As pedras do Louvre

As pedras do Louvre

O roubo espetacular ocorrido no museu do Louvre no domingo 19 de outubro chama a atenção do mundo inteiro. Vejo várias razões para isso, a principal sendo que ele representa todos os seus pares. É o museu por excelência: o mais famoso, o maior em termos de espaço de exposição e o que mais visitantes recebe — nove milhões em 2024.

O filme Francofonia, de 2015, do diretor russo Aleksandr Sokurov, é uma divagação sobre o papel e a função dos museus. Muito naturalmente, é o Louvre o modelo utilizado. Sugere Sokurov, a meu ver corretamente, que o Louvre é o símbolo não somente de todos os museus, mas também da França em si. Não entendo o sentido do ditado “ir a Roma e não ver o papa”, pois já estive muitas vezes em Roma e nunca vi papa algum. Mas entenderia um ditado que soasse como “ir a Paris e não ver a Mona Lisa”, entendendo-se a Mona Lisa, aqui, como uma marca que englobaria o Louvre e ao mesmo tempo seus múltiplos tesouros, como o Escriba Sentado; a cabeça de Akhenaton; a Vênus de Milo; a Vitória de Samotrácia; o busto de Germânico — há mais de um nas salas romanas, eu tenho o meu predileto; o Escravo Morrendo, esculpido por Michelangelo; a Coroação de Napoleão por David; e todas as obras-primas das diferentes escolas de pintura.

Antigamente, décadas atrás, quando por exemplo eu era aluno universitário na London School of Economics, seria impensável eu ir de Londres a Paris, mesmo que apenas para o fim de semana, e não dar um pulo até o palácio-museu, para rever ao menos algumas das minhas peças prediletas. Hoje, visitá-lo tornou-se tarefa árdua, demonstração de persistência e resiliência. Já lá não vou há alguns anos. A fila de espera é longa e o museu, tentacular. Encontrar as obras de arte que procuramos é um exercício físico exaustivo e, às vezes, desesperador. Fiquei mais velho, mais sereno, menos influenciável esteticamente e o prazer de rever aquelas obras já é menos significativo, comparado ao esforço envolvido. Em 2019, escrevi uma crônica, A culpa foi da Mona Lisa, contando minha frustração ao não conseguir chegar até a galeria onde são exibidas pinturas do Rubens, porque a tela de Leonardo da Vinci que retrata, como eu dizia, “a florentina do sorriso misterioso”, estava temporariamente exposta ali, atraindo a multidão de sempre e criando caos.

Outra razão para o fascínio do público com o roubo é, certamente, o fato de que são joias os objetos roubados. É inexistente minha sensibilidade para joias. Vejo-as como um amálgama de pedras coloridas, sem valor intrínseco a não ser aquele a elas atribuído, ilogicamente, pelas pessoas em geral. Da mesma forma, a realeza sobrevive em alguns países pela esdrúxula crença de alguns de que determinada família seria, magicamente, superior e merecedora de preservar um privilégio hereditário.

A proveniência das joias roubadas e o local onde eram expostas contribuem para o interesse sobre o roubo de 19 de outubro. Pertenceram a Maria Luisa da Áustria, segunda mulher de Napoleão I e irmã querida da imperatriz Leopoldina; a Eugenia de Montijo, mulher de Napoleão III, último soberano que a França teve; e a Maria Amélia de Bourbon-Sicílias, mulher do rei Luís Filipe e tia da imperatriz Teresa Cristina. A combinação entre joias caras e origem real cria um elemento de fascínio popular. Quanto ao local de onde os objetos foram subtraídos, a Galerie d´Apollon, renovada no século XVII, é talvez o espaço mais luxuoso do museu. Seu arquiteto foi Louis Le Vau e o teto é, em parte, de autoria do pintor Charles Le Brun. Ambos trabalharam no Palácio de Versalhes. Duzentos anos depois, Delacroix contribuiu com uma das pinturas no teto.

Em Geografia do tempo (2024), no qual o Louvre é bem presente, menciono um pesadelo de Henry James a respeito da Galerie d´Apollon, em que era vítima de uma perseguição, na galeria, por “uma criatura, uma presença”. Como digo no meu livro, “o pesadelo, descrito em detalhe pelo escritor, é maçante, como costumam ser os sonhos alheios, mas tornou-se célebre, por pertencer a Henry James e por ter a Galerie d´Apollon como palco”.

A galeria, agora, virou cenário de um pesadelo bem real, em que as deficiências de segurança do palácio-museu ficaram escancaradas, apesar das declarações em contrário da ministra da Cultura, Rachida Dati. Ao defender o museu, tenta preservar a imagem do ministério que chefia, e também a sua própria. É candidata, como política de direita, à prefeitura de Paris, nas eleições municipais de março de 2026, para suceder à atual prefeita, de esquerda, Anne Hidalgo. A arguição no Senado da diretora do Louvre, Laurence des Cars, em 22 de outubro, demonstrou o alto grau de politização em torno às percepções sobre o roubo.

Fora o aspecto histórico, as joias roubadas valeriam 88 milhões de euros. Os ladrões certamente desmontarão as peças formadas pelas pedras coloridas, que serão vendidas de maneira individual. A não ser que a polícia consiga rapidamente prender os Arsène Lupin de carne e osso, os objetos de vaidade de duas imperatrizes e de uma rainha, os símbolos de um luxo ostentatório se perderão para sempre. Paradoxalmente, essas joias adquirirão a partir de agora um aspecto mítico, como o célebre e também desmontado “colar da rainha”, que Maria Antonieta nunca possuiu, nunca desejou, desprezou mesmo, mas que contribuiu para desonrá-la.

O detalhe pitoresco é a coroa da imperatriz Eugenia ter sido abandonada na rua pelos ladrões. Acharam-na pesada? Difícil de desmontar? De mau gosto? Leio que ela é constituída por 1.354 diamantes e 56 esmeraldas. É muita pedrinha.

A Galerie d´Apollon, local do crime, como a fotografei há alguns anos. Por uma das janelas do lado esquerdo entraram os ladrões

Esta coluna foi publicada no Estado de Minas ontem, 25 de outubro.

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

O Sudeste Asiático e suas verdades, 11 de outubro

Cem anos na Ásia do Leste, 27 de setembro

O delírio do Chimborazo, 13 de setembro

O diplomata robô, 30 de agosto

Botas diplomáticas, 17 de agosto

O embaixador decapitado, 2 de agosto

O espaço do diplomata, 19 de julho

Cenários do poder, 5 de julho

Memória diplomática, 21 de junho

Batuque na cozinha, 7 de junho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

Retrato de família, 10 de maio

Benção apostólica, 26 de abril

O presente malásio, 12 de abril

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

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O Sudeste Asiático e suas verdades

O Sudeste Asiático e suas verdades

Em maio, viajando de Angola ao Brasil, assisti no avião ao filme americano Crazy Rich Asians, dirigido por Jon M. Chu. Era a primeira vez que o revia desde 2018, ano de seu lançamento, quando minha mulher e eu o vimos em Brasília, no cinema.

No Brasil, o título foi traduzido para Podres de ricos, o que não me parece uma escolha feliz. Passa uma ideia de leviandade, enquanto que o filme, divertido e leve como é — pode ser entendido, por quem assim quiser, como uma versão moderna, transplantada para a Ásia, do conto da Cinderela — trata, subliminarmente, de um tema sério, a força econômica do Sudeste Asiático.  

O filme é extraído de um romance de Kevin Kwan, autor nascido em Singapura, como seus personagens; como seus personagens, de origem chinesa; e naturalizado americano. O verbete sobre ele na Wikipedia melindrará autores brasileiros. Recomendo que não o leiam, a não ser como exercício de masoquismo. Todos os livros de Kevin Kwan são campões de vendas; todos parecem destinados a virar filmes hollywoodianos. Tudo isso significa dinheiro, muito dinheiro. Significa sucesso, muito sucesso. 

Em 2018, minha mulher nunca havia viajado à Ásia; eu, por razões de trabalho, lá estivera algumas vezes, sobretudo desde 2016, mas não no Sudeste Asiático. Quando terminou a sessão, julgamos que Crazy Rich Asians, fora a questão do padrão de vida exorbitante da maioria dos personagens, nos provara, de uma maneira mais impactante do que qualquer livro sobre economia ou relações internacionais conseguiria, a realidade sabida mas nunca antes tão fortemente visualizada do dinamismo do Sudeste Asiático. Presenciáramos no cinema a firme evolução daquela região como um dos centros mundiais do poder econômico e comercial.

Um detalhe sutil chamou minha atenção já em 2018. Trata-se de um filme americano, distribuído por estúdio americano, mas onde os personagens ocidentais são figurantes que transitam pela tela de relance. Se olharmos um segundo para o balde de pipoca no nosso colo, perderemos os raros momentos em que a câmera os mostrou rapidamente. Os ocidentais, nas cenas em Singapura, são apenas prestadores de serviço para os asiáticos. Não participam da trama.

Somente na primeira cena do filme, em Londres, cerca de vinte anos antes da ação principal, figuras ocidentais aparecem e têm falas próprias. Isso acontece, porém, para mostrar o seu ridículo. Empregados brancos e mesquinhos de um hotel destratam e humilham, por preconceito racial, a bilionária singapurense que lá deseja se hospedar. Na mesma hora, de Singapura, o marido compra o estabelecimento para vingar a mulher. A bilionária, que mais tarde se tornará a sogra em potencial da heroína e também sua antagonista, é interpretada pela cativante atriz malásia Michelle Yeoh. Por trás do humor da cena, esse momento inicial é profundamente político e carregado de simbologia. Ilustra a ascensão da Ásia e a decadência do Ocidente.

Ao assistir a Crazy Rich Asians em 2018, minha mulher e eu não sabíamos ainda que, no ano seguinte, pediríamos para trabalhar no Sudeste Asiático, ela em Singapura e eu em Kuala Lumpur, e que chegaríamos aos dois postos no início de 2020. Rever o filme no avião, em maio de 2025, depois de cinco anos na Malásia, de onde eu partira apenas três meses antes, proporcionou uma experiência mais rica. 

Em diferentes momentos dos meus cinco anos no Sudeste Asiático conversei, na Malásia e em Singapura, com ao menos quatro dos atores de Crazy Rich Asians. Inclusive, em 2023, com a própria Michelle Yeoh, quando visitou Kuala Lumpur depois de ganhar seu Oscar. Ao rever o filme, percebi sotaques, formas de falar, expressões corporais que observei muitas vezes nos dois países.

No avião, reconheci locações. É uma história singapurense, mas muitos cenários de filmagem se encontram na verdade na Malásia. Como exemplo, direi que o “bar em Nova York” onde o casal protagonista decide viajar a Singapura é na verdade um restaurante em Kuala Lumpur, em frente ao prédio onde morei. Em uma coluna nestas páginas, Tempos de incerteza, escrita ainda em Kuala Lumpur, mencionei que, em um sábado de janeiro, eu fizera uma palestra intitulada “BRICS e ASEAN: Liderança Global de Brasil e Malásia em Tempos de Incerteza”. Cheguei ao instituto onde aconteceria minha apresentação vindo diretamente desse restaurante, onde almocei tantas vezes.

Assistindo ao filme, que é uma sátira, achamos graça nos excessos dos bilionários asiáticos. As risadas tornam fácil obliterar as verdades políticas, comerciais e econômicas que ele escancara. Por mais que seja repetida, é naturalmente difícil para brasileiros que nunca estiveram no Sudeste Asiático assimilar esta verdade: alguns dos países da região, notadamente Singapura e Malásia, são hoje destinos mais importantes para as exportações do Brasil do que a maioria dos países da União Europeia ou da América do Sul. Politicamente, é no Sudeste Asiático que é sentido mais nitidamente o sentimento de rivalidade dos Estados Unidos em relação à China.

Foi um privilégio trabalhar, até poucos meses atrás, para o estreitamento dos laços entre o Brasil e a Malásia e a Associação de Nações do Sudeste Asiático, a ASEAN. O ano de 2024 foi particularmente rico para esse fim e sobre isso já falei aqui mesmo no Estado de Minas, em O ponto de inflexão.

A Malásia é hoje uma nação próspera, prestes a se tornar um país de alta renda e que compartilha muitas das posições defendidas pelo Brasil. É esse o país que o presidente Lula descobrirá ao desembarcar em Kuala Lumpur, no final de outubro, para ser o primeiro chefe de Estado brasileiro a participar de uma cúpula da ASEAN. Um país onde o Brasil é hoje particularmente querido e admirado.

A Mansão azul, em Penang, Malásia, cenário do jogo de mahjong em Singapura entre sogra e nora

Esta coluna foi publicada no Estado de Minas ontem, 11 de outubro.

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Geografia do tempo, finalista do Prêmio Jabuti

Geografia do tempo, finalista do Prêmio Jabuti

Uma alegria grande receber em Luanda a notícia de que meu livro Geografia do tempo é finalista do Prêmio Jabuti, na categoria Crônica.

Muitos amigos a quem agradecer pelo incentivo e o estímulo, como inclusive fiz, nominalmente, no próprio livro. Obrigado uma vez mais a todos vocês!

Obrigado à minha editora, Andrea Jakobsson, pela excelência do projeto gráfico e a atenção que dedicou ao livro.

Obrigado aos meus maravilhosos leitores, que dão vida a Geografia do tempo.

Parabéns aos outros finalistas, companhia tão honrosa para mim:

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