Da Pampulha para Kuala Lumpur

Da Pampulha para Kuala Lumpur

Transcrevo abaixo minha terceira coluna quinzenal para o jornal Estado de Minas, publicada ontem, sábado 15 de fevereiro:

“Quando vocês lerem esta coluna, caras leitoras e caros leitores, eu já não estarei fisicamente na Malásia. Depois de trabalhar cinco anos em Kuala Lumpur, minha profissão estará me levando a caminho de um novo continente, de novas tarefas, de novos deveres.

Neste momento, escrevo ainda de casa em Kuala Lumpur, na reta final do meu tempo aqui, olhando pela janela para o Parque KLCC, projetado por Roberto Burle Marx. 

Há poucos dias, uma jornalista malásia me perguntou o que eu considerava ser meu maior êxito como embaixador do Brasil no seu país. Respondi, de maneira previsível — mas nem por isso menos verdadeira —, que o principal resultado da minha gestão terá sido a participação do primeiro-ministro Anwar Ibrahim na Cúpula do G20 no Rio de Janeiro, em novembro de 2024, e o convite malásio para que o presidente Lula participe da Cúpula da ASEAN em outubro deste ano. Lembrei que nunca antes um presidente brasileiro participou de Cúpulas da ASEAN.

Minha interlocutora me olhou surpresa e disse: “Pensei que você diria: o livro”. Admiti que eu pensara em responder a ela mencionando o livro a que se referia, Um brasileiro em Kuala Lumpur: Roberto Burle Marx e o Parque KLCC, publicado pela Embaixada do Brasil nos últimos dias de 2023.

O parque, o mais central da capital, estende-se aos pés das famosas torres gêmeas, as Petronas, sede da estatal de petróleo da Malásia. A sigla KLCC significa “Kuala Lumpur City Centre” e é o nome do bairro, do parque e do centro comercial situado entre as torres.

Burle Marx era certamente, na década de 1990, e vinha sendo há muito tempo, o arquiteto paisagista mais famoso do mundo. É natural, portanto, que a Malásia, embora em termos geográficos tão distante do Brasil, tenha decidido escolhê-lo para projetar o parque KLCC, no coração do novo centro financeiro da capital. No final da vida, o grande arquiteto paisagista brasileiro visitou a Malásia duas vezes para trabalhar no projeto, que foi concluído após o seu falecimento, acontecido em 1994. É sua única obra na Ásia.

Desde minha chegada a Kuala Lumpur, eu desejava celebrar esse elo — vivo, nítido, tão eloquente — entre o Brasil e a Malásia. Depois de quatro anos de esforços, atingi meu objetivo, graças ao apoio do Instituto Guimarães Rosa, unidade do Itamaraty responsável pela diplomacia cultural e educacional. O IPHAN cedeu material sobre o Sítio Burle Marx, no Rio de Janeiro, que, ao encerrar o volume, ilustra a trajetória do paisagista. Os desenhos, fotos e documentos fornecidos pelo Instituto Burle Marx são muitos deles inéditos, já que sua catalogação ocorreu especificamente para poder ilustrar o livro. A Vale Malásia, empresa que é a maior investidora latino-americana no país, garantiu a impressão em capa dura.

O trabalho diplomático apresenta a característica, às vezes ingrata, de que muito do empenho, das tarefas exaustivas realizadas gera frutos apenas meses, anos depois que partimos para novas funções. A diplomacia é uma atividade de longo prazo. É uma aula constante de que o ser humano não é eterno. Eu já não estarei em Kuala Lumpur quando o presidente Lula vier à Malásia para a Cúpula da ASEAN. Vários acordos bilaterais a que me dediquei, nas áreas por exemplo de saúde, investimentos, semicondutores, só poderão ser finalizados após a minha partida.

Os resultados são frequentemente imateriais, mas nem por isso menos importantes. O cotidiano é árduo, e no entanto pode-se chegar ao final  do dia sem nada de concreto a mostrar. Mas sementes foram plantadas, que o futuro verá florescer.

Já o livro sobre o parque de Burle Marx em Kuala Lumpur, bilíngue em português e inglês, será sempre um resultado tangível. Cumpriu o propósito de tornar o nome do Brasil mais presente no imaginário malásio. Foi distribuído a políticos, jornalistas e formadores de opinião. Em janeiro de 2024, quando comecei a divulgar o volume, eu estava completando quatro anos como embaixador na Malásia. Podia, com confiança, acreditar conhecer bem o país. Quanto mais você trabalha, porém, mais seus horizontes se abrem, mais você aprende, e surge mais trabalho. O livro trouxe-me novas amizades, novas atividades profissionais, gerou novos interesses, mais acesso à mídia, fez-me conhecer mais gente relevante para o meu trabalho. Abriu portas.

Os mineiros têm sorte. Burle Marx projetou, na década de 1940, quando era ainda muito jovem, jardins na Pampulha. Os belorizontinos podem assim usufruir em casa do seu talento, podem passear por sua obra. Cinquenta anos depois, a trajetória do paisagista encerrou-se com o Parque KLCC. De família da Zona da Mata, há anos não vou à Pampulha. Da mesma forma, talvez venham a passar anos até eu poder sonhar em caminhar novamente pelo Parque KLCC.  

Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente no Estado de Minas. Publicou, em novembro, o livro de ensaios Geografia do tempo.

As opiniões expressas nesta coluna são de responsabilidade exclusiva do autor”.

Diplomacia brasileira: homenagem a Samuel Pinheiro Guimarães

Diplomacia brasileira: homenagem a Samuel Pinheiro Guimarães

Viajo de férias ao Brasil este fim de semana. Não poderei rever, em Brasília, um grande amigo, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.

Em 29 de janeiro, Samuel partiu.

Uma semana depois, o jornal Estado de Minas publicou artigo em que exponho seu pensamento diplomático, como ele via a inserção do Brasil no Mundo, sua importância para a formulação de ideias verdadeiramente nacionais, e sua força de caráter. Um grande brasileiro, um grande diplomata, um grande pensador.

Copio abaixo o artigo, como publicado pelo jornal.

Estado de Minas

06/02/2024

Samuel: uma despedida

Pensador visionário e corajoso, grande patriota, soube apontar em que consistem os interesses brasileiros no tabuleiro internacional e, ao mesmo tempo, trabalhar com sucesso para obter sua implementação.

Ary Quintella

Embaixador do Brasil na Malásia

Uma frase de Jorge Luis Borges resume o que poderia ser toda a experiência da vida. Segundo ele, o Buda nos ensina que uma das piores dores do mundo é “não estar com as pessoas de quem gostamos”. É a sina do diplomata deixar de acompanhar muitos momentos felizes ou tristes da família e dos amigos. Amigos e parentes casam-se, separam-se, mudam de emprego ou de profissão, prosperam ou decaem, morrem, seus filhos terão nascido e se casado também. O diplomata, porém, perderá muito disso.


O mais penoso é não estar por perto quando chega o momento da despedida. Escrevo isto, Samuel, na esperança de conseguir voltar a dormir, tentando me consolar da tristeza de não ter podido dizer adeus. Dói saber que já não conversaremos; dói saber que em seus últimos meses a doença esteve presente, visitante insidiosa; dói saber que sem sua companhia cativante, estimulante, a vida perderá tanto de seu encanto.


É muito triste não ter podido me despedir de você. Todas as coisas boas, porém, permanecerão para sempre. Três frases suas, que ouvi incessantemente ao longo dos anos, contribuem para pautar meu cotidiano profissional e pessoal. Você dizia: “A pessoa precisa ter a coragem das suas convicções”; “Quem quer trabalhar só das nove às cinco, de segunda a sexta, não deve ser diplomata”; e “Como Aristóteles dizia, a gratidão é algo raro na natureza”. Você vivia intensamente essas máximas. Nunca o vi ceder a pressões para que abandonasse algum princípio seu. No exercício do trabalho diplomático, você era incansável. Muitas vezes, vi você entristecido com alguma ingratidão, mas aceitando-a filosoficamente.


Pelas dimensões de seu território, sua população e sua economia, por sua enorme capacidade de articulação política regional e global, o Brasil ocupa um lugar de destaque no cenário mundial e está fadado a ser cada vez mais influente. Por mais que determinadas correntes de opinião desejem que o país permaneça condenado a uma posição periférica, esse não é o seu destino. Era assim que você pensava, essa era a sua convicção maior. O projeto de integração sul-americana, a soma de forças representada pelo Mercosul, que você ajudou a criar, são instrumentos regionais para a obtenção desse fim mais amplo, você explicava.


Outra preocupação sua: o papel que o diplomata deve desempenhar, no dia a dia, para corresponder à ambição legítima da sociedade brasileira de progresso econômico com justiça social e democracia efetiva, afluência interna e influência externa. Uma vez, você me escreveu ser nossa obrigação contribuir para a construção de um país justo, soberano e democrático. Isso se faz com estudo aprofundado dos temas, construção de redes de contato com interlocutores estrangeiros, divulgação insistente do peso real do Brasil, dedicação, patriotismo, trabalho cotidiano.


Vi, desde Kuala Lumpur, fotos e vídeos da cerimônia fúnebre que aconteceu no Itamaraty. Achei que a cerimônia foi, assim como você, digna e emocionante. Havia algo justo na presença do presidente Lula. Nunca, em duas décadas de convivência, vi você esmorecer na admiração e na confiança pelo Lula. Lá estavam Celso Amorim e Mauro Vieira – o qual, como chanceler, abriu as portas do Itamaraty para a cerimônia – em demonstração de amizade e lealdade, qualidades que, no seu coração, eram algo importantíssimo.


Outra de suas frases regulares era, ao pedir opinião sobre uma aula ministrada, um artigo em preparação, um livro a ser concluído: “Ary, todo mundo quer ser querido, todo mundo precisa de carinho. Seja moderado nas críticas, seja efusivo nos elogios”.


Por isso, dói pensar nas palavras que não falei. Por pudor, nunca lhe disse que você era grande amigo, mentor admirado e figura paterna. Mas não era necessário. Você sabia. Maria Maia e você são, para Eugênia e para mim, os amigos mais próximos, mais queridos. Já não haverá a ida ao seu restaurante predileto ou as sessões de cinema nos fins de semana, já não haverá as festas acolhedoras na sua casa, e você já não irá lá em casa jantar. Todas essas coisas, que formam uma amizade, não voltarão a acontecer. Agora, percebo que elas eram a essência mesmo da minha vida em Brasília.


Uma amizade de vinte anos cresce, muda, evolui. Nos seus últimos anos de vida, a relação não era mais como no começo, quando trabalhei com você na Secretaria-Geral do Itamaraty, durante quatro anos, em todo o primeiro mandato do presidente Lula. A amizade foi frutificando. Tanta coisa aconteceu desde 2003, que aqueles parecem tempos bem longínquos.


Eram, em todo caso, tempos bem difíceis. Prefiro não falar aqui da resistência, das injustiças, da incompreensão que você enfrentou na sua tarefa de apoiar transformações importantes na organização da carreira diplomática e na política externa brasileira. Você não aprovaria que eu fizesse isso. Não guardava rancores. Possuía o dom de perdoar.


Poucas horas depois de você ter partido na manhã de 29 de janeiro, já de noite aqui na Malásia, fiquei pensando como eu reagiria se me perguntassem como resumir a sua personalidade tão única. Eis o que eu diria:


Samuel Pinheiro Guimarães era um homem de rara inteligência, de enorme capacidade de trabalho, de grande brilho político e intelectual. Sua obra, na qual se destaca Quinhentos Anos de Periferia, é um marco no pensamento brasileiro, na medida em que formula de maneira sistemática, pela primeira vez, um arcabouço teórico genuinamente nacional sobre o que está em jogo nas relações entre os países. Pensador visionário e corajoso, grande patriota, homem que amava o Brasil como poucos e que, como poucos, soube apontar em que consistem os interesses brasileiros no tabuleiro internacional e, ao mesmo tempo, trabalhar com sucesso para obter sua implementação. No plano pessoal, era um homem afetuoso, capaz de grande empatia, sentindo a dor alheia, mas também a alegria. Ele gostava do ser humano.


O seu desaparecimento cria um vácuo, para o Brasil e para quem o conhecia, que não pode ser preenchido.

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