A Partida

A Partida

Ao longo de 2019, notei que frequentemente eu me indagava sobre os livros que escritores levam em suas viagens. Vinha naturalmente à minha mente a curiosidade sobre que volumes são colocados na bagagem na hora da partida talvez definitiva, da travessia arriscada, da ruptura com o passado.

Escrevendo em O Mar por toda parte sobre o Padre Antonio Vieira, procurei ver se, na sua correspondência, ele especificava com que volumes embarcaria em uma de suas sete travessias do Oceano Atlântico ou levaria em suas andanças pelo Norte e pelo Nordeste do Brasil. Encontrei apenas, na antologia de suas cartas que retirei da casa de praia de meus sogros, este trecho, escrito por ele no Maranhão em 1653: “Sabei, amigo, que a melhor vida é esta. Ando vestido de um pano grosseiro cá da terra mais pardo que preto; como farinha de pau; durmo pouco; trabalho de pela manhã até à noite; gasto parte dela em me encomendar a Deus; não trato com mínima criatura; não saio fora senão a remédio de alguma alma; choro meus pecados; faço que outros chorem os seus; e o tempo que sobeja destas ocupações, levam-no os livros de Madre Teresa e outros de semelhante leitura”, referindo-se a Santa Teresa de Ávila.

Relendo o Diário de Etty Hillesum, fiquei fascinado em descobrir, como mencionei em O encontro de Avignon, que ela planejava colocar na mala, quando fosse deportada para Auschwitz, a Bíblia, sua gramática russa, O Idiota, Rilke e os contos populares de Tolstoi. Em O leitor irresponsável, registrei que o patriarca de Iasnaia Poliana, ao fugir de casa na madrugada de 28 de outubro de 1910, naquela que seria sua última viagem, encomendou à filha que se juntaria a ele seus exemplares de Os Irmãos Karamazov, os Essais de Montaigne, o romance Une Vie, de Maupassant, além do livro espiritual de um autor russo, P. P. Nikolayev.

Apenas no final de novembro racionalizei que minha curiosidade era causada pelo fato de que logo eu também ficaria privado, por alguns meses, de minha biblioteca. Soubera, em março, que em algum momento eu partiria para viver e trabalhar na Ásia. A partida está marcada para agora em janeiro, e a mudança chegará à Malásia meses depois. A rigor, eu não precisaria levar livro algum na mala. Desde muito cedo, um de meus grandes talentos é o de constituir rapidamente, onde quer que eu esteja, mesmo que lá esteja por poucos dias, uma pequena biblioteca. Os livros que eu já conheço, que já me pertencem são porém um reconforto. Tirar das estantes alguns de meus amigos, fazê-los viajar comigo tornará a nova vida, por enquanto desconhecida, imediatamente assimilável.

A questão que se coloca é definir que volumes receberão a missão de, com sua presença, tornar tudo natural, normal, previsível, além de se prestarem a ser lidos “no tempo que sobeja a estas ocupações”, à noite, após o trabalho. A empresa de mudança já se apossou de nossa casa; o tempo é limitado para grandes indagações. Além disso, minha mulher, também por razões profissionais, irá morar em Singapura, e isso significa que a biblioteca será dividida. São portanto duas decisões importantes: que livros viajarão comigo no avião, e quais ficarão de cada lado dos Estreitos de Johor. A segunda decisão foi tomada rapidamente, de forma consensual. A primeira é a mais difícil.

Sem dúvida, o candidato principal a viajar na minha mala é o volume de obras de Georges Duby lançado em setembro pela Gallimard, em sua prestigiosa coleção da Pléiade. Duby foi um medievalista prolífero. Hoje vejo que, embora eu o lesse com afinco no final da adolescência e nos anos subsequentes, perdi muito de sua produção intelectual. Poder abordá-lo agora, com as notas, os ricos comentários habituais na Pléiade é ter dele uma nova visão. O editor do volume é um historiador brasileiro, Felipe Brandi. Vários autores não-francófonos fazem parte do catálogo da Pléiade, inclusive Jorge Luis Borges e, em rara homenagem a um autor vivo, Mario Vargas Llosa. Nenhum escritor brasileiro, até hoje, recebeu a consagração das letras que a entrada na coleção representa. A edição esmerada, preparada com rigor por Felipe Brandi, dos textos de Duby, incluindo a longa introdução que redigiu em francês, é o mais perto a que já chegamos.

Para quem estuda História, e gosta dos livros densos e analíticos, porém claros, de Duby, os romances históricos podem parecer ou fascinantes ou desprezíveis. Tudo dependerá da habilidade do escritor, da seriedade com que estudou a época retratada e da luz que joga sobre personagens reais. Neste exato momento, estou mergulhado na leitura de um romance histórico e epistolar cativante, que irá na mala comigo para a Malásia, Augustus, de John Williams. Eu nunca ouvira falar no livro até 2019, quando Cora Ronai me deu de presente a tradução para o português lançada no Brasil em 2017 pela editora Rádio Londres. Fiquei curioso e comprei às vésperas do Ano Novo, na Livraria da Travessa de Ipanema, o original em inglês. Às voltas com a mudança, não tenho podido ler tanto, mas mesmo que eu consiga terminar o livro antes de viajar, ele virá comigo.

Augustus é uma biografia romanceada do primeiro imperador romano. Compõe-se de cartas e memórias fictícias de contemporâneos seus, por meio das quais vamos formando ideias, às vezes contraditórias, sobre sua personalidade. Ao mesmo tempo, cada missivista possui, na criação de John Williams, um modo próprio de pensar, de escrever, de ser, e assim as cartas de Cícero, Lívia, Marco Antonio, o diário de Julia, as memórias de Agripa revelam vozes individuais, coerentes, muito distintas umas das outras.

Susan Sontag — ela mesma autora de um romance histórico pelo qual sinto enorme carinho, The Volcano Lover —  escreveu em 2001: “The literature of the second half of the twentieth century is a much traversed field and it seems unlikely that there are still masterpieces in major, intently patrolled languages waiting to be discovered“. Esse conceito, de que as obras-primas da segunda metade do século XX já foram todas descobertas, é uma afirmação que talvez só Sontag teria tido a ousadia de fazer. Ela própria, aliás, nega sua veracidade em seguida. A frase é a primeira da introdução preparada pela escritora para uma edição em inglês de um livro russo de 1982, Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsipkin, que li há alguns anos. A segunda frase da introdução de Sontag diz: “Yet some ten years ago I came across just such a book“, que é o de Tsipkin. Verão em Baden-Baden, publicado no Brasil em 2003 pela Companhia das Letras, mistura aspectos da vida de Dostoiesvki durante seu segundo casamento, com Anna Grigorievna — incluindo a famosa e desastrada conversa com  Turgueniev na cidade alemã — com a vida do narrador, que é Leonid Tsipkin.

Leonid Tsipkin

Ao contrário de Susan Sontag, acredito ter ainda muito a descobrir sobre as “obras-primas da segunda metade do século XX”. Leio John Williams pela primeira vez e não questiono por que não o fizera ainda. Simplesmente, ele não surgira no meu caminho.  A obra de Williams, morto em 1994, é mais apreciada hoje do que enquanto ele era vivo. No Ano Novo, o namorado de minha filha, que é belga, ao me ver no Rio com Augustus nas mãos, comentou: “você está lendo John Williams… está gostando? Li Stoner há alguns anos. É um livro incrivelmente triste. Aliás, entra em toda lista de livros tristes”. Augustus não é triste, e sim uma indagação sobre como mudamos ao longo do tempo, sobre o que fazemos de nossas vidas mas, ao mesmo tempo, sobre como a vida nos molda. Na edição que comprei, há uma introdução de Daniel Mendelsohn, festejado autor de An Odyssey: a Father, a Son and an Epic, onde ele diz que os romances de Williams examinam como “whatever our characters may be, the lives we end up with are the often unexcepted products of the friction between us and the world itself”.

Um terceiro livro que eu tencionava levar na mala para Kuala Lumpur era uma História da Malásia, que li em 2019 e teria sido útil nas primeiras semanas de instalação no país. Mudanças porém possuem ritmo próprio, e não separei o volume a tempo. Já no primeiro dia ele foi embalado, e para Singapura, junto com uma pilha de livros que descansavam pacificamente sobre uma mesa no escritório.

Há assim um lugar a ser ocupado. Surge a dúvida: prefiro um amigo antigo, possivelmente já lido várias vezes, e cuja companhia é garantia de bem-estar, ou um dos muitos novos que esperam ainda despertar o meu interesse? Às vezes, um livro fica anos na estante ou na mesa de cabeceira, ignorado. Um dia, de repente, sentimos que precisamos lê-lo, que precisamos daquele volume naquele momento para ser felizes. Ele é aberto, devorado, e percebemos que a vida mudou.

Durante anos, levei comigo ao embarcar em aviões uma seleção de bolso, leve, de cartas de Voltaire. Foi sempre uma excelente companhia, por causa da inteligência e da verve voltairianas. O hábito de viajar com textos do filósofo possui, aliás, precedente ilustre. Em uma carta de 1775 a Frederico, o Grande, Voltaire agradece a informação que dele recebera de que “se digna viajar com minhas pobres obras” (“mes faibles ouvrages“). O convívio dos dois na Prússia, de julho de 1750 a março de 1753, passado o fascínio mútuo inicial, fora turbulento. Voltaire e Frederico separaram-se em maus termos e nunca mais se viram. Mantiveram, porém, uma correspondência amistosa. Talvez a seleção de cartas do filósofo volte a fazer parte de minha bagagem.

E por que não um quarto livro, sobretudo sendo o Voltaire tão leve? Há poucas semanas, comprei o Lezioni americane de Italo Calvino. Publicado postumamente em 1988, o volume contém as palestras que, se não tivesse morrido em setembro de 1985, Calvino teria dado em Harvard entre 1985 e 1986, como o convidado naquele período letivo para as prestigiosas “Charles Eliot Norton Lectures”. Ao folhear os ensaios na livraria, caí na seguinte frase, no início da segunda palestra: “L’imperatore Carlomagno in tarda età s’innamorò d’una ragazza tedesca“. Essa é a habilidade do escritor, iniciar uma conferência sobre literatura, destinada a um ambiente acadêmico, narrando “una vecchia leggenda“. Funcionou comigo. Comprei o livro. Desejo lê-lo.

Calvino trabalhava nas seis palestras ao morrer. Na apresentação de Lezioni americane, sua viúva, Ester Calvino, ela mesma falecida em 2018, nos diz que o escritor, ao partir, deixou os textos datilografados sobre a escrivaninha, “in perfetto ordine“. Cada conferência se encontrava em uma pasta transparente, e todas juntas em uma pasta dura. O conjunto estava “pronto per essere messo nella valigia“. Pode-se dizer que esse é o livro que ele levou consigo em sua última viagem.

Aqui em casa, parte da biblioteca vai para Singapura. A parte que vai para Kuala Lumpur não voltará a estar acessível antes de março, abril. A biblioteca porém já está em mim. Somos a soma de tudo o que aconteceu, de tudo o que fizemos ou pensamos, de tudo o que as pessoas ao nosso redor pensam ou fazem. Somos também a soma de tudo o que já lemos, de todos os livros que já tivemos nas mãos.

Minha mulher me acompanhará até Kuala Lumpur, em seu trajeto até Singapura. Nossa gata persa, Kiki, virá junto. Companhias melhores, impossível. John Williams, Augusto, o Duby da Pléiade, Voltaire, Italo Calvino e todos os autores de que ele fala e Carlos Magno e sua “ragazza tedesca” são o bônus. Como todas as pessoas de quem eu gosto, eles já estão em mim.

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(Este ensaio foi primeiro publicado, em 10 de janeiro, na revista literária São Paulo Review)

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Um lugar encantado

Um lugar encantado

Quando viajo, costumo organizar rapidamente no quarto de hotel uma pequena biblioteca. Ando pelas ruas, entro nas livrarias que vejo ao acaso e raramente saio de mãos vazias. Mencionei, em postagem anterior, Seis livrarias, que estas surgem frente a mim como num passe de mágica. Pisco os olhos e lá está uma. É como em um conto das Mil e Uma Noites, e o tesouro que aparece do nada é uma livraria.

Em Paris, em julho de 2018, comprei um guia das livrarias de Paris, lançado no final de 2016 por François Busnel.

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Se você assistiu ao último filme de Roman Polanski, Baseado em Fatos Reais (D’après une histoire vraie), você sabe quem é François Busnel. O filme é inspirado de um romance de Delphine de Vigan publicado em 2015, com elementos autobiográficos. No romance, como no filme, o personagem principal, que também se chama Delphine, é uma escritora que namora um jornalista, apresentador de um programa literário na televisão, chamado François, inspirado em Busnel.

Delphine de Vigan é a companheira de François Busnel. Ele apresenta, no canal France 5, desde 2008, um excelente programa sobre livros, La Grande Librairie. No formato usual, Busnel convida uns poucos escritores para falarem de seus livros mais recentes, todos sentados em poltronas dispostas em volta de uma mesa de centro. Os móveis são contemporâneos. O cenário é colorido e visualmente atraente. São convidados a participar romancistas, às vezes historiadores, filósofos ou poetas. Ocasionalmente, o apresentador viaja ao exterior e entrevista escritores do país visitado. Busnel é particularmente fascinado com a literatura americana. La Grande Librairie costuma também focalizar, em cada edição, em poucos minutos, uma livraria específica, em Paris ou na província, entrevistando o proprietário. Recomendo fortemente o programa — acessível pela Internet — conduzido pelo apresentador com entusiasmo contagiante.

Comprei Mon Paris littéraire em uma das livrarias descritas pelo autor, Les Cahiers de Colette, na rue Rambuteau, perto do Beaubourg. Essa é, no meio literário parisiense, uma livraria mítica. A proprietária, Colette Kerber, sentada no caixa, disse-me, com simplicidade e modéstia, quando fui pagar o livro de Busnel: “Ele fala na minha livraria, nesse guia”.  Achei encantador o tom casual com que o comentário foi feito.

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Busnel nos informa que o painel de fotografias, “parte já da história parisiense”, mostra escritores admirados por Colette Kerber. Olhando rapidamente, reconheço Kafka, Beckett, abaixo dele Jean Genet e Cortázar com seu gato. Abaixo dos dois, à direita, na foto grande, Jacques Roubaud, escritor infelizmente pouco conhecido fora da França e membro do grupo literário OuLiPo. O segundo à direita de Beckett é Walter Benjamin. Entre os dois, parece estar Lacan. Proust está no topo, na foto mais à direita, que infelizmente cortei pela metade. Na foto pouco nítida logo abaixo da de Proust, sabemos que no grupo de quatro homens aparecem Paul Éluard e André Breton, porque seus nomes estão escritos. À esquerda de Kafka, Freud sobe a bordo de um avião, em uma foto meio tenebrosa. Acima de Beckett, ao lado de Freud, está o poeta René Char. O homem na foto grande acima de Char, com ar profundamente inteligente, me pareceu primeiro ser Italo Calvino, que era também membro do OuLiPo. Olhando atentamente, vejo tratar-se na verdade do sociólogo Pierre Bourdieu. Minha imaginação me fez ver Italo Calvino porque, desde a infância, penso nele com frequência. Como no caso das livrarias, fotos e edições de livros de Calvino costumam aparecer magicamente diante dos meus olhos.

O manual de François Busnel é dedicado “a D., minha parisiense”, em clara homenagem a Delphine de Vigan. Divide-se por arrondissements. Além de falar das livrarias, o autor indica, nas redondezas, locais de predileção ou residências de escritores célebres, jardins onde ler, bares e restaurantes onde descansar da busca por livros e, em uma página que abri ao acaso, até mesmo o endereço de um barbeiro —Desfossé, na avenue Matignon, número 19 — porque lá há uma biblioteca para os clientes.

Trata-se, em resumo, do roteiro do dia-a-dia de François Busnel, cujo trabalho — oh, pessoa feliz! — é justamente frequentar livrarias, conhecer autores, ler livros, preparar seu programa semanal na televisão. Como ele mesmo diz no prefácio, sem livrarias “Paris não seria exatamente Paris”. Segundo ele, há na França — país que é, pela dimensão territorial, metade de todo o estado do Pará — 3.260 livrarias independentes, o que considera “indispensável para o reforço dos laços sociais. Não há democracia sem excelentes livrarias”.

A rue de Richelieu é uma das mais citadas por Busnel. Isso é normal, porque a rua, situada no 1er e no 2ème arrondissements, situa-se no coração da cidade. Desemboca na praça onde estão o Palais-Royal e seu jardim, a Comédie-Française e sua loja, a livraria Delamain — que pertence à editora Gallimard — vários cafés, o excelente restaurante do Hôtel du Louvre e, um quarteirão depois, o próprio Museu do Louvre e o jardim das Tulherias. Denominada place Colette — pois a escritora morava ali, em um apartamento no Palais-Royal — e prolongada pela place André Malraux, a praça, a meu ver, é o centro nevrálgico da cidade, e dela já falei na postagem Keira Knightley e os escândalos de Colette. Seria possível passar dias inteiros naquela vizinhança, sem precisar aventurar-se além, e a bem da verdade eu já fiz isso em diferentes férias passadas na cidade.

Sempre que ando por ali — e é lá que fica, aliás, meu hotel predileto — paro e revejo as placas homenageando Molière e Diderot, pois ambos morreram em casas situadas na rue de Richelieu.

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Molière, morto em 1673, ocupa lugar especial no coração dos franceses, ao menos entre os que lêem. O teatro nacional por excelência, a Comédie-Française, é conhecido também como la Maison de Molière e preserva, em suas coleções, a poltrona onde o autor passou mal no palco, enquanto atuava em uma de suas peças, intitulada, ironicamente, Le Malade Imaginaire, logo antes de morrer. O idioma francês é denominado la langue de Molière. O prêmio teatral anual é o Molière. Diz-se “ganhei um Molière”, como quem diria “ganhei um Oscar” ou “ganhei um Emmy”. No saguão de entrada da Comédie-Française há uma escultura do teatrólogo.

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Mais ou menos na altura do lugar onde ficava a casa em que Molière morreu — o prédio atual é posterior à sua morte — há uma fonte dedicada a ele.

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FonteMolière.jpgA foto abaixo mostra a perspectiva da rua, passando pela fonte com a escultura em bronze representando Molière e terminando no Louvre. A rua que se inicia à direita do monumento chama-se, justamente, rue Molière:

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Pensava eu já conhecer perfeitamente a rue de Richelieu, ajudado inclusive por este livro:

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Por mais que pensemos conhecer um lugar, contudo, isso é apenas uma fantasia. Sempre sobram mistérios a ser desvendados. Jacques Hillairet nos diz que a rue de Richelieu, aberta em 1634 por iniciativa do célebre Cardeal e Primeiro-Ministro em homenagem a quem é nomeada, é a rua de Paris que mais abrigou celebridades em sua história. Hillairet lista uma quantidade impressionante de moradores, que inclui chefes de Estado, ministros, políticos, cortesãs, príncipes, artistas. Como o autor disseca a estória de cada casa da rua, e de seus moradores famosos, o volume de informação pode ser desnorteador.

O guia de Busnel, preocupado apenas com livrarias, escritores e os lugares que eles frequentam ou frequentaram, apresenta de forma mais sucinta as informações sobre os autores que moraram na rua. Folheando o guia, vejo que Stendhal passou um tempo no número 45 da rua, onde terminou de escrever De l’Amour. Esse livro, de 1822, é um dos mais curiosos de Stendhal. Nele, o escritor descreve o surgimento e a consolidação da paixão amorosa de forma aparentemente científica, embora esse seja o sentimento menos racional de todos. Stendhal insere porém dezenas de anedotas. Podemos assim pensar em  De l’Amour como uma obra de ficção fantasiada de não-ficção. É nesse livro que Stendhal cria o famoso conceito, importante para entender seus romances, de “cristalização”, etapa no desenvolvimento do amor durante a qual o ser amado adquire, para nós, todas as perfeições. É o ápice do amor. É o momento em que os eventos, as ocasiões, os lugares mais diversos nos lembram a pessoa que amamos. Quando li De l’Amour, aos vinte anos, fiquei muito impressionado.

Vejo no guia de François Busnel, no livro de Jacques Hillairet e nas obras autobiográficas de Stendhal que o escritor morou em vários endereços na rua, em diferentes épocas de sua vida, e que lá escreveu Le Rouge et le Noir. Aparentemente, morou um tempo no mesmíssimo hotel onde costumo ficar, o que descubro apenas agora. Balzac também morou na rua.  Em um restaurante que já não existe, George Sand e Alfred de Musset se conheceram, dando início a uma das mais atormentadas relações amorosas das letras francesas.

Busnel detém-se sobre uma livraria na rue de Rivoli, a Galignani, uma de minhas prediletas, que passei a frequentar por influência de meu amigo Antonio, a quem já mencionei em Vida e Morte no Musée Guimet. Busnel nos informa que a Galignani lá está desde 1856. Segundo ele, “por lá passaram Hemingway, Malraux, Yourcenar, Colette, e também Marlene Dietrich, Orson Welles e Julien Green”. A lista já faz sonhar. Busnel avalia que “a atmosfera é aconchegante, o atendimento discreto, os conselhos esclarecidos. Guarida para curiosos, estetas e dândis”. De fato, a atmosfera na Galignani possui aquele elemento indefinível, mas palpável, que nos faz perceber termos ingressado em um ambiente altamente elegante, mostruário de uma civilização. Duas outras livrarias que provocam em mim a mesma reação são a Hatchards, em Londres, e a Ferin, em Lisboa.

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Em Se una notte d’inverno un viaggiatore, Italo Calvino lista várias razões — distribuídas em categorias criadas por ele —  pelas quais, afinal, livros não são comprados ou, se comprados, não são lidos. Por exemplo: “Livros que Você Poderia Por De Lado Para Talvez Ler Neste Verão”. Há uma categoria bastante metafísica — alguns pensarão cínica: “Livros Já Lidos Sem Que Você Sequer Tenha Precisado Abri-Los Já Que Eles Pertencem À Categoria Dos Livros Lidos Antes Mesmo De Terem Sido Escritos”.

A classificação que mais me marca é: “Livros Que Se Você Tivesse Mais De Uma Vida Para Viver Você Certamente Leria Também De Bom Grado Mas Infelizmente Os Dias Que Você Tem Para Viver Estão Contados”. É uma frase engraçadíssima. Como lê-la sem rir? Ao mesmo tempo, ela remete a um fato triste. Por mais disciplinado que seja um leitor, ele nunca conseguirá ler todos os livros que tem ou que deseja ler.

O guia de Busnel mostra uma forma superior de vida, toda orientada pelo amor aos livros, aos parques onde podemos lê-los, aos restaurantes onde podemos conversar sobre eles. Assim como lamento não ter tempo para ler tudo o que gostaria, já que não terei mais de uma vida, Mon Paris littéraire me faz pensar, com nostalgia, em todas as livrarias fantásticas, mundo afora, que não terei tempo de conhecer.

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