O diplomata robô

O diplomata robô

No final de junho, em Luanda, foi inaugurado o novo edifício da embaixada da China. É um prédio colossal e funcional. Conheço muitas das embaixadas brasileiras. Nenhuma lhe pode ser comparada, em termos de área.

Na recepção de inauguração, o embaixador da China mencionou haver em Angola quatrocentas empresas chinesas e investimentos de seu país da ordem de 25 bilhões de dólares. São números impressionantes. O embaixador anunciou que o objetivo da China, agora, é passar a cooperar com Angola em áreas novas e novíssimas, como energias renováveis e inteligência artificial.

E justamente, em um pátio externo, havia demontrações do avanço tecnológico chinês. Um carro elétrico superinteligente, com modelo avançado de integração digital, chamava a atenção dos convidados. Não tanto a minha, porque considero automóveis apenas máquinas úteis. Alguém ao meu lado, mais entusiasmado, comentou: “É o tipo de carro que pode andar e estacionar sozinho”.

Notei um grupo fazendo círculo. Aproximei-me. No centro, um robô humanóide tagarelava, feliz, em português. Respondia sem hesitação a qualquer pergunta, dialogava com serenidade, em tom amistoso. Despertava curiosidade e provocava sorrisos nos convidados. Falei “boa noite”. Ele se virou, veio até mim, estendeu-me a mão. Apresentou-se. Seu nome era Mateus. Conversamos. Perguntei como estava, o que achava de Luanda, se suportava bem o clima seco e invernal desta época do ano, conhecido como cacimbo.

Quem imagina a África subsaariana como um continente de clima sempre quente se engana. Como no Sul e no Sudeste do Brasil, o termômetro tem caído em Luanda, sobretudo à noite. Ao longo do dia, fica agradável, mas pode haver vento gelado. Lembro as temperaturas que durante anos seguidos vivenciei, em julho, na Zona da Mata em Minas Gerais.

Mateus revelou-se um verdadeiro diplomata. Respondia às minhas perguntas com educação e de forma a agradar a qualquer um dos presentes que escutavam nosso diálogo. Podia ser um humanóide mas, ao contrário de muitos humanos, não demonstrava qualquer propensão à violência, à agressividade, à ironia ferina.

Algo porém me intrigava, a sua forma de falar. Perguntei-lhe: “Você é brasileiro?”. Ele se surpreendeu, não confirmou nem negou. Reagiu indagando por que eu pensava aquilo. Expliquei que o seu sotaque parecia o de um compatriota. Na verdade, era um nítido sotaque do norte do Paraná ou interior de São Paulo. Sempre diplomático, rodeado de autoridades angolanas que ouviam a nossa conversa, e não querendo ferir nenhuma sensibilidade, Mateus retrucou, amavelmente, que seu português era “neutro” e não podia ser atribuído a uma nacionalidade específica. A essa altura, minha mulher, que é curitibana, juntara-se ao grupo onde o diálogo transcorria. “Você tem certeza de que não é de Guarapuava?”, perguntou ao robô.

Despedimo-nos de Mateus para ir ao salão onde o bufê era servido. Enquanto alguns convidados se dirigiam diretamente às mesas carregadas de pratos da culinária chinesa, passeamos pela sala. Canais de televisão iam de uma a outra autoridade local. Um ministro explicava à imprensa que o comércio bilateral, em 2024, atingiu o volume de 24 bilhões de dólares, sendo a China o maior parceiro comercial de Angola e principal investidor estrangeiro no país, excluindo-se o setor petroleiro, onde ainda predominam França, Estados Unidos e Reino Unido. Ouvimos outro ministro declarar exatamente o que estávamos pensando: “Um país que constrói uma embaixada deste tamanho é porque veio para ficar, porque confia no futuro de Angola”.

Poucos dias depois, viajei de férias por uma semana, para fazer em Singapura, no Festival de Arquitetura, uma palestra sobre Roberto Burle Marx, tema de que tratei em coluna anterior, “O espaço do diplomata”. Tanto na escala em Kuala Lumpur como em Singapura, ouvi de meus amigos asiáticos a pergunta “Que tal Angola?”. Essa é uma indagação natural quando revemos alguém com quem convivíamos e que partiu para um país que não conhecemos.

Se há algo que os países do Sudeste Asiático compreendem bem, é o peso geopolítico, a eficiência, a objetividade da China, sua vizinha. Considerei, assim, que a maneira mais ilustrativa para definir Angola junto aos meus interlocutores malásios e singapurenses seria mencionar a dimensão da presença chinesa, os investimentos, a sua nova embaixada em Luanda, o número de empresas, o volume de comércio. Ouvindo-me desfiar esses dados, entenderam meus amigos a importância que a China atribui à África e, neste caso mais especificamente, a Angola.

De regresso da Ásia, jantei na casa do embaixador da China. Sondei quantos diplomatas trabalham na embaixada. São 28, sem contar o proprio embaixador e o numeroso pessoal de apoio. De novo, nenhuma embaixada brasileira é tão grande, em termos de pessoal diplomático.

Perguntei por Mateus. Respondeu o embaixador que ele já estava de volta à China. Entendi então plenamente o sentido da celebração pela inauguração da embaixada. Ao contrário do que podem pensar os inocentes ou os maldizentes, uma recepção diplomática nunca é apenas uma festa. É sempre mais uma ocasião de atingir um objetivo político.

O novo prédio demonstrara para os angolanos e para o corpo diplomático estrangeiro como a China vê Angola. Esclarecera que este não é um país banal para a diplomacia chinesa, mas constitui uma ambiciosa aposta no futuro. Ao mesmo tempo, o carro superinteligente e o robô haviam sido uma evidência palpável, para os convidados, do avanço tecnológico, da modernidade da China. Provaram, se é que isto ainda era necessário, que a intenção chinesa de participar do desenvolvimento econômico de Angola é baseada em uma capacidade real, não em promessas insustentáveis.

Deduzi que, de fato, a presença de Mateus na embaixada já não era necessária. Sua curta missão diplomática em Luanda pudera ser concluída. Fora eficazmente cumprida.

Mateus na embaixada da China.

Essa é a minha coluna no jornal Estado de Minas publicada ontem, 30 de agosto.

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

Botas diplomáticas, 17 de agosto

O embaixador decapitado, 2 de agosto

O espaço do diplomata, 19 de julho

Cenários do poder, 5 de julho

Memória diplomática, 21 de junho

Batuque na cozinha, 7 de junho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

Retrato de família, 10 de maio

Benção apostólica, 26 de abril

O presente malásio, 12 de abril

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

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O espaço do diplomata

O espaço do diplomata

Recebi o convite em janeiro. O Festival de Arquitetura de Singapura, evento anual patrocinado pelo Singapore Institute of Architects, queria que eu fizesse uma apresentação sobre Roberto Burle Marx. Hesitei. O Festival seria em junho, quando eu já não estaria na Malásia mas em Angola, longe do Sudeste Asiático. O Festival insistiu. Pensei que eu não deveria deixar passar uma nova oportunidade de divulgar o nome do grande paisagista brasileiro. Aceitei.

Em uma coluna nestas páginas publicada em fevereiro, “Da Pampulha para Kuala Lumpur”, falei do jardim projetado por Burle Marx na capital malásia e do livro Um brasileiro em Kuala Lumpur: Roberto Burle Marx e o Parque KLCC. Resultado particularmente tangível do meu trabalho como embaixador na Malásia, o livro serviu ao meu propósito de tornar o Brasil e seus maiores talentos mais conhecidos naquele país.

Cada edição do Festival de Arquitetura de Singapura é organizada por um arquiteto diferente. Este ano, a tarefa coube a Rene Tan, cujo estúdio é responsável pelo conjunto residencial que considero o mais espetacular de Kuala Lumpur, o Fennel, com o qual ganhou vários prêmios internacionais.

Seminários de três dias, com multiplicidade de palestras, mesas-redondas e estandes são como a batalha de Waterloo na forma descrita por Stendhal em A Cartuxa de Parma. Muita coisa acontece ao mesmo tempo, em diferentes lugares, e captamos somente aquilo que está ao alcance mais imediato do olhar. Apenas Rene Tan, que durante três dias circulou incessantemente de um lado a outro, terá podido avaliar o resultado final do Festival. Para os palestrantes, restava o privilégio de estar ali, no Centro de Convenções do icônico Marina Bay Sands, símbolo arquitetônico de Singapura por excelência. 

No painel de que participei, Alexander Wong, de Hong Kong, que eu já conhecia, expôs sua atividade como projetista de salas de cinema na China, com desenho futurista arrojado, em trabalhos amplamente elogiados pela imprensa ocidental. Em outro painel, o indiano Ambrish Arora explicou como, ao criar um hotel em Jodhpur, no Rajastão, na base da montanha onde sobressai o Forte de Mehrangarh, edificado entre os séculos XV e XVII, levou em conta a necessidade de não destoar da arquitetura histórica dos arredores mas evitar, ao mesmo tempo, um pastiche. No dia seguinte, no café da manhã no hotel, descobriríamos uma amizade em comum, André Corrêa do Lago, presidente da COP30 e membro do júri do Prêmio Pritzker.

Renata Furlanetto incluíra em sua fala uma foto do Palácio do Itamaraty, com o jardim aquático em evidência, idêntica a uma imagem que eu mostraria mais tarde em minha apresentação. Apontei não ser coincidência os dois brasileiros presentes no Festival exibirem um prédio que é, na conjunção da arquitetura de Oscar Niemeyer e do paisagismo de Burle Marx, um marco do modernismo brasileiro. Mostrar e ver em Singapura a sede da diplomacia brasileira, neste momento de tensões e incertezas geopolíticas, trouxe-me reconforto. A sua própria solidez parecia uma garantia de continuidade e equilíbrio.

Teria gostado de assistir a mais palestras no Festival. Perdi a de uma grande estrela, o japonês Riken Yamamoto, ganhador do Pritzker em 2024. Jantando com alguns dos participantes, conversei com o austríaco Dietmar Eberle. Sediado em Bregenz, ele me explicou que o grau de prosperidade da sua região geográfica é exemplificado pelo número elevado de museus de arte contemporânea ali abrigados. Por esse cálculo, os milionários brasileiros precisam ainda desenvolver a filantropia na área da museografia — e em tantas outras —, mas minha primeira reação foi pensar no fato extraordinário de Inhotim existir no Brasil.

Ao final do painel de que eu participava, o moderador, Calvin Chua, retomando o tema do Festival este ano, “Não pense (apenas) como um arquiteto”, perguntou o que nós, os quatro debatedores, sugeriríamos ao público como forma de pensar. Ofereci que pensassem como um diplomata. O diplomata um dia edita um livro sobre Burle Marx, no outro negocia um acordo internacional, mas seu objetivo final não varia ao procurar sempre promover a conciliação entre interesses por vezes distintos. Precisa, idealmente, desenvolver uma atitude serena, paciente, zen, no fundo bastante asiática, se quisermos usar um clichê. Seria útil para todo mundo cultivar um temperamento assim no dia a dia.

Uma pergunta da plateia sondou como lidar com o conceito de espaço. Melhor indagação impossível, em um festival de arquitetura. Decidi responder falando do espaço a ser almejado pelo diplomata. A questão que se coloca para mim, ao trabalhar no exterior, é como me inserir na sociedade local para influenciá-la em favor do Brasil. A defesa dos interesses e da imagem do seu país constitui, por definição, o espaço do diplomata. É no cumprimento desse dever, e não na expectativa de reconhecimento, que encontramos o propósito e a gratificação da vida profissional.

A palestra em Singapura permitiu-me incluir curtas estadas, na ida e na volta, em Kuala Lumpur. Foi maravilhoso rever amigos nas duas cidades, nessa intensa viagem de uma semana. No último dia, uma jornalista malásia me perguntou se voltar ao Sudeste Asiático, de onde eu partira em fevereiro, me causava nostalgia. Respondi com sinceridade que não. Meus cinco anos em Kuala Lumpur foram perfeitamente felizes. Voltar menos de cinco meses depois proporcionara momentos mágicos. Mais importante do que o espaço exterior, contudo, é o espaço interno.

Esse começa vazio, enorme, infinito. Gradualmente, como pedras ou tijolos em uma construção física, família, amigos, lugares, livros, obras de arte, o tempo e a memória vão construindo um edifício. Onde eu estiver, ele sobrevive, continuamente acrescentando andares, mais sólido do que qualquer arranha-céu, casa ou gabinete.

Coluna publicada no jornal Estado de Minas ontem, 19 de julho.

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

Cenários do poder, 5 de julho

Memória diplomática, 21 de junho

Batuque na cozinha, 7 de junho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

Retrato de família, 10 de maio

Benção apostólica, 26 de abril

O presente malásio, 12 de abril

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

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