A xícara de chá

A xícara de chá

Foi assim que o Rio de Janeiro apareceu, do mar, em janeiro de 1839, a um viajante inglês a caminho de Singapura, que via a cidade pela primeira vez: “A costa mais pitoresca que jamais vi — montanhas empilhadas, embaralhadas e torturadas em todos os formatos — entalhes profundos e numerosas ilhotas e cenários arborizados”. Destinada a um amigo, a carta foi retomada dois dias depois: “Visitei ontem o Jardim Botânico, perto do qual há um lago de água doce. E lá contemplei, pela primeira vez, o beija-flor, em toda a sua diminuta beleza, esvoaçando entre as flores como as mais resplandecentes abelhas — a árvore que ele frequenta é de Malaca! Plantas exóticas são cultivadas — a jaca, a árvore-do-pão, a mangueira”.

Nosso viajante menciona serem essas árvores velhas conhecidas suas, pois afinal ele nascera em 1803 na Índia, onde seu pai era juiz a serviço da East India Company, e lá morara até os doze anos de idade. De 1819 a 1825, voltara à Índia para servir, em Bengala, ao exército da Companhia das Índias Orientais e participara da Primeira Guerra Anglo-Birmanesa, na qual fora ferido.

Algumas árvores podiam parecer familiares, mas o Rio apresentava novidades para ele: “a vegetação é peculiar”. Na carta seguinte ao mesmo amigo, escrita em março da Cidade do Cabo, ele afirma: Rio is a lovely place, and I left it with regret. Diz inclusive não estar gostando do Cabo, que segundo ele, after the tropical vegetation and luxuriant verdure of Rio, presents few features of attraction.

A beleza das montanhas verdes do Rio de Janeiro sobre o mar parece ter causado sempre grande impacto sobre os viajantes daquela época. Textos de dois artistas franceses que, como nosso viajante inglês, vieram ao Brasil na primeira metade do século XIX, confirmam essa impressão.

Em 1835, Jean-Baptiste Debret, que morara no Brasil de 1816 a 1831, nos fala, relembrando a sua chegada à Baía de Guanabara: “o conjunto encantador desse lugar delicioso, recoberto em toda parte por um verdor escuro, geralmente cintilante” e aponta que o cenário revelava “um aspecto de abundância universal”. Édouard Manet, aos 17 anos, escreve, em carta à sua mãe, em fevereiro de 1849, ainda do barco no qual acabara de ancorar no Rio de Janeiro: “o porto do Rio é encantador, rodeado de montanhas verdes”. Em cartas posteriores, queixa-se das chuvas, constantes durante dias seguidos; afinal, era verão.

Há muitos anos eu não vejo a cidade desde a baía, e fico me perguntando se, apesar dos arranha-céus, o impacto do verde seria o mesmo hoje. Joseph Brodsky não viu o Rio do mar, em sua única visita, em 1979, e mesmo assim ficou impressionado com a vegetação, diferente de tudo com o que um europeu pudesse se identificar, criando “a sensação de uma fuga total da realidade conhecida”.

Voltemos ao nosso viajante inglês, voltemos ao ano de 1839. Assim como nas cartas, também em seu diário ele demonstra entusiasmo pelo Rio de Janeiro, notando que a cidade “apresenta aspectos de beleza natural raramente igualados”. Menciona porém “o calor extremo” e, como faria Manet dez anos mais tarde, as chuvas “que estragaram, até certo ponto, a satisfação que eu poderia ter obtido ao deambular por este pitoresco país. Passei porém dez dias muito agradavelmente”. Em vez de descrever, como as cartas, o Jardim Botânico, os pássaros e a natureza, o diário nos faz lembrar que as maravilhas do Rio de Janeiro de então escondem, como hoje, muita violência. Em um de três navios ancorados no porto do Rio com sua carga de africanos escravizados, o inglês vê a realidade de um “navio negreiro” como o descrito em todo o seu horror pelo poema de Castro Alves.

O viajante chegara ao Rio a bordo de sua própria escuna, Royalist, que ele comprara três anos antes, usando parte da herança que recebera com a morte do pai. A escala no Brasil não era necessária, pois seu barco transportava água suficiente para fazer diretamente a viagem da Inglaterra até o Cabo. A vontade de ver o Rio parece ter sido a razão da triangulação marítima. Impossível, portanto, contraste maior entre a realidade do inglês rico e independente e a dos africanos escravizados. Diz ele: “é uma visão odiosa e repugnante. Homens, mulheres e crianças — os anciãos e os infantes — confinados em um espaço mínimo”, condenados a “permanecer ali, deteriorando-se por semanas ou meses, até serem lançados a uma escravidão perpétua e sem esperança”.

Passados dez dias, o Royalist zarpa novamente, levando nosso viajante inglês, James Brooke, até Singapura, com escalas na Cidade do Cabo e em Java.

Em anos anteriores, viagens pela Ásia, que o haviam levado, além da Índia, a Penang, Malaca, Singapura, Cantão, haviam despertado em Brooke curiosidade pelo Arquipélago Malaio, particularmente Bornéu. Em 1838, ele publicara artigo na Inglaterra intitulado “Exploring Expedition to the Asiatic Archipelago”, em que anunciava sua viagem.

O tom é o de um explorador britânico da época, com uma boa dose de espírito de aventura, misturado com imperialismo, cobiça e a certeza de que seu país era o melhor do mundo e merecia exercer influência em toda parte. Há sinais de uma certa ingenuidade, e também sede de conhecimento; falta saber se esses dois sentimentos são verdadeiros ou teatrais, incluídos para tornar o imperialismo mais palatável. Uma frase chama a atenção: I embark upon the expedition with great cheerfulness. São palavras bonitas, na aparência inocentemente juvenis, mas é impossível não ter consciência, em retrospecto, de que essa era a reação que o autor do artigo desejava despertar nos leitores.

O texto trata com admiração de Sir Stamford Raffles, graças a quem Singapura, a partir de 1819, transformara-se em um posto avançado do Império Britânico. Raffles, como modelo, aparece de forma particularmente nítida em versão mais longa do artigo de Brooke, dada a conhecer pelo destinatário das cartas sobre o Rio de Janeiro, John Charles Templer, em livro de 1853. Ato de amizade, um dos muitos testemunhos da devoção que James Brooke era capaz de despertar, o volume de Templer, ao publicar o manuscrito do artigo, deixa transparecer ideia bem mais clara dos objetivos de Brooke com a sua empreitada no Arquipélago Malaio. A região, afirma: “apresenta terreno extenso para a Cristandade e o comércio, rica bem mais do que as Américas em produção mineral, de uma beleza natural incomparável, mas ainda inexplorada e que, apesar das vantagens que certamente ocasionaria, não atraiu ainda a atenção merecida”.

Brooke condena a “timidez” da Companhia das Índias Orientais no Arquipélago, a “vacilação e a fraqueza” da política inglesa para a região e a “ignorância e indiferença” de sucessivos governos britânicos. Lamenta que não tivesse sido seguida “a linha de conduta proposta por Sir Stamford Raffles”, de criação de entrepostos que “interligassem as colônias britânicas no Oriente”, o que teria assegurado “o predomínio do Reino Unido” no Arquipélago. A consequência desse descaso, afirma, é a exclusão do Reino Unido das vantagens do comércio na região, de que se aproveitava a Holanda. É a luta colonial entre países europeus que a versão mais longa coloca em evidência.

Em resumo, é um defensor do imperialismo falando, apesar de toda a mística de aventuras heroicas envolvendo seu nome.

Em Singapura, Brooke ouve falar do vice-rei de Sarawak, Hassim, tio e herdeiro do sultão de Brunei, soberano de toda a costa norte da ilha de Bornéu. Hassim, pouco antes, ajudara naufragados britânicos, e Brooke recebe a incumbência de entregar-lhe uma carta de agradecimento. Mas em Singapura, Brooke ouve também dizer que o território de Sarawak é rico em antimônio, e é bem possível que seu interesse em se instalar ali tenha começado antes mesmo de chegar a Bornéu.

Vi em julho de 2023, em Kuching, capital do estado malásio de Sarawak, no museu dedicado à família Brooke, um modelo do Royalist. Veículo do Império, a escuna atravessou o Atlântico com seus pequenos canhões, aportou no Rio de Janeiro, navegou pelo Índico e o Pacífico, e serviu de instrumento para o estabelecimento de Brooke como soberano de Sarawak, fundador de uma dinastia, o primeiro dos três “rajás brancos”.

O Royalist faz parte também do universo de um célebre escritor, embora por um equívoco seu.

Em 1920, Margaret de Windt, viúva de Charles Brooke, sobrinho e sucessor de James como rajá de Sarawak, escreveu a Joseph Conrad uma carta elogiosa a respeito de seu romance The Rescue, recentemente publicado.

Em sua resposta a Margaret, o escritor menciona que James Brooke era one of my boyish admirations, a feeling I have kept to this day strengthened by the better understanding of the greatness of his character and the unstained rectitude of his purpose. Conrad acrescenta que as aventuras do rajá inglês, por quem afirma sentir “familiaridade mental”, haviam em parte inspirado o enredo de The Rescue. Como é sabido, alguns aspectos da segunda parte de Lord Jim também remetem à vida de James Brooke. Conrad termina a carta afirmando ter visto, na Ásia, o Royalist, o qual, segundo ele, was still in 1887 running between Kuching and Singapore. She was a venerable old relic of the past.

A escuna, porém, vendida por Brooke em 1844, afundara na costa da Nova Zelândia dez anos depois. O Royalist visto por Joseph Conrad no Sudeste Asiático era um navio a vapor, encomendado por Brooke na Escócia em 1867, e não era portanto o barco histórico que permitira ao primeiro “rajá branco” instalar-se como soberano em Sarawak.

A vida de James Brooke, iniciada em 1803 e terminada em 1868, foi a de um aventureiro. Ele parece ter sido um homem sequioso por novos ares, insatisfeito com as restrições sociais do século XIX. Ao chegar a Sarawak, viu-se mergulhado em rivalidades políticas contra o soberano da região, o sultão de Brunei. Segundo a narrativa dos amigos que escreveram sobre ele, e perpetuada pela sua família, Brooke, tendo ajudado o vice-rei, Hassim, a debelar uma revolta, recebeu como recompensa o título de governador de Sarawak. Outorgou a si próprio o título de rajá, que o sultão de Brunei reconheceu. Nascia assim a lenda do “rajá branco” e de sua curiosa dinastia.

O historiador malásio Farish Noor analisa de forma crítica, em vários de seus livros e artigos, a atuação de James Brooke em Bornéu. Com alguma propriedade, aponta ser pouco provável que a família real de Brunei tenha voluntariamente cedido parte do seu território a um aventureiro inglês. Em um ensaio de 2019 intitulado “Don’t Mention the Corpses: the Erasure of Violence in Colonial Writings on Southeast Asia”, Farish Noor comenta ser esse enredo a sanitised account, o qual borders on the fantastical.

Em carta a Templer de agosto de 1839, Brooke descreve suas primeiras impressões da terra que logo viria a governar. O Royalist, vindo do mar, jogou âncora na entrada do rio Sarawak, antes de subi-lo até Kuching, então uma aldeia. Sua primeira impressão do cenário acentua, como no caso do Rio de Janeiro, a intensidade do verde na montanha: The scenery at the entrance of the Sarawak is noble, the peak of Santobong, clothed in richest verdure, rises close to the right bank.

Em Sarawak, James Brooke lutou contra aqueles que considerava piratas, sem aparentemente nunca ter entendido que talvez fosse ele próprio um deles. Passou de navio, gostou do que viu, tomou para si o território e governou as populações locais, de culturas, idiomas, religiões e etnias totalmente diferentes dos seus. Ele e o sobrinho, herdeiro e sucessor, Charles Brooke, ostensivamente combateram os caçadores de cabeça, pelo quais a ilha de Bornéu era então conhecida e temida, mas deixavam seus aliados entre os povos locais cortar as cabeças dos inimigos da nova dinastia.

O declarado combate à pirataria traria a Brooke dissabores. Membros do Parlamento britânico, entre 1850 e 1855, questionaram a violência com que eliminava “piratas”, sendo ele próprio quem determinava quem assim podia ser classificado. Até então, Brooke pudera contar com o apoio de navios da Marinha britânica. Uma comissão de inquérito o exonerou, em 1855, mas determinou que já não caberia a ele decidir quem era pirata, e que a Marinha real britânica não poderia mais defender Sarawak.

Mas na década de 1840, os questionamentos no Parlamento e as decisões da comissão de inquérito, que diminuiriam o prestígio de James Brooke, pertenciam ainda ao futuro. Antes disso, entre 1847 e 1848, ele fez uma viagem triunfal à Inglaterra, após uma ausência de nove anos. Festejaram-no. Atingiu aí, por alguns anos, o ápice da fama. Outro amigo e biógrafo, o diplomata Sir Spenser St. John, que na juventude havia sido seu secretário particular em Sarawak, escreveu sobre esse retorno à Inglaterra, em livro intitulado: Rajah Brooke: the Englishman as ruler of an eastern state, publicado em 1897. Relata St. John as muitas demonstrações de adoração e reconhecimento públicos recebidas por Brooke — “cujos compatriotas reconheciam os serviços que ele prestara à Inglaterra”, diz ele — inclusive honrarias concedidas pela Universidade de Oxford, ondeos alunos enlouqueciam de entusiasmo com a simples menção de seu nome, pois ele era preeminentemente um líder apto a despertar esse sentimento entre os jovens“.

Como demonstração mais inequívoca da admiração que despertava, Brooke hospedou-se no castelo de Windsor com a rainha Vitória e o príncipe consorte, Alberto. Longa carta sua a uma sobrinha descreve a experiência entusiasticamente. Um trecho diz, sobre a hora do jantar com o casal real e seus convidados em Windsor, que ele foi conducted along a splendid gallery, resplendent with lights, and pictures, and statues, decorated with golden ornaments, the richest carpets, and bouquets of fresh flowers, and ushered into a drawing-room as fine as mortal eye could wish to see. Há um arrivismo comovente no tom do “rajá branco”, e ao mesmo tempo temos a sensação de ler um conto das Mil e Uma Noites.

Existe na National Portrait Gallery, em Londres, um célebre retrato de James Brooke por Sir Francis Grant, de 1847. O artista escocês pintava a elite social. Há vários quadros seus representando a rainha Vitória, o príncipe Alberto, o príncipe de Gales, os políticos mais poderosos. Em 1866, seria eleito presidente da Royal Academy. Nossa edição da Enciclopédia Britânica, de 1963, considera que, em geral, suas obras were not of the highest artistic rank. Devemos supor que o retrato de James Brooke é uma das exceções. O pintor quis claramente retratar a imagem de uma personalidade independente. Há algo de Lord Byron no retrato.

Sir James Brooke por Sir Francis Grant, óleo sobre tela, 1847, © National Portrait Gallery, Londres

O quadro, estranhamente, parece nunca ter viajado a Kuching. Ficou na Inglaterra. Após a morte de Brooke, foi herdado pelo seu cunhado, o pai de Charles, e depois comprado em leilão, em 1877, por Sir Spenser St. John, que o doou à National Portrait Gallery em 1910.

Gravuras desse retrato foram imediatamente expostas nas vitrines de lojas em Londres, sinal usual de fama, na época. Alguns anos mais, e seriam fotografias de celebridades a decorar vitrines. Na adolescência, tomei conhecimento desse fato, que me surpreendeu, ao ler The Tragic Muse, de Henry James (1890). A personagem principal, uma atriz cuja ascensão acompanhamos, diz a uma certa altura: the shops were full of my photographs.

A obra de Francis Grant, portanto, oferecida pelo artista ao retratado, ilustra a celebridade do modelo naqueles anos, e ao mesmo tempo, por meio de reproduções, contribui para cultivá-la. É o caso de se perguntar a razão da popularidade de James Brooke no final da década de 1840.

Um artigo acadêmico nos dá a resposta. Publicado em 2010 pelo professor inglês Alex Middleton, Rajah Brooke and the Victorians explica como a Grã-Bretanha encarava sua realidade como potência colonial, no período da viagem triunfal de Brooke à Inglaterra, em 1847. Essa era uma época em que havia dúvidas, entre os britânicos, sobre a capacidade do país de gerenciar suas colônias. Comenta Alex Middleton: Since 1840, Britain had lost thousands of troops in the disastrous retreat from Afghanistan, seen the Niger expedition fail abjectly, and been responsible for appalling blunders in the colonization of South Australia and New Zealand, while the West Indies continued to decline. Nesse contexto, aparece em Londres James Brooke, apto a eliminar inquietações sobre o talento imperialista do país, com sua aura de aventuras, precedido por uma reputação de herói disseminada por amigos e propagandistas.

Em 1846, o capitão da Marinha britânica e futuro almirante Henry Keppel publicara um livro intitulado The Expedition to Borneo of HMS Dido for the Suppression of Piracy. Comandante do navio Dido, Keppel — tio-tetravô da rainha Camilla, mulher de Carlos III — era amigo de Brooke, com quem cometera em Bornéu algumas das violências classificadas como “guerra aos piratas”. O seu livro de 1846 contém trechos dos diários de Brooke, dados assim ao conhecimento público. Como comenta um dos mais recentes biógrafos do “rajá branco”, Nigel Barley (2002), James Brooke, em seus diários, can posture and dramatise himself Byronically, as a passionate creature of delicate scruple, tendo provavelmente sempre contado com que seriam publicados.

Em fevereiro de 1848, Brooke embarca de volta a Bornéu, desta vez em uma fragata da Marinha britânica, Meander. O comandante do navio é o mesmo Henry Keppel. Mais uma vez, há escala no Rio de Janeiro, mas não encontrei cartas publicadas de Brooke sobre suas novas impressões do Brasil. Apenas Keppel, em um livro de 1852, A Visit to the Indian Archipelago, in H.M. Ship Meander, nos diz: “O Rio de Janeiro estava tão sujo como sempre, com o comércio de escravos em pleno vigor”.

Spenser St. John participa da viagem, tendo sido pouco antes, em Londres, apresentado ao rajá, e por ele contratado. Em sua biografia de Brooke de 1879, narra ter ficado, ao conhecê-lo, “impressionado com a sua maneira cativante, que naquela época transformava em amigos seus todos os que dele se aproximavam”. Mas condena também a familiaridade com que o rajá, a bordo, tratava os cerca de vinte aspirantes da Marinha, os quais considered themselves at liberty to use Mr Brooke’s cabin as a sort of club, rindo, cantando, divertindo-se, jogando-se sobre sua cama, careless whether Mr Brooke was there or not.

Um desses aspirantes no Meander merece menção à parte. Charles Grant tinha 16 anos e era sobrinho do pintor Francis Grant. O rajá estava com 44 anos. Eles haviam se conhecido em 1846, no Sudeste Asiático, quando o aspirante tinha 14 anos, e já então começaram a se corresponder. Durante a viagem no Meander, Grant foi convencido por Brooke a abandonar a carreira para se tornar seu secretário particular em Sarawak. Nigel Barley especula sobre essa relação, como especula sobre a relação de Brooke com várias figuras masculinas, frequentemente mais jovens, que gravitaram ao seu redor. Platônico ou não, o relacionamento soa inaceitável, por causa da idade do aspirante. A carta de Brooke, escrita do Rio de Janeiro, ao pai de Charles Grant, pedindo autorização para que o filho se torne seu secretário particular faz promessas como: I shall be a leading actor in these political advances in the East, and I shall have both the will and the power to push Charlie’s fortune if you allow him to cast his lot with mine. É incompreensível que a família do aspirante da Marinha, rica pelo lado do pai — beneficiando-se de trabalho escravo na Jamaica — e aristocrática pelo lado da mãe tenha dado seu beneplácito. Com o tempo, haveria um afastamento. Grant se casaria, voltaria à Escócia para cuidar das terras que herdou, mas estaria presente, anos depois, no enterro de James Brooke.

Um dado anedótico sobre Charles Grant é que seu avô materno foi o sétimo Lord Elgin, lembrado hoje por ter decidido, em 1801, retirar esculturas da Acrópole e trazê-las para a Inglaterra. As estupendas obras de arte, às vezes chamadas de “Elgin Marbles”, residem no British Museum desde 1817. Podem hoje ser vistas como um símbolo da manutenção do espírito colonialista britânico, pela recusa do Reino Unido de atender pedidos reiterados da Grécia, há quarenta anos, de que sejam devolvidas a Atenas.

Desde o início, o reinado de James Brooke em Sarawak caracteriza-se por ser uma empresa familiar. Muitos dos jovens a quem ele distribui funções no novo estado são seus parentes ou contraparentes. A irmã de Charles Grant, por exemplo, viria a se casar com o sobrinho mais velho do rajá, Brooke Johnson. Nomeado príncipe herdeiro, esse sobrinho adotou o sobrenome materno e passou a se chamar Brooke Brooke. Ele e o tio terminariam por se desentender. Os últimos anos de vida do rajá foram passados em confusas recriminações contra o sobrinho, finalmente deserdado em favor do irmão caçula, Charles Johnson, mais próximo do tio, que também adotaria o sobrenome materno e se tornaria o segundo “rajá branco”. Há algo odioso nesse ato pelo qual um tio faz o sobrinho favorito suplantar o irmão mais velho caído em desgraça.

Charles Grant em momento algum aparece em um filme recente sobre James Brooke, Edge of the World, de 2021. O filme é estrelado por um ator sobre cujo talento costumo manifestar ceticismo, Jonathan Rhys Meyers, no papel principal. Financiado em parte pelo governo do estado de Sarawak e tendo recebido consultoria técnica do Brooke Heritage Trust, ou seja, dos descendentes de Charles Brooke, o filme é uma versão “oficialista”, autorizada da vida de James Brooke e é, por isso, bastante medíocre e convencional. É um Brooke compenetrado que nos é mostrado. Não entendemos, vendo o filme, a razão pela qual o personagem despertava tanta admiração entre seus contemporâneos. Elimina-se também toda ambiguidade sobre sua sexualidade. Há uma mulher ao seu lado, inspirada em uma princesa de Brunei que parece ter existido e, estimam alguns, com a qual ele pode ter se casado discretamente, por razões políticas, em uma cerimônia muçulmana. Mas tudo isso pode ser uma fabulação, e ela certamente não teve na sua vida a importância fantasiada pelo filme.

A partir de 1863, cinco anos antes de morrer, James Brooke retirou-se definitivamente a sua casa de campo no Devon, comprada em 1859, Burrator, e não voltou mais a Sarawak, que Charles Brooke passou a governar em seu nome. Foi sendo enfraquecido e envelhecido por derrames cerebrais, o primeiro deles ocorrido em 1858. Uma boa fonte para esses últimos anos é a sua correspondência, editada em 1935 por Owen Rutter, com Angela Burdett-Coutts — de quem se tornou amigo em 1857 — mulher mais rica do Reino Unido e que o ajudou financeiramente em suas empreitadas.

As cartas de Brooke a Angela Burdett-Coutts abordam desde assuntos pessoais a temas de Estado. Discute com sua correspondente seus projetos, a vida econômica de Sarawak, as disputas com Brooke Brooke. Em 1863, ele chega a nomeá-la sua sucessora ao território na ilha de Bornéu. Ela era então, depois do próprio rajá, o maior credor de Sarawak. Esse é um período em que Brooke esboça vários planos para o futuro de seu reino. Pensa em ceder o território à Coroa britânica, em troca de compensação financeira. Estuda a possibilidade de fazer de Sarawak um protetorado francês ou belga. As discussões com o herdeiro do trono da Bélgica, o futuro rei Leopoldo II, foram relativamente prolongadas; os dois chegaram a se encontrar. Em fevereiro de 1862, Brooke escreve a Angela Burdett-Coutts: I am quite agreeable about the Belgian question. É assustador imaginar que a população de Sarawak esteve perto de ser vítima da mesma brutalidade e selvageria que se abateria sobre os habitantes do Congo sob o domínio de Leopoldo II.

Em março de 1863, Brooke escreve de Sarawak, aos 60 anos: “Eu não quero ter de começar o mundo de novo”. E continua, mostrando saudades de “casa”, associada agora à Inglaterra, não mais a Kuching: “a solidão de Burrator, a xícara de chá, — oh! essa gratificante xícara de chá — os prazeres da lareira, ou dos dias de sol, mesmo raros, são relembrados e desejados, e sonhar com repouso não é trair Sarawak”. O “repouso” seria sempre relativo, mesmo em Burrator. Depois dessa carta, na edição de Owen Rutter da correspondência há ainda cem páginas mais de planos, frustrações, intrigas familiares, preocupações. A “gratificante xícara de chá” e os “prazeres da lareira” terão sido obtidos, mas toda vida humana é, até o fim, povoada de aborrecimentos.

É na Biblioteca Nacional de Singapura, que frequento quando estou passando alguns poucos dias de férias na ilha-estado, que costumo manusear o volume com a correspondência de Brooke com Angela Burnett-Coutts. Quando tomei pela primeira vez conhecimento dessa desejada xícara de chá perto da lareira, precisei me levantar da mesa de trabalho, ir até a parede de vidro, no décimo-primeiro andar, debruçada sobre a cidade e pensar sobre o que acabara de ler.

Vendo aos meus pés o quarteirão ocupado pelo histórico hotel Raffles — o Copacabana Palace de Singapura — e, mais longe, o trânsito marítimo no Estreito de Singapura, por onde passa boa parte do comércio mundial a caminho do Estreito de Malaca, lamentei ter lido a carta. Ela é penosa por nos revelar muito sobre as inúteis agitações de todo ser humano. Nascemos, crescemos, ambicionamos, sonhamos, corremos o mundo, perturbamos a paz das pessoas ao nosso redor, alguns criam até um reino nos trópicos, mas no fim queremos apenas a calma oferecida por uma lareira no Devon.

Apenas quinze, dezesseis anos haviam transcorrido desde o quadro heroico pintado por Francis Grant em 1847. Mas a viagem triunfal à Inglaterra daquele ano era já uma lembrança distante. As muitas aventuras, a fama, os problemas de saúde, as comissões de inquérito, as demandas sobre o governante, a revolta violenta dos mineiros chineses em Kuching, em 1857 — que quase custara a sua vida — as decepções e mesmo os triunfos haviam cobrado o seu preço. Dezesseis anos, aparentemente, representam um espaço de tempo longo demais em uma existência humana. Spenser St. John, em sua biografia de 1879, nos diz que o retrato, do qual era já então o proprietário: “mostra como ele era em seus dias brilhantes, quando a esperança ainda iluminava seus olhos, e doença e tristeza não haviam ainda curvado a sua aparência”.

A figura byroniana de 1847, o “líder apto a despertar entusiasmo entre os jovens”, que encobria suas ambições sob uma aura de idealismo transformara-se, em 1863, em um homem apequenado, sem brilho, envelhecido, ranzinza.

O carismático rajá branco, o fundador de impérios, o colonizador autopropagandista sedento por aventuras desejava somente, agora, a sua reconfortante xícara de chá.

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Os Rastignac de Bornéu

Os Rastignac de Bornéu

Visitando um pequeno museu em Kuching, cidade à beira do Rio Sarawak, na Malásia, deparei-me com o sobrenome Rastignac. Para o leitor apaixonado por Balzac, foi como ser atingido por um raio. Eu me via confrontado, em plena ilha de Bornéu, com a existência bem real de uma família com o mesmo sobrenome de um dos personagens mais famosos do escritor, Eugène de Rastignac, símbolo do jovem ingênuo transformado em ambicioso calculista. Ler aos quatorze ou quinze anos Le Père Goriot (1835), obra cruel até para os padrões de Balzac, gerou em mim uma impressão permanente. 

Despertada minha curiosidade sobre como o nome – tão francês – de Rastignac fora aparecer na parede de um museu em Bornéu, acabei mergulhado em uma história muito inglesa – a de Charles e Margaret Brooke. Passei quase um ano lendo e pesquisando com estupefação biografias, memórias, volumes de história e genealogias em busca de explicação sobre como uma família de classe média do interior da Inglaterra chegara a se transformar em dinastia de rajás à frente de um vasto entreposto do império britânico na Ásia. 

Margaret nos conta ela própria a sua vida. Casada com seu parente Charles Brooke, o segundo “Rajá Branco” de Sarawak, perdeu em seis dias os três filhos, mortos de cólera no navio, em viagem de Kuching à Inglaterra via Singapura. Os corpos foram atirados ao Mar Vermelho. Uma quarta criança havia nascido morta, uns meses antes. Era 1873 e ela tinha 24 anos. Estava casada desde 1869 apenas. Décadas depois, Margaret Brooke se tornaria amiga da escritora inglesa Marie Belloc Lowndes. Em suas memórias, The Merry Wives of Westminster (1946), esta conta que apenas uma vez ouviu Margaret referir-se à morte dos filhos, e mesmo assim de forma vaga, “de uma maneira tal que, se eu já não tivesse sabido a respeito, não teria entendido a alusão”. Três filhos adicionais viriam a nascer, chegariam à idade adulta, e o mais velho, Vyner, reinaria em Sarawak depois do pai. 

Charles Brooke era o administrador colonial de Sarawak, que governava como chefe de Estado hereditário. Sucedeu ao tio, James Brooke, o primeiro Rajá Branco, e legou por sua vez o território ao filho. Metodicamente, em detrimento do sultão de Brunei, foi acrescentando terras ao seu domínio, que acabou ficando tão extenso quanto a própria Inglaterra. Margaret Brooke era a Rani de Sarawak, a mulher do Rajá. O casamento não era feliz. Em seu livro de memórias My Life in Sarawak (1913) — que Joseph Conrad elogiaria em uma carta à autora escrita em 1920 — e na autobiografia Good Morning and Good Night (1934), Margaret descreve o marido como homem silencioso e metódico, totalmente voltado para a administração do território que comandava em Bornéu, e quite incapable of showing sympathy or feeling about anything that did not touch Sarawak.

Charles Brooke em meados da década de 1860

Good Morning and Good Night revela-nos a falta de opções à disposição da autora quando solteira, apesar do dinheiro da mãe. Nascera em Paris, crescera até os dez anos no castelo da avó na França, em Épinay, e desde a morte do pai de uma queda de cavalo, que a deixara órfã aos quatorze anos, levava uma vida errante pela Europa, com a mãe, Elizabeth Sarah de Windt, conhecida como Lily, os dois irmãos e umas amigas antigas de Lily, parasitical spinsters, como Margaret as classifica: From Paris to Florence – from Florence to Rome – Switzerland – the Tyrol, on we would move, always living in hotels. 

Charles Brooke era primo-irmão de sua mãe. Um dia, aos 42 anos, solteiro, ele aparece na casa de campo da família, na Inglaterra, em busca de uma noiva rica cuja fortuna pudesse saldar as dívidas de Sarawak. Ele próprio não tinha conhecidos na Europa, pois desde os 13 anos estivera na Marinha britânica, e a partir dos 23 vivera em Sarawak, a serviço do tio, de quem herdara o poder em 1868. 

Não é impossível que Margaret tenha tido alguma noção romântica da figura de Charles. Antes de conhecê-lo, ela lera já o livro, publicado em 1866, em que ele relata sua vida em Sarawak, onde morara dez anos em fortes à beira de algum rio, na floresta, controlando etnias inimigas entre si e jogando uns contra os outros os caçadores de cabeças. O aparecimento do primo mais velho, soberano em uma terra distante, sobrinho de uma figura mítica como fora James Brooke, deve ter sido acompanhado de uma aura de mistério e aventura.

Não faltam certos trechos de algum valor literário no livro de Charles, como este, inserido no meio da descrição de um ataque que ele organiza e lidera à terra dos Kayans, que estavam depredando bens dos Dayaks e prejudicando o comércio: the only sounds to be heard were those of nature alone, – the murmuring of the jungle insects, the low rumbling of the distant rapids, and the stream pouring over the pebbles close to us. Charles sentia-se inteiramente adaptado à vida em Sarawak e pouco à vontade no país onde nascera. Na floresta, costumava andar descalço como os Dayaks. Tendo de viajar à Inglaterra, após dez anos ininterruptos na Malásia, ele comenta: little did I care for the prospect of European pleasures, so much thought of and sought after as an Elysium by many living so far away. They are invariably found disappointing when England is reached.

Nas memórias e biografias dos diferentes atores envolvidos, há frequentes referências ao fato de que Charles pode ter primeiro pensado em se casar com a mãe de Margaret, Lily de Windt, então com 43 anos. A escolha acaba recaindo sobre a filha, que, aos 19 anos, lhe permitiria o mesmo nível de acesso aos recursos financeiros da família. A oferta de casamento e sua aceitação não refletiam sentimentos amorosos. No hotel em Innsbruck, aonde acompanhara os primos, Charles atira sobre as teclas do piano, no qual a moça supostamente teria estado tocando um noturno de Chopin, um poema sobre casamento – mas não sobre amor. I do not imagine the poor dear man could ever have been madly in love with me, admite ela; on my side, although I respected him and admired his achievements, I was never in love with him.

Desde o início, o marido foi parcimonioso com dinheiro, inclusive o da mulher. Com o tempo, o casamento torna-se uma ficção. Margaret vive na Europa, sob o pretexto de cuidar da educação dos filhos. A partir de 1880, os períodos que ela passa na Malásia são cada vez mais raros e curtos. Em 1887, esteve em Sarawak por poucos meses. A viagem seguinte a Bornéu aconteceria somente em 1896. Seria a última. Quando My Life in Sarawak foi publicado, fazia dezessete anos que a Rani não via sua terra de adoção. Ela morreria em 1936, sem ter voltado a Bornéu nos últimos quarenta anos de vida. Durante alguns anos, em Londres, morou com os filhos ainda pequenos em Cornwall Gardens.  Minha mãe, minha irmã e eu moraríamos na mesma pequena rua cem anos depois. Entre os dois períodos, lá viveu também Joaquim Nabuco.

A história contada em My Life in Sarawak é a de uma jovem vitoriana que descobre aos vinte anos, com fascinação, a realidade tropical de Bornéu. Ela se adapta às suas novas circunstâncias, faz amizades locais. Viaja no iate do marido e em pequenas embarcações fluviais, acompanhando o Rajá Branco em seus roteiros de inspeção. Enfrenta sem o marido, sozinha em um forte longe da capital, querreiros Kayans, que teria conseguido apaziguar. Passa a usar trajes típicos de Sarawak. Aprende a língua malaia. Descobre que o canto do bulbul é mais bonito que o do rouxinol.

A primeira frase resume o espírito de todo o volume: When I remember Sarawak, its remoteness, the dreamy loveliness of its landscape, the childlike confidence its people have in their rulers, I long to take the first ship back to it, never to leave it again. Por um lado, a declaração de amor pela terra que não verá mais chega a ser tocante. Por outro, a referência à “confiança infantil que seu povo deposita nos governantes” irrita e nos faz lembrar estarmos diante de um casal inglês, representante do espírito colonialista britânico, transformado em rei e rainha nos trópicos asiáticos. Desde o início, em 1841, quando James Brooke passara a governar Sarawak, esta fora a ambiguidade da curiosa dinastia: reinavam na Ásia do Sudeste, mas não abandonavam a nacionalidade inglesa. Eram simultaneamente senhores e súditos.

O segundo livro, Good Morning and Good Night, é mais pessoal e revelador – e ainda assim de maneira relativa, como veremos. No texto de 1934, Margaret atribui o insucesso matrimonial aos ciúmes que o marido teria da sua popularidade em Sarawak: he wished to remain alone and supreme in the love and affection of his subjects. Ao mesmo tempo, depreende-se que, em Bornéu, ela estava sempre adoentada, talvez com depressão, talvez com malária. Há uma contradição entre o amor professado por Sarawak e suas constantes doenças. O médico britânico em Kuching entende que ela sofre de histeria, clássico “diagnóstico” do século XIX para deslegitimizar mulheres. Ela própria nos diz: Hysteria! – that blessed refuge of somewhat unskilful doctors who find themselves unable to diagnose a disease!

Nos dois livros, Kuching, onde viviam 30 mil habitantes quando Margaret lá aportou pela primeira vez, é simultaneamente apresentada como uma espécie de paraíso, mas também com outras cores, como aldeia insalubre infestada de malária, mosquitos e ratos. No rio Sarawak, nadavam crocodilos. Se é verdade que a Rani teria sido acordada uma noite, como relata, por migração de “milhares” de ratos que atravessavam seu quarto, não sei. Mas posso testemunhar que na ilha de Bornéu a questão dos ratos não pode ser minimizada. O maior que vi em minha vida cruzou frente aos meus pés, em fevereiro de 2023, no mercado noturno de Kota Kinabalu, capital de Sabá, o outro estado malásio da ilha. Eu me preparava para acomodar-me em uma cadeira de plástico e jantar um peixe que vira ser preparado. A aparição do rato, grande como um gato e com sinais de doença na pelagem, me fez desistir.

Margaret de Windt passou proporcionalmente pouco tempo em Sarawak. Era porém seu título de Rani que lhe conferia prestígio na Europa. Frequentava a corte inglesa, junto à qual conseguiu diversas vantagens cerimoniais para Sarawak e o marido – para desgosto dele, que não apreciava suas interferências. Em 1901, obteve do novo rei, Eduardo VII, uma definição protocolar do status de Charles e, portanto, dela própria. O Rajá nascido na paróquia provinciana de Berrow, no interior de Somerset, ficava formalmente reconhecido como soberano de um Estado independente sob proteção britânica; os dois recebiam o título de altezas e eram inscritos, na ordem de precedência, logo após os príncipes reinantes indianos.

A facilidade com que Margaret, e, antes dela, o marido, construíam para si, por meio de suas memórias, uma imagem de exotismo e heroísmo tampouco atrapalhava sua popularidade. Próxima do príncipe Alberto I de Mônaco e sua mulher, a “soberana” de Sarawak frequentava artistas e escritores na França e na Inglaterra. Good Morning and Good Night narra episódios de sua amizade com Henry James, iniciada na década de 1890 e que durou até a morte do romancista. No primeiro encontro entre os dois, em Londres, na casa de uma conhecida comum, o escritor é descrito como um homem condescendente. A Rani afirma já haver então lido Roderick Hudson, Daisy Miller e The Princess Casamassima e elogia essas obras. Henry James levanta a mão ao ar e afirma: No, my dear lady, no, I can do better – I can do better than that. Margaret retruca: Oh, how can you say so? Surely they are quite perfect? A mão do escritor desce. Henry James olha para Margaret Brooke com sorriso de comiseração e responde: Well, as you will! But why are you here? You come from a land where the bulbul sings.

O livro menciona Pierre Loti – que dedicou um conto a Margaret – Maupassant, Rudyard Kipling, Swinburne, o pintor Edward Burne-Jones, a atriz Sarah Bernhardt. Parece haver consenso de que a Rani de Sarawak chegou a viver um romance, na década de 1890, com o jornalista americano William Morton Fullerton, quinze anos mais jovem, que não é mencionado em seus livros. Fullerton é hoje lembrado sobretudo pelo relacionamento amoroso com a escritora Edith Wharton e a amizade intensa que despertou em Henry James. Foi um desses personagens, como de uma certa forma a própria Margaret Brooke, que existem em toda parte, atraídos por escritores mais talentosos do que eles próprios. Ao fazerem parte da biografia alheia, preservam alguma fama após a morte.

Oscar Wilde, que lhe dedicou o primeiro conto de seu livro A House of Pomegranates (1891) – “To Margaret, Lady Brooke” – tampouco é mencionado, o que pode parecer estranho para nós, leitores do século XXI, cientes da perenidade de algumas de suas obras. Ocorre que quando Margaret escreveu seus livros de memórias, Wilde já morrera em desgraça, após o escândalo do seu processo e prisão. A mulher dele, Constance, precisara adotar outro sobrenome para si e os filhos, tal o constrangimento que passara a ser associado ao nome de Wilde. A Rani não viveu o suficiente para presenciar sua reabilitação.

Elemento constante na vida mutável de Margaret de Windt parece ter sido a busca por respeitabilidade, por afirmação de uma posição social. Não deixou, apesar disso, de prestar apoio a Constance, durante a prisão do escritor. Vyvyan Holland, filho de Wilde, escreve com gratidão a seu respeito, rememorando os dias passados perto de Gênova ao seu lado, e contando como sua mãe reencontrou alguma felicidade in the companionship of the Ranee, who was a comfort and a consolation to her until the time of her death three years later. Marie Belloc Lowndes afirma que o político trabalhista Richard Haldane visitou Oscar Wilde na prisão a pedido de Margaret. Foi graças a essa visita, é sabido, que o prisioneiro pôde receber livros e, mais tarde, caneta e papel, o que lhe permitiu escrever De Profundis, a longa carta da prisão de Reading. 

É no afã de procurar demonstrar respeitabilidade que tem início Good Morning and Good Night. O castelo da avó em Épinay, onde Margaret crescera, é apresentado, nas primeiras páginas, como the home of the Rastignacs for generations. O “Reino do Terror” da Revolução Francesa, wreaking its hatred on the aristocrats, teria confiscado a propriedade e guilhotinado o marquês e a marquesa de Rastignac, “junto com tantos de seus amigos”. A única prole do casal, Elisabeth, bisavó de Margaret, teria sido “escondida pelos aldeões, que amavam os Rastignac”, e enviada à Holanda, para ser criada em segurança por um casal amigo, que a teria adotado. Mais tarde um filho do casal, Peter de Witt, casou-se com Elisabeth. Peter e Elisabeth de Witt teriam recuperado o castelo na França, onde foram viver, e o nome de Witt teria sido deturpado – pelos camponeses, afirma Margaret – em de Windt.

É um inteiro conto de fadas. Existem dois museus em Kuching celebrando o reinado de cem anos – de 1841 a 1946 – da dinastia Brooke. Ambos são administrados, com apoio do governo estadual, por uma entidade inglesa, Brooke Heritage Trust, presidida por Jason Brooke, descendente da família. Um dos museus, sediado no antigo Forte Marguerita, construído por Charles e nomeado em homenagem à mulher, é dedicado aos três Rajás Brancos.  O outro, instalado no antigo Tribunal de Justiça, à vida de Margaret. O percurso pelas suas poucas salas começa com a reprodução de um quadro a óleo que representaria “o Marquês e a Marquesa de Rastignac, trisavós de Marguerite, por volta de 1780”. 

As explicações do museu repetem, de forma acrítica, a versão fantasiosa oferecida por Margaret de suas origens. O tom esnobe da narrativa, com sua ingênua redução da Revolução Francesa ao “Reino do Terror”, ao “ódio pelos aristocratas” e à guilhotina é reproduzido pelo museu. Curiosamente, Margaret de Windt lembra nessa hora Lady Bracknell, personagem cômico de The Importance of Being Earnest, porta-voz assertivo, na peça, de valores sociais conservadores.

A realidade é diferente do seu conto. Margaret fala da “bisavó Rastignac adotada pela família de Witt” como se a tivesse conhecido: “ela morreu quando eu tinha quatro anos”. Cita até, entre aspas, uma frase que a bisavó costumava dizer, falando dos casamentos da filha e da neta com ingleses: Ces Anglais, ces Anglais, toujours ces Anglais. Denomina-a “baronesa de Windt”. Essa pessoa, porém, nunca existiu. Ninguém usando o título de marquês ou marquesa de Rastignac jamais morreu guilhotinado. A avó materna de Margaret, Elisabeth, era uma de Windt adotada e transformada em herdeira pela tia, Judith de Windt. Esta, sim, enviuvara em 1817 de Jacques Gabriel Chapt, visconde de Rastignac. Os de Windt estavam instalados desde o início do século XVIII no Caribe – onde terão feito fortuna com lavoura de açúcar à base de trabalho escravo – e escreviam seu nome com essa grafia desde pelo menos o século XVII. A avó de Margaret, Elisabeth de Windt, casou-se com um inglês, que adotou seu sobrenome, e não com um holandês chamado Peter de Witt. Margaret não teve nem avô nem bisavô com esse nome. A sua bisavó de Windt, nascida Sarah Roosevelt, no Caribe — e não Elisabeth de Rastignac, na França —, morreu em Paris, em 1850, um ano após o nascimento da bisneta. Essas informações encontram-se em diferentes estudos genealógicos, todos de acesso público. 

A história da família Chapt de Rastignac foi publicada em 1858 por sua última representante, Zénaïde, duquesa de La Rochefoucauld. Os Chapt de Rastignac são consistentemente descritos como de nobreza antiga. Pode-se deduzir a satisfação de Margaret de Windt em conseguir fazer crer, por meio das suas alegações, que descendia da família. 

Terá Margaret sabido que na verdade não descendia dos Rastignac? Inventou ela própria essa fábula ou herdou-a da mãe ou da avó? A resposta pode estar em livro autobiográfico de seu irmão caçula, Harry de Windt, célebre em sua época como viajante incansável e também ele autor prolífico de narrativas de viagens. Vyvyan Holland é quem, mais uma vez, nos conta que Harry de Windt was a famous explorer at the end of the last century, his most remarkable feat being to travel from Pekin to Paris overland in 1887. É sobriamente, sem fantasias, que o irmão mais novo explica, em My Restless Life (1909), que o castelo em Épinay “tinha sido herdado de um parente, o visconde de Rastignac”.

O museu em Kuching perpetua no entanto as invencionices de Good Morning and Good Night. De um museu, mesmo um museu familiar, espera-se algum apego à realidade. Mais extraordinário ainda é que o mito dos antepassados aristocráticos franceses seja recolhido na obra da historiadora australiana Cassandra Pybus, que estudou as vidas de Charles e Margaret em The White Rajahs of Sarawak (1996) e compra, sem crivo, a versão de que Margaret de Windt descendia de “aristocratas franceses” e era por isso socialmente superior aos Brooke.

Viúva desde 1917, Margaret morreu em 1936, aos 87 anos. Foi poupada de ver o filho Vyner ter de renunciar, em 1946, ao reino de Sarawak, que se tornou formalmente apenas mais uma entre as colônias de um império britânico em declínio. 

Em uma família onde cada um parece haver deixado seu próprio livro de memórias, sua nora, Sylvia Brett, mulher do terceiro e último Rajá Branco, também publicou as suas, com um título sensacionalista, Queen of the Headhunters (1970). Sylvia Brooke visitou a sogra poucos dias antes de sua morte e não foi por ela reconhecida. She had been a woman of note, escreve a nora, the friend of Henry James, H. G. Wells and Elgar. Now there was nobody; and she was just a lonely woman, living in a small flat, and already separated from life. There was something regal and tragic in her isolation. 

Oscar Wilde não é a única omissão notável em Good Morning and Good Night. Quando Margaret descreve a morte de seus três filhos pequenos a bordo do navio – “aquelas flores belas e encantadoras cortadas em poucas horas, arrancadas de nós e jogadas ao mar” – e lista todos os presentes no seu grupo, “marido, irmão, os três bebês, a babá inglesa, a empregada doméstica”, deixa de lado uma pessoa.

Viajando com eles, ia uma outra criança, um menino de seis anos. Ele se chamava Esca Brooke e era filho de Charles Brooke com uma mulher malaia, de origem nobre, Dayang Mastiah. Charles e a mãe da criança podem ter se casado em um rito muçulmano. O garoto passou a ser criado no Astana, como é chamado o palácio em Kuching, e sua existência em Sarawak nunca foi um mistério. 

Pode-se imaginar a reação de Margaret ao ver seus três filhos morrerem e serem atirados ao mar, enquanto o outro menino, que também adoeceu, sobrevivia. Cassandra Pybus especula ser possível que Esca, nascido na terra de Sarawak, filho mais velho do Rajá, fruto talvez de um casamento que as populações locais considerariam legítimo, viesse a ser um candidato sólido a suceder ao pai, em detrimento dos filhos da Rani. Cita uma frase de Margaret a um sobrinho, em carta de 1927: “Tive o bom senso de perceber que ele seria um problema se ficasse em Sarawak”. 

Deixado na Inglaterra, em 1873, para ser criado por um reverendo anglicano, Esca Brooke emigrou com sua família adotiva para o Canadá. Ele nunca mais veria o pai; nunca receberia um bilhete sequer dele, apenas uma pequena pensão; nunca retornaria a Sarawak. Morreu em Toronto em 1953.

Quantas facetas cabem em um único personagem? Ao longo da história de Margaret de Windt, como ela a quis contar, vemos sucessivamente a jovem vitoriana ingênua, isolada embora de família rica; a soberana corajosa de uma terra tropical, distante do seu país de origem; a mulher infeliz no casamento e enlutada pela morte de vários filhos; a alteza detentora de um título espetacularmente insólito, amiga, na Europa, de príncipes e artistas; a personalidade pública ciosa de estabelecer uma posição de brilho para si, o marido e os filhos. 

O que não vemos em momento algum, ao longo das suas memórias, é uma dimensão importante – que talvez seja o seu aspecto mais fascinante. Margaret entrou na vida do pequeno Esca Brooke, possível herdeiro de Sarawak, como presença nefasta, a clássica madrasta má. Com isso, conseguiu tornar-se, de fato, não uma Rastignac real, como fantasiou ser, mas uma personagem digna de Balzac.

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