Diplomacia brasileira: homenagem a Samuel Pinheiro Guimarães

Diplomacia brasileira: homenagem a Samuel Pinheiro Guimarães

Viajo de férias ao Brasil este fim de semana. Não poderei rever, em Brasília, um grande amigo, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.

Em 29 de janeiro, Samuel partiu.

Uma semana depois, o jornal Estado de Minas publicou artigo em que exponho seu pensamento diplomático, como ele via a inserção do Brasil no Mundo, sua importância para a formulação de ideias verdadeiramente nacionais, e sua força de caráter. Um grande brasileiro, um grande diplomata, um grande pensador.

Copio abaixo o artigo, como publicado pelo jornal.

Estado de Minas

06/02/2024

Samuel: uma despedida

Pensador visionário e corajoso, grande patriota, soube apontar em que consistem os interesses brasileiros no tabuleiro internacional e, ao mesmo tempo, trabalhar com sucesso para obter sua implementação.

Ary Quintella

Embaixador do Brasil na Malásia

Uma frase de Jorge Luis Borges resume o que poderia ser toda a experiência da vida. Segundo ele, o Buda nos ensina que uma das piores dores do mundo é “não estar com as pessoas de quem gostamos”. É a sina do diplomata deixar de acompanhar muitos momentos felizes ou tristes da família e dos amigos. Amigos e parentes casam-se, separam-se, mudam de emprego ou de profissão, prosperam ou decaem, morrem, seus filhos terão nascido e se casado também. O diplomata, porém, perderá muito disso.


O mais penoso é não estar por perto quando chega o momento da despedida. Escrevo isto, Samuel, na esperança de conseguir voltar a dormir, tentando me consolar da tristeza de não ter podido dizer adeus. Dói saber que já não conversaremos; dói saber que em seus últimos meses a doença esteve presente, visitante insidiosa; dói saber que sem sua companhia cativante, estimulante, a vida perderá tanto de seu encanto.


É muito triste não ter podido me despedir de você. Todas as coisas boas, porém, permanecerão para sempre. Três frases suas, que ouvi incessantemente ao longo dos anos, contribuem para pautar meu cotidiano profissional e pessoal. Você dizia: “A pessoa precisa ter a coragem das suas convicções”; “Quem quer trabalhar só das nove às cinco, de segunda a sexta, não deve ser diplomata”; e “Como Aristóteles dizia, a gratidão é algo raro na natureza”. Você vivia intensamente essas máximas. Nunca o vi ceder a pressões para que abandonasse algum princípio seu. No exercício do trabalho diplomático, você era incansável. Muitas vezes, vi você entristecido com alguma ingratidão, mas aceitando-a filosoficamente.


Pelas dimensões de seu território, sua população e sua economia, por sua enorme capacidade de articulação política regional e global, o Brasil ocupa um lugar de destaque no cenário mundial e está fadado a ser cada vez mais influente. Por mais que determinadas correntes de opinião desejem que o país permaneça condenado a uma posição periférica, esse não é o seu destino. Era assim que você pensava, essa era a sua convicção maior. O projeto de integração sul-americana, a soma de forças representada pelo Mercosul, que você ajudou a criar, são instrumentos regionais para a obtenção desse fim mais amplo, você explicava.


Outra preocupação sua: o papel que o diplomata deve desempenhar, no dia a dia, para corresponder à ambição legítima da sociedade brasileira de progresso econômico com justiça social e democracia efetiva, afluência interna e influência externa. Uma vez, você me escreveu ser nossa obrigação contribuir para a construção de um país justo, soberano e democrático. Isso se faz com estudo aprofundado dos temas, construção de redes de contato com interlocutores estrangeiros, divulgação insistente do peso real do Brasil, dedicação, patriotismo, trabalho cotidiano.


Vi, desde Kuala Lumpur, fotos e vídeos da cerimônia fúnebre que aconteceu no Itamaraty. Achei que a cerimônia foi, assim como você, digna e emocionante. Havia algo justo na presença do presidente Lula. Nunca, em duas décadas de convivência, vi você esmorecer na admiração e na confiança pelo Lula. Lá estavam Celso Amorim e Mauro Vieira – o qual, como chanceler, abriu as portas do Itamaraty para a cerimônia – em demonstração de amizade e lealdade, qualidades que, no seu coração, eram algo importantíssimo.


Outra de suas frases regulares era, ao pedir opinião sobre uma aula ministrada, um artigo em preparação, um livro a ser concluído: “Ary, todo mundo quer ser querido, todo mundo precisa de carinho. Seja moderado nas críticas, seja efusivo nos elogios”.


Por isso, dói pensar nas palavras que não falei. Por pudor, nunca lhe disse que você era grande amigo, mentor admirado e figura paterna. Mas não era necessário. Você sabia. Maria Maia e você são, para Eugênia e para mim, os amigos mais próximos, mais queridos. Já não haverá a ida ao seu restaurante predileto ou as sessões de cinema nos fins de semana, já não haverá as festas acolhedoras na sua casa, e você já não irá lá em casa jantar. Todas essas coisas, que formam uma amizade, não voltarão a acontecer. Agora, percebo que elas eram a essência mesmo da minha vida em Brasília.


Uma amizade de vinte anos cresce, muda, evolui. Nos seus últimos anos de vida, a relação não era mais como no começo, quando trabalhei com você na Secretaria-Geral do Itamaraty, durante quatro anos, em todo o primeiro mandato do presidente Lula. A amizade foi frutificando. Tanta coisa aconteceu desde 2003, que aqueles parecem tempos bem longínquos.


Eram, em todo caso, tempos bem difíceis. Prefiro não falar aqui da resistência, das injustiças, da incompreensão que você enfrentou na sua tarefa de apoiar transformações importantes na organização da carreira diplomática e na política externa brasileira. Você não aprovaria que eu fizesse isso. Não guardava rancores. Possuía o dom de perdoar.


Poucas horas depois de você ter partido na manhã de 29 de janeiro, já de noite aqui na Malásia, fiquei pensando como eu reagiria se me perguntassem como resumir a sua personalidade tão única. Eis o que eu diria:


Samuel Pinheiro Guimarães era um homem de rara inteligência, de enorme capacidade de trabalho, de grande brilho político e intelectual. Sua obra, na qual se destaca Quinhentos Anos de Periferia, é um marco no pensamento brasileiro, na medida em que formula de maneira sistemática, pela primeira vez, um arcabouço teórico genuinamente nacional sobre o que está em jogo nas relações entre os países. Pensador visionário e corajoso, grande patriota, homem que amava o Brasil como poucos e que, como poucos, soube apontar em que consistem os interesses brasileiros no tabuleiro internacional e, ao mesmo tempo, trabalhar com sucesso para obter sua implementação. No plano pessoal, era um homem afetuoso, capaz de grande empatia, sentindo a dor alheia, mas também a alegria. Ele gostava do ser humano.


O seu desaparecimento cria um vácuo, para o Brasil e para quem o conhecia, que não pode ser preenchido.

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O que faz um diplomata?

O que faz um diplomata?

O que faz um Embaixador brasileiro? Como ele e sua equipe promovem o Brasil?

O vídeo abaixo é para você, que talvez se pergunte como trabalham os diplomatas brasileiros no exterior.

Talvez uma curta explicação seja útil de como surgiu o vídeo.

Todo ano, em Kuala Lumpur, em setembro, é realizada a Feira de Produtos Halal (MIHAS, pelo seu acrônimo em inglês), possivelmente a mais influente do mundo. Como é sabido, o Brasil é o maior exportador do mundo de produtos halal de proteína animal.

Em 2023, o Brasil montou um pavilhão na MIHAS. A Embaixada em Kuala Lumpur decidiu também organizar um evento de confraternização no local da Feira. Um público numeroso compareceu. Somente produtos brasileiros, inclusive carne halal, foram servidos, como demonstração da sua alta qualidade. O evento brasileiro, único semelhante na MIHAS, despertou a atenção da imprensa malásia.

Existe na Malásia um importante semanário econômico, The Edge. O CEO do grupo que publica o semanário, Ho Kay Tat, é um dos mais famosos jornalistas do país. Ho Kay Tat é um contato habitual meu. Pedi a ele que o The Edge cobrisse o evento brasileiro na MIHAS. Ele fez mais. Sugeriu que eu desse uma entrevista ao canal de YouTube do The Edge, o que aceitei.

Fiz a entrevista no meu escritório. Em 22 de setembro, ela foi divulgada pelo The Edge TV. O canal transformara a entrevista em um excelente documentário, de apenas sete minutos, sobre as relações Brasil-Malásia. O vídeo aborda muitas das áreas em que a Embaixada em Kuala Lumpur vem trabalhando, embora não todas. Tenho a sorte de contar com colaboradores eficientes em Kuala Lumpur, e por isso várias frentes de atuação estão em curso, de promoção comercial a difusão da cultura brasileira, de ciência e tecnologia a assistência consular, de meio ambiente a saúde. 

No fim das contas, é tudo uma questão de patriotismo.

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Álbum de fotos — Palácio Itamaraty

Álbum de fotos — Palácio Itamaraty

É “o velho Itamaraty”, o do Rio de Janeiro, que mostro neste álbum. O de Brasília é, certamente, um dos prédios mais fotografados e conhecidos do Brasil. O do Rio, inaugurado em 1854 como residência particular do conde de Itamaraty, viveu momentos ilustres, mas já não é tão presente no imaginário nacional. Nele morreu, em 1912, o barão de Rio Branco. Nas primeiras décadas do século XX, foram construídos anexos, particularmente a biblioteca. É no Itamaraty do Rio que, até 1970, trabalharam pela política externa gerações de diplomatas brasileiros.

Antes de mais nada, sanemos uma dúvida: Palácio Itamaraty ou Palácio do Itamaraty? O do Rio ostenta um dos dois nomes, o de Brasília o outro. Antigamente, eu considerava o assunto digno da corte bizantina. Depois, memorizei qual era qual. Agora, já não me lembro. Pesquisando, vejo páginas oficiais, e mesmo textos assinados por autoridades, usando os dois nomes indistintamente, o que a rigor é um equívoco. Raciocinemos. O prédio do Rio emprestou o nome ao Ministério das Relações Exteriores, que lá esteve sediado de 1898 a 1970. Existia antes de o Ministério instalar-se nele. O de Brasília pegou o nome do Ministério que o ocupa, que chegou do Rio à nova capital habituado já à tradição de ser chamado pelo nome do prédio no Rio. A lógica faria supor, portanto, que o do Rio é o Palácio Itamaraty, enquanto que o de Brasília é o Palácio do Itamaraty, ou seja o prédio que pertence a uma instituição conhecida como Itamaraty. Faz sentido; tem lógica. Se me disserem que o oposto é o correto, espero que possam me dar uma razão igualmente razoável.

Aos 11 ou 12 anos, visitei pela primeira vez o Palácio Itamaraty. Na época, nós morávamos em Montevidéu, mas estávamos de férias no Brasil. Os meses de verão eram passados sobretudo na fazenda do meu avô materno, na Zona da Mata em Minas, que era o paraíso, mas minha avó e meu outro avô materno, Alfredo Curvello, viviam, separados mas amigos, no Rio de Janeiro, e lá íamos por alguns dias.

Naquele ano, minha mãe decidiu mostrar-me o Itamaraty. Para que o dia fosse o mais interessante possível para mim, fomos primeiro à Livraria Leonardo da Vinci, que era então um marco cultural na cidade, pelas seções de livros estrangeiros. Tenho até hoje, manuseado, gasto, o Livre de Poche que comprei nesse dia, uma das biografias escritas por Philippe Erlanger, a do Regente, sobrinho de Luís XIV.

Naquele tempo, eu não pensava em ser diplomata. Meu sonho era ser advogado. Talvez estivesse influenciado pela figura do meu pai, formado em Direito, que nunca advogou mas começava a pensar em preparar com Sobral Pinto, a quem ele admirava muito, o primeiro dos dois livros do jurista com os quais colaborou, Lições de Liberdade. Sobral Pinto era bem mais velho do que meus avós. Lembro dele perfeitamente como um homem educado, afável, vestido de terno escuro, de aparência frágil e espírito firme. Exercia influência sobre meu pai, e por isso eu o via, criança ainda, como uma figura exemplar.

Nessa primeira visita ao Palácio Itamaraty, minha mãe, Thereza Quintella, apontou o anexo do palácio, paralelo ao espelho d´água, onde ela trabalhara nos primeiros anos da carreira. Contou-me de maneira natural, sem mágoa alguma, como uma verdade a ser encarada sem temor, como era difícil, para uma mulher, ascender em uma profissão ainda essencialmente masculina.

A verdade é que sua promoção a embaixadora, que aconteceria em 1987, foi na época celebrada como uma rara vitória das mulheres no Brasil. Hoje, quando é evidente que as mulheres devem ocupar os cargos mais elevados, não temos mais consciência do quanto era escassa, há apenas 30 anos, a presença feminina nos altos escalões, em Brasília. Parece, em 2021, incompreensível que a promoção da minha mãe ao cargo mais alto da carreira diplomática tenha despertado tanta notoriedade, tenha sido vista como algo tão excepcional. É suficiente dizer que, durante seis anos, ela foi a única embaixadora brasileira na ativa, até a promoção seguinte de uma mulher, Vera Pedrosa, sobre quem escrevi em um ensaio evocando meu tempo no Equador, O Vulcão.

O palácio e seus anexos abrigam, além da representação do Itamaraty no Rio de Janeiro, o Museu Histórico e Diplomático. Sua mapoteca é famosa, seu arquivo importante.

Uma palavra sobre a galeria de próceres americanos. Guardei no celular fotos dos bustos de George Washington, James Monroe, Antonio José de Sucre e José Artigas. Este último é, artisticamente falando, excelente. Destaca-se dos demais, e por isso o escolhi para o álbum de fotografias. Os quatro bustos, porém, representam algo mais. Lembram etapas da minha vida, Montevidéu na adolescência, Washington e Quito na idade adulta.

Minha mais recente ida ao Itamaraty do Rio aconteceu em junho de 2018. Fui com a minha mãe. Helen Verraes Alves, gentilmente, nos ciceroneou. As fotos foram todas tiradas nesse dia.

Dedico este álbum ao embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, com quem trabalhei em meu primeiro posto, a embaixada em Washington, e que se despediu de nós há poucos dias. Sua personalidade se distinguia pela determinação. Nunca o vi bater em retirada diante de dificuldades. Ao mesmo tempo, tinha uma lúcida visão política do mundo, e sabia reconhecer quando um projeto era irrealizável. Liderava com absoluto autocontrole e uma calma segurança.

      

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