Aconteceu na Embaixada da França em Kuala Lumpur, uma noite de abril. O convite dizia que o mágico Anson Chen, de Hong Kong, faria uma apresentação pela primeira vez na Malásia. Éramos pouco menos de trinta convidados, acomodados em fileiras na sala de jantar.

O primeiro truque já causou impacto. O mágico tirou do bolso um papel dobrado e explicou: “há aqui uma mensagem, dirigida a um membro específico do público”. Escreveu, sem nos mostrar, um número no papel, que entregou a um dos convidados na primeira fila, recomendando que o escondesse. Pediu que todos pensássemos em um número na faixa de 1 a 100.

O primeiro que me veio à mente foi 39, o que é coerente, porque tenho forte predileção por múltiplos de 3, desde que não sejam também múltiplos de 2. Gosto de 15, 27, 33, 45 e assim por diante. Anson Chen olhou em volta para a plateia. Acredito que tenha se detido sobre cada um de nós. Escolheu seis dos presentes para que se levantassem e anunciassem que número haviam escolhido.

Revelado em seguida o número escrito pelo mágico, que era 23, uma moça francesa, que dissera 21 —um dos meus favoritos, diga-se de passagem — era quem chegara mais perto de adivinhar corretamente. Anson Chen recuperou o papel, entregou-o à francesa e pediu que o lesse em voz alta. O texto iniciava com as palavras: “A pessoa que está lendo este bilhete usa calças pretas, e uma jaqueta amarelada”. Era uma boa descrição do traje da moça. Sobre os recados que o texto continha para ela, curiosamente não consigo me lembrar. Consultei por whatsapp o próprio mágico, que declarou-me também já haver esquecido.

Muitos dos truques eram inexplicáveis. Um casal malásio que conheço, Wei-Ling, galerista de arte, e Yohan, advogado, foi convidado a se sentar de frente para o público. Ambos vendados, estavam separados por uns dois metros. Anson Chen segurava uma mecha do cabelo de Wei-Ling e passava-o pela ponta do nariz da galerista. Perguntava então a Yohan se sentira algo. “Sim”, respondia o marido, “algo leve, como uma pluma, alisou meu nariz”. O experimento continuou, na testa de Wei-Ling, na face, no ombro, e sempre Yohan sentia o toque no mesmo lugar. Terminada a sessão na Embaixada, ao me despedir deles comentei: “Vocês foram submetidos a um teste de amor verdadeiro, e passaram”.

Uma mulher de verde, também francesa, recebeu nas mãos um livro. Foi-lhe pedido que o abrisse ao acaso, escolhesse uma palavra na primeira linha da página e a memorizasse. Fechado o volume, Anson Chen começou, frente à plateia, a procurar adivinhar a palavra, escrevendo as letras pouco a pouco sobre uma folha de papel. Talvez para aumentar ainda mais o nível de interesse, escreveu-as fora de ordem, formando um termo que nada significava. Colocando-as por fim na ordem correta, mostrou-nos a palavra court, que a mulher de verde admitiu ter sido a que pinçara no livro.

Na segunda ou terceira mágica, fui eu o escolhido como colaborador. Anson Chen pediu que eu me levantasse. Estendeu a mão, oferecendo-me um baralho imaginário. Ao entregá-lo, comentou aliás que eu não o estava segurando da maneira correta. Disse-me que embaralhasse as cartas. A esta altura, eu estava às gargalhadas, em pé, segurando as cartas invisíveis. De um lado, constrangido com a atenção da pequena plateia sobre mim, de outro curioso em ver o que me esperava, e achando graça naquele diálogo sobre um baralho inexistente, mas que adquiria, pela atenção a ele concedida, uma existência bem real.

Nunca fui adepto de jogos de cartas. Apenas no final da infância e na adolescência, na fazenda do meu avô materno, na Zona da Mata em Minas Gerais, muitas vezes joguei biriba. Não era porém do jogo que eu gostava, mas do acesso que me dava ao mundo adulto. Lembro com carinho das tardes passadas à mesa quadrada com tampo de feltro, em um canto do salão principal, onde meu avô, minha mãe, a irmã dela e eu jogávamos partidas que eram, para mim, enciclopédicas. Na infância e na adolescência, eu era calado. Por isso, falava pouco enquanto ouvia os três adultos. Observava. Analisava.

Frequentemente escrevo sobre meu avô e a fazenda. Ele não era muito loquaz, como certamente já tive ocasião de dizer em algum texto. Homem imponente, verdadeiro gigante silencioso, sua presença física comandava respeito, assim como seu olhar. Mas jogando biriba, em um ambiente familiar restrito às duas filhas e a um dos netos, transformava-se. Contava histórias, ria, dava detalhes, às vezes tenebrosos, da vida dos fazendeiros vizinhos, relembrava seus pais e o curso de sua vida, naquela fazenda e em outras onde crescera.

Meu avô quase sempre ganhava nas cartas, e por isso mesmo, nas duplas, era uma tranquilidade atuar como seu parceiro. Hoje, quando estou em salas de espera de dentistas ou médicos e jogo biriba no celular com robôs, lembro sempre de uma de suas regras, que era nunca deixar passar um ás. Adquiri dele, também, o hábito de comprar a mesa com frequência, algo irritante para o jogador subsequente.

Ele era fruto de uma intensa endogamia, o que só vim a entender mais tarde, ao examinar sua genealogia. Não sei até que ponto ele tinha consciência disso. Há algum tempo, perguntei a uma de suas sobrinhas se meu bisavô, Bertoldo, e minha bisavó, Olívia, com os quais ela convivera, tinham presente que eram primos múltiplas vezes, em graus variados de proximidade.

A questão para eles, avaliou minha prima, provavelmente não se colocava assim; terão sabido apenas que pertenciam ao mesmo grupo, e que seus pais se conheciam. Fora, aliás, um casamento arranjado mas, tudo indica, feliz. Na noite de núpcias, Olívia, de 12 anos, queria brincar com suas bonecas. Bertoldo respeitou seu desejo, devolveu-a ao pai e voltou alguns anos mais tarde para recuperá-la. A história soa triste, e parece tirada de algum livro de Gilberto Freyre, mas ilumina, a meu ver, de maneira positiva o caráter do meu bisavô.

Ocasionalmente, enquanto jogávamos biriba, meu avô fazia perguntas sobre minha avó, que se separara dele aos 18 ou 19 anos, grávida da minha mãe, deixando para trás a filha mais velha, de um ano e meio. Aludi ao fim desse casamento em Minha avó e seus dois maridos, sem porém mencionar o sofrimento decorrente da separação, para todos os envolvidos. Naturalmente, a dor maior coubera às duas meninas, crescendo uma sem o pai, a outra sem a mãe. As irmãs só iriam se conhecer dez anos após a partida da minha avó para o Rio de Janeiro.

Mais tarde, depois da morte da sua segunda mulher, surgiu para meu avô a era das namoradas nas cidades da redondeza. Conheci uma delas. Era casada. Aos 14 ou 15 anos, eu ficava boquiaberto ao presenciar a cordialidade com que meu avô tratava o marido, jovem o suficiente para ser seu filho.

Mais uns anos, e meus avós, que não se viam há décadas, iniciariam um namoro. Ele ia ao Rio, ela ia à fazenda. Em retrospecto, já mais velho, vejo que esse reencontro era natural, pois a vida é assim, em ciclos que se cruzam. Na obra teatral que é toda existência humana, em que cada um é diretor, produtor, cenógrafo, autor e ator principal da sua própria peça, as outras personagens aparecem, somem, reaparecem. Há períodos em que algumas são importantes, e permitimos que influenciem nossos rumos, em outros mal chegam a ser coadjuvantes. Minha avó e meu avô, após um afastamento de 45 anos, durante os quais praticamente nunca se viram, nunca se falaram, voltaram a namorar, a querer bem um ao outro. Mas não voltaram a se casar, e nem creio que essa reaproximação haja durado mais do que alguns meses. Terá servido porém para eliminar o rancor mútuo.

Abandonemos a fazenda de Sant’Anna em Minas Gerais, os seus morros, o verde que eu via por toda parte pelas janelas abertas enquanto ia ouvindo a conversa dos adultos e cometendo erros com as cartas. Voltemos a Kuala Lumpur, voltemos à sala de jantar da Embaixada da França, onde o mágico chinês me acusa de não saber embaralhar as cartas.

Ali, em pé, com os outros convidados me olhando, estou rindo, manuseando o baralho imaginário, como eu fazia com as cartas verdadeiras, em Sant’Anna. Separava as cartas em dois blocos, colocava os dois verticalmente, um sobre o outro, e empurrava as cartas do maço superior sobre as de baixo. Bem diferente dos adultos, do meu avô em especial, que sabia embaralhar como um profissional, e com extrema rapidez. Anson Chen me pergunta, em tom de crítica, olhar surpreso: “É assim que você faz?”. Respondo: “Não tenho muita prática. Nunca jogo cartas”. Mas enquanto digo isso, meu avô está bem presente na minha imaginação, e minha mãe, Thereza Quintella, que veio me visitar na Malásia, está aliás fisicamente ali, sentada ao meu lado, na sala de jantar da Embaixada da França.

Anson Chen instrui-me a retirar uma carta do monte invisível e dizer qual é. Com a mão direita fazendo o gesto de quem segura um baralho, com a esquerda interpreto o ato de extrair uma carta. Imediatamente, visualizo o 8 de Copas, o que anuncio em voz alta.

Devolvo o baralho fictício ao mágico e me sento. Ele tira do bolso da calça cartas verdadeiras, que entrega a outro membro do público, a quem pede para verificar se o 8 de Copas está incluído. Não está. Sobe da plateia um som de surpresa e suspense. Anson Chen então coloca a mão em outro bolso, do qual retira o 8 de Copas. Choque na assistência, incompreensão minha. Como ele pudera adivinhar, de antemão, que eu escolheria aquela carta especificamente?

Muito da sua atuação como mágico parece-me baseado em um poder de sugestão da mente alheia. Terá ele, ao me olhar e ao pedir que eu escolhesse uma carta, me induzido a selecionar o 8 de Copas? Mas isso existe? Um indivíduo que se apresenta também como hipnotista pode, ao olhar para outra pessoa, conduzir seu pensamento, levá-la a optar?

Minha própria escolha, na hora, surpreendeu-me. Contradizia minha preferência pelos números ímpares múltiplos de três. Em um baralho, faria sentido eu escolher o 3 ou o 9, ou talvez o 7, que, embora não seja múltiplo de 3, é um número favorito. O 8 nada significa para mim. Tampouco saberia explicar por que copas, e não um dos outros naipes.

Dias depois, ainda intrigado com a escolha do 8, descobri ser esse um número auspicioso na cultura chinesa. A informação veio por acaso. Selecionando em uma loja abotoaduras para dar de presente a meu genro, notei que o único par representando números era um 8. Não havia 5, ou 9 ou 4, só 8. Perguntei a razão à vendedora, e considerei a resposta reveladora: “esse é um número importante para os chineses, representa prosperidade, é um número de sorte”. Sem dúvida, estará mais vivo na mente de Anson Chen, o surpreendente mágico chinês, do que costuma estar na minha.

No carro, voltando para casa, pensei que Anson Chen, tendo ocupado minha mente para me fazer escolher o 8 de Copas, bem poderia ter também instalado nela a solução aos meus problemas. Na infância e na adolescência, na época em que eu jogava biriba na fazenda, essa era uma fantasia recorrente, de que alguém, magicamente, tudo resolveria para mim.

Logo depois, ao deitar, eu já aceitara que isso não aconteceria. Mais uma vez, caberia a mim tomar minhas próprias decisões. Senti-me mais poderoso do que o mágico chinês.    

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8 comentários sobre “Oito de Copas

  1. Maravilhosas suas crônicas. Principalmente as lembranças familiares. Reli a história de D’artagnan, no destaque A Fazenda. Muito obrigada, sempre.

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  2. Que belo texto! O baralho imaginário agiu como uma ‘madeleine’ para nos transportar da Malásia para Minas e seus personagens reais… e que lindas fotos!! A maior mágica é a que acontece na mente dos leitores.. Grande abraço!!

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  3. Sempre prazeroso ler suas histórias e relatos! Consegui até me transportar para a fazenda rodeada de morros e vasta vegetação. Tivemos eu e meu marido uma fazenda na serra de Friburgo e à noite enquanto os 3 filhos brincavam nós jogávamos biriba.

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