Belém, capital do mundo

Belém, capital do mundo

“Belém é a cidade principal da Polinésia. Mandaram vir uma imigração de malaios e no vão das mangueiras nasceu Belém do Pará”. Assim brincava Mário de Andrade em maio de 1927, enquanto ia descobrindo a Amazônia com a riquíssima Olívia Guedes Penteado, a “Rainha do Café”, como ele diz, no que era então, para sulistas, uma viagem rara. Deslumbrou-se com a cidade. Fora a queixa do calor — calor também sentido, agora em novembro, pelos participantes da Conferência do Clima, a COP30 — todos os seus comentários são afetuosos: “Belém foi feita para mim e caibo nela que nem mão dentro de luva”. Depois de dois meses subindo os rios amazônicos, volta à capital do Pará no final de julho, no longo caminho de regresso a São Paulo. Suspira: “Belém gostosíssima, a milhor coisa do mundo”. No último dia, em 1º de agosto, resume: “nunca na minha vida encontrei uma cidade que me agradasse tanto” e “passei em Belém os melhores dias de minha vida, inesquecíveis”.

Garimpo as frases acima na mais recente edição de O turista aprendiz, de 2024, organizada por Flora Thomson-DeVeaux, que também traduziu para o inglês esse livrinho delicioso. O nosso poeta, um dos maiores intelectuais do país, foi ainda mais direto em uma carta a Manuel Bandeira de junho de 1927, enviada depois da primeira passagem por Belém. Escreve ao amigo: “Quero Belém como se quer um amor. É inconcebível o amor que Belém despertou em mim”. “Meu único ideal de agora em diante”, diz ele, “é passar uns meses morando no Grande Hotel de Belém. O direito de sentar naquela terrasse em frente das mangueiras tapando o Teatro da Paz, sentar sem mais nada, chupitando um sorvete de cupuaçu, de açaí”.

Duas vezes estive em Belém. Na primeira, viajei de férias com minha irmã, quando éramos estudantes; na segunda, minha mulher e eu, ainda namorados e alunos do Instituto Rio Branco, fizemos uma viagem à Amazônia com os colegas, naquilo que era, naquela época, parte da formação na academia diplomática. Lembro bem do impacto sentido com a descida do rio Amazonas, de Manaus a Belém. É preciso viver essa experiência para ter a noção do que significa ser brasileiro, perceber a imensidão daquele rio e a imensidão do país. Como Mário de Andrade, também eu tomei ali pela primeira vez um sorvete de cupuaçu, na calçada, olhando para a fachada do Teatro da Paz.

Além de me fazer reler, em Luanda, O turista aprendiz, o noticiário sobre a COP30 me levou de volta a um filme de Bruno Murtinho, Amazônia Groove, lançado em 2018. Foi há dois anos que tomei conhecimento desse documentário sobre a variedade da produção musical no Pará. Querendo em 2023 realizar, pela primeira vez, um Festival de Cinema Brasileiro em Kuala Lumpur, decidi apresentar ao público malásio uma retrospectiva de Kleber Mendonça Filho. Tive a sorte de contar na Malásia com uma equipe excepcionalmente competente, inclusive meu colega Marcelo Hasunuma, que me ajudou a montar o Festival do zero, por ser uma iniciativa inédita. Foi ele quem me convenceu a incluir na programação, além de filmes do diretor recifense, também Amazônia Groove para inaugurar o Festival.

Na sessão de abertura, o convidado de honra foi o ministro de Turismo, Indústria Criativa e Artes Cênicas do estado de Sarawak, Abdul Karim bin Rahman Hamzah. Sarawak, situado na ilha de Bornéu, ocupa uma área equivalente à da Inglaterra. Produz 30% do petróleo malásio e preserva a maior cobertura de floresta nativa no país. Suas importações de produtos agropecuários são supervisionadas por serviços próprios, independentes dos da Malásia continental. Sentado ao meu lado, o ministro Abdul Karim viu na tela igarapés, a floresta, populações ribeirinhas, o Ver-O-Peso. Tomou conhecimento de estilos musicais como carimbó e tecnobrega. Ouviu o violão de Sebastião Tapajós tocar no Teatro da Paz e Dona Onete cantar “Banzeiro” em um barco. Em O turista acidental, leio que a palavra significa “movimento agitado das águas, quando o navio passa e deixa a esteira violando a mansidão do rio”.

Ao terminar o filme, o ministro virou-se para mim e exclamou, surpreso: “A Amazônia lembra demais Sarawak!”. Se eu tivesse relido Mário de Andrade antes do filme, teria citado a Abdul Karim a brincadeira de que Belém fora fundada por malaios. 

A realização da COP30 em Belém gerou críticas, por causa do custo da hospedagem. Não consigo imaginar, porém, onde mais, no Brasil, a reunião poderia ter acontecido, pelo peso simbólico daquela cidade, situada na vasta desembocadura do rio Amazonas. Como disse ao início da reunião o presidente Lula, nas duas semanas seguintes Belém seria “a capital do mundo”, ajudando a mostrar que a Amazônia é uma realidade, e não uma abstração.  

Mário de Andrade, então com 33 anos, conta que, em Porto Velho, explicou a um interlocutor local que ele e seus companheiros de viagem “éramos um grupo de amigos paulistas, curiosos de conhecer outros brasis, pela vaidade ou ventura de conhecer coisas”. Assim é nosso país, composto de tantos “brasis”, que apenas parcialmente conseguimos percebê-lo.

Como o poeta há cem anos, muitos dos 56 mil participantes da COP30 terão se apaixonado por Belém. Preparo estas palavras na reta final da Conferência, e os delegados estarão partindo quando elas forem impressas. Um primo mineiro, que participou na primeira semana, me escreve: “Gostei de Belém, gostei da COP. O saldo é positivo. No meu último dia, passeei um pouco pela cidade, foi ótimo. Talvez eu nunca tivesse ido lá se não fosse a COP”.

Afinal, uma conferência internacional serve também para isto: para revelar a multiplicidade de “brasis” não somente aos estrangeiros, mas também a nós brasileiros.

Coluna publicada no Estado de Minas ontem, 22 de novembro

Algumas de minhas colunas anteriores no Estado de Minas:

O casamento em Berdichev, 8 de novembro

As pedras do Louvre , 25 de outubro

O Sudeste Asiático e suas verdades, 11 de outubro

Cem anos na Ásia do Leste, 27 de setembro

O embaixador decapitado, 2 de agosto

O espaço do diplomata, 19 de julho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

O presente malásio, 12 de abril

Grandes diplomatas, 15 de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

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O casamento em Berdichev

O casamento em Berdichev

Minha mãe, Thereza Quintella, durante nove anos morou em São Conrado. Quando eu me hospedava com ela, cada vez que saía ou voltava a casa via uma rua vizinha à sua chamada Gabriel Garcia Moreno. Parecia-me estranho que o Rio de Janeiro homenageasse um dos mais autoritários presidentes do Equador, ultraconservador e ultramontano.

Garcia Moreno morreu assassinado em 1875. Chegava ao palácio presidencial, vindo da missa na catedral, situada na mesma praça, quando foi atacado a tiros e punhaladas. Juan Montalvo, escritor então exilado, opositor do presidente, publicara poucos meses antes um panfleto contra ele, A ditadura perpétua. Ao saber do assassinato, exclamou: “Minha pluma o matou”. Conto essa história em meu livro Geografia do tempo (2024), como exemplo do poder que a palavra escrita já possuiu.

Voltaire foi um precursor nesse gênero de visibilidade. Sua celebridade era de alcance europeu. Seu Tratado sobre a intolerância levou à reabilitação do nome de um condenado à morte, executado por um crime que não cometera. O retorno do escritor a Paris pouco antes de morrer, em 1778, após uma ausência de 28 anos, foi uma apoteose, assim como a transferência, em 1791, de seus restos mortais ao Panteão.

Durante todo o século XIX, os escritores mais famosos exerceram algum tipo de poder, não político — embora Chateaubriand e Lamartine tenham sido ministros das Relações Exteriores da França — mas sobre a mente de seus leitores. A fama de Balzac era tão forte que a condessa polonesa Evelina Hanska, nas suas terras situadas no outro lado da Europa, no que é hoje território ucraniano, ficou apaixonada pelos seus livros. Enviou-lhe cartas e, dezoito anos depois, poucos meses antes da morte de Balzac, casou-se com ele.

A cerimônia realizou-se em 1850, na cidadezinha de Berdichev, na Ucrânia. Tudo isso parece tão fantasioso que Tchekhov, na peça As três irmãs (1900), faz um de seus personagens murmurar, enquanto lê o jornal: “Balzac casou-se em Berdichev” e anotar a informação. Se Balzac, o mais famoso romancista francês da sua geração, se casou no que era então o interior do Império russo, então as coisas mais surpreendentes podem acontecer em uma existência humana. Em 1857, Joseph Conrad nasceria em Berdichev.

Nenhum escritor, hoje, poderia almejar um grau de popularidade semelhante ao usufruído, em vida, por Victor Hugo. Raul do Rio Branco, em suas Reminiscências do barão do Rio Branco (1942), conta como ele e seu pai, o Barão, testemunharam em Paris, em 1885, o velório público do escritor. O catafalco estava exposto sob o Arco do Triunfo e “a multidão a pé e de carro enchia os Champs-Elysées até a Étoile”. Opina o diplomata: “não creio que a nenhum outro homem se tenha feito vigília mortuária tão imponente e grandiosa”.

É o caso de se indagar qual é o sentido ainda de escrever, se o impacto causado por Byron, Balzac, Victor Hugo, Dickens, Tolstói, Castro Alves enquanto eram vivos não pode mais ser replicado. Entre os escritores da atualidade, lembro apenas de Salman Rushdie, com a glória e o pesadelo de ter uma fatwa proclamada contra si, como capaz de despertar paixões. As mais demonstrativas dessas paixões, porém, não podem ser categorizadas como de admiração.

Um dia, perguntei a um amigo como estava sua família. A resposta incluiu a frase: “meu filho deixou de ser artista plástico”. Isso me pareceu estranho. Ninguém “está” artista, ninguém “deixa” de ser artista. A pessoa é artista ou não é. Se a arte não é de qualidade, seu praticante, se tiver bom senso, deixará de expô-la, mas se sente o ímpeto de criar, não deixará de fazê-lo. Da mesma forma, o verdadeiro escritor pode escrever apenas para si mesmo, sem preocupação de ter seus textos divulgados, mas não se obriga a escrever contra a sua vontade — escreve porque precisa escrever.

Mais relevante do que a indagação sobre se vale a pena escrever é analisar se é útil publicar. Entendo que alguém escreva e prefira nunca vir a público. Há muitos motivos para essa decisão, inclusive a crença de que tudo já foi dito, tudo já foi escrito, de que nunca mais haverá um talento como o de Machado de Assis. Faz sentido não querer causar o derrubamento de mais uma árvore para lançar um livro que poucos, se tanto, lerão.

Mas justamente, o importante é não esperar ser um novo Machado de Assis. Machado existiu, escreveu uma obra única, seus livros continuarão a viver. Cada um deve buscar a sua voz própria.

Há um ano, muitos desses pensamentos me ocupavam. Em outubro de 2024, em Kuala Lumpur, decidi abruptamente passar um fim de semana na ilha de Langkawi. Não viajei sozinho. Levei comigo a versão final de Geografia do tempo, que eu precisava corrigir, estando sua publicação prevista, no Rio de Janeiro, para algumas semanas depois. Àquela altura, revisar o meu texto, em um exercício que já durava um ano — o livro deveria ter saído no final de 2023; mas eu mudara de editora, e o processo recomeçara — soava como uma atividade infinita e exaustiva.

Rebelei-me. Isolado em uma praia no Mar de Andaman, rejeitei a vaidade envolvida no ato de publicar. Julguei que a desistência seria uma alternativa legítima. Só persisti por causa das pessoas que mais amo. Percebi que, tendo chegado tão perto da reta final, não devia decepcioná-las. Com o Sol na cabeça, peguei o trem azul.

Passado um ano, Geografia do tempo mudou a minha vida, mudou a maneira de eu pensar. Trouxe-me novos amigos. Gerou muitas alegrias, culminadas com a sua seleção, agora em outubro, como finalista do Prêmio Jabuti.

Afinal, Balzac casou-se em Berdichev.

Coluna publicada no Estado de Minas ontem, 8 de novembro

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

As pedras do Louvre , 25 de outubro

O Sudeste Asiático e suas verdades, 11 de outubro

Cem anos na Ásia do Leste, 27 de setembro

O delírio do Chimborazo, 13 de setembro

O diplomata robô, 30 de agosto

Botas diplomáticas, 17 de agosto

O embaixador decapitado, 2 de agosto

O espaço do diplomata, 19 de julho

Cenários do poder, 5 de julho

Memória diplomática, 21 de junho

Batuque na cozinha, 7 de junho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

Retrato de família, 10 de maio

Benção apostólica, 26 de abril

O presente malásio, 12 de abril

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

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