Um Brasil consciente e forte

Um Brasil consciente e forte

Hall dos Ministros, Palácio Itamaraty, Rio de Janeiro

Minha coluna quinzenal no jornal Estado de Minas publicada ontem, 24 de maio:

Meu pai, também Ary Quintella, entrevistou em 1970 o político mineiro Afonso Arinos de Mello Franco. A conversa aconteceu na casa de Botafogo, na rua Dona Mariana, onde o ex-ministro das Relações Exteriores morava e que ainda existe, e onde eu mesmo estive quando ela servia de sede ao centro de pesquisas Brics Policy Center.

Naquele mesmo ano de 1970, meu pai conduziu entrevistas com diversos autores brasileiros para o suplemento literário do Jornal do Commercio carioca. Algumas foram publicadas, outras não. Ignoro as razões para a seleção final, ou mesmo para a escolha dos escritores. As conversas realizadas com Rachel de Queiroz e Mário Palmério, outro mineiro, viraram referência e são sempre citadas por estudiosos de suas obras.

A longa entrevista com Afonso Arinos, que eu saiba, nunca veio a público. Apenas em 2019, vinte anos após a morte do meu pai, preparando-me para partir como embaixador na Malásia, descobri, classificando seus documentos, uma pasta contendo a transcrição de todas as entrevistas. O diálogo com Afonso Arinos chamou minha atenção, talvez por vício profissional, já que o senador foi chanceler em dois períodos, de fevereiro a agosto de 1961 e de julho a setembro de 1962, que integram o que viria a ser conhecido como Política Externa Independente.

Há muito a saborear no diálogo, por causa da cumplicidade entre entrevistado e entrevistador. Meu pai explica sobre seu interlocutor: “Sua fala é tranquila e sem vacilações: absoluta sinceridade, que espouca decididamente”. Afonso Arinos comenta ter sido colega de classe no Colégio Pedro II de meu avô, o matemático, também Ary Quintella.

Um dos temas mais presentes é Guimarães Rosa. Discutem sua personalidade, seu “método de composição”. O autor de Grande Sertão: Veredas sentara-se, um dia depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras — quando fora saudado por Afonso Arinos — e um dia antes de morrer, na mesma poltrona na varanda da casa na rua Dona Mariana de onde meu pai conduzia o diálogo. “Guimarães Rosa gostava dessa aí”, diz o político mineiro, apontando a poltrona, e meu pai, que então apenas iniciava sua carreira literária, comenta com o leitor: “sinto um arrepio ao longo da espinha”. Recorda Afonso Arinos que “Rosa era de uma amabilidade exuberante, implacável, minuciosa, que nos obrigava a tomar cuidado para não lhe causar nenhuma decepção”. 

Casa de Afonso Arinos na rua Dona Mariana, Botafogo, Rio de Janeiro

A conversa flui, passando da literatura brasileira para a francesa, e incluindo Jânio Quadros, Che Guevara e o Papa João XXIII. Sobre a Lei Afonso Arinos, de 1951, primeira norma no Brasil contra o racismo, o político declara ter sido “a mais importante realização da minha vida parlamentar”. Afirma que sempre se dedicou à política “com esmero, por uma questão de decoro e consciência, mas sem paixão”. Famoso pela capacidade oratória, admite: “se de fato eu tivesse no coração aquela paixão que demonstrava em minha voz quando fazia discursos violentos, eu já teria morrido há muito tempo”. Meu pai pergunta: “Era simulação?”, e ele responde: “não era simulação, mas a consciência de uma representação. Aliás, é a primeira vez que digo isso com tal franqueza”.

Há momentos de indagação filosófica: “esse problema de fixação no tempo, Ary, é coisa que todos nós nos consultamos permanentemente: quem somos nós, de onde viemos, para onde vamos? Não há ninguém que tenha um pouco de capacidade de se demorar dentro de si mesmo que não esteja sempre perseguido por essas ideias”. Meu pai faz uma pergunta difícil e pertinente, considerando o ano em que se realiza a entrevista: “Não se sente frustrado ao dar aulas de direito constitucional?”. 

Indagado sobre “sua melhor experiência como chanceler”, Afonso Arinos responde: “ela se situa fora do Ministério, depois que o deixei. Durante todo o período em que fui ministro, só encontrei resistências, incompreensões e obstáculos às minhas ideias”. Só depois suas tentativas de “viabilizar a afirmação da personalidade nacional” viriam a ser aceitas. Não sente saudades do Itamaraty, “pelas injustiças” que sofreu, “de ataques feitos por interesses escusos”.

Em um de seus livros de memórias, Planalto (1968), o político estende-se sobre esse assunto e nota que a hostilidade não vinha somente do empresariado ou da imprensa. “Tudo aquilo que podia representar cultura, inteligência, independência, trabalho, nacionalismo não existia para a maior parte do grupo dominante do Itamaraty”, escreve, e condena a “frivolidade condecorada” de diplomatas. Mesmo um senador ilustre, patrício, destacado político conservador não conseguiu que seus objetivos de “criação daquela imagem de um Brasil consciente e forte” fossem aceitos.

Um tema candente no Brasil, desde a década de 1950, era o das colônias portuguesas na África, em relação ao qual o Brasil, até a presidência de Jânio Quadros, se alinhava às teses portuguesas. A mudança de orientação a partir de 1961, diz Afonso Arinos a meu pai, constituiu uma das principais razões das críticas que recebeu como chanceler, ao ser acusado de não guardar “a tradição da fraternidade luso-brasileira”, e lembra: “nós somos o maior país africano do mundo”. Avalia que o Brasil, embora não sendo “uma grande potência”, é “uma grande nação” e “deve e pode” contribuir “como força decisiva no sentido da paz mundial”.   

Como conclusão da entrevista, declara o ex-chanceler: “o grande problema da humanidade é a paz” e lamenta-se com meu pai: “nós poderemos assistir durante toda a nossa vida a essa sucessão monótona de tragédias, limitadas a tais ou quais regiões do planeta, e que desencadeiam brutalidades que não poderemos jamais compreender”.

É desconsolador saber que, desde 1970, nada mudou.

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

Retrato de família, 10 de maio

Benção apostólica, 26 de abril

O presente malásio, 12 de abril

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro

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Convite: Brasília, 28 de maio

Convite: Brasília, 28 de maio

No final de novembro, viajei de Kuala Lumpur ao Rio de Janeiro para lançar meu livro Geografia do tempo. Compromissos de trabalho me obrigaram a viajar de volta à Malásia logo após a noite de autógrafos.

Em 28 de maio, viajarei de Luanda a Brasília especificamente para fazer noite de autógrafos na Livraria da Travessa do CasaPark, a partir das 19h.

Espero vocês lá. Será uma festa. Tragam os amigos.

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Retrato de família

Retrato de família

A Mansão azul em Penang

Transcrevo abaixo minha coluna quinzenal no jornal “Estado de Minas” publicada em 10 de maio:

A imigração chinesa aos territórios que eram então as colônias britânicas da Península Malaia e de Singapura, ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, é uma história de superação da extrema pobreza. Os imigrantes viviam em condições insalubres, submetidos a trabalhos fisicamente árduos, enfrentando enorme dificuldade financeira.

Fortunas surgiram porém já no século XIX. Existe em George Town, capital da ilha e do estado de Penang, a célebre “mansão azul”, ou “mansão de Cheong Fatt Tze”, do nome de seu proprietário original, nascido em 1840 e falecido em 1916. Cheong Fatt Tze elevou-se, pelo trabalho no comércio, a um nível de riqueza tão impressionante que chegou a ser conhecido como “o Rockefeller do Oriente”. Sua casa é hoje um hotel; serviu de cenário, no cinema, para Indochina (1992) e Podres de ricos (2018). Nesse último filme, o jogo de mahjong entre as futuras sogra e nora foi filmado no pátio da “mansão azul”, embora o enredo se passe em Singapura.

Hoje, a população de origem chinesa na Malásia situa-se em torno de 23%. Em Singapura, onde a proporção de chineses étnicos chega a 80%, ao caminhar pelas ruas ouve-se mais facilmente transeuntes conversando em mandarim do que em inglês. A influência chinesa, misturada à malaia, deu origem à cultura peranakan, particularmente viva hoje, nos dois países, e de forma deliciosa, na área gastronômica.

Tash Aw é um dos escritores malásios de língua inglesa mais conhecidos da atualidade. Seus cinco romances — o quinto foi publicado este ano — não foram ainda traduzidos no Brasil. Em Portugal, a tradução do primeiro, The Harmony Silk Factory (2005), recebeu o título de A fábrica das sedas. Durante o primeiro confinamento causado pela pandemia de Covid-19, em 2020, eu acabara de chegar à Malásia, e esse livro ofereceu-me a experiência possível do país.

A editora brasileira Todavia lançará, este ano, Estranhos em um píer, obra autobiográfica de Tash Aw de 90 páginas. Ao contrário de Podres de ricos, o livro não nos mostra os excessos dos bilionários contemporâneos, de origem chinesa, na Malásia ou em Singapura. Descreve a criação, a partir da segunda metade do século XX, da classe média urbana malásia.

A aventura familiar começa com os dois avós. Um fala o dialeto chinês hokkien, o outro o dialeto hainanês. Ambos aportam em Singapura na década de 1920, vindos do sul da China. Estrangeiros no píer, não se sentem porém estranhos ao lugar. A ilha é uma colônia britânica, mas é também um entreposto comercial. A imigração chinesa começara oitenta anos antes, e os avós de Tash Aw “estão a muitas gerações de serem pioneiros”. Abandonaram um país “devastado pela fome e pela guerra civil”. Não viveriam o suficiente para ver a pátria original “tornar-se a fábrica do mundo, o maior consumidor de bens de luxo e a segunda economia mundial”.

Instalam-se ambos na Península Malaia. Vão viver no campo, “às margens de rios amplos e barrentos”. Um deles mantinha uma venda, o outro era professor rural. Um capítulo detém-se na figura de uma das avós, na verdade madrasta de sua mãe. Nascida em uma aldeia na selva malásia, em uma família sem recursos, algumas realidades cedo se impuseram sobre ela: nunca frequentaria uma escola, começaria a trabalhar ainda muito jovem e teria de se casar com o primeiro homem aceitável que se apresentasse.

Na escola pública malásia onde o autor estudou na década de 1980, os alunos eram “parte de um processo de formação da nação”, cujos pais “acreditavam em um projeto comum de construção do ´eu´, da sociedade, do país”. Eram todos eles “filhos dos que passaram privações, nascidos em um país que nunca antes produzira uma burguesia”. Tash Aw pertence à geração que testemunhou o desenvolvimento industrial e tecnológico da Malásia. Quatro décadas depois, importante elo na cadeia global de semicondutores, o país está a um passo de se consolidar como nação de alta renda.

Descendentes de imigrantes tendem a “criar narrativa de trajetória positiva, com alguma dose de sofrimento bem apresentado, naturalmente superado, que valorize a ascensão ao conforto, ao sucesso e à felicidade”. Conflitos entre etnias, religiões e classes sociais são vistos como menores e relativos ao passado. Membro de uma etnia minoritária, Tash Aw entende ser preciso “provar que você é trabalhador e útil para a sociedade, mas não a ponto de se tornar uma ameaça; então você desvia atenção da sua pessoa”.

Estranhos em um píer é um texto muito rico. Trata, em poucas páginas, do processo de urbanização, do surgimento da prosperidade em um país que se modernizou rapidamente, e do fosso assim criado entre gerações mais novas e mais instruídas e as anteriores ou as que permaneceram rurais. Ir de Kuala Lumpur à aldeia, para visitar parentes, significava para o autor esconder os livros que estava lendo e modificar a maneira de falar. Sua irmã, “mais determinada a escapar” daquela realidade familiar, sente-se menos constrangida e pratica abertamente “caligrafia chinesa e gramática francesa”.

Tash Aw hoje mora no sul da França; visita os pais com frequência na Malásia, onde é uma celebridade. Em uma das vezes em que almoçamos juntos em Kuala Lumpur, comentei que Estranhos em um píer me permitira aprender mais sobre seu país do que qualquer volume de história ou de sociologia.

Mas o livro vai além. Como toda obra autobiográfica verdadeiramente literária, ilumina o processo de conscientização, por um ser humano, de sua individualidade.

Conversando com Tash Aw em Kuala Lumpur, em novembro de 2024, no lançamento do último livro de William Dalrymple, “The Golden Road”; e “Estranhos em um píer”

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

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