Quando criança, morei em Rhode-St-Genèse durante quase cinco anos, como registrei em O Triunfo da Cor e em Papai Noel e a amizade.  O que não contei ainda é que, todo verão, íamos ao Sul da França visitar meu avô materno. Todo ano, ele passava uma temporada em Cannes, hospedado no Carlton. Íamos vê-lo de carro, da Bélgica, atravessando a França, com várias paradas, meus irmãos e eu sentados no banco de trás, frequentemente com algum dos nossos animais domésticos no colo.

Meu amor pelo mar vinha desde sempre, já que sou carioca e, durante a minha mais tenra infância, antes da mudança para a Bélgica, morávamos em frente à praia de Copacabana, justamente com meu avô materno, o que se hospedava no Carlton. A precisão é importante, porque meus irmãos e eu tivemos dois avós maternos.  Eram ambos homens boníssimos e superiores, cada um no seu estilo: um, baiano morando no Rio de Janeiro e francófilo; o outro, fazendeiro mineiro na Zona da Mata. Eles jamais se viram ou se falaram, mas estavam perfeitamente cientes da existência um do outro. Eram pessoas sem excentricidades, fora o fato de que tinham amado – e possivelmente ainda amavam – a mesma mulher, minha avó, amaldiçoada por rara beleza e poder de atração, que provocara um escândalo na família ao se separar, aos 19 anos de idade, do primeiro marido, meu avô mineiro. Bahiano e mineiro ambos adoravam a filha que compartilhavam, minha mãe.

Na Avenida Atlântica, à noite, eu ficava na cama, acordado, ouvindo o barulho das ondas. A vista da praia de Copacabana provoca ainda em mim uma forte sensação de segurança e felicidade, embora hoje em dia eu veja o oceano mais usualmente de São Conrado, como ilustrei com esta foto, em Minha vista no Rio de Janeiro:

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Este ano, em julho, ao passar uma semana em Aix-en-Provence para o Festival de Ópera, aluguei um carro e decidi dedicar ao menos um dia ao Mediterrâneo; o calor estava intenso na Provença e eu queria dar um mergulho. A Côte d´Azur seria longe, para ir e voltar no mesmo dia – ainda mais porque iria ao teatro de noite – mas Cassis, que conheço bem, fica perto de Aix:

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A intensidade do azul no mar estava marcante naquele dia:

Mediterrâneo

Perto da praia, porém, havia tonalidades verdes:

Meciterrâneo 2

As expedições anuais à Côte d´Azur na minha infância incluíam passeios pela Provença. Começou aí o meu amor pela região, o que é comprovado pelo fato de que um dos primeiros livros que comprei na infância – ou pedi que comprassem para mim – foi este:

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Assim como preservo ainda muitos amigos da infância, guardo com carinho meus primeiros livros.

Em julho, com o carro alugado, fiz outros passeios, além da ida a Cassis para um mergulho. Sobretudo, realizei uma ambição de anos, até então nunca realizada: contornar a Montagne Sainte-Victoire. Celebrada por Cézanne – que era nascido e criado em Aix e lá faleceu – em dezenas de quadros, o morro é quase um ser vivo para os provençais, de tão mítico. Cézanne o via desta forma:

20170104_172334Tirei a foto acima em Paris, em janeiro, ao visitar na Fondation Louis Vuitton  a exposição sobre a coleção Shushkin, sobre a qual falei em Paris – Moscou – Paris. Intitulado Montagne Sainte-Victoire vue des Lauves, pintado entre 1904 e 1905, o quadro pertence hoje ao Museu Pushkin, em Moscou.           

Comecei a visita à montanha pela vertente Sul, seguindo a estrada D 17, conhecida como Route Cézanne, pois ela passa, em seu início, por vilarejos frequentados pelo pintor.  Fui parando em aldeias ou no meio do campo, para fotografar a Sainte-Victoire:

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A estrada estava vazia; desliguei o ar condicionado e abaixei o vidro, para ouvir as cigarras enquanto dirigia. Reservara mesa para almoçar no restaurante Relais de Saint-Ser, perto da aldeia de Puyloubier. Quase encostado na montanha, o restaurante olha para um vale e da minha mesa, no terraço, eu tinha a seguinte vista:

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Essa é uma região vinícola, a Côtes-de-provence Sainte-Victoire, e o Saint-Ser é também um domaine, produzindo o seu próprio vinho. Como eu estava guiando, não quis ir parando de vinícola em vinícola, provando vinho. Apenas, tomei no almoço um copo de rosé, de um produtor vizinho, o Domaine Sainte Lucie. É, provavelmente, o melhor rosé que já tomei.

Esta foto, que tirei na beira da estrada, coloca em uma mesma imagem vários clichés da Provença – o cipreste, o campo de lavanda, as videiras e a Montagne Sainte-Victoire:

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Ao sair do restaurante, antes de entrar no carro, gravei este vídeo, para registrar o canto das cigarras:

Segui meu caminho… continuei parando, tirando fotos, sempre acompanhado pelas cigarras:

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Gradualmente, cheguei à vertente Norte, onde se encontra aquele que era um de meus objetivos principais no passeio: o castelo de Vauvenargues, o qual, da estrada, aparece assim:

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Como mencionei em Tracey Emin e eu, Luc de Clapiers, marquês de Vauvenargues, oficial do exército morto em 1747 aos 31 anos, é hoje meu moralista predileto:

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Nascido em Aix, faleceu em Paris desconhecido, pobre, desfigurado pela varíola, tendo levado uma existência triste e frequentado na capital apenas uns poucos amigos, entre eles Voltaire, vinte anos mais velho do que ele.  Após a morte de Vauvenargues – que ao deixar o exército não conseguira ser diplomata por causa de sua sáude combalida – Voltaire escreveu: “Foi graças a um excesso de virtude que você não foi infeliz, e essa virtude não te custava esforço algum. Sempre reconheci em você o mais desafortunado dos homens, e o mais tranquilo”.

Vauvenargues viveu, na juventude, no castelo paterno, que ganhou súbita fama na segunda metade do século XX por ter sido comprado, em 1958, por Picasso, que lá passou relativamente pouco tempo, mas nunca dele se desfez. Enterrado no parque da propriedade, Picasso acabou lá ficando para a eternidade. O castelo pertence ainda aos herdeiros de sua última mulher, Jacqueline Roque, e não é visitável, como mostra a placa pouco simpática, mas de certa forma engraçada, colocada no portão:

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Ri particularmente com a frase: “O museu fica em Paris”.

Picasso parece ter comprado o castelo sobretudo para se associar a Cézanne, a quem não conheceu pessoalmente, mas que admirava, que o influenciara e de quem possuía obras. John Richardson escreve no segundo volume de sua biografia de Picasso, com quem conviveu, que os sentimentos do artista por Cézanne não eram puramente reverenciais. Picasso via Cézanne como “a mentor whose shadow he wanted to assimilate as well as escape”, enquanto ao mesmo tempo o chamava de “mother, father and even grandfather”. Como um pai, “Cézanne had to be transcended – exorcised – metaphorically killed”. No catálogo da sensacional exposição Picasso, the Mediterranean years, 1945-1962 que organizou para a galeria Gagosian, em Londres, em 2010, e que tive a sorte de visitar, Richardson escreve: “Vauvenargues might also have proved a mixed blessing in regard to Cézanne. Picasso had devoured Cézanne at the time of Cubism, but after poaching on his favourite motif he may well have felt in danger of being devoured himself”.

O  catálogo – cuja qualidade faria, como a exposição na Gagosian, muito museu empalidecer –  inclui esta foto tirada por Edward Quinn de Picasso e Jacqueline Roque, olhando pela janela de uma sala de Vauvenargues:

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Fico imaginando o moralista dois séculos antes, olhando melancolicamente pela mesma janela do castelo do pai, com quem mantinha relações difíceis, sem poder prever a Revolução de 1789 e as seguintes, as duas Guerras Mundiais e a chegada na propriedade paterna do espanhol genial – que era também um pai difícil.

Outro amigo de Picasso, David Douglas Duncan, publicou em 1961 livro surpreendente, Picasso’s Picassos, sobre o que eram até então centenas de obras desconhecidas do artista, guardadas no castelo de Vauvenargues e em outra de suas propriedades, La Californie, perto de Cannes. O livro apresenta fotos preciosas tiradas por Duncan, como estas duas, de Picasso diante da fachada de Vauvenargues e sentado no salão transformado em estúdio:

20170812_205103Duncan se orgulha, com alguma razão, de ter conseguido capturar o arco-íris coroando o castelo e o artista: “the most remarkable combination of natural phenomenon with newsbreak timing”. Segundo ele, “No single landmark is more renowned in modern art than Sainte-Victoire”, por causa de Cézanne.

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Duncan menciona no livro ter ouvido de Picasso o comentário de que, com a compra do castelo, parte da montanha, inclusive o pico, agora lhe pertencia. Isso me faz lembrar ter ouvido de uma amiga em Quito, proprietária da melhor livraria da cidade, que a escritura de posse da fazenda familiar especificava: “Incluye el cerro”. O “cerro” em questão era nada menos que o magnífico Chimborazo, vulcão de mais de 6.200 metros de altitude.

O castelo fica entre a montanha e a aldeia de Vauvenargues, Aqui, a rua principal:

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Da aldeia, há vistas excelentes do castelo:

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Vendo a cena acima, lembrando que o escritor e o artista viveram nessa casa e que a montanha, atrás, inspirou Cézanne,  pensei que  o modesto vilarejo de Vauvenargues acabou sendo um farol da cultura ocidental.

Era tempo de regressar a Aix. Retomei a estrada, sempre bela, quase sempre vazia:

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Pouco após Vauvenargues, notei que eu passava entre a Sainte-Victoire à esquerda e, à direita, um campo de lavanda. Parei o carro e saltei. O campo de lavanda ficava em uma propriedade particular, mas não havia cerca e a casa era distante.  Andei pelas flores, fixando a montanha, impressionado com o silêncio – quebrado apenas pelas cigarras – com o isolamento, com a beleza do lugar.

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Seria poético eu dizer que ali, naquele campo de lavanda, encarando a Sainte-Victoire, pensei nas inúmeras vezes em que, criança e adulto, passeara de carro pela Provença; dizer que meditei sobre o tempo, as incoerências da vida, a impermanência das pessoas e das coisas, que deve nos fazer valorizar o que se revela permanente; dizer que refleti sobre o poder da arte e da literatura para dar sentido à vida, e que se Vauvenargues, Cézanne e Picasso, seus sonhos, decepções e experiências vieram e se foram, eles ao menos nos deixaram obras que ajudam a tornar nossas vidas mais ricas, suportáveis.

Mas nada disso aconteceu. Parado sozinho naquele momento, naquele lugar, pensei apenas na felicidade que era ver a imponência da montanha, sentir o perfume da lavanda, ouvir as cigarras, viver plenamente aquelas sensações, exercitar os meus sentidos, atento somente ao que me rodeava.

Enviei a foto da lavanda aos pés da Sainte-Victoire à minha mulher e à minha filha e regressei a Aix. Ainda pude visitar uma exposição antes da ópera.

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12 comentários sobre “Minha avó e seus dois maridos

  1. Se tiver um tempo para recomendar um bom livro cujo cenário seja a Provença, agradeço.

    Precisaria ser em português, se não for exigir demais. Meu inglês é pouco e o francês ainda mais miúdo…

    No mais, afirmo que a pernambucana aqui, jornalista, aprecia e muito os seus relatos e maneiras de urdir histórias – até quis saber mais sobre seus dois avôs. 🙂

    Abraços!

    Adriana

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  2. Adorei o blog, principalmente porque não conheço a Provence e as fotos me encantaram, com o céu azul e os campos de lavanda. Parabéns mais uma vez. Abraços, Cláudia

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