Consternação europeia

Consternação europeia

Transcrevo abaixo minha quarta coluna quinzenal para o jornal “Estado de Minas”, publicada ontem, 1o. de março:

“Neste mês de fevereiro, passei dez dias em Bruxelas. Apesar do frio, no plano pessoal esse não poderia ter sido um período melhor. Mas enquanto eu passeava com minha filha e meu genro, frequentava museus e livrarias e retornava a restaurantes prediletos, ao meu redor instalava-se a incerteza. Por obra e graça de Donald Trump, o mundo se transformava a galope e esfacelava-se a celebrada aliança transatlântica.

Meus dias em Bruxelas coincidiram com o anúncio do novo secretário de Defesa dos Estados Unidos, Pete Hegseth, de que não seria “realista” restabelecer as fronteiras da Ucrânia ao que eram antes de 2014. Falando em Bruxelas, Hegseth aproveitou para acrescentar que seu governo não considera conducente à paz a entrada da Ucrânia na OTAN. A frase que mais terá chocado os europeus, porém, é esta: “duras realidades estratégicas impedem aos Estados Unidos focalizar, como prioridade, a segurança da Europa”.

No mesmo dia, Donald Trump e Vladimir Putin conversaram ao telefone por uma hora e meia. Rompeu-se assim o isolamento russo, imposto há três anos pelos próprios Estados Unidos. Dois dias depois, na Conferência de Segurança de Munique, o vice-presidente americano, JD Vance, criticou, em seu discurso, um suposto déficit de liberdade de expressão na União Europeia, avaliando ser este o principal inimigo da Europa, não a Rússia ou a China. Estava eu ainda em Bruxelas quando o experimentado chanceler russo, Serguei Lavrov — ­frequentemente considerado, em círculos diplomáticos globais, o mais competente do mundo — manteve na Arábia Saudita reunião com o novo secretário de Estado, Marco Rubio. Causou forte comoção, na Europa, o fato de americanos e russos se sentarem para discutir ­o fim da guerra na Ucrânia sem a presença daquele país ou da União Europeia.

Meus dez dias na capital da Europa foram, assim, dez dias que abalaram o mundo. Ou ao menos, abalaram os países da União Europeia, além, naturalmente, da Ucrânia. Algumas manchetes dos mais ilustres jornais europeus, naquele período, dão conta do nível de consternação: “Estupefação e angústia em Kiev e na Europa”; “Ucrânia: a Europa marginalizada por Trump e Putin”; “Washington e Moscou reatam, às custas de Kiev”.

Durante 80 anos, desde o final da Segunda Guerra, acostumaram-se os países europeus, não podendo mais dominar o mundo, como haviam feito por séculos, a uma confortável subordinação aos interesses americanos. Gerações de europeus doutrinadas a ver na Rússia, e na China, o inimigo natural defrontam-se agora, com “estupefação e angústia”, com algo muito parecido com um inimigo novo. A guinada de lealdades da administração Trump — anunciada em ritmo acelerado em declarações que colocam em jogo toda a retórica americana precedente sobre a inviolabilidade da soberania ucraniana, a solidez da OTAN e segurança da Europa de maneira geral  — deixou os governos europeus sem fio condutor.

Logo após a invasão da Ucrânia, há três anos, o embaixador em Kuala Lumpur de um dos países mais influentes da União Europeia cometeu um ato falho em uma coletiva de imprensa. Àquela altura, os embaixadores europeus exerciam forte pressão, de forma pública, sobre o governo malásio para que este condenasse a Rússia. “Os malásios têm de entender”, declarou o embaixador europeu, “que essa não é uma guerra que afete apenas homens brancos. Afeta o mundo todo”. Racismo à parte, a declaração produziu a impressão de que, nessa guerra, estavam em jogo, justamente, apenas os interesses de países do hemisfério Norte.

Perguntei uma vez a Samuel Pinheiro Guimarães como era possível que o presidente Lula, em seu primeiro e segundo mandatos, se entendesse melhor, na avaliação de observadores políticos, com George W. Bush do que com Barack Obama. Sua resposta foi: “É mais fácil, para um país como o Brasil, lidar, no campo da política externa, com os republicanos. Os democratas vêm sempre rodeados de uma aura demagógica. Republicanos e democratas executam a mesma política externa, mas os republicanos têm o mérito da transparência”.

É isso o que estamos presenciando: Donald Trump coloca as cartas na mesa e a realidade dos novos interesses norte-americanos aparece agora sem qualquer verniz. O conflito na Ucrânia beneficiou sobretudo os Estados Unidos, ao prender Rússia e União Europeia em um conflito onde aparentemente não poderia haver vencedor. Agora, os ventos mudam e a posição dos EUA parece ser antes a de permitir à Rússia flexibilidade muito mais ampla em termos de área de influência. Será interessante observar se a administração Trump manterá, em relação aos interesses geoestratégicos da China, a mesma compreensão que parece manifestar em relação aos interesses russos sobre o entorno europeu de Moscou.

A verdade é que não terá sido por falta de aviso. Já em seu primeiro mandato, em 2018, Donald Trump declarara ser a União Europeia “inimiga dos Estados Unidos”, por questões comerciais e por não contribuir o suficiente para sua própria defesa. Os países europeus podem ter sentido alívio com a vitória de Joe Biden, nas eleições de 2020. Deixaram porém de prever que Trump, ou outro ator com os mesmos instintos, poderia voltar ao poder. Sua consternação, assim, não deixa de ser consternante.  

Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente no “Estado de Minas”. Publicou, em novembro de 2024, o livro de ensaios “Geografia do tempo”.

As opiniões expressas nesta coluna são de responsabilidade exclusiva do autor.

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Diplomacia brasileira: homenagem a Samuel Pinheiro Guimarães

Diplomacia brasileira: homenagem a Samuel Pinheiro Guimarães

Viajo de férias ao Brasil este fim de semana. Não poderei rever, em Brasília, um grande amigo, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães.

Em 29 de janeiro, Samuel partiu.

Uma semana depois, o jornal Estado de Minas publicou artigo em que exponho seu pensamento diplomático, como ele via a inserção do Brasil no Mundo, sua importância para a formulação de ideias verdadeiramente nacionais, e sua força de caráter. Um grande brasileiro, um grande diplomata, um grande pensador.

Copio abaixo o artigo, como publicado pelo jornal.

Estado de Minas

06/02/2024

Samuel: uma despedida

Pensador visionário e corajoso, grande patriota, soube apontar em que consistem os interesses brasileiros no tabuleiro internacional e, ao mesmo tempo, trabalhar com sucesso para obter sua implementação.

Ary Quintella

Embaixador do Brasil na Malásia

Uma frase de Jorge Luis Borges resume o que poderia ser toda a experiência da vida. Segundo ele, o Buda nos ensina que uma das piores dores do mundo é “não estar com as pessoas de quem gostamos”. É a sina do diplomata deixar de acompanhar muitos momentos felizes ou tristes da família e dos amigos. Amigos e parentes casam-se, separam-se, mudam de emprego ou de profissão, prosperam ou decaem, morrem, seus filhos terão nascido e se casado também. O diplomata, porém, perderá muito disso.


O mais penoso é não estar por perto quando chega o momento da despedida. Escrevo isto, Samuel, na esperança de conseguir voltar a dormir, tentando me consolar da tristeza de não ter podido dizer adeus. Dói saber que já não conversaremos; dói saber que em seus últimos meses a doença esteve presente, visitante insidiosa; dói saber que sem sua companhia cativante, estimulante, a vida perderá tanto de seu encanto.


É muito triste não ter podido me despedir de você. Todas as coisas boas, porém, permanecerão para sempre. Três frases suas, que ouvi incessantemente ao longo dos anos, contribuem para pautar meu cotidiano profissional e pessoal. Você dizia: “A pessoa precisa ter a coragem das suas convicções”; “Quem quer trabalhar só das nove às cinco, de segunda a sexta, não deve ser diplomata”; e “Como Aristóteles dizia, a gratidão é algo raro na natureza”. Você vivia intensamente essas máximas. Nunca o vi ceder a pressões para que abandonasse algum princípio seu. No exercício do trabalho diplomático, você era incansável. Muitas vezes, vi você entristecido com alguma ingratidão, mas aceitando-a filosoficamente.


Pelas dimensões de seu território, sua população e sua economia, por sua enorme capacidade de articulação política regional e global, o Brasil ocupa um lugar de destaque no cenário mundial e está fadado a ser cada vez mais influente. Por mais que determinadas correntes de opinião desejem que o país permaneça condenado a uma posição periférica, esse não é o seu destino. Era assim que você pensava, essa era a sua convicção maior. O projeto de integração sul-americana, a soma de forças representada pelo Mercosul, que você ajudou a criar, são instrumentos regionais para a obtenção desse fim mais amplo, você explicava.


Outra preocupação sua: o papel que o diplomata deve desempenhar, no dia a dia, para corresponder à ambição legítima da sociedade brasileira de progresso econômico com justiça social e democracia efetiva, afluência interna e influência externa. Uma vez, você me escreveu ser nossa obrigação contribuir para a construção de um país justo, soberano e democrático. Isso se faz com estudo aprofundado dos temas, construção de redes de contato com interlocutores estrangeiros, divulgação insistente do peso real do Brasil, dedicação, patriotismo, trabalho cotidiano.


Vi, desde Kuala Lumpur, fotos e vídeos da cerimônia fúnebre que aconteceu no Itamaraty. Achei que a cerimônia foi, assim como você, digna e emocionante. Havia algo justo na presença do presidente Lula. Nunca, em duas décadas de convivência, vi você esmorecer na admiração e na confiança pelo Lula. Lá estavam Celso Amorim e Mauro Vieira – o qual, como chanceler, abriu as portas do Itamaraty para a cerimônia – em demonstração de amizade e lealdade, qualidades que, no seu coração, eram algo importantíssimo.


Outra de suas frases regulares era, ao pedir opinião sobre uma aula ministrada, um artigo em preparação, um livro a ser concluído: “Ary, todo mundo quer ser querido, todo mundo precisa de carinho. Seja moderado nas críticas, seja efusivo nos elogios”.


Por isso, dói pensar nas palavras que não falei. Por pudor, nunca lhe disse que você era grande amigo, mentor admirado e figura paterna. Mas não era necessário. Você sabia. Maria Maia e você são, para Eugênia e para mim, os amigos mais próximos, mais queridos. Já não haverá a ida ao seu restaurante predileto ou as sessões de cinema nos fins de semana, já não haverá as festas acolhedoras na sua casa, e você já não irá lá em casa jantar. Todas essas coisas, que formam uma amizade, não voltarão a acontecer. Agora, percebo que elas eram a essência mesmo da minha vida em Brasília.


Uma amizade de vinte anos cresce, muda, evolui. Nos seus últimos anos de vida, a relação não era mais como no começo, quando trabalhei com você na Secretaria-Geral do Itamaraty, durante quatro anos, em todo o primeiro mandato do presidente Lula. A amizade foi frutificando. Tanta coisa aconteceu desde 2003, que aqueles parecem tempos bem longínquos.


Eram, em todo caso, tempos bem difíceis. Prefiro não falar aqui da resistência, das injustiças, da incompreensão que você enfrentou na sua tarefa de apoiar transformações importantes na organização da carreira diplomática e na política externa brasileira. Você não aprovaria que eu fizesse isso. Não guardava rancores. Possuía o dom de perdoar.


Poucas horas depois de você ter partido na manhã de 29 de janeiro, já de noite aqui na Malásia, fiquei pensando como eu reagiria se me perguntassem como resumir a sua personalidade tão única. Eis o que eu diria:


Samuel Pinheiro Guimarães era um homem de rara inteligência, de enorme capacidade de trabalho, de grande brilho político e intelectual. Sua obra, na qual se destaca Quinhentos Anos de Periferia, é um marco no pensamento brasileiro, na medida em que formula de maneira sistemática, pela primeira vez, um arcabouço teórico genuinamente nacional sobre o que está em jogo nas relações entre os países. Pensador visionário e corajoso, grande patriota, homem que amava o Brasil como poucos e que, como poucos, soube apontar em que consistem os interesses brasileiros no tabuleiro internacional e, ao mesmo tempo, trabalhar com sucesso para obter sua implementação. No plano pessoal, era um homem afetuoso, capaz de grande empatia, sentindo a dor alheia, mas também a alegria. Ele gostava do ser humano.


O seu desaparecimento cria um vácuo, para o Brasil e para quem o conhecia, que não pode ser preenchido.

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