício poético e, por extensão, da literatura como um todo, e da arte. Os grandes autores e artistas fazem perdurar, em nossas mentes, a experiência humana ao longo da história, e dão sentido ao que, sem eles, talvez não tenha sentido algum. Essa é uma constatação sempre presente para mim. Em 1580, Portugal perdeu el Occidente y el Oriente, a glória da espada e da bandeira. Mas tudo isso é resgatado, e magicamente sobrevive, em Os Lusíadas.

O evento na livraria chegava ao fim. Faltava contudo algo. Seria inconcebível que Dom Quixote, no “Dia do Idioma Espanhol”, não fosse lembrado. Uma aluna universitária malásia levantou-se, subiu ao pódio e leu parágrafos da obra de Cervantes, primeiro em castelhano, depois em malaio. Como convinha, um dos grandes mitos da literatura universal, o leitor de romances medievais que resolveu atacar moinhos de vento, surgira para encerrar a sessão.

Este texto foi primeiro publicado, em 5 de agosto de 2023, no jornal de literatura Rascunho

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O que faz um diplomata?

O que faz um diplomata?

O que faz um Embaixador brasileiro? Como ele e sua equipe promovem o Brasil?

O vídeo abaixo é para você, que talvez se pergunte como trabalham os diplomatas brasileiros no exterior.

Talvez uma curta explicação seja útil de como surgiu o vídeo.

Todo ano, em Kuala Lumpur, em setembro, é realizada a Feira de Produtos Halal (MIHAS, pelo seu acrônimo em inglês), possivelmente a mais influente do mundo. Como é sabido, o Brasil é o maior exportador do mundo de produtos halal de proteína animal.

Em 2023, o Brasil montou um pavilhão na MIHAS. A Embaixada em Kuala Lumpur decidiu também organizar um evento de confraternização no local da Feira. Um público numeroso compareceu. Somente produtos brasileiros, inclusive carne halal, foram servidos, como demonstração da sua alta qualidade. O evento brasileiro, único semelhante na MIHAS, despertou a atenção da imprensa malásia.

Existe na Malásia um importante semanário econômico, The Edge. O CEO do grupo que publica o semanário, Ho Kay Tat, é um dos mais famosos jornalistas do país. Ho Kay Tat é um contato habitual meu. Pedi a ele que o The Edge cobrisse o evento brasileiro na MIHAS. Ele fez mais. Sugeriu que eu desse uma entrevista ao canal de YouTube do The Edge, o que aceitei.

Fiz a entrevista no meu escritório. Em 22 de setembro, ela foi divulgada pelo The Edge TV. O canal transformara a entrevista em um excelente documentário, de apenas sete minutos, sobre as relações Brasil-Malásia. O vídeo aborda muitas das áreas em que a Embaixada em Kuala Lumpur vem trabalhando, embora não todas. Tenho a sorte de contar com colaboradores eficientes em Kuala Lumpur, e por isso várias frentes de atuação estão em curso, de promoção comercial a difusão da cultura brasileira, de ciência e tecnologia a assistência consular, de meio ambiente a saúde. 

No fim das contas, é tudo uma questão de patriotismo.

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Os Três Mosqueteiros

Os Três Mosqueteiros

“Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de d’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar”.

O leitor apaixonado por Machado de Assis terá reconhecido um de seus contos mais famosos, “Missa do Galo”, de 1894. Jovem estudante vindo de Mangaratiba, o narrador que lê Os Três Mosqueteiros, e conta a história anos depois, hospeda-se no Rio de Janeiro com um contraparente, o escrivão Meneses. Os “passos no corredor” são da mulher do dono da casa, Conceição. Ela tem trinta anos, o hóspede dezessete.

O diálogo que se segue, em voz baixa, os gestos “demorados” de Conceição, “umas pausas” insinuam uma discretíssima dança de sedução, enquanto o marido passa a noite de Natal fora, com a amante. O escrivão chama a isso “ir ao teatro”.  

A escolha de Os Três Mosqueteiros sugere um protagonista ainda ingênuo, que apenas intui, sem ter certeza, estar sendo objeto de um delicado processo de sedução. A leitura do livro de Dumas alude por outro lado ao derradeiro sopro de vida adolescente, no rapaz prestes a entrar na vida adulta, que toma consciência da sexualidade e que atribui à interlocutora, quem sabe, os seus próprios desejos e fantasias.

Quando Conceição entra na sala, vem “arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal-apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras”. Muitas vezes li a “Missa do Galo”, e essas chinelinhas de Conceição, seu “roupão branco mal-apanhado na cintura” sempre me pareceram, já na adolescência — ou talvez sobretudo naquela época — fortemente eróticos.

Como o narrador de “Missa do Galo”, muitos leitores de Alexandre Dumas podem ficar “completamente ébrios” diante da vitalidade do livro. Gerações de jovens sonham, desde 1844, quando o romance apareceu primeiro como folhetim, com a bela mas perigosa Milady, e com os floretes e cavalgadas dos quatro amigos — “suas miríficas aventuras”, dizia o crítico literário e escritor José Veríssimo, em ensaio de 1902. Não poderia haver oposição maior entre o cotidiano de d’Artagnan e o dia a dia do jovem do conto: “Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro”. Nesse contraste pode estar a verdadeira razão da escolha de Os Três Mosqueteiros por Machado de Assis: o adolescente da rua do Senado encontra na obra de ficção as emoções, as experiências, o sentido de aventura ausentes na sua vida.

A mim, Os Três Mosqueteiros traz recordações felizes da infância. As histórias de Dumas competiam então, no meu imaginário, apenas com as de Jules Verne. Além das primeiras aventuras dos três mosqueteiros que se tornam quatro, li os outros livros do ciclo, Vinte Anos Depois e o Visconde de Bragelonne; e também O Conde de Montecristo e Os Irmãos Corsos. Eram volumes compartilhados com meu irmão e minha irmã, e Dumas, assim, é um símbolo de harmonia entre nós três.

Lembro particularmente de umas férias, na adolescência, na fazenda do nosso avô materno, na Zona da Mata em Minas Gerais, em que meu irmão e eu alternamos a leitura de um único exemplar de Os Irmãos Corsos. Uma hora o livro estava nas minhas mãos, outra hora nas de Alfredo. Isso era feito pacificamente, como convinha, já que a história é sobre gêmeos, que vivem de forma simbiótica, cada um sentindo o que o outro sente, mesmo à distância. Pouco tempo depois, quando eu tinha dezessete anos, meu irmão morreria, aos dezesseis, de maneira terrível.

Reagi com entusiasmo quando, em Kuala Lumpur, recebi convite para assistir, em 25 de maio, a uma sessão especial, patrocinada pela Embaixada da França, da mais recente adaptação para o cinema de Os Três Mosqueteiros. Dirigido por Martin Bourboulon, o filme é apresentado como uma duologia. A primeira parte, “D’Artagnan“, estreou na França — e no Brasil — em abril; a segunda, “Milady“, será lançada em dezembro. Esses subtítulos fazem jus à importância que os dois personagens detêm em momentos sucessivos do romance de Alexandre Dumas e de seu colaborador, Auguste Maquet. Na segunda metade do livro, Milady de Winter sem dúvida rouba a d’Artagnan o estrelato.

Eu contava poder formular um julgamento sobre as interpretações de Eva Green como Milady, Vincent Cassel como Athos, Romain Duris como Aramis e Louis Garrel como Luís XIII, o mais neurastênico dos reis. Alexis Michalik, autor de peças excelentes, também atua no filme. Sobretudo, eu estava interessado em ver Vicky Krieps no papel da rainha Ana d´Áustria. No início do ano, eu ficara intrigado com a atuação da atriz luxemburguesa em Corsage (2022), onde sua Sissi, oprimida, vítima das circunstâncias, era também egocêntrica e cruel. A diretora austríaca Marie Kreutzer consegue, com esse filme, solapar o mito da imperatriz, ao mesmo tempo que o perpetua — pois falar em alguém, para bem ou para mal, é manter viva a pessoa.

Das muitas versões cinematográficas do romance de Dumas, lembro-me apenas de ter visto, na televisão, criança, a de 1973. O filme conta com um elenco espetacularmente célebre. Michael York é d´Artagnan; Oliver Reed, Athos; Richard Chamberlain, Aramis; Frank Finlay é Porthos; Geraldine Chaplin, Ana d´Áustria; Christopher Lee é Rochefort; Faye Dunaway, Milady de Winter; Charlton Heston é o Cardeal de Richelieu; e Jean-Pierre Cassel faz o rei Luís XIII. O ator e diretor de teatro francês Georges Wilson é o capitão dos mosqueteiros, Tréville.

Estelar como era, o filme de 1973 mantém-se na minha memória exclusivamente por causa da presença de Raquel Welch — que nos deixou este ano, em fevereiro — no papel de Constance. A única cena que me ficou é da atriz, feliz, sorridente, muito linda e sedutora caminhando pelas ruas da Paris do século XVII, com decote generoso e carregando uma cesta de roupa, já que Constance é camareira da rainha Ana d´Áustria. É bem possível que a cesta seja um acréscimo da minha imaginação.

Ocorre que, em 25 de maio, eu não estaria em Kuala Lumpur, mas em Langkawi, na costa ocidental da Malásia, na Exposição Internacional Marítima e Aeroespacial, que acontece naquela ilha a cada dois anos. A EMBRAER mostraria na feira seu avião para transporte de passageiros E195-E2. Em Langkawi, seria anunciado que uma empresa aérea malásia estava adquirindo dez exemplares do jato.

O rei da Malásia visitaria o E195-E2 durante a Exposição. O avião da EMBRAER voou do Brasil até Langkawi e trouxe o sucesso habitual à companhia brasileira. O rei subiu ao avião. Sentou-se primeiro na cabine, ao lado do piloto. Depois, como passageiro. A agência oficial de notícias da Malásia registrou o momento em que o monarca, em trajes militares, e eu sentamo-nos cada um de um lado do corredor do E195-E2. Ao se despedir de mim o rei disse, em português, com ar contente: “Obrigado”.

Os Três Mosqueteiros foi mostrado em Kuala Lumpur em uma ou outra sessão adicional. Continuei, no entanto, impedido de assistir ao filme. Poucos dias depois da volta de Langkawi, sofri ruptura de dois ligamentos no tornozelo. Durante algumas semanas, meu deslocamento ficou restringido ao trabalho e à fisioterapia.

É provável que o filme, tendo passado duas ou três vezes na mostra de cinema organizada pela Embaixada da França, não entre em circuito comercial na Malásia. Não sei quando poderei vê-lo. Compensei a frustração relendo o romance de Alexandre Dumas. A leitura escapista, reconfortante, era aquilo de que eu precisava naquele momento de dor física.

Como sempre acontece quando revisitamos um texto de ficção lido na juventude, já não vi da mesma maneira as peripécias de d’Artagnan e seus companheiros. Na infância e na adolescência, eles eram os meus amigos simpáticos e divertidos. Na releitura recente, fui mais crítico. Registrei a sua coragem física, mas também a sua leviandade. Brigam com qualquer um a qualquer momento. Duelam e matam a troco de nada — a bem da verdade, muitas vezes também perdoam seus oponentes derrotados. Aramis é a personalidade mais complexa, hesitando entre ser padre e mosqueteiro. D’Artagnan fica satisfeito após treinar seu novo serviçal, Planchet, à base de pancadas. Porthos vive às custas de uma mulher casada, com idade para ser sua mãe. Athos é, francamente, um tedioso depressivo.

Desagradou-me a misoginia com que é tratada Milady. Candidata a beatificação, a personagem não é. Envenena inimigos, e possivelmente o segundo marido. Seduz e mente para atingir seus objetivos. Ela é, porém, uma espiã de Richelieu, e é querer demais que espiãs sejam eficazes nas suas missões, mas também demonstrem caráter idôneo. Assim como Milady mata ou deixa morrer sem compaixão, é morta pelos quatro amigos da maneira mais covarde e hipócrita. Não temos direito à sua versão sobre os crimes de que a acusam, antes de o carrasco decapitá-la, a mando dos mosqueteiros, sem tribunal, sem juiz, de noite, em um campo isolado.

Minha maior lástima, ao perder a nova versão cinematográfica, é não poder ver como é abordada a trama mais famosa do livro, a que envolve os doze broches de diamantes que Ana d´Áustria dá de presente, secretamente, a George Villiers, duque de Buckingham. Favorito e principal ministro dos reis Jaime I e Carlos I da Inglaterra, Buckingham foi, na vida real, tão famoso em seu tempo quanto Richelieu, mas bem menos inteligente e competente. Muitos memorialistas da época registram o capricho do duque de, em uma viagem à França como embaixador extraordinário, em 1625, querer seduzir a rainha. Segundo Dumas, a mulher de Luís XIII mantém com ele uma intensa relação amorosa, ainda que aparentemente platônica.

Os diamantes haviam sido, originalmente, ofertados a ela pelo rei. Luís XIII, incentivado por Richelieu, pede que Ana d´Áustria os use em um próximo baile. D’Artagnan galopa até Londres para recuperá-los, salvando assim a rainha, adúltera ao menos emocionalmente, do grande escândalo que o cardeal deseja provocar. Há incongruências no enredo e na cronologia do romance, e nunca nos é explicado como são compatíveis com a devoção de d´Artagnan a Luís XIII a sua expedição à Inglaterra para ocultar a traição de Ana d´Áustria ou o fascínio que Buckingham provoca no futuro mosqueteiro.

Em Une autre histoire de la littérature française, de 1998, Jean d’Ormeson (1925-2017) resume bem o efeito causado pelos livros de Dumas: “O estilo não é brilhante, a psicologia é gaguejante, falta rigor ao enredo, mas há tanto movimento, brilho (panache), tanta vida, que os personagens se tornam inesquecíveis. Nunca nos entediamos com eles”. E cita uma frase do escritor: “O que é a História? Um prego onde penduro os meus romances”.

É inegável a atitude utilitária de Alexandre Dumas em relação à História, que manipula para fornecer suspense, aventuras e emoções aos sôfregos leitores de seus folhetins. Ana d´Áustria viveu na França uma juventude repleta de intrigas palacianas, muitas desavenças com o marido e Richelieu, e algum conluio com seu irmão, Felipe IV da Espanha, então em guerra com Luís XIII, o que poderia caracterizar traição. Mais tarde, amadurecida, desempenharia, após a morte do marido, de maneira competente, firme, nas difíceis circunstâncias da Fronda, o papel de regente de seu filho Luís XIV.

Hoje, porém, é bem possível que, mesmo na França, Ana seja lembrada sobretudo graças à vivacidade da obra de Dumas. A personagem literária substituiu a figura histórica. A trama dos diamantes, aliás, não foi invenção de Dumas e seu colaborador. O primeiro a registrá-la foi François, duque de La Rochefoucauld (1613 -1680). As célebres Máximas do duque, visão pessimista — ou vá lá, realista — da alma humana dão a ele reputação merecida de moralista. Jovem, contudo, La Rochefoucauld participou, como aliado da rainha, das cabalas da corte de Luís XIII e depois desempenhou, na Fronda, papel ativo contra a autoridade real. Suas Memórias formam um pequeno volume que causa grande impacto, por causa do estilo conciso e direto. La Rochefoucauld já nos fornece o cenário, seguido fielmente por Alexandre Dumas, de como dois dos broches de diamantes foram recortados da roupa de Buckingham, durante um baile, pela condessa de Carlisle — assim como Milady faria no romance — e de como o duque manda fechar os portos, para impedir que as joias sejam levadas da Inglaterra às mãos de Richelieu, enquanto seu joalheiro as copia a toque de caixa.

Como muitos antigos apoiadores da rainha, La Rochefoucauld decepcionou-se com ela após a morte de Luís XIII, em 1643, ocorrida poucos meses depois da de Richelieu. Já não existia a sedutora jovem que gostava de despertar paixões e de escutar, complacente, nobres rebeldes e conspiradores, e trabalhar com eles contra o esforço centralizador empreendido pelo cardeal-ministro e que desembocaria no absolutismo de Luís XIV. Surgira uma alma de ferro, cada vez mais influenciada pelo Cardeal Mazarino, herdeiro político de Richelieu, e desejosa de preservar a autoridade do filho. La Rochefoucauld chega a dizer: “ela passou a desaprovar qualquer outro interesse que não fosse o do Estado”. Já durante as últimas semanas de vida do moribundo Luís XIII, para aumentar suas chances de ser nomeada regente do filho — Luís XIV tinha quatro anos e meio quando do falecimento do pai — Ana enviou emissário ao rei, nos conta o memorialista, para sustentar que nunca participara dos complôs contra ele. A resposta de Luís XIII foi digna de uma peça de Corneille: “No estado em que me encontro, devo perdoá-la; mas não sou obrigado a acreditar nela”.

É possível duvidar da veracidade da trama descrita por La Rochefoucauld. A primeira edição das Memórias, pirateada, é de 1662, quando Ana d´Áustria tinha 61 anos. O moralista pode ter sentido algum prazer vingativo em descrever a antiga aliada, contra quem, mais tarde, se rebelara na Fronda, como uma jovem leviana, capaz, em 1625, de presentear um estrangeiro que se declara apaixonado, mas que ela mal conhece, com joias recebidas do marido. O memorialista-moralista nos explica que o ministro inglês chegou a Paris com “mais esplendor, grandeza e magnificência do que se fosse rei” — avec plus d´éclat, de grandeur et de magnificence que s´il eût été roi. Por isso, pareceu à rainha “ser o homem do mundo mais digno de amá-la” — il parut à la Reine l´homme du monde le plus digne de l´aimer.

La Rochefoucauld pode nas suas Memórias, com a história dos diamantes, ter apenas repetido, e não imaginado, fofoca de corte, fidedigna ou não. O fato é que o gênio de Dumas transforma um mexerico ouvido ou inventado por La Rochefoucauld em uma trama vibrante. Esta, por sua vez, fixou para a posteridade uma imagem romântica da proximidade entre a rainha da França e o poderoso ministro inglês.

O ensaio de José Veríssimo de 1902, homenagem ao centenário de nascimento de Alexandre Dumas, que morrera em 1870, foi publicado primeiro no Jornal do Comércio. O texto pode hoje ser lido em um volume lançado em 2003, com o título José Veríssimo, Homens e Coisas Estrangeiras, 1899-1908. Menciona o quanto a obra de Dumas “nos encantou, nos animou, nos seduziu”, e a dívida de todos ao “adorável contador, que tantas vezes adormeceu a nossa dor, embalou a nossa ilusão, excitou a nossa imaginação”.

Um domingo de junho em Kuala Lumpur, tendo terminado a releitura de Os Três Mosqueteiros, desloco-me à fazenda em Minas Gerais, eliminando tempo e distância.

É julho, é final de tarde, o sol vai baixando. Logo jantaremos, e nosso avô, separado há quarenta anos da nossa avó, que mora no Rio, e viúvo da segunda mulher, entrará no carro e irá, em Juiz de Fora, passar a noite com a namorada do momento, tal qual o escrivão Meneses no conto de Machado de Assis. Somos os três irmãos, seus netos, apenas adolescentes, mas ali vivemos livres e sem muita supervisão.

Fecho o volume de Os Irmãos Corsos que estou lendo, começo a trancar as muitas janelas de madeira da casa da fazenda. Estou no quarto do meu irmão, quando Alfredo aparece, verdadeiro d’Artagnan, no umbral da porta, corado, sorrindo, enérgico, o cabelo alourado desalinhado, regressando de horas de galope no seu cavalo branco. Os jeans ainda estão dentro das botas, o chicote ainda está na sua mão.

A visão adormece a minha dor.

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Tiradentes esquartejado

Tiradentes esquartejado

O presidente Lula declarou em Madri, em 26 de abril, durante almoço a ele oferecido pelo rei da Espanha, Felipe VI: “O Brasil condena a invasão da Ucrânia pela Rússia. Defendemos a Carta da ONU e o direito internacional. Mas queremos abrir caminhos para o diálogo e não obstruir as saídas que a diplomacia oferece. Essa guerra no coração da Europa é uma tragédia para a humanidade. O mundo precisa de paz”.

Toda guerra é “uma tragédia para a humanidade”, mas faz sentido o presidente Lula ter focalizado, na Espanha, a guerra que se trava, desde fevereiro de 2022, “no coração da Europa”.

A fala presidencial coincidiu com minha segunda Covid-19. É bem possível que eu tenha sido contaminado, nessa nova ocasião, em um jantar em Kuala Lumpur em homenagem à atriz Michelle Yeoh. A vida é coerentemente incongruente, e faria sentido que o vírus mortífero circulasse, causando estragos, entre convidados em torno à suave e educada estrela malásia de Hollywood, que acabara de receber o Oscar.

Febril, assisti novamente a dois filmes do diretor russo Aleksandr Sokurov, Francofonia (2015) e Arca russa (2002). Rever essas obras-primas, após longo intervalo, durante os quais muita coisa mudou no Brasil, no mundo e no meu universo pessoal, me permitiu uma releitura.

A situação do Louvre durante a Ocupação alemã de Paris, na Segunda Guerra Mundial, é o fio condutor, em Francofonia, para a meditação do diretor sobre como a arte e a história se entrelaçam e como o homem lida com ambas. Os grandes museus, mostra Sokurov, tornam-se os depositários da arte e da história, da civilização, da própria vida. Questiona o diretor, um tanto cruelmente: “Quem precisa da França sem o Louvre, ou da Rússia sem o Hermitage?”.

O Hermitage, outro grandioso palácio-museu, é o cenário de Arca russa, celebrado pela filmagem em uma só tomada de câmera, de cerca de 90 minutos, de diferentes cenas inspiradas pela história da Rússia; mais propriamente, da história do país do início do século XVIII, quando Pedro I fundou São Petersburgo, ao início do século XX, quando o regime tsarista começa a desmoronar. A câmera mostra, sem interrupção, obras de arte — todas europeias, e nenhuma posterior ao começo do século XIX — reações individuais frente a elas e, sem respeitar a ordem cronológica, diversos imperadores russos. Vemos Pedro I, dito o Grande, sendo rude com sua mulher, a futura imperatriz Catarina I, e humilhando um general ou ministro. Nicolau II e sua família fazem uma refeição. Feliz com uma produção operística no teatro do palácio, Catarina II, também chamada a Grande, sai correndo para encontrar um lugar onde urinar. Recria-se imponente cerimônia em que Nicolau I recebeu, em 1829, o neto do xá da Pérsia, que vinha apresentar desculpas oficiais pelo massacre, por uma multidão em Teerã, dentro da embaixada, dos funcionários russos, inclusive o embaixador — o compositor, poeta e dramaturgo Aleksandr Griboiedov, de 34 anos — cujo cadáver, desfigurado, fora decapitado.

Durante o passeio pelo teatro de imersão que é Arca russa, temos dois guias: um é o fantasma de um narrador que vaga pelo palácio sem nunca ser visto por nós, enquanto fala por meio da voz de Aleksandr Sokurov. O outro é um “europeu”, inspirado em Astolphe de Custine, viajante francês à Rússia de Nicolau I. Custine — interpretado no filme pelo ator Sergei Dreiden, que faleceu em São Petersburgo em maio de 2023, enquanto escrevo estas linhas — foi por um tempo diplomata, tendo participado do Congresso de Viena, como lembra o filme, e é autor de um celebrado livro, La Russie en 1839, fruto de sua viagem ao país e bastante crítico da sociedade tsarista.

Há quem considere Arca russa ideologicamente reacionário; o filme pode ser visto como celebratório da monarquia e as cenas históricas escolhidas não envolvem o povo. De fato, uma obra que mostra a grã-duquesa Anastásia, correndo livre e feliz pelos corredores do Palácio de Inverno, com coroa de flores na cabeça, a própria imagem da inocência, poderia ter como um de seus resultados provocar simpatias monárquicas.

Sokurov escolheu destacar Anastásia, não uma de suas três irmãs, menos conhecidas do público. Em análise perspicaz, “Floating on the Borders of Europe: Sokurov’s Russian Ark” a acadêmica Kriss Ravetto-Biagioli aponta que a mãe de Anástasia, a imperatriz Alexandra Feodorovna, aparece conversando não com seu conselheiro Rasputin, nome altamente tóxico, mas com a irmã, a grã-duquesa Elisabete. Esta, ao enviuvar, tornou-se freira e assim aparece vestida no filme. Assim como Nicolau II, Alexandra, os cinco filhos e vários outros membros da família, Elisabete foi executada em 1918 e transformada, no final do século XX, em santa da Igreja Ortodoxa.

A mim parece que a intenção principal de Arca russa, mais do que celebrar a monarquia, é comemorar um período específico da história da Rússia, em que o país, ao fundar São Petersburgo e fazer da nova cidade sua capital, procurou abrir-se à Europa. Essa política, de determinação e lucro oscilantes, corresponde ao período dos 200 últimos anos da dinastia Romanov. Em 1918, a capital voltaria a ser Moscou.

A compreensão do filme de Sokurov é facilitada, se lembramos ser ele um pacifista, que já se manifestou, por exemplo, contra a invasão da Ucrânia. Ao encerrar Arca russa antes da Revolução bolchevique de outubro de 1917, o diretor, de forma subliminar, sugere que tudo o que veio depois representou uma ruptura entre o Ocidente e a União Soviética e, depois, a Rússia e é, portanto, algo negativo. Esse pensamento se aproxima daquele de Hélène Carrère d´Encausse em um livro, La Russie inachevée (2000), contemporâneo de Arca russa, segundo o qual a Rússia é un pays dont l´effort a toujours tendu vers l´Europe et la modernité, et qui, au moment où le but paraît atteint, est rejeté en arrière. Escritora francesa e cineasta russo ambos apontam que a falha é, também, europeia.

Francofonia, filme que nos fala de Paris e do Louvre, mostra como primeira imagem uma foto de Tolstoi, envelhecido, reclinado, olhando para a câmera. Pouco depois, uma imagem de Tchekhov. O diretor pede aos dois orientação. “O que nos espera?”, pergunta. Na sequência, veremos fotos de ambos nos seus leitos de morte. Por que a primeira divagação de Sokurov é sobre os autores russos?

Como tantas vezes na obra do diretor, não há explicação óbvia. Napoleão Bonaparte é um personagem importante de Francofonia. Embora Tolstoi não tenha sido contemporâneo do imperador, pois nasceu em 1828, sete anos após sua morte, graças a Guerra e Paz escritor russo e chefe de estado francês estarão para sempre interligados. Ao escrever seu romance, Tolstoi apropriou-se de Napoleão, contribuindo para formar sua imagem, de maneira negativa, junto à posteridade. Sua antipatia por Bonaparte já se manifestara em 1857, quando visitara Paris pela primeira vez. Quanto a Tchekhov, um de seus contos é parafraseado pouco depois no filme.

Aqui e ali, Sokurov aparece dialogando por Skype com o capitão de um navio que carrega a coleção de um museu e enfrenta uma tempestade em alto-mar. O fato de o barco transportar obras de arte ameaçadas de soçobrar é lamentado pelo diretor-narrador. É uma parábola sobre a fragilidade da civilização: a arte torna o ser humano superior aos outros animais, mas é facilmente perecível; o que torna a vida suportável pode ser destruído com grande facilidade. Ao mesmo tempo, perpassa o filme a sugestão de que os homens são mortais, mas suas obras artísticas perduram, ou ao menos podem ser mais duradouras do que seus criadores.

Vendo na tela do seu computador a agitação das ondas, Sokurov cita Tchekhov. A referência não é especificada, mas trata-se obviamente de uma alusão ao conto Gusev (1890), inspirado por uma experiência vivida pelo escritor no Mar do Sul da China, em viagem de regresso da ilha de Sacalina até Moscou. No trajeto de Hong Kong a Singapura, dois passageiros morreram, e seus corpos foram jogados ao mar. O episódio impressionou Tchekhov, que escreveu Gusev ainda durante a viagem.

No conto, Gusev e Pavel Ivanitch, doentes ambos, voltando do Extremo-Oriente para a Rússia na enfermaria de um navio, morrem em alto-mar, em dias diferentes, após diálogos que revelam as discrepâncias em suas personalidades, mas também um sofrimento comum. Seus corpos são jogados na água. Só há descrição do que acontece com o cadáver de Gusev, imediatamente atacado por um tubarão, enquanto o conto vai terminando com a menção à beleza do céu, que adquire uma coloração “delicadamente lilás” e do oceano, que também mostra cores “suaves, alegres, passionais”.

Em seguida à referência a Gusev, Sokurov focaliza um dos quadros mais célebres do Louvre, A Jangada da Medusa, pintado por Théodore Géricault entre 1818 e 1819, que representa o desespero de sobreviventes de um naufrágio, ocorrido em 1816, no início da Restauração ao trono dos Bourbon. A tragédia chocou os contemporâneos, porque o esforço para sobreviver causou todo tipo de violência na balsa, e levou à prática de canibalismo. Provocou também um escândalo político, uma vez que o comandante da fragata Méduse, abandonada a 60 quilômetros da costa da Mauritânia após encalhar em um arrecife, a caminho do Senegal, era um aristocrata que, tendo vivido no exílio por 25 anos por causa da Revolução e recém-regressado à França, recebera a função por sua fidelidade à causa monárquica.

Como não cabia todo mundo nos botes da fragata, construiu-se uma jangada, sobre a qual subiram 149 pessoas. A balsa foi rapidamente abandonada à própria sorte pelas embarcações que deveriam rebocá-la. Faltavam espaço, água e comida. Em seu Dictionnaire amoureux du Louvre (2007), Pierre Rosenberg, que foi diretor do museu, resume no verbete sobre Géricault a situação na jangada: Le martyre dura treize jours. On s´entretua. On mangea les cadavres. On jeta à la mer les malades. Quando foi encontrada por um navio, duas semanas depois, restavam na balsa apenas 15 sobreviventes, dos quais cinco morreriam após alguns dias.

Julian Barnes inclui um capítulo sobre a tela de Géricault em romance de 1989, A History of the World in 10 ½ Chapters, retomado em 2020 na sua coletânea de ensaios sobre arte, Keeping an Eye Open. É um texto que provoca, como os longas-metragens de Sokurov, numerosas reflexões. Barnes postula que o ser humano, para entender as catástrofes, precisa transformá-las em manifestações artísticas: A nuclear plant explodes? We’ll have a play on the London stage within a year. War? Send in the novelists.

Visão do pintor sobre a frágil embarcação à deriva, palco para fome, motins, mortes, assassinatos, agressões, afogamentos, canibalismo, o quadro de Géricault, para o qual posou outro pintor, seu amigo Eugène Delacroix, despertou, por sua vez, e continua despertando, a imaginação de artistas.

O escritor franco-belga François Weyergans publicou, em 1983, romance intitulado, como o quadro, Le Radeau de la Méduse. No enredo, um parisiense, diretor de documentários para a televisão, é contratado para fazer um programa sobre a obra de Géricault. Ele namora uma moça carioca, Nivea Guerra — esse foi o maior atrativo para mim, quando, muito jovem, li o romance pela primeira vez. Antoine Dufour, o protagonista, procrastina, questiona sua vida, mas entendemos no final do livro que ele conseguirá terminar o trabalho, e que isso representa, emocionalmente, uma superação, uma travessia de jangada.

A tela de Géricault foi uma das inspirações para o curador da XXIV Bienal de São Paulo, em 1998, Paulo Herkenhoff. Em entrevista da época sobre a Bienal, Herkenhoff declara seu interesse por releituras do quadro e diz: “A ‘Jangada’ se relaciona com a história da arte brasileira por meio de ‘Tiradentes Esquartejado’, de Pedro Américo, mais pelo tema político que pela imagem apresentada. Ele se apropria de Géricault de uma maneira complexa”. A XXIV Bienal expôs o quadro de Pedro Américo e esboços de Géricault para A Jangada da Medusa, assim como uma tela do pintor francês, emprestada pelo Museu Nacional em Estocolmo, representando as cabeças cortadas de dois guilhotinados.

Uma reflexão sobre o esquartejamento de Tiradentes aparece na instalação de Adriana Varejão naquela Bienal de 1998. Em livro do ano seguinte sobre sua obra que editou com Adriano Pedrosa — ele será, em 2024, o curador da Bienal de Arte em Veneza, o que é colossal — ela comenta: Além disso, interessou-me a representação da fragmentação do corpo e do corpo em pedaços, algo que está em Géricault”. O artista francês, como lembra Julian Barnes, era the portrayer of madness, corpses and severed heads. Pierre Rosenberg diz dele: peintre de la violence, de l´impitoyable et de la cruauté.

O Louvre teve sorte na Ocupação alemã, nos diz Francofonia, pois o encarregado de examinar as coleções artísticas francesas, o conde Franz von Wolff-Metternich, era um historiador da arte que atuou para preservar o palácio-museu. Ele e um dos diretores do Louvre, Jacques Janjard, são mostrados no filme conversando sobre arte, sobre a importância de preservá-la no meio do drama humano, do sofrimento que a guerra causa.

O museu, de resto, estava em 1940 relativamente vazio, pois muitas das obras, por precaução, tinham sido retiradas e depositadas em castelos fora de Paris. O mesmo aconteceu, também durante a Segunda Guerra Mundial, com o Hermitage. Francofonia nos mostra fotos antigas, azuladas, de salas no palácio-museu em São Petersburgo onde as molduras estão sem telas.

Aleksandr Sokurov contrasta a complacência do marechal Philippe Pétain e de seu governo diante da Ocupação alemã com a tenacidade russa durante o cerco de dois anos e meio a Leningrado, que levou um milhão de habitantes à morte. De forma leve, quase imperceptível, há referência ao fato de que Alemanha e França gradualmente se aproximam depois de 1945 — o que, cabe lembrar, viria com o tempo a permitir a formação da União Europeia, em um processo que teve como propósito buscar conter o instinto fratricida dos países europeus — e fazem da União Soviética o inimigo comum.

Lembra o diretor russo que os grandes museus estão repletos de troféus de guerra — e, podemos completar, de obras pilhadas pelo colonialismo, por invasões, por massacres. Sokurov traz uma visão abrangente sobre essas gigantescas coleções. Admira-as, valoriza seu papel cultural. Mas não deixa de aludir também às espoliações que contribuem para formá-las.

Francofonia detém-se, ainda nos seus primeiros minutos, sobre retratos expostos nas paredes do Louvre. “Quem teria eu sido”, pergunta-se Aleksandr Sokurov, “se nunca tivesse conhecido ou visto os olhos daqueles que viveram antes de mim?”.

Essa é uma sensação comum aos frequentadores de museus — acreditar que, ao observar retratos nas paredes, receberão uma revelação sobre a alma humana. Em um ensaio de 1972, “No More Portraits”, John Berger aponta que costumamos atribuir a retratos pintados a psychological insight which 99 per cent of them totally lack […] it is a myth that the portrait painter was a revealer of souls. Os retratos nos fascinam, afirma Berger, because they show us very vividly how little the human face has changed.

A exclamação de Sokurov, os comentários de John Berger me fazem pensar em uma frase de Roland Barthes em Mythologies (1957), no ensaio “Le visage de Greta Garbo”. Segundo Barthes, “Garbo pertence ainda àquele momento do cinema onde a aparição do rosto humano perturbava fortemente as multidões, onde era possível perder-se literalmente em um rosto humano como em um filtro”.

Pelas salas do Louvre, Sokurov nos dá como guias o fantasma de Napoleão e Marianne, a figura feminina que, desde a Revolução, representa a República Francesa. A pobre Marianne, na maioria de suas cenas, grita Liberté, Égalité, Fraternité, como se esperaria dela, mas há aí uma profunda ironia, pois na Paris ocupada pelos alemães, como em toda guerra, liberdade, igualdade e fraternidade passam a ser valores raros. Napoleão é mostrado vestindo o que era seu traje predileto, o uniforme de coronel de caçadores de cavalaria da guarda imperial, verde escuro, com o qual foi enterrado em Santa Helena. É com esse uniforme que, em 1812, na sua malfadada invasão da Rússia, o Imperador dos Franceses ocupou Moscou — quase deserta, e que em seguida queimaria — e se instalou no Kremlin.

O ator Vincent Nemeth, como Napoleão admirando sua própria coroação

Em Conversações com Goethe (1836), de Johann Peter Eckermann, o polímata alemão menciona o uniforme verde. Goethe narra a Eckermann, em fevereiro de 1830, anedota que lera em um livro sobre o exílio em Santa Helena, segundo a qual o traje, na ilha, ficara desbotado “pelo uso e o sol forte”. Sendo impossível encontrar pano da mesma cor para fazer novo uniforme, Napoleão virara o seu, gasto, ao avesso. A história não me parece muito crível, mas impressionou Goethe. Indaga ele: “Não é trágico? Não é comovente, o amo dos reis terminar sendo obrigado a usar doravante um uniforme revirado? No entanto, se pensarmos que esse foi o fim de um homem que pisoteara a vida e a felicidade de milhões de seres humanos, seu destino parece benigno: Nêmesis levou em consideração a grandeza do herói e não pôde se impedir de se mostrar relativamente generosa”.

No final de Arca russa, vemos um baile imperial, uma das grandes cenas do filme. À frente da orquestra está Valery Gergiev, regente que vi uma única vez, quando fui à ópera no Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, poucos anos antes de Arca russa ser filmado. A ópera era Don Carlo, durante muitos anos uma das minhas prediletas, na qual Verdi e seus libretistas, inspirados pela peça de Schiller — que foi também uma fonte para Dostoievski e seu Grande Inquisidor — romantizam a figura do personagem epônimo e nos ensinam que mesmo um príncipe das Astúrias, um herdeiro do trono espanhol, um neto de Carlos V pode ser infeliz.

Como era aniversário de minha mãe, sei que essa viagem a São Petersburgo aconteceu no final de maio e, por isso, quando saímos do teatro, havia luz do dia ainda e voltamos a pé ao hotel. Nunca mais estive na capital dos tsares. Vi São Petersburgo como um lugar onde o peso da história é presente demais. Caminhando pelas suas ruas, pensava no sangue jorrado pela dramática história da Rússia. Seria como alguém ir a Paris pela primeira vez e ficar pensando no período do Terror ou nos massacres nas prisões na Revolução, e na guilhotina, ou na Ocupação alemã. Moscou, onde estive algumas vezes, nunca provocou em mim a mesma reação.

Pela lógica do filme, o baile imperial parece acontecer logo antes da Primeira Guerra Mundial, mas ali vemos Pushkin, que morreu em 1837, e sua mulher, Natália, no salão, e ela dança com o “europeu”. Este, aliás, menospreza o talento do poeta nacional russo, o que, simbolicamente, pode ser visto como um repúdio da Europa à Rússia.

O baile termina, e a multidão começa a sair da sala e a descer a escadaria em direção à saída. É uma visão fantasmagórica. A peça de imersão, onde várias épocas e personagens podem ser mostrados simultaneamente, abandonando o tempo e a cronologia, vai chegando ao fim. Sabemos o que virá depois na história da Rússia, uma sucessão de tragédias com grandes perdas humanas: guerra de 1914, revolução bolchevique, guerra civil, stalinismo, Segunda Guerra. Na sequência, haverá mais guerras, a Fria e outras, até começar a de hoje, “no coração da Europa”.

O narrador parece a essa altura nos dar uma resposta à eterna dúvida sobre se a Rússia é um país europeu, um país asiático, ambas as coisas, ou uma realidade totalmente própria, não pertencendo a nenhum espaço determinado. Convida o marquês de Custine, o “europeu”, a vir com ele, acompanhando em direção ao futuro a multidão que sai do baile. Custine recusa, com ar pesaroso, em extraordinária atuação de Sergei Dreiden, que cria com seu rosto o momento mais triste do filme. Diz que prefere ficar onde está, ou seja, na Rússia dos Romanov, certamente um bom lugar para quem fosse nobre, rico, frequentador da corte e sem veleidades de contestar o status quo. Ouvimos então Sokurov, em sua capacidade de narrador, despedir-se do marquês: “Adeus, Europa”.

Enquanto isso, em Francofonia, o diretor generosamente leva Napoleão a afirmar ter feito a guerra para trazer obras de arte para a França: Pour l´art j´ai fait la guerre; o que é falso, mas quase enternecedor. Mais verdadeira é a frase seguinte: “Eu tinha excelentes conselheiros, para decidir o que trazer e o que deixar para trás”. É uma fórmula edificante para resumir a rapacidade das espoliações francesas durante as guerras napoleônicas.

Em outra cena, o fantasma de Napoleão fica em admiração diante do famosíssimo quadro de David retratando a sua coroação, consagração de uma rápida e surpreendente ascensão, e exclama: Voilà, c´est mon couronnement. La beauté idéale. Mais inacreditável do que presenciar essa coroação, em 1804, seria prever que tudo terminaria com os últimos seis anos passados em uma ilhota no meio do Atlântico Sul, a 4 mil quilômetros do Brasil e a 2 mil quilômetros de Angola, talvez vestindo um velho uniforme virado pelo avesso.

As últimas palavras no conto de Tchekhov são para dizer que as cores do mar, enquanto o corpo de Gusev afunda, são “quase impossíveis de ser descritas em linguagem humana”. Nesse contraste entre a miséria humana e a beleza do mar, Tchekhov talvez nos diga que a razão de ser do artista é revelar aquilo mais precioso que percebe do mundo ao seu redor, superar as limitações da “linguagem humana” e trazer com isso algum consolo.

Sem as guerras napoleônicas, sem a invasão da Rússia, não teríamos Guerra e Paz. Sem o quadro de Géricault, o naufrágio da Méduse seria hoje um incidente ignorado. O sofrimento das 149 pessoas que embarcaram na jangada, a incompetência do capitão aristocrata estariam perfeitamente esquecidos. O quadro está, aliás, informa Julian Barnes, em processo irreversível de escurecimento, por causa de materiais misturados à tinta utilizada por Géricault. Um dia, não se distinguirá nada na enorme tela exposta no Louvre. Mas ela terá durado bem mais do que duram os seres humanos, frágeis e imperfeitos.

Sokurov nos faz ver que a história afeta a arte, mas que a arte preserva, na mente coletiva, as tragédias, e de alguma forma as resgata. Para as vítimas de guerras, bombardeios, torturas, genocídios e naufrágios, contudo, não há consolo algum em saber que talvez, um dia, seu sofrimento venha a inspirar pintores, compositores ou escritores. Pinturas podem eternizar Tiradentes esquartejado, transformar a figura histórica em símbolo, mas para isso terá sido preciso antes haver o enforcamento e o esquartejamento.

Enquanto a multidão desce as escadarias do Palácio de Inverno em Arca russa, Sokurov termina seu filme mostrando, por uma porta aberta no térreo, o rio Neva gelado, do qual emana um vapor, uma neblina, com o comentário: “O mar cerca tudo… estamos destinados a navegar para sempre… a viver para sempre”. Presumivelmente, é do povo russo que o diretor nos fala aqui.

Mas o mesmo vale para todos nós. Estamos sozinhos em nossas jangadas, navegando a esmo pela experiência solitária que é a vida, implorando a Nêmesis para que o nosso mal seja apenas o de ter de revirar as roupas ao avesso, penando até o momento final em que, inevitavelmente, seremos esquartejados, devorados e jogados ao mar.

Tirei a foto principal na Baía de Ha Long, no Vietnã

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O Casamento Secreto

O Casamento Secreto

Stendhal, é sabido, escreveu ele próprio seu epitáfio. Quem visita o túmulo do escritor no cemitério de Montmartre — e eu sou, ocasionalmente, um desses peregrinos — vê sobre a lápide, mais ou menos, a inscrição determinada por ele. Digo “mais ou menos” porque, como contei em O Dia em que vi o Crânio de meu Avô, seu primo e executor testamentário, Romain Colomb, inverteu a ordem dos três verbos escolhidos, e por isso lemos, em italiano: “escreveu, amou, viveu”, em vez do pretendido pelo romancista, que era “viveu, escreveu, amou”.

Outro desejo não respeitado de Stendhal é que o túmulo informasse o seguinte: Quest´anima/Adorava/Cimarosa, Mozart e Shakspeare [sic]. A vontade de que a declaração de amor aos três artistas fosse incluída no epitáfio aparece em Souvenirs d´égotisme, volume autobiográfico escrito em 1832, onde Stendhal declara que imaginara seu túmulo e o que nele deveria ser escrito. Mais tarde, em 1837, em um resumo de cinco páginas de sua vida, o autor acrescenta Correggio aos amados Cimarosa, Mozart e “Shakspeare” — e constatamos, então, que de fato faltava um pintor na lista anterior — mas já não parece querer incluir os artistas na inscrição na lápide.

O compositor Domenico Cimarosa (1749-1801), “essa bela planta napolitana”, como diz dele Stendhal em seu Diário, foi um dos objetos constantes da admiração do escritor. De Cimarosa, ouve-se hoje sobretudo uma ópera-bufa, Il matrimonio segreto (1792), a que assisti uma vez em Munique. Aos 25 anos, minha devoção ao escritor e a seus personagens tornava-se menos exclusiva do que fora até pouco tempo antes, mas perdurava então e perdura ainda. Stendhal já não dominava tanto meus pensamentos, mas foi o interesse por ele que me fez ouvir a ópera de Cimarosa. Sabia que conhecer o músico era uma forma de manter a proximidade com o escritor.

Conservo o programa. Nada nele escrevi, ao contrário do que frequentemente fazia naquela época, com comentários decididos em que destruía ou elevava aos céus uma obra, uma produção, uma atuação. Quatro anos antes, por exemplo, eu assistira em Londres a uma montagem da comédia inglesa em que Il matrimonio segreto é inspirada, The Clandestine Marriage (1766), de George Colman e do célebre ator David Garrick. Neste caso, escrevi em várias páginas do programa, elogiando os atores e julgando fraca a peça. Embora o programa da obra de Cimarosa nada contenha da minha mão, lembro bem que gostei da ópera e da produção, e saí feliz do teatro em Munique.

Sabemos, pela autobiografia de Stendhal escrita de 1835 a 1836 e denominada por ele Vie de Henry Brulard, que o escritor assistiu pela primeira vez a uma representação da ópera de Cimarosa em maio de 1800, em Ivrea. Ele tinha 17 anos, e estava na Itália acompanhando o exército francês. Era a segunda campanha da Itália, Napoleão Bonaparte tornara-se primeiro cônsul no ano anterior e o pintor David o retrataria atravessando o passo do Grande São Bernardo, casaco esvoaçante, jovem e heroico sobre seu cavalo empinado.

Sobre essa tela, diz o historiador americano David Bell, em seu livro de 2020, Men on Horseback: the Power of Charisma in the Age of Revolution, que ela se tornou “uma das imagens mais conhecidas da glória militar”, ao mostrar Bonaparte parecendo “se fundir na paisagem sublime que o quadro retrata, e comandar ao próprio vento”. A batalha de Marengo, em junho de 1800, se tornaria uma das etapas gloriosas da epopeia napoleônica, e a República Francesa triunfava das monarquias.

Em um dos prefácios em que pensou para a sua biografia de Napoleão, Stendhal escreveu: “Vi o general Bonaparte pela primeira vez dois dias após a sua passagem pelo São Bernardo, ao pé do forte de Bard [maio de 1800]; oito ou dez dias após a batalha de Marengo, fui admitido no seu camarote no La Scala”, portanto, em junho de 1800. Em Vie de Henry Brulard, ele não parece tão certo de ter visto Napoleão durante o assédio francês ao forte. Em todo caso, devemos supor que o general Bonaparte terá causado nele a mesma impressão que nos causa o quadro de David.

Mas estamos ainda em Ivrea onde, informa a Vie de Henry Brulard: “À noite, tive uma sensação que nunca esquecerei. Fui ao espetáculo”.

A ópera causou, afirma ele retrospectivamente, 35 anos depois, uma emoção mais forte do que ter atravessado os Alpes pelo Grande São Bernardo e passado por uma descarga de canhões perto do forte de Bard. Comparadas à ópera de Cimarosa, a guerra e a perigosa, por estreita, passagem pelos Alpes — Napoleão, na verdade, tivera de cruzar as montanhas em lombo de mula, e o cavalo empinado é parte da propaganda — pareceram-lhe algo “grosseiro e baixo”. No entanto, percebemos que as sensações causadas pela travessia das montanhas e os tiros de canhão lembram as experimentadas por Fabrice del Dongo na batalha de Waterloo, em La Chartreuse de Parme.

Em todo caso, assegura-nos Stendhal, ouvir Il matrimonio segreto aos 17 anos determinou-o a vivre en Italie et entendre de cette musique, e isso tornou-se para ele “a base de todos os meus raciocínios”. Aparentemente, apenas uma vez antes ele assistira a uma representação operística, em Paris, aos 15 anos, mas essa fora uma obra francesa contemporânea medíocre, Le Traité nul — ”un fio de vinagre” diz ele: ce filet de vinaigre continu et saccadé — de um compositor hoje esquecido, Pierre Gaveaux.

Com a descoberta de Cimarosa, ir à ópera torna-se uma de suas razões de viver e ele nos fala a respeito inúmeras vezes nas obras autobiográficas. Gosto desta frase, que está em Vie de Henry Brulard: “Eu andaria dez léguas a pé, pisando sobre excrementos, coisa que mais detesto no mundo, para assistir a uma representação de Don Giovanni bem interpretada”.

Textos autobiográficos de Stendhal, contudo, não são necessariamente confiáveis, e não é seguro que ele tenha ouvido Cimarosa pela primeira vez em Ivrea. Em 1808, em uma carta a sua irmã Pauline, ele diz: “Gostei de música pela primeira vez em Novara, alguns dias antes da batalha de Marengo. Fui ao teatro; davam Il matrimonio segreto”. Que a representação tenha sido em Novara ou Ivrea, o leitor percebe que nem tudo foi perfeito nessa iniciação musical. O escritor comenta: “Faltava um dos dentes da frente à atriz que cantava Carolina”. Esse detalhe ficou na sua memória como sendo “o que sobrou daquela felicidade divina”.

W. G. Sebald, em Vertigem (1990), no capítulo, não muito satisfatório, em que ficcionaliza a relação de Stendhal com o amor e a Itália, decide que o dente ausente é “o canino superior direito”. Pessoalmente, imagino que seria algum dos incisivos laterais; a falha ficaria mais visível, e a observação de Stendhal mais natural.

E, de repente, penso que talvez houvesse aí o tema de um conto, certamente não muito alegre, nessa história de uma soprano que, em 1800, era obrigada a cantar, para sobreviver, ostentando a falta de um dente, em uma pequena cidade no Norte da Itália, talvez deambulando de um teatro provinciano a outro. O autor não nos dá seu nome, mas afirma que, no dia seguinte, estava apaixonado por ela enquanto partia a cavalo de Ivrea. Obviamente, não é pela intérprete de Carolina que Stendhal se apaixonara, mas pela Itália, a sua própria juventude, a libertação do jugo familiar, a aventura e a música. É possível que Cimarosa tenha marcado de forma duradoura sua imaginação porque passou a cristalizar todos esses sentimentos.

Outro músico sobre quem Stendhal fala frequentemente é Rossini. Se a adoração por Cimarosa foi constante, o apreço pelo compositor de Il barbiere di Siviglia e La Cenerentola revela-se oscilante. Em Rome, Naples et Florence — uso a edição de 1826 — o romancista nos conta que, em 1817, viajando a Nápoles, em um albergue em Terracina, no Lácio, notou “um homem louro bonito, um pouco careca”, de cerca de 25 anos. Stendhal perguntou-lhe se podia ainda ter esperança de assistir, em Nápoles, de onde chegava o viajante, ao Otello de Rossini, e passa a elogiar o talento do compositor.

O interlocutor fica levemente embaraçado, seus companheiros de viagem sorriem: enfin, c´est Rossini lui-même. A frase seguinte resume bem a forma como Stendhal escreve sobre Rossini em seus textos autobiográficos: “Felizmente, e por um grande acaso, eu não falara nem da preguiça desse gênio admirável e nem dos seus numerosos plágios”. Rossini, como se sabe, frequentemente reutilizava suas próprias melodias em diferentes composições, mas Stendhal gosta de dizer que ele também tomava empréstimos de outros compositores. Ao ouvir O Barbeiro de Sevilha pela primeira vez, opina: “isso me pareceu um pouco pilhado de Cimarosa”, o que não o impede de escrever, uma página depois: J’admire de plus en plus le Barbier.

Henri Martineau, um dos especialistas clássicos de Stendhal, em seu estudo L´Oeuvre de Stendhal: histoire de ses livres et de sa pensée (1945) opina que o escritor apreciava o artista em Rossini, mas que “o homem, em troca, sempre despertou antipatia nele: o seu cinismo o chocava assim como o enorme apetite e a desenvoltura grosseira em relação às mulheres”.

Em 1823, Stendhal publicaria a primeira biografia do compositor em francês. Abro a Vie de Rossini ao acaso e leio o seguinte trecho: Vif, léger, piquant, jamais ennuyeux, rarement sublime, Rossini semble fait exprès pour donner des extases aux gens médiocres. Hagiográfico isso não é. Em todo caso, o primeiro encontro, em Terracina, transcorreu de forma idílica. O francês e o italiano ficaram “tomando chá até depois da meia-noite”. Escreve Stendhal: c´est la plus aimable de mes soirées d´Italie. E comenta: “despedi-me desse grande compositor com um sentimento de melancolia”.

Alguns estudiosos, porém, colocam em dúvida se Rossini e Stendhal realmente interagiram na Itália, como Rome, Naples et Florence e a correspondência do escritor afirmam. Em um ensaio intitulado Stendhal et Rossini: Une étude documentaire, de 1999, Stéphane Dado e Philippe Vendrix debruçam-se sobre essa questão. Apontam que mesmo o encontro em Terracina talvez nunca tenha acontecido e que Stendhal, em Milão, possivelmente só viu Rossini de longe, na qualidade de maestro, regendo suas óperas no La Scala. O ensaio dos dois pesquisadores belgas é bastante útil. Lista todas as vezes em que o compositor é citado na obra do escritor, e calcula que Stendhal terá assistido a 23, talvez 25, das 39 óperas de Rossini.

Enquanto eu escrevia o parágrafo acima, amigos vieram de Roma me visitar em Kuala Lumpur. Trouxeram-me de presente uma tradução para o italiano, por Donata Feroldi, publicada em 2019, de Promenades dans Rome, que conta com uma excelente apresentação do escritor e ensaísta Emanuele Trevi.

Logo na primeira frase, Trevi nos diz: L´Italia di Stendhal è una gigantesca soperchieria, un castello di carte truccate, una sistematica impudenza. Ao contrário do que poderia parecer, o ensaio é elogioso a Stendhal, ajudando a confirmar junto ao leitor que o amor do francês pela Itália é reciprocado pelos italianos. Mais adiante, Emanuel Trevi opina “não haver nada mais verdadeiro do que a Itália de Stendhal”, ou seja: a Itália descrita pelo francês é condizente com sua “reação subjetiva, alterada constantemente pela força dos seus mutáveis estados de ânimo”. Avalia Trevi ser Stendhal o primeiro entre os modernos a transformar a literatura em um punto di vista personale, necessariamente eccentrico perché generato dall´individuo e dal suo egotismo.

De maneira divertida, o ensaísta italiano comenta que os estudiosos de Stendhal se dedicam, paradoxalmente, a descobrir as inverdades nas obras de seu scrittore prediletto, e que cada um tem a sua mentira stendhaliana preferida. Para Trevi, justamente, il non plus ultra è l´incontro fortuito com Gioacchino Rossini em Terracina, onde o diálogo descrito por Stendhal é, na sua avaliação, una bellissima intervista immaginaria.

Vie de Rossini foi, em termos de vendas, a obra mais bem-sucedida de Stendhal, durante a existência do escritor. A publicação, provavelmente em novembro de 1823, coincidiu com a chegada do compositor a Paris, para uma temporada de um mês. Posteriormente, Rossini moraria na capital francesa mais de uma vez e lá morreria em 1868.

Frequentemente associo o compositor italiano, símbolo mesmo do bel canto, à França, e particularmente a Stendhal. O músico, aliás, entrou na minha vida antes mesmo do romancista, por causa de um dos meus álbuns prediletos de Tintin, Les Bijoux de la Castafiore, que terei lido pela primeira vez aos 7 ou 8 anos. Na história em quadrinhos, a cantora lírica Bianca Castafiore vem visitar Tintin e o Capitão Haddock no castelo de Moulinsart. Uma ópera de Rossini, La gazza ladra, ajuda a resolver o roubo de uma esmeralda. O enredo lembra o de uma ópera-bufa. Na capa, o gesto de Tintin revela que vamos adentrar um mistério e também nos convida a manter silêncio enquanto canta uma ária para a televisão aquela que é conhecida, no universo de Hergé, como “o rouxinol milanês”.

Rossini é tão associado a Paris para mim que suas óperas me fazem pensar na Restauração e na Monarquia de Julho e, portanto, em Stendhal e Balzac, cujas obras sintetizam, a meu ver, a vida durante esses sucessivos períodos da história francesa.

Julien Sorel, uma noite, vai à ópera assistir Le Comte Ory, penúltima ópera rossiniana, cuja estreia se deu em Paris em 1828. Durante a pandemia de Covid-19, quando a Metropolitan Opera passava gratuitamente, no que parece hoje o distante ano de 2020, gravações de algumas de suas produções, Le Comte Ory foi mostrada ao menos duas vezes, em uma montagem de 2011, com Juan Diego Flórez, Joyce DiDonato e Diana Damrau.

Essa nunca será minha obra predileta do compositor. Mas foram bons momentos, na solidão dos confinamentos na Malásia, ver Juan Diego Flórez, como o Conde Ory, e Diana Damrau, no papel de Condessa Agnès, cantando “Ce téméraire”. Ele tenta seduzi-la fantasiado, histrionicamente, de freira. Essa cena, que dura apenas três minutos, aparece na Internet, mas com outra soprano, Pretty Yende, fazendo o papel de Agnès. Vale a pena assistir. Levanta a alma.

Reli agora os parágrafos em Le Rouge et le Noir sobre a ida de Julien à ópera. Dá um certo reconforto saber que, na sua curta e penosa vida, ele pelo menos ouviu Rossini.

Um sábado de março, enquanto eu estava no teatro em Kuala Lumpur, Stendhal, seus personagens, suas obras reapareceram na minha imaginação, logo no início de um concerto. Naquele momento, eu estava imerso na realidade do Sudeste Asiático. Acabara, em duas semanas sucessivas, de ir a trabalho a Bornéu. Pela primeira vez viajara a Bandar Seri Begawan, capital de Brunei, e, poucos dias depois, a Kota Kinabalu, capital do estado malásio de Sabá. Preparando-me para as duas viagens, lera livros sobre a história de Bornéu e, ao chegar, visitara museus e mercados. Mergulhara na realidade local. As reuniões de trabalho que eu lá mantivera haviam revelado muito a mim sobre a economia, as relações diplomáticas, os interesses estratégicos dos países do Sudeste Asiático.

Sentado em Kuala Lumpur no Istana Budaya, ou Palácio da Cultura, a literatura francesa, a música italiana estavam bem longe da minha mente quando, de repente, iniciou-se o concerto. E no entanto, eu sabia o que me esperava, o programa era claro: abertura de Semiramide, de Rossini, e, de Respighi, o Concerto Gregoriano para violino e Os Pinheiros de Roma. Entre as duas obras de Respighi, uma composição do músico malásio contemporâneo Yeo Chow Shern.

Aberturas de óperas de Rossini representam uma forma hábil de iniciar um concerto. Sua energia motiva a plateia. A de Semiramide é particularmente rica, brilhante e tonitruante. Stendhal, em um artigo de imprensa que escreveu em 1825, logo após assistir a uma récita da ópera em Paris, opinou sobre a abertura: elle est jolie, mais a semblé un peu longue. Em gravações, ela dura cerca de 12 minutos. A mim, esse tempo pareceu curto. À medida que a orquestra tocava, Bornéu, a Associação de Nações do Sudeste Asiático, o Mar do Sul da China, a história da Malásia e de Brunei iam se fundindo, como em um casamento inesperado, improvável, secreto, com Henri Beyle, Julien Sorel, Mme. de Rênal, Fabrice del Dongo e a duquesa Sanseverina. Como tem acontecido com frequência, pensei que não nos ensinam, na escola, o suficiente sobre a história da Ásia.

Em 1830, ano em que Le Rouge et le Noir foi publicado e Julien Sorel guilhotinado, houve revoluções na Europa. Carlos X perdeu o trono, e Luís Filipe de Orléans tornou-se rei dos Franceses. Na Bélgica, durante uma representação de ópera no Teatro La Monnaie inicia-se a revolta que levaria à revolução e à independência. No Brasil, D. Pedro I estava a meses de sua abdicação, e pessoas escravizadas continuavam sofrendo e sofreriam ainda por muito tempo. Mas o que estaria acontecendo na China? A quantas andava a progressão do imperialismo britânico na Índia? Como se vivia em Java sob o colonialismo holandês? Como via o Sultanato de Aceh, em 1830, a crescente presença holandesa em Sumatra? Qual dos reis da dinastia Chakri reinava no Sião? Seriam felizes os seus súditos?

Após conhecer — ou não — Rossini em Terracina, Stendhal, em 1817, continuou rumo a Nápoles. Lá, maravilhou-se com o Teatro San Carlo, que estava sendo reinaugurado depois de ter pegado fogo no ano anterior. Em Rome, Naples et Florence, ele declara: je me suis cru transporté dans le palais de quelque empereur d’Orient. Mes yeux sont éblouis, mon âme ravie.

Nápoles significou, para Stendhal, ir à ópera. É sobretudo do Teatro San Carlo que ele fala nas muitas páginas sobre a cidade, descrevendo-o exaustivamente. E o Rio de Janeiro paga a conta. Segundo ele, somente em Nápoles há “uma tal mistura de mar, montanhas e civilização. Está-se no meio dos mais belos aspectos da natureza; e 35 minutos depois, pode-se ouvir cantar o Matrimonio segreto. Em Constantinopla e no Rio de Janeiro nunca se verá isso, ainda que fossem tão belas como Nápoles”.

Stendhal é injusto. Em D. João VI no Brasil (1908), Oliveira Lima nos fala da vida musical no Rio de Janeiro durante a estada entre nós daquele rei. Parece ter sido rica, embora o historiador e diplomata diga a respeito do Real Teatro de São João, inaugurado em 1813 no logradouro hoje conhecido como praça Tiradentes, e onde se davam apresentações operísticas: “a orquestra deixava um tanto a desejar, exceção feita de um flautista francês e de um excelente violinista”. A essa ideia opõe-se Vasco Mariz. Em artigo de 2008, “A música no Rio de Janeiro no tempo de D. Joao VI”, o musicólogo, e também diplomata, escreve sobre o São João: “Viajantes de passagem pelo Rio louvaram a qualidade da execução e consideraram a orquestra como uma das melhores do mundo de então”. O teatro, porém, queimou em 1824, e seu substituto não se lhe podia comparar. Admite Vasco Mariz: “Aquele grande fausto musical dos anos anteriores acabara. Não havia mais meios financeiros para manter o mesmo nível dos espetáculos”.

O Padre Perereca, ardente bajulador da monarquia, ao descrever o Teatro de São João, em Memórias para servir à História do Reino do Brasil (1825), parece tão maravilhado como Stendhal com o San Carlo, embora demonstre menos competência literária: “Este Real Teatro, traçado com gosto e construído com magnificência, a ponto de emular os melhores teatros da Europa, tanto pelo aparato de formosas decorações, pompa do cenário, e riqueza do vestuário, quanto pela grandeza e suntuosidade do real camarim…”. No mesmo local onde se erguia o São João hoje está, após vários sucessores, o Teatro João Caetano.

As fontes sobre a vida musical no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX são numerosas. Um ensaio de 2005 do musicólogo Rogério Budasz, intitulado “New sources for the study of early opera and musical theatre in Brazil”, menciona que uma ópera de Cimarosa, L´Italiana in Londra, já havia sido apresentada antes mesmo da chegada da família real. Não encontrei registro, nos diversos textos que consultei, de alguma apresentação de Il matrimonio segreto. No caso de Rossini, entre 1820 e 1826 — ano de publicação da edição revista de Rome, Naples et Florence — oito de suas óperas foram apresentadas no Rio, informa Budasz citando outro musicólogo, Ayres de Andrade. Segundo Oliveira Lima, antes disso, em 1819, Tancredi já havia sido montada no São João. Essa era uma das óperas de Rossini que Stendhal preferia.

Oliveira Lima lembra que, em fevereiro de 1821, tendo D. João VI jurado a contragosto, sob a pressão popular, fidelidade à futura Constituição portuguesa, na noite do mesmo dia, depois de ter cedido “ao pavor, desfazendo-se em pranto e quase desmaiando”, foi ao Teatro São João, para assistir à Cenerentola. Como no caso de Julien Sorel, esperemos que ouvir Rossini tenha trazido alguma alegria ao contrariado monarca.

Enquanto isso, em um teatro em Kuala Lumpur, estou ainda escutando a abertura de Semiramide, com os pensamentos vagando de Stendhal para o estado malásio de Sarawak, onde ainda não estive. Lia por aqueles dias a biografia do “Rajá Branco”, o inglês James Brooke, que fizera daquele pedaço da ilha de Bornéu um território independente em 1841. A história de Sarawak é inusual, rica, cheia de reviravoltas. E é tão violenta quanto a história do Brasil ou de qualquer outro lugar na Terra. Onde há seres humanos há ambições, vinganças, crueldades, assassinatos, guerras; e há também o teatro, a literatura e a música. É uma combinação paradoxal, um consternante casamento.

Terminara a abertura da ópera de Rossini. Aplausos. Aparece no palco o violinista italiano Domenico Nordio, estrela da noite, prestes a tocar o Concerto Gregoriano de Respighi, que eu não conhecia e viria a considerar, possivelmente de forma errônea, um pouco maçante. Sentado na segunda fila na plateia, ouço com clareza Nordio queixar-se com os músicos ao seu redor da temperatura do ar condicionado no teatro, de fato excessivamente fria.

No dia seguinte, domingo, acordei gripado. Não pude sair de casa.

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A alma dos belos corpos

A alma dos belos corpos

A troca de mensagens inesperada, uma noite em Kuala Lumpur, desviou minha atenção do texto que eu escrevia sobre Castro Alves. Um amigo virtual no Twitter, Hudson Rabelo, residente no Rio de Janeiro, mandava-me a foto de um livro que conseguira na Berinjela, conceituado sebo carioca, e de um recibo. Nunca tínhamos nos correspondido antes. O recibo, onde meu nome aparece impresso, é o de uma compra que fiz em Quito, onde eu então morava, na livraria Libri Mundi. Lista sete obras, uma delas La guerra del fin del mundo, de Mario Vargas Llosa, justamente o mesmo exemplar adquirido por Hudson Rabelo na Berinjela. Esse foi o último romance que me dispus a ler do escritor peruano. Antes de ele virar espanhol, antes de ele virar marquês, antes de ele virar companheiro de Isabel Preysler, heroína das revistas espanholas de fofocas e ex-senhora Julio Iglesias. Preferi não ler nenhum dos subsequentes.

A Berinjela fica em frente à livraria Leonardo da Vinci. Essa não é mais a Leonardo da Vinci especializada em obras estrangeiras que conheci criança, levado pela minha mãe, e frequentei, ao longo da vida, até que fechasse em 2015. Um ano depois, surgiu novo estabelecimento com o mesmo nome, no mesmo local, no subsolo do prédio Marquês do Herval, na Avenida Rio Branco no Centro do Rio de Janeiro. O perfil mudou. Transformou-se em uma boa livraria de obras brasileiras e dispõe de um ótimo café. Compete, para mim, com a Livraria da Travessa de Ipanema na categoria de mais charmosa do Rio de Janeiro. Outros, eu sei, preferem a elas a Argumento.

É um mistério como La guerra del fin del mundo foi parar no alfarrabista. Tenho uma teoria a respeito, mas ela não explica tudo. Tampouco sei o motivo de eu ter comprado esse exemplar na Libri Mundi, pois já lera o romance anos antes. Igualmente estranho é o recibo, que considero um documento de caráter pessoal, ainda estar dentro do volume e ter podido ser lido por todos os que o abriram no sebo.

Lembro, para quem tiver esquecido, que La orgía perpetua não é um livro erótico, mas outra obra de Vargas Llosa, um estudo sobre Flaubert. Esse exemplar, também listado no recibo, continua a existir em nossas estantes, e posso vê-lo neste exato momento aqui em Kuala Lumpur.

Em Quito, naquele tempo, nosso programa predileto, aos domingos, era almoçar no restaurante italiano de um hotel no centro da cidade — nossa filha, então muito criança, encomendava sempre o mesmo prato, um farfalle ao salmão — e, depois, ir visitar ali perto a Libri Mundi. Como o nome indica, a livraria oferecia obras em diversos idiomas. Era como ter, em Quito, a Leonardo da Vinci de antigamente, que ainda então existia. A Libri Mundi ficava instalada em uma casa de dois ou três andares em rua bucólica. Vejo na Internet que, nessa localização, ela fechou em 2015, portanto no mesmo ano da velha Leonardo da Vinci, mas continua a existir em centros comerciais da cidade.

Rever o recibo esquecido da Libri Mundi foi como viajar no tempo. Relembrei a infância da minha filha; relembrei nossos animais de estimação, todos agora mortos, que eram felizes na casa em Quito; relembrei detalhes da vida no Equador; relembrei amigos. Saber do fechamento da sede da Libri Mundi na rua Juan León Mera doeu, como dói o fechamento de toda livraria. A verdade, contudo, é que se os humanos desaparecem, não deve surpreender que o mesmo aconteça aos lugares mágicos onde compramos livros.

Em Seis livrarias, em 2018, escrevi sobre aquelas de que mais tinha gostado no ano anterior. A primeira frase dessa minha crônica é absolutamente verdadeira: “Livrarias tendem a aparecer magicamente diante de mim”.

A lembrança da Libri Mundi, ressuscitada inocentemente por uma mensagem no Twitter, deu-me vontade de voltar a falar em livrarias. Omito aqui as lisboetas, descritas em um texto meu de 2021, Um dia em Lisboa, e aquelas de que tratei em “Seis Livrarias”. Todas as fotos foram tiradas por mim menos, naturalmente, a que revela o recibo da livraria quitenha e o romance de Vargas Llosa dentro do qual ele reside há anos.

Em sua essência, livrarias são todas parecidas, e podemos considerá-las de maneira descomplicada. São espaços onde não há suspense. No entanto, algumas se diferenciam das demais. A razão para isso é o ambiente. Entramos, e recebemos a sensação agradável que aquele espaço provoca. Pode ser por causa da arquitetura, ou da decoração, ou do espírito reinante, generoso e simpático ou, ao contrário, imponente. Às vezes o estoque também se destaca, e pode ser mais dirigido aos nossos interesses pessoais.

Há por exemplo, em Paris, uma livraria, Les Cahiers de Colette, xodó de intelectuais, que a rigor em nada se distingue de qualquer outra boa livraria da capital francesa, onde elas pululam. Dois detalhes, porém, a tornam particularmente atraente, a presença magnética no recinto da proprietária e fundadora, Colette Kerber, e um painel em que ela afixa fotografias de escritores que admira. Esses dois detalhes bastam para conceder ao local uma atmosfera única. Nas fotos abaixo, a segunda mostra o que torna Les Cahiers de Colette uma típica livraria parisiense de alta qualidade. A terceira revela um dos detalhes que a transformam em algo fora do comum.

Deveríamos porém iniciar pela mais nobre das livrarias, a Hatchards, em Londres, que frequento desde o final da adolescência. É tão distinta — “livreiros desde 1797” — que expõe, no patamar entre dois dos andares, um retrato a óleo de seu fundador, John Hatchard. A fachada, debruçada sobre a Piccadilly Street, apresenta três alvarás reais, de Elizabeth II, do duque de Edimburgo e daquele que era até setembro de 2022 o príncipe de Gales. Com a morte da rainha e de seu marido, e a ascensão ao trono de Carlos III, suponho que os alvarás terão de ser retirados, e um deles, o do novo rei, novamente concedido. Em julho de 2022, quando lá estivemos pela última vez, os três continuavam na fachada, embora o príncipe Philip tenha morrido em abril de 2021.

Perto do hotel em que minha mulher e eu ficamos hospedados em Londres, em julho, caminhando ao acaso descobri a mais charmosa das livrarias, a John Sandoe. Em um tuíte, durante a viagem, escrevi sobre ela: “a própria ideia de paraíso sereno”. É assim, elas realmente aparecem magicamente diante de mim. Entrei na John Sandoe várias vezes em julho. Era como a livraria do bairro para mim. Situada quase na esquina da agitada King’s Road, o seu silêncio, quando se entra, faz com que pareça a sólida biblioteca de uma casa no campo. Eu subia e descia pelos seus três andares. Às vezes, ficava em pé no térreo, frente às janelas, lendo algum volume retirado de uma das estantes. O verdadeiro luxo, durante uma viagem, é este: não sentir urgência em correr de museu em museu e em visitar exposições, enfrentando trânsito e multidões, mas ficar em um ambiente protegido, longe de todo burburinho, sonhando com frases escritas por outros.

Embora Machado de Assis fosse todo dia à livraria Garnier, não era essa a sua predileta. Isso mostra Brito Broca em A Vida Literária no Brasil – 1900, obra de 1956. Estima ele que Machado “não devia apreciar muito aquele recinto, onde os intelectuais se cruzavam e tropeçavam uns nos outros”, e conta que, uma vez, o escritor comentou com o gerente de outra livraria, a Quaresma, aonde também ia todo dia: “Sabe? Gosto mais da sua casa porque é silenciosa, não há aquele zunzum da Garnier”. Machado teria adorado a John Sandoe.

Em viagem anterior a Londres, em setembro de 2019, eu conhecera, acredito que pela primeira vez, outra livraria famosa da cidade, a Daunt Books de Marylebone, original do que hoje é uma rede. A seção sobre o Sudeste Asiático é importante, e isso despertou minha curiosidade, já que poucos meses depois, eu sabia, estaria de mudança para Kuala Lumpur. Os vitrais e a claraboia na galeria principal fazem dela um espaço particularmente agradável.

A Daunt Books possui uma característica: é ainda, verdadeiramente, uma cadeia de livrarias independentes, cujo proprietário é até hoje seu fundador, James Daunt. Nem a Hatchards preserva mais essa qualidade, pois embora mantenha personalidade própria, pertence agora à rede Waterstones. Esta, por sua, vez, é controlada majoritariamente por uma firma de investimentos americana, proprietária também da rede, colossal, Barnes & Noble. As redes Barnes & Noble e Waterstones são presididas pelo mesmo James Daunt, que já não dirige as livrarias de que é dono.

A maior livraria de Londres, e certamente uma das maiores do mundo, é a Foyles. Faz dez anos que ela já não ocupa o prédio onde a conheci, onde permaneceu por 90 anos, na Charing Cross Road, mas continua na mesma rua, reduto histórico de livreiros. Muitas vezes, quando estudante, perdi-me nos corredores, nos vários andares do edifício anterior. No novo prédio, o interior da Foyles é bem diferente de quando eu era adolescente. É mais nítido, mais claro, mais arrumado. Talvez, por isso, menos original. Possivelmente, a razão seja que a livraria já não é independente, mas pertence à Waterstones. Sem dúvida, eu gostava mais do prédio e do ambiente anteriores. No entanto, sempre acabo entrando no espaço atual, apesar do zunzum.

Charing Cross Road deve muito de sua fama como paraíso de literatos ao filme de 1987 dirigido por David Jones, 84 Charing Cross Road, estrelado por Anne Bancroft, Anthony Hopkins e Judi Dench, e inspirado em uma peça de teatro de James Roose-Evans, a qual era uma adaptação do livro de mesmo título de Helene Hanff. Esta, como o mundo inteiro hoje sabe, graças ao filme, manteve durante cerca de vinte anos uma amizade epistolar com Frank Doel, gerente da livraria de segunda mão londrina Marks & Co. Livros eram encomendados de Nova York por Helen Hanff, Frank Doel os providenciava, muitas cartas eram trocadas pelo Oceano Atlântico, e presentes também. Os dois amigos epistolares nunca se encontraram. Marks & Co já não existe, e o prédio na Charing Cross Road é hoje um McDonald’s.

Assisti à peça em Londres, na adolescência, e revi o filme faz talvez dois anos. O enredo é a celebração de como a relação entre seres humanos pode ser baseada em amor pelos livros. Essa é a minha experiência pessoal. Discutir livros, oferecer e receber livros são gestos que aproximam as pessoas.

Além da Foyles, sobrevivem algumas livrarias na rua. Há pelo menos dois bons sebos, Henry Pordes e Any Amount of Books, ao lado um do outro. Uma pequena rua transversal, de pedestres, Cecil Court, é quase que exclusivamente povoada de alfarrabistas. Ao entrar em Any Amount of Books, em julho, recebi uma surpresa e ouvi uma novidade, ao me ver face a face com um amigo livreiro malásio, Nazir Harith Fadzilah. Eu sabia que ele estava em Londres, acompanhando a mulher, mestranda na Inglaterra. Não sabia que trabalhava no sebo em Charing Cross Road. Nazir é o fundador de uma livraria encantadora, Tintabudi, em uma pequena sala em Kuala Lumpur, sobre a qual escrevi em uma Carta da Malásia, A Tinta dos Seres Bons. A surpresa, boa, foi encontrar Nazir em Any Amount of Books. A novidade, menos boa, foi saber por ele que a Tintabudi, fechada enquanto seu proprietário está na Inglaterra, já não reabrirá no mesmo endereço quando Nazir voltar à Malásia.

Notei a ausência, nessa última viagem, de um terceiro sebo na Charing Cross Road. A Internet me informa que Francis Edwards e Quinto — duas antigas livrarias que se haviam fundido em um só estabelecimento — fecharam em 2020, por causa da Covid. Novamente separados, os dois alfarrabistas continuam a existir, embora não mais em Londres; Quinto, na verdade, agora é apenas virtual. Descubro, meio por acaso, que Francis Edwards esteve instalada, originalmente, no prédio onde hoje fica a Daunt Books original, a de Marylebone.

Fica o registro de como a fachada do local na Charing Cross Road se apresentava ao transeunte em 2019, quando a fotografei.

Assim como Londres, Paris e Bruxelas são povoadas de livrarias irresistíveis, em cuja companhia as horas passam agradavelmente.

A maior de Bruxelas é provavelmente a Filigranes. Quando eu trabalhava na capital da Bélgica, ficar lá ouvindo o piano, selecionando livros, tomando um chocolate quente era uma boa forma, aos domingos, de passar as tardes de inverno. Menor, porém mais bonita, é a Tropismes. O nome, suponho, é homenagem à obra mais famosa da escritora Nathalie Sarraute. A livraria fica dentro das Galeries Royales, três passagens interligadas, de meados do século XIX, com teto de vidro, no centro histórico de Bruxelas. Seu estoque é particularmente valioso nas áreas de literatura e poesia francófonas e de história e outras ciências humanas.

Muitas vezes mencionei a livraria Galignani, em Paris, de passado tão ilustre que há na sua página eletrônica um opúsculo ilustrado, em francês e inglês, narrando sua história e a da família que a fundou. Existente desde os primeiros anos do século XIX, instalou-se na rue de Rivoli em meados do mesmo século. Já no início era também uma livraria, e uma editora, de livros em inglês. O espírito que reina nela é semelhante ao da Hatchards e ao da Ferin de Lisboa. Trata-se de um ambiente aristocrático, acolhedor, a anos-luz das vicissitudes e tragédias humanas. Deti-me sobre a Galignani, particularmente, em Um lugar encantado, em que comentei o guia de François Busnel, Mon Paris littéraire.

Um leitor, na época, referindo-se ao título que eu dera àquela crônica, perguntou-me qual era o “lugar encantado”: Paris, a rue de Richelieu, livrarias em geral, alguma específica, livros ou o guia de François Busnel? Ou se seria minha imaginação vagando por todos esses elementos? O sentido do título, a mim, parece evidente.

Além da Galignani e de Les Cahiers de Colette, em “Um lugar encantado” eu citava outra livraria entre minhas prediletas, a Delamain. Sobre a permanência de outra favorita, L´écume des pages, e os infortúnios de La Hune, talvez um dia eu escreva no futuro. Convém, aqui, fazer um comentário a respeito da Shakespeare and Company, possivelmente a mais célebre de Paris, se não do mundo.

Antes de mais nada, é preciso saber que essa não é a livraria homônima fundada e mantida por Sylvia Beach entre 1919 e 1941. Deve-se ler seu livro de memórias de 1956, intitulado naturalmente Shakespeare and Company, para entender a personalidade da autora. Obra mais encantadora nunca foi escrita. Revela uma visão do mundo espirituosa, não-conflitiva, sem dramas. Assim, pelo menos, Sylvia Beach quis passar para a posteridade. Narra com pluma leve os dissabores de sua vida. Sobre os seis meses que passou presa pelos alemães em Vittel, em 1941, diz apenas: After six months in an internment camp, I was back in Paris, but with a paper stating that I could be taken again by the German military authorities at any time they saw fit. Comenta rapidamente o fato de que a igreja presbiteriana de que seu pai era pastor, em Princeton, contava, entre os membros da congregação, com o futuro presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson. Sylvia Beach descreve de maneira vívida os muitos escritores de quem foi amiga, como Valery Larbaud, André Gide, Paul Valéry, Gertrude Stein, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. Este, em suas próprias memórias dos anos passados em Paris, A Moveable Feast, incluiu um capítulo sobre a livraria. De forma pouco característica, Hemingway tem apenas elogios sobre a livreira, dizendo: No one that I ever knew was nicer to me.

Acabo de reler Shakespeare and Company, onde aprendo que Sylvia Beach also translated Barbarian in Asia by Henri Michaux. Em julho, em Paris, minha mulher e eu, depois de muito buscar, encontramos um exemplar de Un barbare en Asie na livraria L’écume des pages. Nesse livro, que procurávamos há tempos, o escritor franco-belga fala sobre sobre sua experiência da Ásia, inclusive da Península Malaia e de Singapura. Diz sobre os malaios o que penso cotidianamente em Kuala Lumpur: Il n´y a pas une chose que je n´aime en eux. Foi em Quito que li pela primeira vez um livro de Henri Michaux, comprado na Libri Mundi, que trata do período, em 1928, em que morou no Equador, e de como tomou o caminho de regresso à Europa a pé, em lombo de mula e em canoa, descendo o rio Napo e, depois, de barco, o Amazonas até Belém do Pará, de onde finalmente tomou o navio para casa. Só em canoa foram dois mil quilômetros percorridos. Em Iquitos, acorda um dia e pensa que terá ainda tout le Brésil à traverser.

E é como se tudo fizesse sentido no mundo, como se todos os pontos esparsos da minha vida se juntassem na nossa biblioteca, hoje dividida entre Kuala Lumpur e Singapura.

Nosso exemplar de Shakespeare and Company também foi comprado em Quito, em um sebo chamado Confederate Books, que ainda existe, embora hoje sob outro proprietário e em outra localização. Naquela época, situava-se em uma esquina da Juan León Mera, a rua onde ficava a Libri Mundi. De repente, lembro que aquele era um canto da cidade bem perto do meu escritório, e que às vezes, na hora do almoço, eu caminhava até lá, ia de livraria em livraria, fuçando. Abro A Moveable Feast e encontro dentro um recibo da Confederate Books, listando à mão a compra do livro do Hemingway com mais dois, um deles o Seven Gothic Tales da Isak Dinesen, que considero notável e no qual penso com frequência.

A Shakespeare and Company era na verdade um centro intelectual. Também biblioteca de empréstimo, servia de ponto de referência, de encontro, para os escritores da Lost Generation, conterrâneos de Sylvia Beach — all those pilgrims of the twenties, ela nos diz, who crossed the ocean and colonized the Left Bank of the Seine — naquela época hoje venerada, em que Paris, entre as duas Guerras Mundiais, ainda era o centro do mundo, em termos artísticos e culturais. A livreira tornou-se uma editora famosa na história da literatura ao financiar, apesar de seus escassos recursos monetários, a publicação de Ulysses de James Joyce, em 1922, quando isso não teria sido possível na Inglaterra ou nos Estados Unidos, onde o romance era considerado obsceno. Sylvia Beach idolatrava James Joyce e gerenciava sua vida, a pessoal e a profissional. Menciona apenas discretamente que o autor irlandês, quando pôde por fim publicar o livro em países anglófonos, mostrou-se ingrato com ela, financeiramente: I understood from the first that, working with or for Mr. Joyce, the pleasure was mine—an infinite pleasure: the profits were for him.

A primeira e ilustríssima Shakespeare and Company, que ficava na rue de l´Odéon, fechou em 1941. Sua história, por causa da importância que livraria e livreira tiveram, foi narrada muitas vezes. A atual usa o mesmo nome, mas em outro endereço. Situada em um dos bairros mais antigos de Paris, seu charme é inquestionável. Pouco vou lá, porém. Não sei se faz sentido, em Paris, frequentar uma livraria que vende obras exclusivamente em inglês. Talvez faça para turistas que não falam francês ou para franceses sedentos pela civilização americana. Ela exerce o papel, na capital da França, de bastião da cultura anglo-americana.

Quando lá estive pela última vez, em 2019, senti-me asfixiado. Poucos dias antes, eu havia chegado de Londres, onde dedicara boa parte de meu tempo a frequentar livrarias como a Daunt e a Hatchards. Com minha filha, eu tinha visitado na véspera, no Musée du Luxembourg, uma exposição excelente dedicada à obra de pintores ingleses do período de 1760 a 1820, L´âge d´or de la peinture anglaise. Estava, assim, saturado de anglofonia. Era agora a cultura francesa que eu buscava. Fiquei poucos minutos na Shakespeare and Company e saí.

É proibido fotografar seu pitoresco interior. Tirei fotos da fachada. Os escritos nos painéis são do livreiro que fundou o novo estabelecimento, George Whitman. Como ele, considero Tolstoi e Dostoievski more real to me than my next door neighbors.

Em 2013, o escritor espanhol Jorge Carrión publicou um livro singelamente intitulado Librerías, sobre sua experiência de andar pelo mundo frequentando-as. Em algum momento, decidi comprá-lo, após ler comentários a respeito na imprensa brasileira, em especial em um artigo de Rodrigo Casarin.

Encomendei a edição espanhola, dando como local de entrega o hotel onde se hospedava o escritor Alexandre Vidal Porto, de passagem por Madri, que se dispôs a trazê-lo para mim. A encomenda atrasou e, se jamais chegou ao hotel, terá sido tarde demais para encontrar Alexandre. Meses mais tarde, fiz novo pedido e recebi o livro pelo correio em Brasília. Minha pertinácia e a dupla despesa não me renderam frutos. Logo depois, em 2020, parti para trabalhar na Malásia, minha mulher para Singapura, e o livro viajou na mudança dela. Tornou-se inacessível para mim até este ano, quando as fronteiras dos dois países foram reabertas, depois da pandemia.

Vi-o na estante em minha última ida a Singapura. Quis ver o que diz sobre a John Sandoe, o que mostra bem o quanto a livraria na rua Blacklands Terrace, a um pé da King’s Road e da Sloane Street, me impressionara em julho. O espanhol também cedeu aos seus encantos. Escreve que o interior da John Sandoe tiene todo lo que desea un fotógrafo aficionado. Contudo, avisa, ela é mais do que una imagen pintoresca, pois ese cuerpo precioso tiene alma.

O atual dono da Leonardo da Vinci, Daniel Louzada, comprou-a em 2016 de sua fundadora, Vanna Piraccini, que durante décadas foi amiga e inspiradora da intelligentsia carioca e com quem, por timidez, nunca tive coragem de conversar. Em janeiro de 2022, Vanna Piraccini morreu, aos 96 anos. Também faleceu este ano, em fevereiro, Brigitte de Meeûs, fundadora da Tropismes, aos 76. Em janeiro de 2017 já morrera José Ferreira Vicente, fundador de um de meus sebos prediletos em Lisboa, Olisipo, que desde então mudou-se para novo endereço.

Assim são as livrarias e seus criadores, mortais como nós, seus clientes, admiradores e amigos. Elas surgem, muitas prosperam, criam um impacto cultural, algumas tornam-se míticas, mudam de lugar, de proprietário, desaparecem ou parecem-nos, ilusoriamente, destinadas a durar para sempre, mas evoluem, transformam-se. Afetam nossas vidas, permitem sonhos, tornam-se nossa segunda casa. Quando uma fecha, é como um golpe no coração. Mas como um amigo querido, um parente carinhoso, em nós elas vivem para sempre. Como a Libri Mundi de Quito, no bairro La Mariscal, na rua Juan León Mera. Trazida de volta à memória, um dia em Kuala Lumpur, por uma foto casualmente recebida pelo Twitter. Voltou assim a existir.

Há algo insondável nisso tudo, pois assim é a vida.

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Quatro telefonemas

Quatro telefonemas

Colette amava os gatos. Teve vários ao longo da vida. Quando era ainda casada com seu primeiro marido, Henry Gauthier-Villars, cujos romances ela escrevia para que ele os assinasse como se fossem seus, com o pseudônimo de Willy, existia um gato chamado Kiki. Mais precisamente Kiki-la-Doucette. Era um angorá. Morreu em 1903, nos diz Judith Thurman em sua biografia da escritora, Secrets of the Flesh, sem especificar a razão da morte e a idade do gato.

Kiki-la-Doucette, gato bem real, inspirou um personagem literário. No livro de Colette Dialogues de bêtes, publicado em 1904, portanto após a morte de Kiki, o gato aparece em vários diálogos conversando com Toby-Chien, o buldogue francês que também existiu. De angorá, Kiki-la-Doucette vira um chartreux, embora sua descrição física — “um corpo listrado” — não se pareça à dos gatos dessa raça. Em 1930, Colette ainda estava revisitando essa obra. Em suas memórias sobre o casamento com Willy publicadas em 1936, Mes apprentissages, a escritora assim descreve o angorá: “Longo, opulento, sutil”.

Nos diálogos com Toby, Kiki-la-Doucette mostra-se intrinsicamente felino, ou como imaginamos que um gato deva ser. É dado a dizer ao buldogue frases como: “Só vejo extravagâncias ao meu redor”; “as sutilezas psicológicas sempre ficarão inacessíveis a você”; “sinto vergonha por você, você ama todo mundo, aceita todas as rejeições de forma servil”; “anda, imita minha divina serenidade”.

Os dois, Kiki e Toby, amam seres diferentes. O gato prefere “Ele”, alter ego de Willy, enquanto o buldogue entrega sua devoção a “Ela”, a própria Colette. Um dos diálogos acontece durante uma viagem de trem, de que participam Ela, Ele, Kiki e Toby. O cachorro está solto, e o gato está em uma cesta fechada. Kiki exclama: “As torturas que sofro são morais. Estou sendo submetido ao mesmo tempo ao enclausuramento, à humilhação, à obscuridade, ao esquecimento e aos sacolejos”. Seu desconforto logo termina. “Ele” retira o gato da cesta, dizendo: “Venha, meu belo Kiki, meu enclausurado, venha, você agora terá rosbife frio e peito de frango”.

Kiki explica a Toby como consegue evitar, ao contrário do seu interlocutor, o óleo de rícino:

Uma vez Ela quis — eu era ainda pequeno — me purgar com o óleo. Eu a arranhei e mordi tanto, que nunca mais Ela tentou. Por um minuto, Ela deve ter achado que estava com um demônio sobre os joelhos. Eu me contorci em uma espiral, soprei fogo, multipliquei por cem as minhas garras, por mil os meus dentes, e fugi, como em um passe de mágica.

Kiki também transmite a Toby sua tática para evitar aquilo que o buldogue classifica como “o suplício do banho”. Explica que, ao ser submetido à experiência, deitara-se de costas e adotara o olhar “clemente e aterrorizado do cordeiro no altar”.

Apenas este ano tomei conhecimento da existência dos dois Kiki-la-Doucette, o real e o fictício. Quando isso aconteceu, minha família havia perdido uma outra Kiki. Muitas vezes escrevi sobre nossa gata persa dourada, que emprestou mesmo seu nome para o título de uma crônica de abril de 2020, Kiki em Kuala Lumpur.

A viagem para trazê-la de Brasília à Malásia, em janeiro daquele ano, durara, de porta a porta, 36 horas, atravessando dois oceanos, a bordo de três aviões. Um percurso, sem dúvida, mais penoso do que o trajeto de trem dos personagens de Colette. Trancada em uma jaula nos três diferentes voos conosco, emulando Kiki-la-Doucette a nossa Kiki miou praticamente as 36 horas. No último trecho, Istambul-Kuala Lumpur, puxei-a um momento para fora da pequena jaula, segurei-a nos braços, e passeamos juntos pela cabine. Os membros da tripulação, em vez de me censurar, começaram a me mostrar fotos dos seus próprios gatos.

Não foi à toa que escrevi sobre Kiki em abril de 2020, quando vigorava na Malásia o primeiro confinamento e o pavor do vírus se iniciava. Era proibido sair de casa, a não ser para comprar comida e remédio. Enjaulado em um apartamento vazio em Kuala Lumpur, sem a biblioteca e sem a mobília, que estavam em um container no cais de Port Klang, sem conhecer quase ninguém na Malásia, onde eu chegara cinco semanas antes do início do confinamento, forçosamente separado da minha família amparei-me na gata persa dourada. Tínhamos apenas, como companhia, um ao outro. Cuidar dela tornou suportável o isolamento provocado pela pandemia. Para mim, a única exceção, além dos livros que eu previdentemente fora comprando depois da chegada, era um amigo brasileiro que, uma vez por semana, me dava carona até o supermercado. Para Kiki, não havia o alívio da quebra da rotina. Era eu apenas em seu universo, e mais ninguém.

Houve, depois disso, outros confinamentos. Aconteceu assim o que sempre acontece quando dois seres que se amam são obrigados a viver encerrados, na presença exclusiva e constante um do outro. O amor cresceu ainda mais.

Em novembro de 2021, as fronteiras entre Malásia e Singapura foram parcialmente reabertas, sob diversas condições. No início de dezembro, viajei a Singapura. Como contei na carta da Malásia de janeiro de 2022, Tchekhov e os tigres, rever minha mulher, conhecer sua casa, pareceu-me um paraíso, após as agruras dos confinamentos. Durante uma semana, tudo transcorreu de maneira perfeita. Até que veio o primeiro telefonema.

Em Kuala Lumpur, Kiki parara de comer. Videoconferências entre nós não a motivaram. Liguei para o veterinário. Ao visitá-la, ele recomendou uma alimentação especial e vitamina B. Avisou que, se ela não voltasse a comer em poucos dias, teria de ser internada.

Dois dias depois, um domingo de tarde, regressei à Malásia. Ao entrar no apartamento, notei um silêncio pouco habitual. Não houve miados. Não houve corrida até a porta para me receber. Chamei. Procurei. Sem resultado. Supus que ela estaria dormindo em algum novo esconderijo.

Desfiz a mala. Guardei as roupas. Liguei para minha mulher. Tomei um chá. Chamei. Procurei. O silêncio continuava. A solidão também. Àquela altura, fazia já duas horas desde minha chegada a casa. O sol se punha. Tentei novamente.

Foi embaixo de um móvel que a encontrei.

Nunca ela havia se escondido ali. Estava acocorada, ensimesmada. O olhar era opaco, indiferente. Ofereci comida, que ela rejeitou. Peguei-a no colo. Trouxe-a para cima da cama. Ela imediatamente saiu do quarto.

Na segunda-feira, levei-a uma clínica. A veterinária declarou: “Ela sofreu um trauma emocional com sua viagem. Por isso parou de comer e daí desenvolveu uma doença típica de gato idoso, lipidose hepática”. Perguntei sobre seu prognóstico. A veterinária hesitou apenas um pouco antes de responder: “Bem, ela tem 17 anos. Já está no bônus”. À noite, recebi da clínica o segundo telefonema de más notícias: “O resultado do exame de sangue é muito ruim”.

Começamos então, Kiki e eu, uma nova existência. Ela não comia de forma espontânea. Trancada em uma jaula, recebia soro por via intravenosa. A comida era forçada pela garganta. Eu ia à clínica na hora do almoço. Abria a porta da jaula. Conversava com ela. Às vezes, ela ronronava, enquanto eu fazia carinho. Muitas vezes, me ignorava. Sugeriram-me que eu a fizesse escutar música. Selecionei árias de Mozart, sobretudo de As bodas de Figaro e de Don Giovanni. A escolha não era arbitrária. Durante os confinamentos, como narrei em Cleópatra no Escritório, à noite eu costumava assistir às gravações oferecidas gratuitamente pela Metropolitan Opera. Chamara minha atenção o fato de que Kiki levantava a cabeça com frequência, atenta, quando a ópera era de Mozart.

As árias de Cherubino e de Don Ottavio, apesar de encantadoras, não pareciam causar efeito algum. A gata persa dourada continuava sem comer.

Eu insistia em falar com a veterinária a cada visita, o que significava esperar que terminasse alguma consulta. Isso determinava quanto tempo eu teria com Kiki. Às vezes, conseguia ficar 45 minutos parado diante da porta aberta da jaula, dizendo-lhe palavras de carinho; às vezes, só podia ficar dez minutos antes de voltar para o escritório.

Chegar em casa de noite significava enfrentar, ao sair do elevador, a perspectiva de entrar no apartamento vazio, sentir sua ausência e enfrentar sozinho o silêncio e a escuridão.

O Natal se aproximava. Viajei a Singapura para passá-lo em família.

Todo dia, ligava para a clínica. A resposta era sempre a mesma:
“Ela continua sem comer”. Uma vez, perguntei à veterinária se ela me avisaria se fosse necessário administrar o que eu prefiro chamar de “a injeção da felicidade eterna”. A veterinária declarou-se, por razões éticas, contra a eutanásia. Imaginei a gata persa dourada talvez definhando por semanas, meses. Conversei com a outra sócia da clínica, que se mostrou mais receptiva.

Na tarde do dia seguinte, 31 de dezembro, estávamos todos assistindo no cinema, em Singapura, a um filme muito ruim, House of Gucci, quando entrou no meu celular o terceiro telefonema portador de más notícias. Saí da sala e fui para o corredor. Não havia ninguém por perto. Atendi. O ultrassom mais preciso que eu insistira fosse feito em outra clínica mostrara que vários órgãos estavam afetados. A veterinária, categórica, afirmou que Kiki estava sofrendo. Não havia esperança.

Enquanto eu analisava o dever exigido de mim, a ligação continuava ativa. A veterinária esperava uma decisão. Era a terceira vez que eu passava por esse momento. Em 2012, já tivéramos de sacrificar nossa cachorra Missy, e, em 2018, outro gato, o majestático James. Dispomos da faculdade de poupar sofrimento aos animais que amamos. Mas se esperamos demais, depois nos sentimos culpados por ter prolongado a sua dor. Se não esperamos, fica a dúvida se não nos precipitamos.

Dei a autorização. Opinei porém que alguns dias, até a minha volta a Kuala Lumpur, não fariam diferença alguma para a Kiki, mas toda para mim, pois permitiriam uma despedida. A veterinária soterrou minha autocomiseração. Repetiu que o animal sofria; seria cruel esperar um dia a mais sequer. Quanto à despedida, ofereceu-me uma videoconferência com Kiki. Colocou o celular frente a ela, que estava solta em cima da mesa de metal do consultório.

Falei longamente de amor e gratidão. Ela miava, se agitava e ronronava sobre a mesa de metal. Desliguei.

Minha mulher apareceu. Conversamos sobre como dar a notícia à nossa filha, que crescera com Kiki, escolhera o seu nome e, dentro da sala de projeção, sabia que algo estava acontecendo. Nesse momento, entrou a quarta chamada. Atendi, aceitando ter de ouvir que tudo terminara.

Não era isso o que nos esperava.

A veterinária ligava para avisar que, após três semanas sem se alimentar espontaneamente, Kiki, na hora em que iria receber a injeção, se jogara sobre um prato de comida destinado a outro gato. Comera.

Dos quatro telefonemas, esse foi o pior. Nosso nível de responsabilidade moral acabara de aumentar consideravelmente. Indaguei: “Ela pode ser salva, então?”. A veterinária, cautelosa, explicou: “Não creio. O que o ultrassom revelou não pode ser ignorado. Os órgãos estão comprometidos. E é também provável que a refeição de agora seja um caso isolado. Mesmo que ela volte a comer sozinha, seriam poucas semanas de vida a mais, talvez alguns meses, em condições difíceis e desconfortáveis para ela”. Assenti.

Pensei no jardim em Brasília e no jardim em Bruxelas, nos quais Kiki crescera e correra, livre, caçara pássaros e lagartixas e fora feliz. Recebi então a mensagem por WhatsApp: “Foi indolor, e ela agora descansa no paraíso dos gatos”.

Kiki, bebê espevitado. Kiki, bela, inteligente e afetuosa. Kiki, ainda viva enquanto eu viver.

Crônica originalmente publicada, em 8 de julho de 2022, no jornal de literatura Rascunho, ilustrada com o desenho de Carolina Vigna, a quem agradeço, assim como ao editor do Rascunho, Rogério Pereira, a autorização para reproduzi-lo nesta página.

Dedico esta crônica a dois amigos que conheceram a gata persa dourada,

Cora Rónai, solidária na perda,

Hudson Caldeira Brant, graças a quem alimentei Kiki na pandemia

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O peso do Universo

O peso do Universo

É possível que haja formas melhores de passar uma manhã de sábado do que lendo poemas de Jorge Luis Borges. Mas é possível também que não, como deduzi em junho, em Kuala Lumpur. Era um sábado ensolarado, mas a semana fora árdua e, à noite, eu teria um compromisso de trabalho, e outro no domingo à tarde. Passar as poucas horas de liberdade disponíveis no fim de semana em casa lendo a poesia de Borges pareceu a melhor opção.

Nossos livros do escritor argentino estão todos em Singapura. Isso é justo, porque foi minha mulher quem, quando namorávamos, fez com que eu me apegasse à força das suas obras. Um dos primeiros presentes que ela me deu foi uma edição de bolso, com o selo conjunto Alianza/Emecé, de El informe de Brodie. A capa era azul clara, com a imagem de um relevo de mármore branco representando o rosto de uma criança. A boca era coberta por duas bandagens, também brancas, cruzadas sobre o mármore.

Um dia, o volume desapareceu. Nunca soubemos o que aconteceu. Talvez tenha caído atrás de um móvel e, por isso, sido deixado para trás em alguma mudança. Talvez nós o tenhamos emprestado a alguém que nunca o devolveu. Tampouco está claro o ano em que desapareceu. Quando um de nós quis reler o livro, ou consultá-lo, não se pôde encontrá-lo. Descobriu-se que, em algum momento, ele deixara de existir nas nossas estantes.

O sumiço de El informe de Brodie tomou ares de mistério. Anos ou décadas depois, ainda é tema de conversa. O desaparecimento do livro condiz com o enigma da capa, com aquela criança — ou figura angelical — de mármore impedida de falar. O exemplar foi substituído por outro, com o selo apenas da Alianza e capa diferente. Não era porém o volume que indicara o início do namoro, e do qual se esperava que nos acompanhasse pelo resto da vida. Em seu opúsculo sobre Borges, com quem conviveu, Alberto Manguel comenta que uma biblioteca particular é como a autobiografia de seu proprietário. Se isso é verdade, há então uma lacuna na história do meu casamento.

A reabertura das fronteiras no Sudeste Asiático, depois de dois anos de pandemia, permitiu-me não somente voltar a ver minha mulher, mas também a estudar a biblioteca familiar em sua casa. Voltei assim a ler Borges, o que me ajudou inclusive a entender melhor a noção de Ásia, como explico na XV Carta da Malásia, Além da aurora e do Ganges. Retornando a Kuala Lumpur de alguns dias de férias em Singapura, trouxe comigo o terceiro dos quatro volumes das obras completas de Borges pela editora Emecé, que inclui os livros do escritor publicados entre 1975 e 1985. Os seus últimos, portanto, tendo ele morrido em 1986. É uma edição insatisfatória. Vem sem notas. Há também ao menos um erro de diagramação e outro de acentuação. Naquele sábado em Kuala Lumpur, absorto nos poemas de Borges, tive um pensamento herético, logo rejeitado por absurdo, o de encomendar os dois volumes de sua obra publicados pela Gallimard, na Bibliothèque de la Pléiade. Obviamente, não faria sentido deixar de ler Borges em espanhol para lê-lo em francês. Sonhei porém com o extenso aparato crítico que a edição deve conter, como todo volume da coleção da Pléiade.

Precisei contentar-me com o que estava ao meu alcance em Kuala Lumpur, aquele único volume da edição seca da Emecé. Afinal, como o próprio Borges nos diz, na sua palestra em Siete Noches (1980) sobre a poesia, deve-se ler a obra, e não obras sobre a obra. Explica ele: “Cuando mis estudiantes me pedían bibliografía, yo les decía: ‘no importa la bibliografía; al fin de todo, Shakespeare no supo nada de bibliografia shakespeariana […] ¿Por qué no estudian directamente los textos?”.

Minha repentina mas temporária cobiça pela edição da Pléiade, porém, se justificava. Eu não queria uma obra sobre a obra, mas comentários sobre alguns versos. Depois do almoço, já pensando que em poucas horas teria de me arrumar para trabalhar de noite, passei à leitura de algumas das palestras de Siete Noches, aquelas dedicadas ao budismo, à Divina Comédia e à poesia. Esta última pareceu-me mais árida do que as duas outras. Talvez Borges não estivesse em forma quando a proferiu. É um texto certamente menos recompensador para o leitor do que as seis conferências sobre poesia que deu em inglês na Universidade de Harvard de outubro de 1967 a abril de 1968. Naquele ano universitário, Borges proferiu as Charles Eliot Norton Lectures; elas foram publicadas em um livro lançado em 2000, This Craft of Verse.

Também Siete Noches é uma coleção de conferências, dadas em Buenos Aires em 1977. Apenas uma delas é sobre arte poética, embora outra, tratando da Divina Comédia, seja sobre um poema específico. É injusto, eu bem sei, comparar uma única palestra curta de 1977 com as seis de 1967-1968. O fato porém é que o texto em Siete Noches, onde o escritor parece distante, pouco entusiasmado, empolga menos do que This Craft of Verse. Nesse livro, ao terminar a quinta palestra ele anuncia o tema que abordará na seguinte, a última: “I am sorry to say that in the last lecture I shall be speaking of a lesser poet — a poet whose works I never read, but a poet whose works I have to write”, sendo esse poeta “menor” ele mesmo.

Acontece que nada em Borges é inútil, tudo dele merece ser lido, e mesmo a aula sobre poesia proferida em Buenos Aires em 1977 contém frases memoráveis, como esta, que parece extraída de uma obra de Oscar Wilde: “Hay personas que sienten escasamente la poesía; generalmente se dedican a enseñarla”.  Ou estas, que parecem ecoar Ralph Waldo Emerson: “La belleza está acechándonos e La belleza está en todas partes, quizá en cada momento de nuestra vida”. Essa última frase, aos meus ouvidos, possui o mesmo ritmo daquela com que Emerson inicia seu ensaio sobre a amizade: “We have a great deal more kindness than is ever spoken”.

Naquele sábado em Kuala Lumpur, toda hora eu voltava a um poema intitulado “Tríada”, publicado no último de seus livros, Los Conjurados, de 1985. Antes de citar o poema, convém mencionar o prólogo de Los Conjurados. Ali, Borges, chegando ao final da vida, cego, escreveu: “Al cabo de los años he observado que la belleza, como la felicidad, es frecuente. No pasa un día en que no estemos, un instante, en el paraíso. No hay poeta, por mediocre que sea, que no haya escrito el mejor verso de la literatura, pero también los más desdichados. La belleza no es privilegio de unos cuantos nombres ilustres. Sería muy raro que este libro, que abarca unas cuarenta composiciones, no atesorara una sola línea secreta, digna de acompañarte hasta el fin”.

Há muita coisa, em Los Conjurados, que eu espero possa me acompanhar “hasta el fin”. A começar por “Tríada”. Este é o poema:

El alivio que habrá sentido César en la mañana de Farsalia, al pensar: Hoy es la batalla.

El alivio que habrá sentido Carlos Primero al ver el alba en el cristal y pensar: Hoy es el día del patíbulo, del coraje y del hacha.

El alivio que tú y yo sentiremos en el instante que precede a la muerte, cuando la suerte nos desate de la triste costumbre de ser alguien y del peso del universo.

São versos que impressionam; “cuando la suerte nos desate de la triste costumbre de ser alguien” parece mesmo magnífico. Há um contraste entre as duas primeiras estrofes. As duas figuras históricas são mostradas em momentos discordantes. Júlio César está aliviado porque chegou a hora da definição de seu futuro. Dependendo do resultado da batalha, sua vida tomará um rumo ou outro. Terminará a incerteza. Mas ele tem — só pode ter tido — esperança de derrotar Pompeu. Para Carlos I, a única esperança possível é comportar-se com coragem diante da decapitação iminente. Ambos sentem alívio, mas suas perspectivas são diferentes.

As duas primeiras estrofes, de tom ligeiramente distinto, preparam-nos para a terceira: no cotidiano, estamos ainda no mesmo plano de César, com expectativas de algum êxito possível. Um dia, porém, estaremos, como Carlos I, diante do inelutável.

Júlio César, cujo assassinato é objeto de outro poema em Los Conjurados, é personagem recorrente em Borges. O mesmo acontece, embora em grau menor, com o rei Carlos I da Inglaterra. Mais especificamente, é a sua decapitação que é tema frequente na obra do autor argentino. A morte do rei mereceu inclusive um poema próprio, “Una mañana de 1649”, publicado na coleção El otro, el mismo, de 1964.

Em “Tríada”, vemos César prestes a enfrentar, no campo de batalha, seu ex-genro e rival, Pompeu. Ele não podia ter certeza de que ia ganhar a batalha. Escreve, nos seus Comentários sobre a Guerra Civil, que sua infantaria era de 22 mil soldados, enquanto a de Pompeu era de 45 mil. A cavalaria na tropa de Júlio César não passava de mil homens, e havia sete mil na de Pompeu.

O que Borges mostra é o alívio de César de ter chegado por fim o dia da decisão sobre a quem ficaria aberto o caminho para governar Roma sozinho. Sabemos que César ganhou a batalha de Farsália; Pompeu fugiu, refugiou-se no Egito e lá foi morto a mando dos ministros do faraó adolescente Ptolomeu XIII, irmão e provavelmente marido de Cleópatra VII. César chegou a perseguir Pompeu até o Egito e envolveu-se nas disputas fratricidas da família real.

Ao escolher a figura de César para a primeira estrofe, Borges recorre ao personagem histórico mais célebre possível, sobre o qual seus leitores terão já uma imagem. Essa imagem é a de um grande chefe militar, com vocação ditatorial, portanto poderoso, mas sobre quem há também uma aura romântica, pelo que conhecemos de sua relação com a rainha do Egito.

Os leitores de Borges sabem como César terminou: esfaqueado por senadores romanos, ele morreu, nos diz Plutarco, aos pés de uma estátua de Pompeu, “que ficou toda ensanguentada”. O fato de haver por perto uma estátua do rival derrotado por César na planície de Farsália não deve nos surpreender, já que a sala onde o assassinato foi cometido pertencia a um complexo arquitetônico mandado edificar por Pompeu. Assim, o leitor do poema de Borges sabe que César saiu vitorioso em Farsália, mas sabe também que sua vida terminaria de maneira dramática, o que aperfeiçoaria aliás a construção de seu mito.

Na verdade, entre a batalha de Farsália e os Idos de Março transcorreram apenas quatro anos. Como se trata de César, foram quatro anos de grande intensidade, em que houve mais vitórias militares, acréscimo de poder, e o romance com Cleópatra.  Em sua história da Roma antiga, Lucien Jerphagnon explica: “la portée symbolique de Pharsale, jour de deuil pour les uns, jour de gloire pour les autres, marquera longtemps la mémoire des siècles”. Dia de luto para uns, dia de glória para outros, que ficará por muitos séculos na memória coletiva.

Ao descrever a batalha em Comentários sobre a Guerra Civil, o próprio César inaugurou uma tradição literária. Seria impossível listar todos os autores que escreveram sobre Farsália, mas deve-se citar Lucano, Plutarco e Corneille, cuja peça La Mort de Pompée inicia-se com uma fala de Ptolomeu XIII, em seu palácio em Alexandria, em que faz referência à batalha. Menciono Corneille propositalmente, com um certo prazer, porque Alberto Manguel nos diz que Borges “não admirava” o dramaturgo francês, mas que, um dia, andando os dois juntos pela Calle Florida em Buenos Aires, o autor de El Aleph de repente parou e declamou um verso de Le Cid: “Cette obscure clarté qui tombe des étoiles”. A cena deve ter sido bonita de ver.

Ao longo da vida, li e reli Le Cid muitas vezes e assisti a diferentes produções da peça. No entanto, esse verso nunca chamou minha atenção. Visualizar Borges declamando-o repentinamente na Calle Florida ajuda a desvendar toda a sua beleza. Graças a ele, que nem admirava Corneille, e por intermédio do curto livro de Alberto Manguel, pela primeira vez palavras que eu deveria conhecer bem entraram em minha consciência. Quando abrimos uma obra, nunca sabemos o que lá encontraremos que mudará nossa percepção das coisas, que nos revelará algo que a rigor já conhecemos.

Sem dúvida, apesar de seu assassinato, César inspira um mito baseado na percepção popular de sua vida como excepcionalmente exitosa. Bem diferente é o caso de Carlos I. Rei incapaz, perdeu a guerra civil contra o Parlamento, foi aprisionado, julgado e executado em janeiro de 1649. A memória que deixou é de fracasso.

Carlos, contudo, se beneficia postumamente da reputação trágica de sua família, os Stuart, certamente a dinastia mais infeliz da história europeia. Era neto de outra célebre decapitada, Maria Stuart. Seu filho mais velho, Carlos II, conseguiria voltar ao trono, mas seria sucedido pelo irmão, Jaime II, outro incapaz, que o perderia. O filho e os netos de Jaime II, inclusive o famoso Bonnie Prince Charlie, viveriam no exílio, na França e na Itália, sempre em tentativas malogradas de recuperar o trono. Reis sem coroa, confirmariam a fama trágica e romântica da família.

Carlos I foi um importante colecionador e patrono das artes e essa faceta de sua personalidade de certa forma redime suas falhas como rei. De resto, ele usava a arte como ferramenta para tentar consolidar uma visão gloriosa de si mesmo. Como inúmeras vezes já notei, pintores, escritores, músicos ajudam a perenizar uma imagem glamorosa ou admirável de governantes frequentemente medíocres. Assim, quadros da fase inglesa de Antoon van Dyck eternizam uma imagem do rei decapitado e de sua mulher e seus filhos como belos, profundos, majestáticos.

É praxe mostrar em filmes ou séries passados em castelos no campo inglês pinturas que evocam a família ou a corte de Carlos I, pois esses são retratos facilmente identificáveis na percepção popular, a ilustrar uma visão idealizada da realeza e da nobreza. É o caso, por exemplo, da série Downton Abbey. Na sala de jantar do imaginário Conde de Grantham aparece cópia de uma tela bem real e celebrada pintada por Van Dyck, um retrato do rei a cavalo, sob um arco, acompanhado de seu mestre de equitação. A réplica, possivelmente da mão do próprio Van Dyck, pertence ao Conde de Carnarvon, dono da propriedade rural usada como cenário para a série. Ao ver essa tela pendurada na sala de jantar do “Conde de Grantham”, o público compreende desde logo a imponência da família cuja história vai acompanhar.

Em julho, em Londres, em Apsley House, casa e museu do Duque de Wellington, eu veria outra cópia do quadro de Van Dyck.

O talento do artista flamengo fez do futuro decapitado, para a posteridade, um dos símbolos de como deve apresentar-se um monarca. A presença do rei medíocre, como pintado por Van Dyck, ironicamente engrandece o ambiente. O historiador Jerry Brotton inicia seu livro The Sale of the King’s Goods: Charles I & His Art Collection, de 2006, justamente analisando a versão original desse retrato pintado por Van Dyck, conhecido como Carlos I com M. de St Antoine, sendo Saint-Antoine o instrutor de equitação do rei. Na primeira página, o historiador nota que, ao contrário da vida real, a obra mostra Carlos como “the resplendent monarch, surrounded by the trappings of power and authority, mastering his horse as imperiously as he managed his kingdom”.

A coleção de Carlos I foi desfeita após sua execução. Colocaram-se à venda, ao longo de quatro anos, cerca de 1.570 obras de arte. É essa a razão pela qual muitos quadros que pertenceram ao rei podem ser vistos hoje em museus na Europa e nos Estados Unidos. Com a restauração ao trono de Carlos II, a Coroa conseguiu porém recuperar várias das obras vendidas. O retrato original do rei a cavalo sob o arco fica exposto no castelo de Windsor.

O Carlos I que Borges mostra não é o rei fracassado, incompetente, ou mesmo trágico ou majestático, mas um jogador conformado com o resultado final do jogo. Em seu livro Kings & Connoisseurs, de 1995, em que estuda, entre outras, a coleção de Carlos I, Jonathan Brown nos diz que o rei fez face à morte “with remarkable serenity and dignity”. Na elite europeia do século XVII, saber morrer redimia todas as falhas ou os pecados de uma vida.

O Carlos I de Borges é um homem que, ao saber que sua vida terminará naquele mesmo dia, se vê, talvez como todo nós quando chegue essa hora, “liberado de la necesidad de la mentira”, segundo o poema “Una mañana de 1649”. Vê-se liberado do peso de ser alguém. Carlos I é apeado de um poder ilusório; César está prestes a chegar ao ápice do poder, que não será necessariamente mais real. Em “Tríada”, a atitude dos dois, no fundo, é a mesma: finalmente, chegou o momento decisivo.

Borges já havia, anteriormente, colocado Júlio César e Carlos I no mesmo poema, “Las causas”, presente na coleção Historia de la noche, de 1977. Os últimos versos dizem:

Se precisaron todas esas causas
para que nuestras manos se encontraran

Os versos anteriores enumeram as “causas” que, cumulativamente, geram o efeito mencionado no final do poema, o encontro de duas pessoas que se amam. As causas pretéritas que se acumulam podem ser de ordem filosófica (“Chuang-Tzu y la mariposa que lo sueña”) ou literária e mitológica (“El infinito lienzo de Penélope”) ou simplesmente da realidade do cotidiano (“Cada gota de agua en la clepsidra”). Mas podem pertencer também ao terreno da História. O que de fato aconteceu, no passado, afeta nossa vida. Duas dessas causas históricas que tornam possível, hoje, o amor entre as duas pessoas no poema são “César en la mañana de Farsalia” e “El rey ajusticiado por el hacha”.

Voltando a “Tríada”, pensei longamente, em torno do verso “Hoy es el día del patíbulo, del coraje y del hacha, sobre a ordem em que são colocados os três elementos. De início, julguei que a ordem correta deveria ser patíbulo, machado e coragem. O rei verá o patíbulo primeiro, depois o machado, e precisará de coragem para enfrentá-los. Depois, pensei em outra ordem possível: coragem, patíbulo e machado. O rei decide que será corajoso no momento de subir ao patíbulo para enfrentar o golpe do machado na nuca. Finalmente, acabei aceitando a ordem escolhida por Borges, que possui o ritmo certo. As três palavras vão se tornando menores enquanto lemos o verso. A palavra final, “hacha”, deixa no ar uma terrível vibração.

Ao chegarmos à última estrofe, em vez de sentirmos pessimismo por sermos lembrados de que um dia morreremos, ficamos consolados. Aprendemos que, como para Carlos I, a morte nos libertará “do triste hábito de ser alguém” e tirará de nós o peso do universo.

Este ensaio foi originalmente publicado em O Estado da Arte, em 2 de julho de 2022

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