A troca de mensagens inesperada, uma noite em Kuala Lumpur, desviou minha atenção do texto que eu escrevia sobre Castro Alves. Um amigo virtual no Twitter, Hudson Rabelo, residente no Rio de Janeiro, mandava-me a foto de um livro que conseguira na Berinjela, conceituado sebo carioca, e de um recibo. Nunca tínhamos nos correspondido antes. O recibo, onde meu nome aparece impresso, é o de uma compra que fiz em Quito, onde eu então morava, na livraria Libri Mundi. Lista sete obras, uma delas La guerra del fin del mundo, de Mario Vargas Llosa, justamente o mesmo exemplar adquirido por Hudson Rabelo na Berinjela. Esse foi o último romance que me dispus a ler do escritor peruano. Antes de ele virar espanhol, antes de ele virar marquês, antes de ele virar companheiro de Isabel Preysler, heroína das revistas espanholas de fofocas e ex-senhora Julio Iglesias. Preferi não ler nenhum dos subsequentes.

A Berinjela fica em frente à livraria Leonardo da Vinci. Essa não é mais a Leonardo da Vinci especializada em obras estrangeiras que conheci criança, levado pela minha mãe, e frequentei, ao longo da vida, até que fechasse em 2015. Um ano depois, surgiu novo estabelecimento com o mesmo nome, no mesmo local, no subsolo do prédio Marquês do Herval, na Avenida Rio Branco no Centro do Rio de Janeiro. O perfil mudou. Transformou-se em uma boa livraria de obras brasileiras e dispõe de um ótimo café. Compete, para mim, com a Livraria da Travessa de Ipanema na categoria de mais charmosa do Rio de Janeiro. Outros, eu sei, preferem a elas a Argumento.

É um mistério como La guerra del fin del mundo foi parar no alfarrabista. Tenho uma teoria a respeito, mas ela não explica tudo. Tampouco sei o motivo de eu ter comprado esse exemplar na Libri Mundi, pois já lera o romance anos antes. Igualmente estranho é o recibo, que considero um documento de caráter pessoal, ainda estar dentro do volume e ter podido ser lido por todos os que o abriram no sebo.

Lembro, para quem tiver esquecido, que La orgía perpetua não é um livro erótico, mas outra obra de Vargas Llosa, um estudo sobre Flaubert. Esse exemplar, também listado no recibo, continua a existir em nossas estantes, e posso vê-lo neste exato momento aqui em Kuala Lumpur.

Em Quito, naquele tempo, nosso programa predileto, aos domingos, era almoçar no restaurante italiano de um hotel no centro da cidade — nossa filha, então muito criança, encomendava sempre o mesmo prato, um farfalle ao salmão — e, depois, ir visitar ali perto a Libri Mundi. Como o nome indica, a livraria oferecia obras em diversos idiomas. Era como ter, em Quito, a Leonardo da Vinci de antigamente, que ainda então existia. A Libri Mundi ficava instalada em uma casa de dois ou três andares em rua bucólica. Vejo na Internet que, nessa localização, ela fechou em 2015, portanto no mesmo ano da velha Leonardo da Vinci, mas continua a existir em centros comerciais da cidade.

Rever o recibo esquecido da Libri Mundi foi como viajar no tempo. Relembrei a infância da minha filha; relembrei nossos animais de estimação, todos agora mortos, que eram felizes na casa em Quito; relembrei detalhes da vida no Equador; relembrei amigos. Saber do fechamento da sede da Libri Mundi na rua Juan León Mera doeu, como dói o fechamento de toda livraria. A verdade, contudo, é que se os humanos desaparecem, não deve surpreender que o mesmo aconteça aos lugares mágicos onde compramos livros.

Em Seis livrarias, em 2018, escrevi sobre aquelas de que mais tinha gostado no ano anterior. A primeira frase dessa minha crônica é absolutamente verdadeira: “Livrarias tendem a aparecer magicamente diante de mim”.

A lembrança da Libri Mundi, ressuscitada inocentemente por uma mensagem no Twitter, deu-me vontade de voltar a falar em livrarias. Omito aqui as lisboetas, descritas em um texto meu de 2021, Um dia em Lisboa, e aquelas de que tratei em “Seis Livrarias”. Todas as fotos foram tiradas por mim menos, naturalmente, a que revela o recibo da livraria quitenha e o romance de Vargas Llosa dentro do qual ele reside há anos.

Em sua essência, livrarias são todas parecidas, e podemos considerá-las de maneira descomplicada. São espaços onde não há suspense. No entanto, algumas se diferenciam das demais. A razão para isso é o ambiente. Entramos, e recebemos a sensação agradável que aquele espaço provoca. Pode ser por causa da arquitetura, ou da decoração, ou do espírito reinante, generoso e simpático ou, ao contrário, imponente. Às vezes o estoque também se destaca, e pode ser mais dirigido aos nossos interesses pessoais.

Há por exemplo, em Paris, uma livraria, Les Cahiers de Colette, xodó de intelectuais, que a rigor em nada se distingue de qualquer outra boa livraria da capital francesa, onde elas pululam. Dois detalhes, porém, a tornam particularmente atraente, a presença magnética no recinto da proprietária e fundadora, Colette Kerber, e um painel em que ela afixa fotografias de escritores que admira. Esses dois detalhes bastam para conceder ao local uma atmosfera única. Nas fotos abaixo, a segunda mostra o que torna Les Cahiers de Colette uma típica livraria parisiense de alta qualidade. A terceira revela um dos detalhes que a transformam em algo fora do comum.

Deveríamos porém iniciar pela mais nobre das livrarias, a Hatchards, em Londres, que frequento desde o final da adolescência. É tão distinta — “livreiros desde 1797” — que expõe, no patamar entre dois dos andares, um retrato a óleo de seu fundador, John Hatchard. A fachada, debruçada sobre a Piccadilly Street, apresenta três alvarás reais, de Elizabeth II, do duque de Edimburgo e daquele que era até setembro de 2022 o príncipe de Gales. Com a morte da rainha e de seu marido, e a ascensão ao trono de Carlos III, suponho que os alvarás terão de ser retirados, e um deles, o do novo rei, novamente concedido. Em julho de 2022, quando lá estivemos pela última vez, os três continuavam na fachada, embora o príncipe Philip tenha morrido em abril de 2021.

Perto do hotel em que minha mulher e eu ficamos hospedados em Londres, em julho, caminhando ao acaso descobri a mais charmosa das livrarias, a John Sandoe. Em um tuíte, durante a viagem, escrevi sobre ela: “a própria ideia de paraíso sereno”. É assim, elas realmente aparecem magicamente diante de mim. Entrei na John Sandoe várias vezes em julho. Era como a livraria do bairro para mim. Situada quase na esquina da agitada King’s Road, o seu silêncio, quando se entra, faz com que pareça a sólida biblioteca de uma casa no campo. Eu subia e descia pelos seus três andares. Às vezes, ficava em pé no térreo, frente às janelas, lendo algum volume retirado de uma das estantes. O verdadeiro luxo, durante uma viagem, é este: não sentir urgência em correr de museu em museu e em visitar exposições, enfrentando trânsito e multidões, mas ficar em um ambiente protegido, longe de todo burburinho, sonhando com frases escritas por outros.

Embora Machado de Assis fosse todo dia à livraria Garnier, não era essa a sua predileta. Isso mostra Brito Broca em A Vida Literária no Brasil – 1900, obra de 1956. Estima ele que Machado “não devia apreciar muito aquele recinto, onde os intelectuais se cruzavam e tropeçavam uns nos outros”, e conta que, uma vez, o escritor comentou com o gerente de outra livraria, a Quaresma, aonde também ia todo dia: “Sabe? Gosto mais da sua casa porque é silenciosa, não há aquele zunzum da Garnier”. Machado teria adorado a John Sandoe.

Em viagem anterior a Londres, em setembro de 2019, eu conhecera, acredito que pela primeira vez, outra livraria famosa da cidade, a Daunt Books de Marylebone, original do que hoje é uma rede. A seção sobre o Sudeste Asiático é importante, e isso despertou minha curiosidade, já que poucos meses depois, eu sabia, estaria de mudança para Kuala Lumpur. Os vitrais e a claraboia na galeria principal fazem dela um espaço particularmente agradável.

A Daunt Books possui uma característica: é ainda, verdadeiramente, uma cadeia de livrarias independentes, cujo proprietário é até hoje seu fundador, James Daunt. Nem a Hatchards preserva mais essa qualidade, pois embora mantenha personalidade própria, pertence agora à rede Waterstones. Esta, por sua, vez, é controlada majoritariamente por uma firma de investimentos americana, proprietária também da rede, colossal, Barnes & Noble. As redes Barnes & Noble e Waterstones são presididas pelo mesmo James Daunt, que já não dirige as livrarias de que é dono.

A maior livraria de Londres, e certamente uma das maiores do mundo, é a Foyles. Faz dez anos que ela já não ocupa o prédio onde a conheci, onde permaneceu por 90 anos, na Charing Cross Road, mas continua na mesma rua, reduto histórico de livreiros. Muitas vezes, quando estudante, perdi-me nos corredores, nos vários andares do edifício anterior. No novo prédio, o interior da Foyles é bem diferente de quando eu era adolescente. É mais nítido, mais claro, mais arrumado. Talvez, por isso, menos original. Possivelmente, a razão seja que a livraria já não é independente, mas pertence à Waterstones. Sem dúvida, eu gostava mais do prédio e do ambiente anteriores. No entanto, sempre acabo entrando no espaço atual, apesar do zunzum.

Charing Cross Road deve muito de sua fama como paraíso de literatos ao filme de 1987 dirigido por David Jones, 84 Charing Cross Road, estrelado por Anne Bancroft, Anthony Hopkins e Judi Dench, e inspirado em uma peça de teatro de James Roose-Evans, a qual era uma adaptação do livro de mesmo título de Helene Hanff. Esta, como o mundo inteiro hoje sabe, graças ao filme, manteve durante cerca de vinte anos uma amizade epistolar com Frank Doel, gerente da livraria de segunda mão londrina Marks & Co. Livros eram encomendados de Nova York por Helen Hanff, Frank Doel os providenciava, muitas cartas eram trocadas pelo Oceano Atlântico, e presentes também. Os dois amigos epistolares nunca se encontraram. Marks & Co já não existe, e o prédio na Charing Cross Road é hoje um McDonald’s.

Assisti à peça em Londres, na adolescência, e revi o filme faz talvez dois anos. O enredo é a celebração de como a relação entre seres humanos pode ser baseada em amor pelos livros. Essa é a minha experiência pessoal. Discutir livros, oferecer e receber livros são gestos que aproximam as pessoas.

Além da Foyles, sobrevivem algumas livrarias na rua. Há pelo menos dois bons sebos, Henry Pordes e Any Amount of Books, ao lado um do outro. Uma pequena rua transversal, de pedestres, Cecil Court, é quase que exclusivamente povoada de alfarrabistas. Ao entrar em Any Amount of Books, em julho, recebi uma surpresa e ouvi uma novidade, ao me ver face a face com um amigo livreiro malásio, Nazir Harith Fadzilah. Eu sabia que ele estava em Londres, acompanhando a mulher, mestranda na Inglaterra. Não sabia que trabalhava no sebo em Charing Cross Road. Nazir é o fundador de uma livraria encantadora, Tintabudi, em uma pequena sala em Kuala Lumpur, sobre a qual escrevi em uma Carta da Malásia, A Tinta dos Seres Bons. A surpresa, boa, foi encontrar Nazir em Any Amount of Books. A novidade, menos boa, foi saber por ele que a Tintabudi, fechada enquanto seu proprietário está na Inglaterra, já não reabrirá no mesmo endereço quando Nazir voltar à Malásia.

Notei a ausência, nessa última viagem, de um terceiro sebo na Charing Cross Road. A Internet me informa que Francis Edwards e Quinto — duas antigas livrarias que se haviam fundido em um só estabelecimento — fecharam em 2020, por causa da Covid. Novamente separados, os dois alfarrabistas continuam a existir, embora não mais em Londres; Quinto, na verdade, agora é apenas virtual. Descubro, meio por acaso, que Francis Edwards esteve instalada, originalmente, no prédio onde hoje fica a Daunt Books original, a de Marylebone.

Fica o registro de como a fachada do local na Charing Cross Road se apresentava ao transeunte em 2019, quando a fotografei.

Assim como Londres, Paris e Bruxelas são povoadas de livrarias irresistíveis, em cuja companhia as horas passam agradavelmente.

A maior de Bruxelas é provavelmente a Filigranes. Quando eu trabalhava na capital da Bélgica, ficar lá ouvindo o piano, selecionando livros, tomando um chocolate quente era uma boa forma, aos domingos, de passar as tardes de inverno. Menor, porém mais bonita, é a Tropismes. O nome, suponho, é homenagem à obra mais famosa da escritora Nathalie Sarraute. A livraria fica dentro das Galeries Royales, três passagens interligadas, de meados do século XIX, com teto de vidro, no centro histórico de Bruxelas. Seu estoque é particularmente valioso nas áreas de literatura e poesia francófonas e de história e outras ciências humanas.

Muitas vezes mencionei a livraria Galignani, em Paris, de passado tão ilustre que há na sua página eletrônica um opúsculo ilustrado, em francês e inglês, narrando sua história e a da família que a fundou. Existente desde os primeiros anos do século XIX, instalou-se na rue de Rivoli em meados do mesmo século. Já no início era também uma livraria, e uma editora, de livros em inglês. O espírito que reina nela é semelhante ao da Hatchards e ao da Ferin de Lisboa. Trata-se de um ambiente aristocrático, acolhedor, a anos-luz das vicissitudes e tragédias humanas. Deti-me sobre a Galignani, particularmente, em Um lugar encantado, em que comentei o guia de François Busnel, Mon Paris littéraire.

Um leitor, na época, referindo-se ao título que eu dera àquela crônica, perguntou-me qual era o “lugar encantado”: Paris, a rue de Richelieu, livrarias em geral, alguma específica, livros ou o guia de François Busnel? Ou se seria minha imaginação vagando por todos esses elementos? O sentido do título, a mim, parece evidente.

Além da Galignani e de Les Cahiers de Colette, em “Um lugar encantado” eu citava outra livraria entre minhas prediletas, a Delamain. Sobre a permanência de outra favorita, L´écume des pages, e os infortúnios de La Hune, talvez um dia eu escreva no futuro. Convém, aqui, fazer um comentário a respeito da Shakespeare and Company, possivelmente a mais célebre de Paris, se não do mundo.

Antes de mais nada, é preciso saber que essa não é a livraria homônima fundada e mantida por Sylvia Beach entre 1919 e 1941. Deve-se ler seu livro de memórias de 1956, intitulado naturalmente Shakespeare and Company, para entender a personalidade da autora. Obra mais encantadora nunca foi escrita. Revela uma visão do mundo espirituosa, não-conflitiva, sem dramas. Assim, pelo menos, Sylvia Beach quis passar para a posteridade. Narra com pluma leve os dissabores de sua vida. Sobre os seis meses que passou presa pelos alemães em Vittel, em 1941, diz apenas: After six months in an internment camp, I was back in Paris, but with a paper stating that I could be taken again by the German military authorities at any time they saw fit. Comenta rapidamente o fato de que a igreja presbiteriana de que seu pai era pastor, em Princeton, contava, entre os membros da congregação, com o futuro presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson. Sylvia Beach descreve de maneira vívida os muitos escritores de quem foi amiga, como Valery Larbaud, André Gide, Paul Valéry, Gertrude Stein, Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway. Este, em suas próprias memórias dos anos passados em Paris, A Moveable Feast, incluiu um capítulo sobre a livraria. De forma pouco característica, Hemingway tem apenas elogios sobre a livreira, dizendo: No one that I ever knew was nicer to me.

Acabo de reler Shakespeare and Company, onde aprendo que Sylvia Beach also translated Barbarian in Asia by Henri Michaux. Em julho, em Paris, minha mulher e eu, depois de muito buscar, encontramos um exemplar de Un barbare en Asie na livraria L’écume des pages. Nesse livro, que procurávamos há tempos, o escritor franco-belga fala sobre sobre sua experiência da Ásia, inclusive da Península Malaia e de Singapura. Diz sobre os malaios o que penso cotidianamente em Kuala Lumpur: Il n´y a pas une chose que je n´aime en eux. Foi em Quito que li pela primeira vez um livro de Henri Michaux, comprado na Libri Mundi, que trata do período, em 1928, em que morou no Equador, e de como tomou o caminho de regresso à Europa a pé, em lombo de mula e em canoa, descendo o rio Napo e, depois, de barco, o Amazonas até Belém do Pará, de onde finalmente tomou o navio para casa. Só em canoa foram dois mil quilômetros percorridos. Em Iquitos, acorda um dia e pensa que terá ainda tout le Brésil à traverser.

E é como se tudo fizesse sentido no mundo, como se todos os pontos esparsos da minha vida se juntassem na nossa biblioteca, hoje dividida entre Kuala Lumpur e Singapura.

Nosso exemplar de Shakespeare and Company também foi comprado em Quito, em um sebo chamado Confederate Books, que ainda existe, embora hoje sob outro proprietário e em outra localização. Naquela época, situava-se em uma esquina da Juan León Mera, a rua onde ficava a Libri Mundi. De repente, lembro que aquele era um canto da cidade bem perto do meu escritório, e que às vezes, na hora do almoço, eu caminhava até lá, ia de livraria em livraria, fuçando. Abro A Moveable Feast e encontro dentro um recibo da Confederate Books, listando à mão a compra do livro do Hemingway com mais dois, um deles o Seven Gothic Tales da Isak Dinesen, que considero notável e no qual penso com frequência.

A Shakespeare and Company era na verdade um centro intelectual. Também biblioteca de empréstimo, servia de ponto de referência, de encontro, para os escritores da Lost Generation, conterrâneos de Sylvia Beach — all those pilgrims of the twenties, ela nos diz, who crossed the ocean and colonized the Left Bank of the Seine — naquela época hoje venerada, em que Paris, entre as duas Guerras Mundiais, ainda era o centro do mundo, em termos artísticos e culturais. A livreira tornou-se uma editora famosa na história da literatura ao financiar, apesar de seus escassos recursos monetários, a publicação de Ulysses de James Joyce, em 1922, quando isso não teria sido possível na Inglaterra ou nos Estados Unidos, onde o romance era considerado obsceno. Sylvia Beach idolatrava James Joyce e gerenciava sua vida, a pessoal e a profissional. Menciona apenas discretamente que o autor irlandês, quando pôde por fim publicar o livro em países anglófonos, mostrou-se ingrato com ela, financeiramente: I understood from the first that, working with or for Mr. Joyce, the pleasure was mine—an infinite pleasure: the profits were for him.

A primeira e ilustríssima Shakespeare and Company, que ficava na rue de l´Odéon, fechou em 1941. Sua história, por causa da importância que livraria e livreira tiveram, foi narrada muitas vezes. A atual usa o mesmo nome, mas em outro endereço. Situada em um dos bairros mais antigos de Paris, seu charme é inquestionável. Pouco vou lá, porém. Não sei se faz sentido, em Paris, frequentar uma livraria que vende obras exclusivamente em inglês. Talvez faça para turistas que não falam francês ou para franceses sedentos pela civilização americana. Ela exerce o papel, na capital da França, de bastião da cultura anglo-americana.

Quando lá estive pela última vez, em 2019, senti-me asfixiado. Poucos dias antes, eu havia chegado de Londres, onde dedicara boa parte de meu tempo a frequentar livrarias como a Daunt e a Hatchards. Com minha filha, eu tinha visitado na véspera, no Musée du Luxembourg, uma exposição excelente dedicada à obra de pintores ingleses do período de 1760 a 1820, L´âge d´or de la peinture anglaise. Estava, assim, saturado de anglofonia. Era agora a cultura francesa que eu buscava. Fiquei poucos minutos na Shakespeare and Company e saí.

É proibido fotografar seu pitoresco interior. Tirei fotos da fachada. Os escritos nos painéis são do livreiro que fundou o novo estabelecimento, George Whitman. Como ele, considero Tolstoi e Dostoievski more real to me than my next door neighbors.

Em 2013, o escritor espanhol Jorge Carrión publicou um livro singelamente intitulado Librerías, sobre sua experiência de andar pelo mundo frequentando-as. Em algum momento, decidi comprá-lo, após ler comentários a respeito na imprensa brasileira, em especial em um artigo de Rodrigo Casarin.

Encomendei a edição espanhola, dando como local de entrega o hotel onde se hospedava o escritor Alexandre Vidal Porto, de passagem por Madri, que se dispôs a trazê-lo para mim. A encomenda atrasou e, se jamais chegou ao hotel, terá sido tarde demais para encontrar Alexandre. Meses mais tarde, fiz novo pedido e recebi o livro pelo correio em Brasília. Minha pertinácia e a dupla despesa não me renderam frutos. Logo depois, em 2020, parti para trabalhar na Malásia, minha mulher para Singapura, e o livro viajou na mudança dela. Tornou-se inacessível para mim até este ano, quando as fronteiras dos dois países foram reabertas, depois da pandemia.

Vi-o na estante em minha última ida a Singapura. Quis ver o que diz sobre a John Sandoe, o que mostra bem o quanto a livraria na rua Blacklands Terrace, a um pé da King’s Road e da Sloane Street, me impressionara em julho. O espanhol também cedeu aos seus encantos. Escreve que o interior da John Sandoe tiene todo lo que desea un fotógrafo aficionado. Contudo, avisa, ela é mais do que una imagen pintoresca, pois ese cuerpo precioso tiene alma.

O atual dono da Leonardo da Vinci, Daniel Louzada, comprou-a em 2016 de sua fundadora, Vanna Piraccini, que durante décadas foi amiga e inspiradora da intelligentsia carioca e com quem, por timidez, nunca tive coragem de conversar. Em janeiro de 2022, Vanna Piraccini morreu, aos 96 anos. Também faleceu este ano, em fevereiro, Brigitte de Meeûs, fundadora da Tropismes, aos 76. Em janeiro de 2017 já morrera José Ferreira Vicente, fundador de um de meus sebos prediletos em Lisboa, Olisipo, que desde então mudou-se para novo endereço.

Assim são as livrarias e seus criadores, mortais como nós, seus clientes, admiradores e amigos. Elas surgem, muitas prosperam, criam um impacto cultural, algumas tornam-se míticas, mudam de lugar, de proprietário, desaparecem ou parecem-nos, ilusoriamente, destinadas a durar para sempre, mas evoluem, transformam-se. Afetam nossas vidas, permitem sonhos, tornam-se nossa segunda casa. Quando uma fecha, é como um golpe no coração. Mas como um amigo querido, um parente carinhoso, em nós elas vivem para sempre. Como a Libri Mundi de Quito, no bairro La Mariscal, na rua Juan León Mera. Trazida de volta à memória, um dia em Kuala Lumpur, por uma foto casualmente recebida pelo Twitter. Voltou assim a existir.

Há algo insondável nisso tudo, pois assim é a vida.

Digite seu endereço de e-mail para assinar este blog e receber notificações de novas publicações por e-mail.

Um comentário sobre “A alma dos belos corpos

  1. Ary, caminhar por suas livrarias é percorrer um mundo desconhecido, desvendado, pouco a pouco, pela leitura de seus livros.
    A sua paixão pela leitura e pela busca do conhecimento é uma constante e nos estimula a ler cada vez mais. Obrigada por compartilhar este conhecimento com os seguidores do seu blog.

    Curtido por 1 pessoa

Deixe um comentário