Memória diplomática

Memória diplomática

Transcrevo minha coluna quinzenal publicada no jornal Estado de Minas ontem, 21 de junho:

Minha mãe, Thereza Quintella, cumpriu 87 anos em 27 de maio. Pedi uns dias de férias para viajar de Luanda ao Rio de Janeiro e comemorar a data com ela. Decidi maximizar a ida ao Brasil com uma noite de autógrafos em Brasília.

Fiquei feliz de rever tantos amigos, ao assinar dedicatórias de Geografia do tempo na Livraria da Travessa. Aquela seria minha única oportunidade de estar com eles, já que no dia seguinte eu regressaria ao Rio. A divulgação fora bem-sucedida e havia, na fila, muitas pessoas que eu não conhecia, cuja curiosidade fora despertada pelas entrevistas e matérias na imprensa ou em portais na internet. O primeiro a falar comigo na livraria, na verdade, estava ali por acaso. Entrara para explorar as novidades, vira o aviso da noite de autógrafos e quisera saber mais.

Perguntou-me o sentido do título “Geografia do tempo”. Expliquei que uma das minhas indagações sobre o mundo é a constante variação entre a presença e a ausência de pessoas e lugares em nossas vidas. É um fluxo e refluxo em que podemos nunca mais reencontrar os seres mais queridos, por razões fora do nosso alcance; ou, ao contrário, circunstâncias imprevisíveis podem tornar as pessoas ainda mais presentes, por um período que será longo ou curto, mas jamais eterno.

Da mesma forma, avaliamos que um parque, uma cidade, um país, uma obra de arte ou um autor ficarão conosco para sempre; e no entanto, tantas vezes eles acabam por se perder para nós. A memória, assim, é como um ser independente. O tempo nos faz lembrar de algumas pessoas e de alguns lugares, e esquecer de outros, e torna misteriosa, à medida que nos deslocamos por este mundo, a geografia dos nossos sentimentos.   

Assinei exemplares de Geografia do tempo durante três horas e meia. Ao sair da livraria quando já fechavam as portas, liguei o celular e vi mensagens de minha mãe e de minha irmã avisando que, enquanto eu conversava com leitores e amigos em Brasília, no Rio falecera Marcos Azambuja.

Não é fácil discorrer sobre alguém com quem interagimos durante muitas décadas. As pessoas mudam com o avanço dos anos, e o Marcos Azambuja falecido em 28 de maio de 2025, aos 90 anos, era distinto daquele que primeiro conheci quando ele estava na faixa dos quarenta. Minha própria avaliação a seu respeito não poderia ser a mesma de quando eu tinha quatorze anos. Diante do seu falecimento tanto foi dito sobre ele, e da maneira mais elogiosa, na imprensa, nas redes sociais e nos noticiários de televisão, que parece difícil eu poder acrescentar algo.

Não é usual que a partida de um diplomata aposentado desperte tanto interesse midiático, o que diz muito sobre a celebrada capacidade de Marcos de encantar interlocutores. Sua trajetória diplomática, embora notável, por si só não justificaria tamanha comoção. Marcos não chegou a ser chanceler e sua gestão como secretário-geral das Relações Exteriores deu-se no mandato presidencial curto e conturbado de Fernando Collor de Mello. Sempre houve nele, porém, uma luz própria, uma inteligência vivaz, que não dependiam de funções ou cargos para se fazer visíveis e brilhar.

Quando o vi pela última vez, em julho de 2024, ele me lembrou que a aposentadoria lhe permitira dedicar-se a novas atividades, como palestrante em seminários, analista frequente sobre a situação internacional em telejornais, conselheiro de entidades privadas. Ao se aposentar, vira portas se abrirem. Pareceu considerar sua vida pós-Itamaraty tão estimulante, se não mais, do que a sua exitosa carreira diplomática.   

Conhecido como frasista mordaz, daqueles que, como se diz, perdem o amigo mas não perdem a pilhéria, Marcos Azambuja era, na realidade e antes de mais nada, um hábil analista das situações. Isso valia tanto para a política e as relações internacionais como para os relacionamentos pessoais. Dissecava com lucidez e sem sentimentalismo os problemas do interlocutor e era, assim, objetivo e certeiro em seus conselhos. Para minha irmã, que foi sua nora e é mãe de dois de seus netos, ele se mostrou sempre um sogro afetuoso, atencioso, incentivador de seus projetos. Para minha mãe, um amigo cada vez mais presente com o passar dos anos.

O velório foi realizado, no Rio, no térreo do Palácio Itamaraty. Em 1912, o barão do Rio Branco lá também fora velado. Sem dúvida, Marcos teria apreciado essa homenagem. Andei pelas salas e corredores vazios — era sábado de manhã — daquela ala do Itamaraty. Naquele edifício tão carioca, cujo espaço me faz, no entanto, pensar em palácios romanos, iniciaram-se as carreiras de Marcos e de minha mãe. Ali, durante décadas, de 1899 a 1970, antes de a diplomacia brasileira mudar-se para Brasília, sonhos e ambições pessoais, mas também projetos para o País, foram arquitetados e tocados adiante, ou, ao contrário, desmantelados, de maneira muitas vezes arbitrária. Pensei no hábito comum a alguns diplomatas de, tendo morado em diversos continentes e viajado incessantemente pelo mundo, virem a morrer na sua cidade natal. Impossível decidir se há aí uma vitória do indivíduo sobre a geografia, ou da geografia sobre o indivíduo.

Vivenciar o dia a dia de maneira intensa, vibrante, é que era a forma de ser de Marcos Azambuja. Poucos dias antes de viajar ao Brasil, eu soubera pela minha mãe que ele preparava suas memórias. Se estiverem em estado de ser publicadas, trarão luz, com a efervescência e irreverência que o caracterizavam, sobre o que viu e ouviu em uma vida passada dentro do Itamaraty. No caso de Marcos, poderia haver uma vitória do indivíduo sobre o tempo.

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

Batuque na cozinha, 7 de junho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

Retrato de família, 10 de maio

Benção apostólica, 26 de abril

O presente malásio, 12 de abril

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

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Batuque na cozinha

Batuque na cozinha

Transcrevo minha coluna quinzenal publicada no jornal Estado de Minas esta semana:

Quando Pelé se despediu de nós, em 29 de dezembro de 2022, não ficamos de luto apenas porque um ser humano, e maior futebolista de todos os tempos, falecera. Com a sua partida, desaparecera aquele que fora o esteio central da imagem mais positiva do Brasil no mundo, que ainda é o futebol.

Morando no exterior criança, adolescente e ao longo da minha carreira profissional, sempre fiquei impressionado com o quanto os estrangeiros associam o nome do Brasil ao do jogador. Inúmeras vezes aconteceu, nos lugares mais distantes, de eu ouvir, ao me apresentar como brasileiro: “Ah! Brasil! A terra do Pelé”. Em 2020, quando apresentei credenciais como embaixador do Brasil ao rei da Malásia, o tema da conversa entre nós foi inteiramente sobre o Rei Pelé. Preocupava-se o monarca com o estado de saúde daquele que, por ser o soberano do futebol mundial, era o rei do Brasil.

Acredito não haver muitos outros casos de uma pessoa simbolizar sozinha, aos olhos externos, o seu país inteiro. Dois outros elementos culturais brasileiros seguiam Edson Arantes do Nascimento, em termos de popularidade lá fora, enquanto eu crescia e me tornava adulto: algumas novelas de televisão e a música. Em Luanda, existiu durante vinte anos aquele que foi o maior mercado ao ar livre de toda a África. Seu nome era “Roque Santeiro”. Algumas vezes, em táxis em diversos países do Sul Global, motoristas me disseram: “Lá em casa, todos assistimos à ´Escrava Isaura´”.

No final de abril, testemunhei a dimensão do impacto que pode causar a música brasileira, com a vinda a Luanda de Martinho da Vila. Poucos dias depois de eu chegar, no final de fevereiro, o primeiro casal angolano que minha mulher e eu convidamos para a casa comentara que o músico estava por chegar. Acrescentaram, os dois: “Ele é muito querido aqui”. Mal sabíamos nós ser isso um eufemismo.

No dia do seu desembarque em Luanda, Martinho da Vila, sua mulher, Cleo Ferreira, três de seus filhos e membros da sua equipe jantaram conosco. Vários amigos angolanos vieram com ele. Recebê-lo em casa foi, para nós, algo emocionante. E não somente para nós. Ao longo da noite, todos os convidados quiseram uma fotografia com o cantor, que aceitou a situação com grande simplicidade.

Figura cultural mítica mais acessível na forma de interagir com os outros, eu nunca vi. No entanto, ele chegara do Brasil na manhã daquele mesmo dia, seu hotel era longe da nossa casa, ele devia estar bem cansado. Se estava, não deixou transparecer. Conversou, riu, deixou-se fotografar, abraçar, contou histórias de sua relação com Angola, anterior mesmo à independência do país, já que aqui veio pela primeira vez em 1972.

O seu show, dois dias depois, foi propriamente apocalíptico. Era véspera do feriado de primeiro de maio, que caiu na quinta-feira, e sexta-feira seria feriado também. No entanto, lá estavam milhares de pessoas. Martinho da Vila pisou no palco e já foi ovacionado. Todos se levantaram para filmá-lo ou fotografá-lo. O público conhecia suas músicas, cantava com ele. O carisma, aos 87 anos, continua intacto. Ele rememorou suas relações com alguns amigos angolanos; nem todos eram famosos ou ilustres, o que tornava a narrativa mais cativante.

Uma canção que eu não conhecia despertou meu interesse, como demonstração de internacionalização de um produto cultural. Martinho da Vila comentou de sua amizade com o poeta e dramaturgo Manuel Rui, autor da letra do hino nacional angolano. Mencionou que uma de suas composições, “À volta da fogueira”, é inspirada em um poema de Manuel Rui, “Os meninos de Huambo”. O mesmo poema recebeu também duas outras versões musicais, uma pelo artista angolano Ruy Mingas e outra pelo português Paulo de Carvalho.

O espetáculo foi aberto com apresentação de Eduardo Paim, ninguém menos do que o pai da kizomba. Uma amiga brasileira havia nos falado sobre esse eletrizante ritmo angolano. Eduardo Paim, ele próprio uma lenda viva, cantou e tocou o keytar durante uma hora, em uma atmosfera frenética, empolgante, fazendo-nos conhecer composições suas que eu viria a descobrir depois serem clássicos angolanos, como “A minha vizinha” e “São saudades”.

Entrevistados antes do show por um canal de televisão, minha mulher e eu lembramos à jornalista que crescer no Brasil significa ir acompanhando a carreira musical de ídolos como Martinho da Vila, que ele faz parte da vida pessoal de todos nós brasileiros. Na noite seguinte, a presença do artista brasileiro em Luanda ocupou longo trecho do principal telejornal do país.

O afeto de décadas entre o artista e o público angolano não é um feito banal, se pensarmos no poder global da indústria de entretenimento americana. Na mesma semana, Lady Gaga foi levada ao Rio de Janeiro, e dois milhões de pessoas compareceram para ouvi-la na praia de Copacabana. É uma ironia que a maior potência militar do planeta seja também a de “poder brando” mais efetivo. Não é porém uma ironia inédita. Luís XIV e Napoleão desenvolveram, cada um em sua era, políticas de agressão militar aos países vizinhos, enquanto a cultura francesa ocupava, paradoxalmente, a posição de maior prestígio e influência sobre o resto da Europa.

Na manhã seguinte, cedo, Martinho da Vila viajou para Maputo, levando com ele sua alegria, sua generosidade. Peguei-me cantarolando “Canta, canta minha gente… deixa a tristeza pra lá… canta forte, canta alto… que a vida vai melhorar”. Tendo crescido ouvindo essa canção, e tantas outras do compositor, sinto ser ele um elemento-chave, como é o Pelé, da noção que faço de mim mesmo como brasileiro.

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

Retrato de família, 10 de maio

Benção apostólica, 26 de abril

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O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro

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