Eterna cobiça

Eterna cobiça

Transcrevo minha coluna quinzenal para o jornal Estado de Minas publicada em 29 de março:

Ucrânia e Gaza não são os únicos cenários de conflitos armados no mundo neste momento. Longe disso. Agora em março, assisti em Luanda a uma apresentação do novo presidente da Comissão da União Africana, o chanceler de Djibuti, Mahmoud Ali Youssouf. Ele mencionou, em um francês extremamente elegante, múltiplos conflitos em andamento na África. Anotei nada menos do que sete.

Antes de mais nada, algumas precisões. O presidente de Angola, João Lourenço, assumiu, em fevereiro, por um ano, a presidência rotativa da União Africana, cujo secretariado é a Comissão, sediada em Adis Abeba. Mahmoud Ali Youssouf tornou-se presidente da Comissão também em fevereiro.

A apresentação do chanceler de Djibuti e novo presidente da Comissão da União Africana apontou vários problemas enfrentados pelo continente, entre eles as ingerências extra-regionais, que atribuiu à cobiça despertada pelas riquezas minerais da África. Poucos dias antes, em Adis Abeba, João Lourenço dissera ser necessário “encontrar soluções africanas para os problemas africanos”.

Do ponto de vista de Angola, o conflito mais preocupante é sem dúvida o da região leste da República Democrática do Congo (RDC), país com o qual compartilha 2.600 km de fronteira. No início de março, o alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Volker Türk, lembrou serem já 500 mil as pessoas deslocadas na RDC somente este ano, que se somam às quase 8 milhões deslocadas anteriormente. Declarou que milhares de pessoas morreram desde janeiro, durante ataques conduzidos na RDC pelo grupo armado M23, “com apoio das Forças Armadas de Ruanda”.

Em janeiro, o general brasileiro Ulisses de Mesquita Gomes assumiu o comando militar da Missão da Organização das Nações Unidas para a Estabilização na República Democrática do Congo (MONUSCO), criada em 2010 para suceder à missão anterior da ONU, que fora estabelecida em 1999. Essas datas já indicam quão antiga é a instabilidade na RDC. Há o temor de que a integridade territorial do país esteja em risco.

A RDC é o segundo maior país da África e um dos principais produtores de cobalto do mundo. Produz também diamantes e coltan, de que há importantes reservas na região de Kivu, a leste do país, na fronteira com Ruanda, e do qual se extrai o tântalo usado em celulares. Em dezembro de 2024, o governo congolês deu início a uma ação criminal contra subsidiárias da Apple na Bélgica e na França, acusando a empresa de utilizar minerais extraídos ilegalmente de seu território.

Em fevereiro, o Conselho de Direitos Humanos da ONU emitiu resolução condenando a violência na RDC — inclusive o bombardeio de hospitais e escolas —, a “exploração ilegal de recursos naturais” e o “apoio logístico e militar prestado pelas Forças de Defesa de Ruanda ao M23”.  Poucos dias depois, o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou por unanimidade uma resolução que insta as Forças de Defesa de Ruanda a deixar de prestar apoio ao M23 e a se retirar da RDC. Por sua vez, o representante de Ruanda junto à ONU declarou que a RDC “parece acreditar que a solução para seu conflito interno virá de atores extra-africanos, vários dos quais são a causa histórica deste conflito”.

Em 2024, percebi, em conversas com diferentes interlocutores, que Ruanda estava na moda. Ouvi, no Brasil e na Malásia, a avaliação de que o pequeno país — um pouco maior do que Sergipe — era “a Suíça da África”.

De fato, Ruanda ainda era, no ano passado, um dos países africanos mais bem vistos no Ocidente. Jogadores de três times europeus de futebol, Arsenal, Bayern de Munique e Paris Saint-Germain, usam nas camisas os dizeres “Visit Rwanda”. Londres negociou com Kigali um arranjo, que não chegou a ser implementado por causa da queda do governo conservador, para envio a Ruanda de solicitantes de asilo deportados. Em novembro de 2023, o Brasil criou a Embaixada em Kigali, que não foi ainda aberta.

Desde então, a imagem internacional de Ruanda se deteriorou. Em janeiro, a RDC rompeu relações diplomáticas com o país. Em fevereiro, os Estados Unidos impuseram sanções ao ministro da Integração Regional ruandês, acusando-o de coordenar a exportação, a partir de Ruanda, de minerais extraídos da RDC e de ser “elo de ligação com o M23”. Também em fevereiro, o Reino Unido anunciou, entre outras restrições, a interrupção da ajuda financeira direta ao governo de Ruanda e avaliou que, embora seja “possível” admitir que Ruanda tenha preocupações securitárias, não seria aceitável que essas fossem resolvidas militarmente. Em março, a União Europeia adotou sanções a membros das Forças de Defesa de Ruanda. Em reação às sanções europeias, Ruanda cortou as relações diplomáticas com a Bélgica.

Desde 2022, João Lourenço vinha servindo como mediador entre a RDC e Ruanda. No entanto, em 18 de março, os presidentes dos dois países reuniram-se em Doha, inesperadamente, a convite do emir do Catar, novo ator, extra-africano, que passa a se envolver no assunto. Nesse mesmo dia, estava marcada reunião em Luanda entre a RDC e o M23, mas este, para surpresa de Angola, não compareceu. Dois dias depois, o chanceler angolano, Téte António, declarou à imprensa: “Nós ficamos, de fato, estupefatos pelo encontro em Doha”.

Diante da aceitação, pela RDC e por Ruanda, de um mediador extra-regional, em 24 de março o governo angolano anunciou “a necessidade de se libertar da responsabilidade” de mediar o conflito no leste da RDC. Caberá agora escolher outro país africano para exercer essa tarefa, mas não está claro ainda como uma mediação africana se coadunará com a do Catar, caso esta prossiga.  

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Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro

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Grandes diplomatas

Grandes diplomatas

Transcrevo minha coluna quinzenal para o jornal Estado de Minas publicada ontem, 15 de março:

Em Escolhas difíceis, livro de 2014 sobre sua gestão como secretária de Estado, Hillary Clinton ridiculariza sutilmente Serguei Lavrov, chanceler da Rússia desde 2004: “ele estava sempre bronzeado e bem-vestido”. Um dos propósitos da obra era contribuir para que a ex-secretária de Estado ganhasse, em 2016, a nomeação do partido democrata para as eleições presidenciais, que viria a disputar e perderia para Donald Trump. O livro de memórias procura provar sua firmeza com a Rússia, considerada ainda então pelos Estados Unidos como seu principal rival.

Contou-me um diplomata russo que, nas reuniões entre Hillary Clinton e Serguei Lavrov, era penoso constatar como a secretária de Estado lidava de forma superficial com os assuntos, os quais parecia não dominar. O livro de Clinton e o comentário do colega russo demonstram que a disputa entre grandes potências se dá também no plano da rivalidade pessoal entre chanceleres, competindo entre si sobre quem transmite a imagem de mais habilidoso.

Não há mulheres entre os biografados no livro editado em 2024 por Hubert Védrine — chanceler da França no gabinete do primeiro-ministro Lionel Jospin, durante a presidência de Jacques Chirac —, intitulado Grandes diplomatas: os mestres das relações internacionais, de Mazarino aos nossos dias.  

Poucos dos perfis ali destacados foram diplomatas de carreira. Muitos ocuparam o cargo de ministro das Relações Exteriores. Dos vinte homens celebrados no livro por vinte historiadores ou jornalistas franceses — dos quais apenas quatro mulheres — doze trabalharam a serviço de França, Alemanha, Áustria ou Inglaterra, e dois a serviço dos Estados Unidos. Dos seis restantes, Kofi Annan e Boutros Boutros-Ghali foram secretários-gerais da Organização das Nações Unidas; três foram chanceleres da Rússia; e um, da China.   

Para um diplomata brasileiro, salta aos olhos a falta de uma representatividade geográfica mais ampla. Não há razão, por exemplo, para a ausência do barão do Rio Branco. Sua gestão como chanceler, entre 1902 e 1912, foi mais bem-sucedida e de resultados mais duradouros do que a da maioria dos biografados.

Escritório do barão do Rio Branco, onde viria a falecer em 1912, no Palácio Itamaraty , Rio de Janeiro

A celebridade parece ter sido um critério para a seleção. No prefácio, Védrine orgulha-se de que podem ser encontrados no livro “quatro nomes de notoriedade mundial: Talleyrand, Metternich, Bismarck e Kissinger”. O culto à notoriedade pode ter influenciado também o espírito às vezes pouco crítico das análises. Lemos no artigo sobre Henry Kissinger que “em 1973, ele tinha virado uma celebridade mundial, uma figura da cultura pop americana”. São apenas afloradas as acusações de crimes de guerra, atribuídas à “ala esquerda do partido democrata”.

Há traços comuns às diferentes trajetórias. Mazarino, Kissinger e Brzezinski, estrangeiros tendo de se adaptar à nova pátria, enfrentam dificuldades de inserção na elite local. Sobre Mazarino, italiano que foi primeiro-ministro da França na infância e juventude de Luís XIV, a historiadora Simone Bertière escreve: “sua inteligência é de um poder tão inquietante que ele é obrigado a escondê-la”, sem que possa “dividir com ninguém suas visões anticonformistas”. Molotov e Zhou Enlai são, em razão da visibilidade de seus cargos, as figuras politicas mais famosas de seus países no exterior, depois de Stalin e Mao Tsé-Tung. Isso basta para despertar a ira e o sadismo de seus chefes. A maioria dos biografados precisa acomodar-se ao temperamento de seus reis ou presidentes e aceitar humilhações. Vários são considerados cortesãos pelos contemporâneos.   

O artigo mais estimulante é o último, que retrata Lavrov, único dos vinte “grandes diplomatas” ainda vivo e ainda em função. A inclusão de seu nome em obra publicada após o início da guerra na Ucrânia e das sanções ocidentais contra a Rússia é, em si, reveladora de sua importância. A autora do artigo, Sylvie Bermann, foi a primeira mulher embaixadora da França, sucessivamente, na China, no Reino Unido e na Rússia.  

Segundo Bermann, Serguei Lavrov se insere “na linhagem de ministros extremamente competentes e temíveis na defesa dos interesses de seu país”, como Andrei Gromiko —um dos grandes ausentes do livro, admite Hubert Védrine no prefácio — e Evgueni Primakov. Lavrov compartilharia a visão desses predecessores de que a Rússia é “uma fortaleza assediada”, à qual interessaria, por isso, um multilateralismo fortalecido.

Como Kissinger em seu tempo, Lavrov pertence à cultura pop: “é uma das figuras mais populares e respeitadas na Rússia; há camisetas com seu rosto”. Sylvie Bermann especula não haver “nem amizade nem proximidade entre ele e Putin”. Sustenta que Lavrov “executa a política decidida no Kremlim, mais do que a elabora”, tendo sido a Chancelaria “marginalizada” nos dois temas de política externa mais importantes para a Rússia nos últimos anos — Síria e Ucrânia.

Putin e Lavrov “compartilham a nostalgia de uma Rússia poderosa e o ressentimento contra o Ocidente e as ações da OTAN, com seus avanços em direção às fronteiras russas”. Pergunta-se a embaixadora que imagem o chanceler deixará na História. Avalia que isso dependerá do resultado da guerra na Ucrânia: “Quando voltar o tempo da diplomacia, é possível que ele conheça uma forma de reabilitação”.

Em suas conclusões, Hubert Védrine critica discretamente a diplomacia europeia da atualidade, para a qual seria tabu, desde 2022, preparar o futuro das relações com Moscou, no pós-guerra da Ucrânia. De forma presciente — o livro foi preparado em 2023 — declara que esse tema é menos inabordável para os Estados Unidos, “para os quais a prioridade é fazer face ao desafio chinês”.

O embaixador Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente no Estado de Minas. Publicou, em novembro de 2024, o livro “Geografia do tempo”.

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Consternação europeia, dia 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, dia 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, dia 1º de fevereiro

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O pincel japonês

O pincel japonês

O assunto surgiu em fevereiro, enquanto eu almoçava com Tininha Barros Greindl em um restaurante que está na moda, em Bruxelas, e onde no passado minha família e eu costumávamos ir aos domingos. Eu pedira como entrada croquetes de camarão com salsa frita. Esse, como já contei antes, ao descrever um passeio com minha filha pelo campo de batalha de Waterloo, é um dos meus pratos prediletos na culinária belga. Veio depois um bacalhau — dos de cabillaud — com purê de batata.

Os croquetes de camarão nunca poderiam me decepcionar, mas o bacalhau pareceu-me insosso. Não consegui terminá-lo. Eu acabara de desembarcar de Kuala Lumpur, para onde já não voltaria, e durante os meus quinze dias na Europa muitas vezes achei sem gosto a comida, sentindo falta dos fortes condimentos asiáticos.

Enquanto eu brincava com o bacalhau no prato e me perguntava como cinco anos trabalhando na Malásia haviam podido modificar a esse ponto o meu paladar, Tininha mencionou haver na cidade, na Villa Empain, uma exposição do Alechinsky.

Uma semana depois, no meu último dia em Bruxelas, eu almoçava em outro restaurante de predileção, Au Vieux Saint Martin, na praça do Sablon. Há quase vinte anos frequento o local por causa de um prato específico, o dueto de chouriço de sangue e chouriço branco, com purê de batata e de maçã. Chouriços e purês, especialmente o de maçã, trouxeram-me reconforto. Era como recuperar o tempo, reviver existências pretéritas, lembrar de todas as pessoas com as quais eu no passado almoçara e jantara naquela mesma sala, pedindo sempre aquele mesmo prato. A mousse de chocolate, na sobremesa, completou a sensação de impressões já vividas e sempre apreciadas.

Enquanto eu comia, olhava ao meu redor. Ao longo de vinte anos, nada mudara na decoração, ao menos que eu pudesse perceber. O nome do restaurante é derivado de uma pequena escultura em madeira do século XVI, mostrando São Martinho, a cavalo, procedendo ao seu famoso gesto de cortar com a espada metade do casaco para entregar a um mendigo. A cena é uma das mais facilmente reconhecíveis na iconografia cristã. No passado, inúmeras vezes tentei fotografá-la, o que não é fácil, pois ela é colocada perto do teto, vermelho e abobadado.

São Martinho existiu verdadeiramente. Viveu no século IV. Nasceu na Hungria. Oficial do exército romano, abandonou jovem a carreira militar para se dedicar à religião. Foi bispo de Tours. O encontro com o mendigo, na suposição de que seja fato e não lenda, aconteceu às portas de Amiens.

Martinho é um dos santos cuja trajetória podemos ler na Legenda áurea, obra do século XIII escrita em latim por Jacopo de Varazze. Existe no Brasil uma bela tradução, de 2003, por Hilário Franco Júnior. O capítulo sobre São Martinho nos informa que ele “tinha corpo disforme e rosto feio”. Como muitos dos hagiografados da Legenda áurea, mais de uma vez enfrentou o diabo “sob forma humana”. Lemos que “tinha grande habilidade para reconhecer os demônios, não importava a imagem que assumissem”. Recebia conselhos de anjos; a água, o fogo e os vegetais obedeciam às suas ordens; e também os cães e as serpentes. Uma de suas especialidades parece ter sido a de ressuscitar os mortos.

Na obra de Jacopo de Varazze, minha história predileta é a dos “Sete Adormecidos”. Sete amigos cristãos em Éfeso, fugindo à perseguição do imperador Décio, refugiam-se em uma caverna. Décio ordena que a entrada da caverna seja obstruída com pedras. Séculos depois, Deus ressuscita os mártires. Estes admiram-se de ver “o signo da cruz” por toda parte na cidade. O cristianismo triunfara. O mais enternecedor é a preocupação histórico-científica do autor de nos explicar, nas últimas linhas: “Que eles tenham dormido 372 anos, como se diz, permite dúvidas, pois eles ressuscitaram no ano do Senhor de 448, e Décio reinou apenas um ano e três meses no ano do Senhor de 252. Ou seja, eles dormiram apenas 196 anos”.

Dessa vez, mal olhei para a escultura de São Martinho. A lembrança de que eu partiria de Bruxelas na manhã do dia seguinte para Lisboa deixava-me acabrunhado. Pois ir a Bruxelas, hoje, significa visitar minha filha. A cada separação, vem a sensação de vazio, pois nunca sei quando poderei vê-la novamente. Há quatorze anos moramos em continentes diferentes. O último encontro acontecera no Japão, nove meses antes.

Da mesma maneira como, nessa minha ida mais recente a Au Vieux Saint Martin, pouca atenção prestei a São Martinho, mal olhei para as obras de Alechinsky que também decoram o restaurante. Só agora, escrevendo em Luanda, onde cheguei há uma semana, dou-me conta de que não parei para examinar seus dois tondi em pedra de lava esmaltada, em azul e branco, de que tanto gosto, expostos logo na entrada.

Mas enquanto eu ia devorando os chouriços e os purês e a mousse de chocolate, era impossível ignorar que eu estava rodeado de obras de arte, várias delas marcantes, e em momento algum os dois Alechinskys do salão principal fugiram à minha consciência. Decidi dar sequência à conversa que tivera dias antes com Tininha Barros Greindl. Paguei a conta, chamei um Uber e parti para a Villa Empain.

Hoje sede da Fundação Boghossian, que usa a casa em estilo art déco para exposições de arte, a Villa Empain foi construída na década de 1930. Muitas vezes, lá visitei exposições, acompanhado de minha mulher, de minha filha, de ambas, de minha filha e de meu genro, possivelmente de minha mãe. Em resumo, lá estive em diferentes combinações familiares. Durante anos, trabalhei na mesma rua. A soberba casa está, assim, fortemente associada à minha vida profissional e familiar.

Villa Empain, fachada sobre os jardins

O espaço não é enorme. As mostras podem, portanto, ser visitadas de maneira tranquila, sem as afobações ou o cansaço que às vezes acompanham exposições gigantescas, que parecem nunca ter fim. Estar ali é como visitar uma coleção na casa de algum conhecido. Cada aposento preserva seu nome distintivo, como: “salão”, “banheiro azul”, “quarto de hóspedes”, “quarto de Monsieur“, “quarto de Madame” e, o que mais me intriga, “sala de esgrima”, recordação de que a propriedade pertenceu originalmente a um barão milionário, Louis Empain.

Sempre considerei estimulante a obra do pintor e gravurista belga Pierre Alechinsky. Retrospectivas são perigosas, porque ver em dose maciça a obra de um artista pode nos decepcionar. Renoir, para mim, ficou desmistificado quando, muito jovem, assisti em Londres a uma megaexposição de seus quadros na Hayward Gallery. Minha impressão foi de que o conjunto revelava quão piegas era seu pincel. Posso ainda gostar de alguma pintura sua, isoladamente, mas nunca esqueço quão açucarado seu estilo pode ser. Em O Delacroix de Chelsea comentei como me aborreceu, mais recentemente, uma colossal exposição de Delacroix no Louvre, embora nesse caso eu tenha atribuído a frustração mais à curadoria ou à minha sonolência, causada por um xarope contra a tosse, do que ao pintor.

No caso da exposição Alechinsky na Villa Empain, fiquei plenamente satisfeito. A rigor, como apontaram alguns críticos, não se trata exatamente de uma retrospectiva, já que as obras não são expostas de maneira cronológica, mas em função do seu tamanho e das dimensões de cada espaço. O título da mostra, “Alechinsky, pincel viajante”, também explica as seleções da curadora, Catherine de Braekeleer, cujo foco foi mostrar a produção do artista influenciada pelas artes chinesa e japonesa.

O pintor fará 98 anos em outubro. Continua trabalhando. Reparei haver obras de 2023, de 2024. Fui passando de sala em sala, do “boudoir” ao “banheiro de Madame“, sem pressa, embora tivesse um compromisso às cinco da tarde e tivesse chegado à Villa Empain depois das três.

Um traço característico de Alechinsky é que ele frequentemente desenha uma moldura em torno ao que é retratado no centro. Às vezes, o centro é colorido e o entorno branco e negro. Às vezes, é o contrário. As obras com essas duas variações são as que mais me interessaram na exposição. Em algumas, a moldura colorida causava a impressão de ter adquirido a textura de porcelana chinesa.

O título de uma das obras, Ubu no Extremo-Oriente, chamou minha atenção. Quando meus irmãos e eu éramos crianças, na Bélgica justamente, uma das brincadeiras era interpretar papéis da peça Ubu rei, de Alfred Jarry. Mas a maneira como o papel sobre tela, aos meus olhos, parecia tornar-se outro material é o que realmente me fez passar alguns minutos diante do quadro.

Ubu no Extremo-Oriente, 1991

Outra obra, O Mar Negro, é homenagem ao pai, refugiado russo oriundo da Crimeia. O catálogo fala em “tristeza e luto”, mas não é isso o que vi. Pensei apenas na beleza do contraste entre as cores vivas, enérgicas da moldura, onde o azul e o vermelho predominam, e o preto do mar e do céu no centro.

Desde a infância, noites estreladas me fazem pensar, sem melancolia, na vastidão do universo e na pequenez das coisas humanas. Também me dão a noção de continuidade do homem ao longo da História. O mesmo céu que vemos, todos vêm desde o início de tudo. Pensar nisso pela primeira vez, aos oito ou nove anos, ao olhar para um céu de verão onde as estrelas eram nítidas — e lembro bem da ocasião e onde eu estava —, foi uma revelação intimidadora. Paradoxalmente, houve também o sentimento de paz em saber que tudo o que jamais aconteceu ao longo dos séculos, dos milênios, com absolutamente todos os seres humanos, aconteceu aqui, sob essa mesma arcada infinita, no mesmo espaço onde, temporariamente, vivemos nós. A noite silenciosa, deduzi naquela ocasião, continha os mistérios mas também as explicações da vida.

O Mar Negro, 1990

Quanto ao mar no quadro de Alechinsky, não me fez pensar em Crimeia ou tormentas, “tristeza e luto”, mas antes em um convite a alguma viagem, longe de guerras, da política e das reviravoltas humanas. Por aqueles dias, eu observava, pela imprensa europeia, a erosão acelerada da aliança transatlântica, na qual o termo “aliança” deve ser entendido como a complacente e cômoda subordinação da Europa ao poderio americano. Pensava já em escrever a respeito para minha coluna quinzenal no jornal Estado de Minas, o que viria a fazer poucos dias depois, durante o voo Lisboa-Luanda. O mundo por onde eu passeava na mostra da Fundação Boghossian abria um hiato nesse momento de perplexidade sobre o que o futuro próximo nos reserva.

As duas outras obras frente às quais mais me demorei são antagônicas, pelo contraste entre a riqueza de significados em um caso e a simplicidade no outro.

A tela Oitava, segundo Alechinsky, pode “evocar uma estrela, uma oitava, uma mandala…”. A mim, causou um impacto puramente visual, diante do qual a definição do que é representado perde importância. Os círculos pretos rodam em um movimento próprio.

Recordei uma conversa que tivera duas semanas antes, ainda em Kuala Lumpur. O sultão de Perak, Nazrin Shah, que será o próximo rei da Malásia, oferecera-me um jantar de despedida. Naquela noite, comentei com dois dos amigos presentes que a previsibilidade do clima malásio — há sol, calor e chuva todo dia, e a temperatura é sempre em torno a 32 graus — me agradava. Os dois me disseram que sentiam falta das quatro estações, pois com elas “sente-se o tempo passar”. Retruquei que eu gostava da sensação de suspensão do tempo causada pela homogeneidade do clima ao longo do ano, dia após dia, na Malásia.

Oitava, 1983

Os círculos e os traços de Alechinsky parecem saltar ao chão, ou intimar-nos a mergulhar no quadro. Oitava é uma recordação de que há atividade e movimento por toda parte, inclusive e sobretudo em nós mesmos. Não precisamos de indicações externas para ver o tempo passar.

Seus traços sinuosos podem, à primeira vista, parecer abstratos. Olhando atentamente, porém — e Ubu no Extremo-Oriente e Oitava são bons exemplos — notamos figuras humanas ou humanoides aparentemente mascaradas. O catálogo não diz, mas é sabido que uma das influências sobre o artista é o pintor belga James Ensor. Personagens portando máscaras são típicas de Ensor. Há ao menos três em Oitava, duas delas relativamente nítidas, na metade inferior do quadro, uma do lado esquerdo e outra do lado direito.

Material mínimo poderia ser considerado um autorretrato surrealista. O artista desenhou seus instrumentos de trabalho: pincel, tinteiro, folha de papel e óculos. Desde 1965, Alechinsky pinta ou desenha sobre folhas de papel colocadas no chão. Na década de 1980, comentou que usa um pincel japonês, que recebeu de presente do calígrafo Morita Shiryu, “na plataforma da estação de Kyoto”, na única vez em que viajou ao Japão, em 1955. O papel é depois afixado a uma tela. A obra de Alechinsky é geralmente vista como contendo elementos de caligrafia oriental.

O pincel é constituído de “nove centímetros de pelos de cabra, inseridos em dezenove centímetros de bambu de primeira qualidade”. É segurado com a mão esquerda, ficando as tigelas com as cores na mão direita do artista. Não está claro no catálogo se o pincel que utiliza hoje ainda é o mesmo recebido de Morita Shiryu. Em caso afirmativo, sua vida útil seria excepcionalmente duradoura e ele ganharia uma dimensão quase mítica.

Material mínimo, 1988

Precisei pôr fim à viagem que a exposição me proporcionava. Estava já atrasado para minha visita, às cinco, ao ateliê de um amigo, outro artista belga, Fabrice Samyn.

No dia seguinte, de manhã, o voo de Bruxelas para Lisboa atrasou noventa minutos. Passei a demora de uma hora e meia, dentro do avião, pensando sobre minha vida familiar. Em Bruxelas, ficavam minha filha e meu genro. À minha espera em Lisboa estavam Titina, a mais afetuosa das irmãs, e vários amigos que eu não via há muito tempo. Um deles viria me ver de Roma, no fim de semana. No ponto final da viagem, cinco dias depois, em Luanda, eu reencontraria minha mulher.

Ao amigo em Roma, porém, escrevi: “Meio triste no avião, já com saudades da Julia”. Era impossível, de fato, deixar de pensar que, mais uma vez, eu estava rumo a um continente que estabeleceria grande distância física entre nós.

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Consternação europeia

Consternação europeia

Transcrevo abaixo minha quarta coluna quinzenal para o jornal “Estado de Minas”, publicada ontem, 1o. de março:

“Neste mês de fevereiro, passei dez dias em Bruxelas. Apesar do frio, no plano pessoal esse não poderia ter sido um período melhor. Mas enquanto eu passeava com minha filha e meu genro, frequentava museus e livrarias e retornava a restaurantes prediletos, ao meu redor instalava-se a incerteza. Por obra e graça de Donald Trump, o mundo se transformava a galope e esfacelava-se a celebrada aliança transatlântica.

Meus dias em Bruxelas coincidiram com o anúncio do novo secretário de Defesa dos Estados Unidos, Pete Hegseth, de que não seria “realista” restabelecer as fronteiras da Ucrânia ao que eram antes de 2014. Falando em Bruxelas, Hegseth aproveitou para acrescentar que seu governo não considera conducente à paz a entrada da Ucrânia na OTAN. A frase que mais terá chocado os europeus, porém, é esta: “duras realidades estratégicas impedem aos Estados Unidos focalizar, como prioridade, a segurança da Europa”.

No mesmo dia, Donald Trump e Vladimir Putin conversaram ao telefone por uma hora e meia. Rompeu-se assim o isolamento russo, imposto há três anos pelos próprios Estados Unidos. Dois dias depois, na Conferência de Segurança de Munique, o vice-presidente americano, JD Vance, criticou, em seu discurso, um suposto déficit de liberdade de expressão na União Europeia, avaliando ser este o principal inimigo da Europa, não a Rússia ou a China. Estava eu ainda em Bruxelas quando o experimentado chanceler russo, Serguei Lavrov — ­frequentemente considerado, em círculos diplomáticos globais, o mais competente do mundo — manteve na Arábia Saudita reunião com o novo secretário de Estado, Marco Rubio. Causou forte comoção, na Europa, o fato de americanos e russos se sentarem para discutir ­o fim da guerra na Ucrânia sem a presença daquele país ou da União Europeia.

Meus dez dias na capital da Europa foram, assim, dez dias que abalaram o mundo. Ou ao menos, abalaram os países da União Europeia, além, naturalmente, da Ucrânia. Algumas manchetes dos mais ilustres jornais europeus, naquele período, dão conta do nível de consternação: “Estupefação e angústia em Kiev e na Europa”; “Ucrânia: a Europa marginalizada por Trump e Putin”; “Washington e Moscou reatam, às custas de Kiev”.

Durante 80 anos, desde o final da Segunda Guerra, acostumaram-se os países europeus, não podendo mais dominar o mundo, como haviam feito por séculos, a uma confortável subordinação aos interesses americanos. Gerações de europeus doutrinadas a ver na Rússia, e na China, o inimigo natural defrontam-se agora, com “estupefação e angústia”, com algo muito parecido com um inimigo novo. A guinada de lealdades da administração Trump — anunciada em ritmo acelerado em declarações que colocam em jogo toda a retórica americana precedente sobre a inviolabilidade da soberania ucraniana, a solidez da OTAN e segurança da Europa de maneira geral  — deixou os governos europeus sem fio condutor.

Logo após a invasão da Ucrânia, há três anos, o embaixador em Kuala Lumpur de um dos países mais influentes da União Europeia cometeu um ato falho em uma coletiva de imprensa. Àquela altura, os embaixadores europeus exerciam forte pressão, de forma pública, sobre o governo malásio para que este condenasse a Rússia. “Os malásios têm de entender”, declarou o embaixador europeu, “que essa não é uma guerra que afete apenas homens brancos. Afeta o mundo todo”. Racismo à parte, a declaração produziu a impressão de que, nessa guerra, estavam em jogo, justamente, apenas os interesses de países do hemisfério Norte.

Perguntei uma vez a Samuel Pinheiro Guimarães como era possível que o presidente Lula, em seu primeiro e segundo mandatos, se entendesse melhor, na avaliação de observadores políticos, com George W. Bush do que com Barack Obama. Sua resposta foi: “É mais fácil, para um país como o Brasil, lidar, no campo da política externa, com os republicanos. Os democratas vêm sempre rodeados de uma aura demagógica. Republicanos e democratas executam a mesma política externa, mas os republicanos têm o mérito da transparência”.

É isso o que estamos presenciando: Donald Trump coloca as cartas na mesa e a realidade dos novos interesses norte-americanos aparece agora sem qualquer verniz. O conflito na Ucrânia beneficiou sobretudo os Estados Unidos, ao prender Rússia e União Europeia em um conflito onde aparentemente não poderia haver vencedor. Agora, os ventos mudam e a posição dos EUA parece ser antes a de permitir à Rússia flexibilidade muito mais ampla em termos de área de influência. Será interessante observar se a administração Trump manterá, em relação aos interesses geoestratégicos da China, a mesma compreensão que parece manifestar em relação aos interesses russos sobre o entorno europeu de Moscou.

A verdade é que não terá sido por falta de aviso. Já em seu primeiro mandato, em 2018, Donald Trump declarara ser a União Europeia “inimiga dos Estados Unidos”, por questões comerciais e por não contribuir o suficiente para sua própria defesa. Os países europeus podem ter sentido alívio com a vitória de Joe Biden, nas eleições de 2020. Deixaram porém de prever que Trump, ou outro ator com os mesmos instintos, poderia voltar ao poder. Sua consternação, assim, não deixa de ser consternante.  

Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente no “Estado de Minas”. Publicou, em novembro de 2024, o livro de ensaios “Geografia do tempo”.

As opiniões expressas nesta coluna são de responsabilidade exclusiva do autor.

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