Visitando um pequeno museu em Kuching, cidade à beira do Rio Sarawak, na Malásia, deparei-me com o sobrenome Rastignac. Para o leitor apaixonado por Balzac, foi como ser atingido por um raio. Eu me via confrontado, em plena ilha de Bornéu, com a existência bem real de uma família com o mesmo sobrenome de um dos personagens mais famosos do escritor, Eugène de Rastignac, símbolo do jovem ingênuo transformado em ambicioso calculista. Ler aos quatorze ou quinze anos Le Père Goriot (1835), obra cruel até para os padrões de Balzac, gerou em mim uma impressão permanente. 

Despertada minha curiosidade sobre como o nome – tão francês – de Rastignac fora aparecer na parede de um museu em Bornéu, acabei mergulhado em uma história muito inglesa – a de Charles e Margaret Brooke. Passei quase um ano lendo e pesquisando com estupefação biografias, memórias, volumes de história e genealogias em busca de explicação sobre como uma família de classe média do interior da Inglaterra chegara a se transformar em dinastia de rajás à frente de um vasto entreposto do império britânico na Ásia. 

Margaret nos conta ela própria a sua vida. Casada com seu parente Charles Brooke, o segundo “Rajá Branco” de Sarawak, perdeu em seis dias os três filhos, mortos de cólera no navio, em viagem de Kuching à Inglaterra via Singapura. Os corpos foram atirados ao Mar Vermelho. Uma quarta criança havia nascido morta, uns meses antes. Era 1873 e ela tinha 24 anos. Estava casada desde 1869 apenas. Décadas depois, Margaret Brooke se tornaria amiga da escritora inglesa Marie Belloc Lowndes. Em suas memórias, The Merry Wives of Westminster (1946), esta conta que apenas uma vez ouviu Margaret referir-se à morte dos filhos, e mesmo assim de forma vaga, “de uma maneira tal que, se eu já não tivesse sabido a respeito, não teria entendido a alusão”. Três filhos adicionais viriam a nascer, chegariam à idade adulta, e o mais velho, Vyner, reinaria em Sarawak depois do pai. 

Charles Brooke era o administrador colonial de Sarawak, que governava como chefe de Estado hereditário. Sucedeu ao tio, James Brooke, o primeiro Rajá Branco, e legou por sua vez o território ao filho. Metodicamente, em detrimento do sultão de Brunei, foi acrescentando terras ao seu domínio, que acabou ficando tão extenso quanto a própria Inglaterra. Margaret Brooke era a Rani de Sarawak, a mulher do Rajá. O casamento não era feliz. Em seu livro de memórias My Life in Sarawak (1913) — que Joseph Conrad elogiaria em uma carta à autora escrita em 1920 — e na autobiografia Good Morning and Good Night (1934), Margaret descreve o marido como homem silencioso e metódico, totalmente voltado para a administração do território que comandava em Bornéu, e quite incapable of showing sympathy or feeling about anything that did not touch Sarawak.

Charles Brooke em meados da década de 1860

Good Morning and Good Night revela-nos a falta de opções à disposição da autora quando solteira, apesar do dinheiro da mãe. Nascera em Paris, crescera até os dez anos no castelo da avó na França, em Épinay, e desde a morte do pai de uma queda de cavalo, que a deixara órfã aos quatorze anos, levava uma vida errante pela Europa, com a mãe, Elizabeth Sarah de Windt, conhecida como Lily, os dois irmãos e umas amigas antigas de Lily, parasitical spinsters, como Margaret as classifica: From Paris to Florence – from Florence to Rome – Switzerland – the Tyrol, on we would move, always living in hotels. 

Charles Brooke era primo-irmão de sua mãe. Um dia, aos 42 anos, solteiro, ele aparece na casa de campo da família, na Inglaterra, em busca de uma noiva rica cuja fortuna pudesse saldar as dívidas de Sarawak. Ele próprio não tinha conhecidos na Europa, pois desde os 13 anos estivera na Marinha britânica, e a partir dos 23 vivera em Sarawak, a serviço do tio, de quem herdara o poder em 1868. 

Não é impossível que Margaret tenha tido alguma noção romântica da figura de Charles. Antes de conhecê-lo, ela lera já o livro, publicado em 1866, em que ele relata sua vida em Sarawak, onde morara dez anos em fortes à beira de algum rio, na floresta, controlando etnias inimigas entre si e jogando uns contra os outros os caçadores de cabeças. O aparecimento do primo mais velho, soberano em uma terra distante, sobrinho de uma figura mítica como fora James Brooke, deve ter sido acompanhado de uma aura de mistério e aventura.

Não faltam certos trechos de algum valor literário no livro de Charles, como este, inserido no meio da descrição de um ataque que ele organiza e lidera à terra dos Kayans, que estavam depredando bens dos Dayaks e prejudicando o comércio: the only sounds to be heard were those of nature alone, – the murmuring of the jungle insects, the low rumbling of the distant rapids, and the stream pouring over the pebbles close to us. Charles sentia-se inteiramente adaptado à vida em Sarawak e pouco à vontade no país onde nascera. Na floresta, costumava andar descalço como os Dayaks. Tendo de viajar à Inglaterra, após dez anos ininterruptos na Malásia, ele comenta: little did I care for the prospect of European pleasures, so much thought of and sought after as an Elysium by many living so far away. They are invariably found disappointing when England is reached.

Nas memórias e biografias dos diferentes atores envolvidos, há frequentes referências ao fato de que Charles pode ter primeiro pensado em se casar com a mãe de Margaret, Lily de Windt, então com 43 anos. A escolha acaba recaindo sobre a filha, que, aos 19 anos, lhe permitiria o mesmo nível de acesso aos recursos financeiros da família. A oferta de casamento e sua aceitação não refletiam sentimentos amorosos. No hotel em Innsbruck, aonde acompanhara os primos, Charles atira sobre as teclas do piano, no qual a moça supostamente teria estado tocando um noturno de Chopin, um poema sobre casamento – mas não sobre amor. I do not imagine the poor dear man could ever have been madly in love with me, admite ela; on my side, although I respected him and admired his achievements, I was never in love with him.

Desde o início, o marido foi parcimonioso com dinheiro, inclusive o da mulher. Com o tempo, o casamento torna-se uma ficção. Margaret vive na Europa, sob o pretexto de cuidar da educação dos filhos. A partir de 1880, os períodos que ela passa na Malásia são cada vez mais raros e curtos. Em 1887, esteve em Sarawak por poucos meses. A viagem seguinte a Bornéu aconteceria somente em 1896. Seria a última. Quando My Life in Sarawak foi publicado, fazia dezessete anos que a Rani não via sua terra de adoção. Ela morreria em 1936, sem ter voltado a Bornéu nos últimos quarenta anos de vida. Durante alguns anos, em Londres, morou com os filhos ainda pequenos em Cornwall Gardens.  Minha mãe, minha irmã e eu moraríamos na mesma pequena rua cem anos depois. Entre os dois períodos, lá viveu também Joaquim Nabuco.

A história contada em My Life in Sarawak é a de uma jovem vitoriana que descobre aos vinte anos, com fascinação, a realidade tropical de Bornéu. Ela se adapta às suas novas circunstâncias, faz amizades locais. Viaja no iate do marido e em pequenas embarcações fluviais, acompanhando o Rajá Branco em seus roteiros de inspeção. Enfrenta sem o marido, sozinha em um forte longe da capital, querreiros Kayans, que teria conseguido apaziguar. Passa a usar trajes típicos de Sarawak. Aprende a língua malaia. Descobre que o canto do bulbul é mais bonito que o do rouxinol.

A primeira frase resume o espírito de todo o volume: When I remember Sarawak, its remoteness, the dreamy loveliness of its landscape, the childlike confidence its people have in their rulers, I long to take the first ship back to it, never to leave it again. Por um lado, a declaração de amor pela terra que não verá mais chega a ser tocante. Por outro, a referência à “confiança infantil que seu povo deposita nos governantes” irrita e nos faz lembrar estarmos diante de um casal inglês, representante do espírito colonialista britânico, transformado em rei e rainha nos trópicos asiáticos. Desde o início, em 1841, quando James Brooke passara a governar Sarawak, esta fora a ambiguidade da curiosa dinastia: reinavam na Ásia do Sudeste, mas não abandonavam a nacionalidade inglesa. Eram simultaneamente senhores e súditos.

O segundo livro, Good Morning and Good Night, é mais pessoal e revelador – e ainda assim de maneira relativa, como veremos. No texto de 1934, Margaret atribui o insucesso matrimonial aos ciúmes que o marido teria da sua popularidade em Sarawak: he wished to remain alone and supreme in the love and affection of his subjects. Ao mesmo tempo, depreende-se que, em Bornéu, ela estava sempre adoentada, talvez com depressão, talvez com malária. Há uma contradição entre o amor professado por Sarawak e suas constantes doenças. O médico britânico em Kuching entende que ela sofre de histeria, clássico “diagnóstico” do século XIX para deslegitimizar mulheres. Ela própria nos diz: Hysteria! – that blessed refuge of somewhat unskilful doctors who find themselves unable to diagnose a disease!

Nos dois livros, Kuching, onde viviam 30 mil habitantes quando Margaret lá aportou pela primeira vez, é simultaneamente apresentada como uma espécie de paraíso, mas também com outras cores, como aldeia insalubre infestada de malária, mosquitos e ratos. No rio Sarawak, nadavam crocodilos. Se é verdade que a Rani teria sido acordada uma noite, como relata, por migração de “milhares” de ratos que atravessavam seu quarto, não sei. Mas posso testemunhar que na ilha de Bornéu a questão dos ratos não pode ser minimizada. O maior que vi em minha vida cruzou frente aos meus pés, em fevereiro de 2023, no mercado noturno de Kota Kinabalu, capital de Sabá, o outro estado malásio da ilha. Eu me preparava para acomodar-me em uma cadeira de plástico e jantar um peixe que vira ser preparado. A aparição do rato, grande como um gato e com sinais de doença na pelagem, me fez desistir.

Margaret de Windt passou proporcionalmente pouco tempo em Sarawak. Era porém seu título de Rani que lhe conferia prestígio na Europa. Frequentava a corte inglesa, junto à qual conseguiu diversas vantagens cerimoniais para Sarawak e o marido – para desgosto dele, que não apreciava suas interferências. Em 1901, obteve do novo rei, Eduardo VII, uma definição protocolar do status de Charles e, portanto, dela própria. O Rajá nascido na paróquia provinciana de Berrow, no interior de Somerset, ficava formalmente reconhecido como soberano de um Estado independente sob proteção britânica; os dois recebiam o título de altezas e eram inscritos, na ordem de precedência, logo após os príncipes reinantes indianos.

A facilidade com que Margaret, e, antes dela, o marido, construíam para si, por meio de suas memórias, uma imagem de exotismo e heroísmo tampouco atrapalhava sua popularidade. Próxima do príncipe Alberto I de Mônaco e sua mulher, a “soberana” de Sarawak frequentava artistas e escritores na França e na Inglaterra. Good Morning and Good Night narra episódios de sua amizade com Henry James, iniciada na década de 1890 e que durou até a morte do romancista. No primeiro encontro entre os dois, em Londres, na casa de uma conhecida comum, o escritor é descrito como um homem condescendente. A Rani afirma já haver então lido Roderick Hudson, Daisy Miller e The Princess Casamassima e elogia essas obras. Henry James levanta a mão ao ar e afirma: No, my dear lady, no, I can do better – I can do better than that. Margaret retruca: Oh, how can you say so? Surely they are quite perfect? A mão do escritor desce. Henry James olha para Margaret Brooke com sorriso de comiseração e responde: Well, as you will! But why are you here? You come from a land where the bulbul sings.

O livro menciona Pierre Loti – que dedicou um conto a Margaret – Maupassant, Rudyard Kipling, Swinburne, o pintor Edward Burne-Jones, a atriz Sarah Bernhardt. Parece haver consenso de que a Rani de Sarawak chegou a viver um romance, na década de 1890, com o jornalista americano William Morton Fullerton, quinze anos mais jovem, que não é mencionado em seus livros. Fullerton é hoje lembrado sobretudo pelo relacionamento amoroso com a escritora Edith Wharton e a amizade intensa que despertou em Henry James. Foi um desses personagens, como de uma certa forma a própria Margaret Brooke, que existem em toda parte, atraídos por escritores mais talentosos do que eles próprios. Ao fazerem parte da biografia alheia, preservam alguma fama após a morte.

Oscar Wilde, que lhe dedicou o primeiro conto de seu livro A House of Pomegranates (1891) – “To Margaret, Lady Brooke” – tampouco é mencionado, o que pode parecer estranho para nós, leitores do século XXI, cientes da perenidade de algumas de suas obras. Ocorre que quando Margaret escreveu seus livros de memórias, Wilde já morrera em desgraça, após o escândalo do seu processo e prisão. A mulher dele, Constance, precisara adotar outro sobrenome para si e os filhos, tal o constrangimento que passara a ser associado ao nome de Wilde. A Rani não viveu o suficiente para presenciar sua reabilitação.

Elemento constante na vida mutável de Margaret de Windt parece ter sido a busca por respeitabilidade, por afirmação de uma posição social. Não deixou, apesar disso, de prestar apoio a Constance, durante a prisão do escritor. Vyvyan Holland, filho de Wilde, escreve com gratidão a seu respeito, rememorando os dias passados perto de Gênova ao seu lado, e contando como sua mãe reencontrou alguma felicidade in the companionship of the Ranee, who was a comfort and a consolation to her until the time of her death three years later. Marie Belloc Lowndes afirma que o político trabalhista Richard Haldane visitou Oscar Wilde na prisão a pedido de Margaret. Foi graças a essa visita, é sabido, que o prisioneiro pôde receber livros e, mais tarde, caneta e papel, o que lhe permitiu escrever De Profundis, a longa carta da prisão de Reading. 

É no afã de procurar demonstrar respeitabilidade que tem início Good Morning and Good Night. O castelo da avó em Épinay, onde Margaret crescera, é apresentado, nas primeiras páginas, como the home of the Rastignacs for generations. O “Reino do Terror” da Revolução Francesa, wreaking its hatred on the aristocrats, teria confiscado a propriedade e guilhotinado o marquês e a marquesa de Rastignac, “junto com tantos de seus amigos”. A única prole do casal, Elisabeth, bisavó de Margaret, teria sido “escondida pelos aldeões, que amavam os Rastignac”, e enviada à Holanda, para ser criada em segurança por um casal amigo, que a teria adotado. Mais tarde um filho do casal, Peter de Witt, casou-se com Elisabeth. Peter e Elisabeth de Witt teriam recuperado o castelo na França, onde foram viver, e o nome de Witt teria sido deturpado – pelos camponeses, afirma Margaret – em de Windt.

É um inteiro conto de fadas. Existem dois museus em Kuching celebrando o reinado de cem anos – de 1841 a 1946 – da dinastia Brooke. Ambos são administrados, com apoio do governo estadual, por uma entidade inglesa, Brooke Heritage Trust, presidida por Jason Brooke, descendente da família. Um dos museus, sediado no antigo Forte Marguerita, construído por Charles e nomeado em homenagem à mulher, é dedicado aos três Rajás Brancos.  O outro, instalado no antigo Tribunal de Justiça, à vida de Margaret. O percurso pelas suas poucas salas começa com a reprodução de um quadro a óleo que representaria “o Marquês e a Marquesa de Rastignac, trisavós de Marguerite, por volta de 1780”. 

As explicações do museu repetem, de forma acrítica, a versão fantasiosa oferecida por Margaret de suas origens. O tom esnobe da narrativa, com sua ingênua redução da Revolução Francesa ao “Reino do Terror”, ao “ódio pelos aristocratas” e à guilhotina é reproduzido pelo museu. Curiosamente, Margaret de Windt lembra nessa hora Lady Bracknell, personagem cômico de The Importance of Being Earnest, porta-voz assertivo, na peça, de valores sociais conservadores.

A realidade é diferente do seu conto. Margaret fala da “bisavó Rastignac adotada pela família de Witt” como se a tivesse conhecido: “ela morreu quando eu tinha quatro anos”. Cita até, entre aspas, uma frase que a bisavó costumava dizer, falando dos casamentos da filha e da neta com ingleses: Ces Anglais, ces Anglais, toujours ces Anglais. Denomina-a “baronesa de Windt”. Essa pessoa, porém, nunca existiu. Ninguém usando o título de marquês ou marquesa de Rastignac jamais morreu guilhotinado. A avó materna de Margaret, Elisabeth, era uma de Windt adotada e transformada em herdeira pela tia, Judith de Windt. Esta, sim, enviuvara em 1817 de Jacques Gabriel Chapt, visconde de Rastignac. Os de Windt estavam instalados desde o início do século XVIII no Caribe – onde terão feito fortuna com lavoura de açúcar à base de trabalho escravo – e escreviam seu nome com essa grafia desde pelo menos o século XVII. A avó de Margaret, Elisabeth de Windt, casou-se com um inglês, que adotou seu sobrenome, e não com um holandês chamado Peter de Witt. Margaret não teve nem avô nem bisavô com esse nome. A sua bisavó de Windt, nascida Sarah Roosevelt, no Caribe — e não Elisabeth de Rastignac, na França —, morreu em Paris, em 1850, um ano após o nascimento da bisneta. Essas informações encontram-se em diferentes estudos genealógicos, todos de acesso público. 

A história da família Chapt de Rastignac foi publicada em 1858 por sua última representante, Zénaïde, duquesa de La Rochefoucauld. Os Chapt de Rastignac são consistentemente descritos como de nobreza antiga. Pode-se deduzir a satisfação de Margaret de Windt em conseguir fazer crer, por meio das suas alegações, que descendia da família. 

Terá Margaret sabido que na verdade não descendia dos Rastignac? Inventou ela própria essa fábula ou herdou-a da mãe ou da avó? A resposta pode estar em livro autobiográfico de seu irmão caçula, Harry de Windt, célebre em sua época como viajante incansável e também ele autor prolífico de narrativas de viagens. Vyvyan Holland é quem, mais uma vez, nos conta que Harry de Windt was a famous explorer at the end of the last century, his most remarkable feat being to travel from Pekin to Paris overland in 1887. É sobriamente, sem fantasias, que o irmão mais novo explica, em My Restless Life (1909), que o castelo em Épinay “tinha sido herdado de um parente, o visconde de Rastignac”.

O museu em Kuching perpetua no entanto as invencionices de Good Morning and Good Night. De um museu, mesmo um museu familiar, espera-se algum apego à realidade. Mais extraordinário ainda é que o mito dos antepassados aristocráticos franceses seja recolhido na obra da historiadora australiana Cassandra Pybus, que estudou as vidas de Charles e Margaret em The White Rajahs of Sarawak (1996) e compra, sem crivo, a versão de que Margaret de Windt descendia de “aristocratas franceses” e era por isso socialmente superior aos Brooke.

Viúva desde 1917, Margaret morreu em 1936, aos 87 anos. Foi poupada de ver o filho Vyner ter de renunciar, em 1946, ao reino de Sarawak, que se tornou formalmente apenas mais uma entre as colônias de um império britânico em declínio. 

Em uma família onde cada um parece haver deixado seu próprio livro de memórias, sua nora, Sylvia Brett, mulher do terceiro e último Rajá Branco, também publicou as suas, com um título sensacionalista, Queen of the Headhunters (1970). Sylvia Brooke visitou a sogra poucos dias antes de sua morte e não foi por ela reconhecida. She had been a woman of note, escreve a nora, the friend of Henry James, H. G. Wells and Elgar. Now there was nobody; and she was just a lonely woman, living in a small flat, and already separated from life. There was something regal and tragic in her isolation. 

Oscar Wilde não é a única omissão notável em Good Morning and Good Night. Quando Margaret descreve a morte de seus três filhos pequenos a bordo do navio – “aquelas flores belas e encantadoras cortadas em poucas horas, arrancadas de nós e jogadas ao mar” – e lista todos os presentes no seu grupo, “marido, irmão, os três bebês, a babá inglesa, a empregada doméstica”, deixa de lado uma pessoa.

Viajando com eles, ia uma outra criança, um menino de seis anos. Ele se chamava Esca Brooke e era filho de Charles Brooke com uma mulher malaia, de origem nobre, Dayang Mastiah. Charles e a mãe da criança podem ter se casado em um rito muçulmano. O garoto passou a ser criado no Astana, como é chamado o palácio em Kuching, e sua existência em Sarawak nunca foi um mistério. 

Pode-se imaginar a reação de Margaret ao ver seus três filhos morrerem e serem atirados ao mar, enquanto o outro menino, que também adoeceu, sobrevivia. Cassandra Pybus especula ser possível que Esca, nascido na terra de Sarawak, filho mais velho do Rajá, fruto talvez de um casamento que as populações locais considerariam legítimo, viesse a ser um candidato sólido a suceder ao pai, em detrimento dos filhos da Rani. Cita uma frase de Margaret a um sobrinho, em carta de 1927: “Tive o bom senso de perceber que ele seria um problema se ficasse em Sarawak”. 

Deixado na Inglaterra, em 1873, para ser criado por um reverendo anglicano, Esca Brooke emigrou com sua família adotiva para o Canadá. Ele nunca mais veria o pai; nunca receberia um bilhete sequer dele, apenas uma pequena pensão; nunca retornaria a Sarawak. Morreu em Toronto em 1953.

Quantas facetas cabem em um único personagem? Ao longo da história de Margaret de Windt, como ela a quis contar, vemos sucessivamente a jovem vitoriana ingênua, isolada embora de família rica; a soberana corajosa de uma terra tropical, distante do seu país de origem; a mulher infeliz no casamento e enlutada pela morte de vários filhos; a alteza detentora de um título espetacularmente insólito, amiga, na Europa, de príncipes e artistas; a personalidade pública ciosa de estabelecer uma posição de brilho para si, o marido e os filhos. 

O que não vemos em momento algum, ao longo das suas memórias, é uma dimensão importante – que talvez seja o seu aspecto mais fascinante. Margaret entrou na vida do pequeno Esca Brooke, possível herdeiro de Sarawak, como presença nefasta, a clássica madrasta má. Com isso, conseguiu tornar-se, de fato, não uma Rastignac real, como fantasiou ser, mas uma personagem digna de Balzac.

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16 comentários sobre “Os Rastignac de Bornéu

  1. Adorável. Extrañaba as suas histórias, e com essa fiz uma viagem sentimental. Lembrei de algumas histórias que meu avô, suíço alemão que passou seus últimos anos na Bahia, me contava de suas viagens pela Ásia. Terá ele passado por Sarawak?

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  2. Ótima história.

    Por coincidência, reli no dia anterior ao da sua postagem uma crítica de Wilson Martins sobre alguns livros do seu pai, e pensei em como faz falta uma edição de seus contos completos. Creio ser preciso repor em circulação os seus contos e novelas. E também o grande romance de formação que é “Combati o bom combate”, um dos melhores que já li.

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  3. Caro Ary,
    Acabo de fazer uma viagem pelo oriente, com tua mensagem. Como vivo na Pátria amada, com a atenção centrada em personagens como Lula e Bolsonaro, essa viagem é bem vinda. Os noventa anos estão pesando e vivo refugiado em leituras – as mais alienantes que possível – para tentar proteger-me da realidade hostil dos jornais nacionais. Grande abraço Alvaro

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  4. Li sem querer que a história dessa mulher (leal representante de uma época complicada) terminasse. Gostei muito de como você conduziu o texto. Apesar dos minutos de prazer com a leitura, mergulhei nas minhas costumeiras reflexões sobre as vaidades humanas. Mexeu comigo.

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