Quatro telefonemas

Quatro telefonemas

Colette amava os gatos. Teve vários ao longo da vida. Quando era ainda casada com seu primeiro marido, Henry Gauthier-Villars, cujos romances ela escrevia para que ele os assinasse como se fossem seus, com o pseudônimo de Willy, existia um gato chamado Kiki. Mais precisamente Kiki-la-Doucette. Era um angorá. Morreu em 1903, nos diz Judith Thurman em sua biografia da escritora, Secrets of the Flesh, sem especificar a razão da morte e a idade do gato.

Kiki-la-Doucette, gato bem real, inspirou um personagem literário. No livro de Colette Dialogues de bêtes, publicado em 1904, portanto após a morte de Kiki, o gato aparece em vários diálogos conversando com Toby-Chien, o buldogue francês que também existiu. De angorá, Kiki-la-Doucette vira um chartreux, embora sua descrição física — “um corpo listrado” — não se pareça à dos gatos dessa raça. Em 1930, Colette ainda estava revisitando essa obra. Em suas memórias sobre o casamento com Willy publicadas em 1936, Mes apprentissages, a escritora assim descreve o angorá: “Longo, opulento, sutil”.

Nos diálogos com Toby, Kiki-la-Doucette mostra-se intrinsicamente felino, ou como imaginamos que um gato deva ser. É dado a dizer ao buldogue frases como: “Só vejo extravagâncias ao meu redor”; “as sutilezas psicológicas sempre ficarão inacessíveis a você”; “sinto vergonha por você, você ama todo mundo, aceita todas as rejeições de forma servil”; “anda, imita minha divina serenidade”.

Os dois, Kiki e Toby, amam seres diferentes. O gato prefere “Ele”, alter ego de Willy, enquanto o buldogue entrega sua devoção a “Ela”, a própria Colette. Um dos diálogos acontece durante uma viagem de trem, de que participam Ela, Ele, Kiki e Toby. O cachorro está solto, e o gato está em uma cesta fechada. Kiki exclama: “As torturas que sofro são morais. Estou sendo submetido ao mesmo tempo ao enclausuramento, à humilhação, à obscuridade, ao esquecimento e aos sacolejos”. Seu desconforto logo termina. “Ele” retira o gato da cesta, dizendo: “Venha, meu belo Kiki, meu enclausurado, venha, você agora terá rosbife frio e peito de frango”.

Kiki explica a Toby como consegue evitar, ao contrário do seu interlocutor, o óleo de rícino:

Uma vez Ela quis — eu era ainda pequeno — me purgar com o óleo. Eu a arranhei e mordi tanto, que nunca mais Ela tentou. Por um minuto, Ela deve ter achado que estava com um demônio sobre os joelhos. Eu me contorci em uma espiral, soprei fogo, multipliquei por cem as minhas garras, por mil os meus dentes, e fugi, como em um passe de mágica.

Kiki também transmite a Toby sua tática para evitar aquilo que o buldogue classifica como “o suplício do banho”. Explica que, ao ser submetido à experiência, deitara-se de costas e adotara o olhar “clemente e aterrorizado do cordeiro no altar”.

Apenas este ano tomei conhecimento da existência dos dois Kiki-la-Doucette, o real e o fictício. Quando isso aconteceu, minha família havia perdido uma outra Kiki. Muitas vezes escrevi sobre nossa gata persa dourada, que emprestou mesmo seu nome para o título de uma crônica de abril de 2020, Kiki em Kuala Lumpur.

A viagem para trazê-la de Brasília à Malásia, em janeiro daquele ano, durara, de porta a porta, 36 horas, atravessando dois oceanos, a bordo de três aviões. Um percurso, sem dúvida, mais penoso do que o trajeto de trem dos personagens de Colette. Trancada em uma jaula nos três diferentes voos conosco, emulando Kiki-la-Doucette a nossa Kiki miou praticamente as 36 horas. No último trecho, Istambul-Kuala Lumpur, puxei-a um momento para fora da pequena jaula, segurei-a nos braços, e passeamos juntos pela cabine. Os membros da tripulação, em vez de me censurar, começaram a me mostrar fotos dos seus próprios gatos.

Não foi à toa que escrevi sobre Kiki em abril de 2020, quando vigorava na Malásia o primeiro confinamento e o pavor do vírus se iniciava. Era proibido sair de casa, a não ser para comprar comida e remédio. Enjaulado em um apartamento vazio em Kuala Lumpur, sem a biblioteca e sem a mobília, que estavam em um container no cais de Port Klang, sem conhecer quase ninguém na Malásia, onde eu chegara cinco semanas antes do início do confinamento, forçosamente separado da minha família amparei-me na gata persa dourada. Tínhamos apenas, como companhia, um ao outro. Cuidar dela tornou suportável o isolamento provocado pela pandemia. Para mim, a única exceção, além dos livros que eu previdentemente fora comprando depois da chegada, era um amigo brasileiro que, uma vez por semana, me dava carona até o supermercado. Para Kiki, não havia o alívio da quebra da rotina. Era eu apenas em seu universo, e mais ninguém.

Houve, depois disso, outros confinamentos. Aconteceu assim o que sempre acontece quando dois seres que se amam são obrigados a viver encerrados, na presença exclusiva e constante um do outro. O amor cresceu ainda mais.

Em novembro de 2021, as fronteiras entre Malásia e Singapura foram parcialmente reabertas, sob diversas condições. No início de dezembro, viajei a Singapura. Como contei na carta da Malásia de janeiro de 2022, Tchekhov e os tigres, rever minha mulher, conhecer sua casa, pareceu-me um paraíso, após as agruras dos confinamentos. Durante uma semana, tudo transcorreu de maneira perfeita. Até que veio o primeiro telefonema.

Em Kuala Lumpur, Kiki parara de comer. Videoconferências entre nós não a motivaram. Liguei para o veterinário. Ao visitá-la, ele recomendou uma alimentação especial e vitamina B. Avisou que, se ela não voltasse a comer em poucos dias, teria de ser internada.

Dois dias depois, um domingo de tarde, regressei à Malásia. Ao entrar no apartamento, notei um silêncio pouco habitual. Não houve miados. Não houve corrida até a porta para me receber. Chamei. Procurei. Sem resultado. Supus que ela estaria dormindo em algum novo esconderijo.

Desfiz a mala. Guardei as roupas. Liguei para minha mulher. Tomei um chá. Chamei. Procurei. O silêncio continuava. A solidão também. Àquela altura, fazia já duas horas desde minha chegada a casa. O sol se punha. Tentei novamente.

Foi embaixo de um móvel que a encontrei.

Nunca ela havia se escondido ali. Estava acocorada, ensimesmada. O olhar era opaco, indiferente. Ofereci comida, que ela rejeitou. Peguei-a no colo. Trouxe-a para cima da cama. Ela imediatamente saiu do quarto.

Na segunda-feira, levei-a uma clínica. A veterinária declarou: “Ela sofreu um trauma emocional com sua viagem. Por isso parou de comer e daí desenvolveu uma doença típica de gato idoso, lipidose hepática”. Perguntei sobre seu prognóstico. A veterinária hesitou apenas um pouco antes de responder: “Bem, ela tem 17 anos. Já está no bônus”. À noite, recebi da clínica o segundo telefonema de más notícias: “O resultado do exame de sangue é muito ruim”.

Começamos então, Kiki e eu, uma nova existência. Ela não comia de forma espontânea. Trancada em uma jaula, recebia soro por via intravenosa. A comida era forçada pela garganta. Eu ia à clínica na hora do almoço. Abria a porta da jaula. Conversava com ela. Às vezes, ela ronronava, enquanto eu fazia carinho. Muitas vezes, me ignorava. Sugeriram-me que eu a fizesse escutar música. Selecionei árias de Mozart, sobretudo de As bodas de Figaro e de Don Giovanni. A escolha não era arbitrária. Durante os confinamentos, como narrei em Cleópatra no Escritório, à noite eu costumava assistir às gravações oferecidas gratuitamente pela Metropolitan Opera. Chamara minha atenção o fato de que Kiki levantava a cabeça com frequência, atenta, quando a ópera era de Mozart.

As árias de Cherubino e de Don Ottavio, apesar de encantadoras, não pareciam causar efeito algum. A gata persa dourada continuava sem comer.

Eu insistia em falar com a veterinária a cada visita, o que significava esperar que terminasse alguma consulta. Isso determinava quanto tempo eu teria com Kiki. Às vezes, conseguia ficar 45 minutos parado diante da porta aberta da jaula, dizendo-lhe palavras de carinho; às vezes, só podia ficar dez minutos antes de voltar para o escritório.

Chegar em casa de noite significava enfrentar, ao sair do elevador, a perspectiva de entrar no apartamento vazio, sentir sua ausência e enfrentar sozinho o silêncio e a escuridão.

O Natal se aproximava. Viajei a Singapura para passá-lo em família.

Todo dia, ligava para a clínica. A resposta era sempre a mesma:
“Ela continua sem comer”. Uma vez, perguntei à veterinária se ela me avisaria se fosse necessário administrar o que eu prefiro chamar de “a injeção da felicidade eterna”. A veterinária declarou-se, por razões éticas, contra a eutanásia. Imaginei a gata persa dourada talvez definhando por semanas, meses. Conversei com a outra sócia da clínica, que se mostrou mais receptiva.

Na tarde do dia seguinte, 31 de dezembro, estávamos todos assistindo no cinema, em Singapura, a um filme muito ruim, House of Gucci, quando entrou no meu celular o terceiro telefonema portador de más notícias. Saí da sala e fui para o corredor. Não havia ninguém por perto. Atendi. O ultrassom mais preciso que eu insistira fosse feito em outra clínica mostrara que vários órgãos estavam afetados. A veterinária, categórica, afirmou que Kiki estava sofrendo. Não havia esperança.

Enquanto eu analisava o dever exigido de mim, a ligação continuava ativa. A veterinária esperava uma decisão. Era a terceira vez que eu passava por esse momento. Em 2012, já tivéramos de sacrificar nossa cachorra Missy, e, em 2018, outro gato, o majestático James. Dispomos da faculdade de poupar sofrimento aos animais que amamos. Mas se esperamos demais, depois nos sentimos culpados por ter prolongado a sua dor. Se não esperamos, fica a dúvida se não nos precipitamos.

Dei a autorização. Opinei porém que alguns dias, até a minha volta a Kuala Lumpur, não fariam diferença alguma para a Kiki, mas toda para mim, pois permitiriam uma despedida. A veterinária soterrou minha autocomiseração. Repetiu que o animal sofria; seria cruel esperar um dia a mais sequer. Quanto à despedida, ofereceu-me uma videoconferência com Kiki. Colocou o celular frente a ela, que estava solta em cima da mesa de metal do consultório.

Falei longamente de amor e gratidão. Ela miava, se agitava e ronronava sobre a mesa de metal. Desliguei.

Minha mulher apareceu. Conversamos sobre como dar a notícia à nossa filha, que crescera com Kiki, escolhera o seu nome e, dentro da sala de projeção, sabia que algo estava acontecendo. Nesse momento, entrou a quarta chamada. Atendi, aceitando ter de ouvir que tudo terminara.

Não era isso o que nos esperava.

A veterinária ligava para avisar que, após três semanas sem se alimentar espontaneamente, Kiki, na hora em que iria receber a injeção, se jogara sobre um prato de comida destinado a outro gato. Comera.

Dos quatro telefonemas, esse foi o pior. Nosso nível de responsabilidade moral acabara de aumentar consideravelmente. Indaguei: “Ela pode ser salva, então?”. A veterinária, cautelosa, explicou: “Não creio. O que o ultrassom revelou não pode ser ignorado. Os órgãos estão comprometidos. E é também provável que a refeição de agora seja um caso isolado. Mesmo que ela volte a comer sozinha, seriam poucas semanas de vida a mais, talvez alguns meses, em condições difíceis e desconfortáveis para ela”. Assenti.

Pensei no jardim em Brasília e no jardim em Bruxelas, nos quais Kiki crescera e correra, livre, caçara pássaros e lagartixas e fora feliz. Recebi então a mensagem por WhatsApp: “Foi indolor, e ela agora descansa no paraíso dos gatos”.

Kiki, bebê espevitado. Kiki, bela, inteligente e afetuosa. Kiki, ainda viva enquanto eu viver.

Crônica originalmente publicada, em 8 de julho de 2022, no jornal de literatura Rascunho, ilustrada com o desenho de Carolina Vigna, a quem agradeço, assim como ao editor do Rascunho, Rogério Pereira, a autorização para reproduzi-lo nesta página.

Dedico esta crônica a dois amigos que conheceram a gata persa dourada,

Cora Rónai, solidária na perda,

Hudson Caldeira Brant, graças a quem alimentei Kiki na pandemia

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Tchekhov e os tigres

Tchekhov e os tigres

O grito de “fogo!” foi ouvido a bordo às oito e vinte da noite, a 80 quilômetros da costa. Dez minutos depois, com o navio já em chamas, os passageiros e a tripulação, 41 pessoas ao todo, estavam em dois botes no mar. Ao abandonar o barco, o comandante levou uma bússola. A luz do próprio incêndio, que ficou queimando até a meia-noite, também ajudou os remadores a colocar os botes no rumo certo. Na descrição de um viajante ilustre, no final do incêndio o salitre que o navio transportava iluminou o horizonte inteiro: “one of the most splendid and brilliant flames that ever was seen, illuminating the horizon in every direction, to an extent of not less than fifty miles”.        

Ao amanhecer, viram a costa. Todos se salvaram. Não houve mortes humanas. Foram de outro tipo as perdas registradas.

O navio se chamava Fame. Ele queimou na noite do dia em que zarpara de Bencoolen — hoje Bengkulu — em Sumatra, a caminho da Inglaterra, em 2 de fevereiro de 1824. A bordo iam Sir Thomas Stamford Raffles, ex-governador de Bencoolen, autor da frase acima, e sua mulher. Eles regressavam de vez para a Inglaterra. No mês seguinte, pelo Tratado Anglo-Holandês de março de 1824, Bencoolen seria entregue aos Países Baixos.

Raffles é famoso por ser considerado o iniciador, em 1819, da história moderna de Singapura. Dependendo do ponto de vista, pode-se considerá-lo como o visionário que deu início à transformação de Singapura em um dos centros mais importantes e prósperos do comércio internacional; ou como o imperialista que, por meio de artimanhas, ao perceber a importância estratégica da ilha asiática, situada a meio caminho entre a Índia e a China, plantou ali a Union Jack para lucro de seu empregador, a Companhia das Índias Orientais.

Se todas as pessoas a bordo do Fame se salvaram, o mesmo não pode ser dito da importante coleção de documentos levada por Raffles, conforme ele explica em relatos em que descreveu o incidente. Como os outros passageiros humanos, ele e a mulher desceram aos botes com a roupa do corpo; Lady Raffles, inclusive, sem sapatos ou meias, por já estar deitada quando o alarme foi dado. Raffles conta que perdeu no naufrágio todas as notas e coleções que reunira como administrador colonial: “all my notes and observations, with memoirs and collections, sufficient for a full and ample history, not only of Sumatra but of Borneo and almost every other Island of note in these seas; my intended account of the establishment of Singapore; the history of my own administration; eastern grammars, dictionaries and vocabularies”. Foram mais de dois mil os desenhos de história natural desaparecidos. A coleção que ia a bordo ocupava pelo menos 122 caixotes.

Se todos os humanos sobreviveram, outros seres vivos tiveram menos sorte. Raffles levava com ele, para a Inglaterra, “uma anta, uma nova espécie de tigre, esplêndidos faisões &c, domesticados para a viagem; éramos em suma, uma perfeita arca de Noé”. Que outros animais do Arquipélago Malaio, incluídos sob aquele “&c”, terão morrido queimados ou afogados?

Os relatos de Raffles sobre o naufrágio podem ser lidos no livro celebrando sua memória que Lady Raffles, viúva desde 1826, publicou em 1830. Jorge Luis Borges poderia ter criado um conto sobre o incêndio do Fame, descrevendo algum manuscrito que ele inventaria e incluiria entre os efetivamente perdidos. Borges ficaria fascinado com a presença, a bordo, de um tigre, animal que é uma imagem recorrente em tantos de seus contos e poemas. Em versos recolhidos em 1960 em El hacedor, ele contrasta a figura do tigre como “serie de tropos literarios” ao animal verdadeiro, “el tigre fatal”,

que, bajo el sol o la diversa luna,
va cumpliendo en Sumatra o en Bengala
su rutina de amor, de ocio y de muerte.

Existe no Museu Nacional de Singapura uma gravura que ilustra o incêndio do Fame. Ela me faz pensar no quanto a coleção destruída naquela noite de 2 de fevereiro poderia modificar nosso conhecimento sobre a história do Arquipélago Malaio. Os relatos de Raffles também incomodam por causa da morte dos animais, vítimas da vaidade de quem quis exibi-los na Inglaterra, a milhares de quilômetros de distância, como exemplares exóticos de uma remota província do império.

Em dezembro de 2021, quando revisitei o Museu Nacional de Singapura e revi a gravura sobre o incêndio do Fame, não era porém Jorge Luis Borges que ocupava meus pensamentos, mas Anton Tchekhov.

Tudo começara na segunda-feira 8 de novembro. Naquele dia, Tchekhov entrou no supermercado em Kuala Lumpur onde eu fazia compras depois do expediente. Na seção de frutas, eu examinava peras coreanas. Elas são grandes, redondas, douradas.

Imerso na escolha das peras, ouvi que eu recebera uma mensagem no celular. Era de um amigo que me enviava uma notícia importante: Malásia e Singapura acabavam de anunciar que viajantes de um país para o outro passariam a ser poupados de quarentena, desde que cumprissem diversas exigências burocráticas e sanitárias. 

O amigo que me enviara a mensagem sabia que a notícia me deixaria feliz. Minha mulher, em Singapura, e eu, em Kuala Lumpur, nunca podíamos nos ver, por causa do fechamento das fronteiras na Ásia do Sudeste desde o início da pandemia. Esta é uma das regiões do planeta em que as medidas mais restritivas foram adotadas de forma mais prolongada. Com o anúncio feito com Singapura de um corredor bilateral para viajantes vacinados, a Malásia, pela primeira vez desde março de 2020, abria parcialmente as suas fronteiras com algum país.  

A visita ao supermercado acelerou-se. Precisei apenas comprar comida para Kiki, a gata persa dourada. Meu objetivo agora era chegar em casa o mais rapidamente possível e telefonar para minha mulher.

Desde que, na seção de frutas, eu lera a mensagem no celular, Tchekhov não me saía da cabeça. Estudante em Londres, nunca perdi nenhuma produção de suas peças, mas são já muitos anos desde que assisti a alguma delas no palco. Em 2008, em Nova York, vi uma produção muito elogiada pela crítica de A Gaivota, com Kristin Scott Thomas no papel de Arkadina.

Nos últimos anos, Tchekhov tem sido para mim sobretudo um contista e, particularmente, o autor de “A Dama do Cachorrinho”, publicado em dezembro de 1899. O célebre conto começou a ser escrito em Ialta a partir de agosto ou setembro do mesmo ano, enquanto, do outro lado do mundo, em outro universo, em uma realidade paralela, Borges nascia em Buenos Aires, em 24 de agosto.

É depois de ler “A Dama do Cachorrinho” que Maksim Gorki escreve a Tchekhov, em uma carta frequentemente citada, que “com seus pequenos escritos, você alcança uma grande coisa, ao despertar nas pessoas a repugnância pela vida sonolenta, semi-morta”.

Um homem em vilegiatura em Ialta sem a família, Gurov, conhece uma mulher bem mais jovem, Ana, que também passa férias, sem o marido, na Crimeia. Ela chama a atenção por nunca ter sido vista lá anteriormente e por estar acompanhada de seu cachorro, um lulu da Pomerânia. Quanto a Gurov, nada há de admirável em seu caráter, fato de que ele mesmo tem consciência.

Gurov e Ana começam um caso. Um dia, a vilegiatura termina; ele tem de voltar a Moscou e ela à cidade provinciana onde mora. Ao contrário do que esperava e do que acontecera com suas aventuras anteriores, Gurov não esquece Ana. Então, tudo aquilo que sempre preenchera o seu cotidiano começa a tornar seus dias desinteressantes e desperdiçados. Gurov decide ir à cidade de Ana e sua esperança de reencontrá-la se concretiza. Começam a se ver furtivamente, a cada dois ou três meses — algumas traduções dizem “duas ou três vezes por mês” — em Moscou, para onde Ana viaja dando razões mentirosas ao marido. No último parágrafo, pensam se há alguma forma de poderem ficar juntos, sonham com isso e reconhecem que as dificuldades, as complicações em atingir esse objetivo estão apenas começando.     

O amor de Gurov por Ana torna-o mais simpático ao leitor. De quarentão libidinoso, cínico, medíocre, ele é elevado, literariamente falando, à posição romântica de vítima de um amor impossível com uma mulher igualmente casada, morando em outra cidade.

Tenho em casa traduções do conto em francês e em inglês. Na Internet, encontrei uma tradução para o português, sem referência ao nome do tradutor. Trata-se, acredito, da versão de Boris Schnaiderman para a Editora34. É a que citarei aqui, ao mencionar o parágrafo de “A Dama do Cachorrinho” que aponta uma grande verdade psicológica, razão pela qual penso frequentemente no conto.

Gurov passa a levar duas vidas — aquela passada no trabalho, com a família, com os amigos, e os momentos vividos com Ana, ou longe dela mas pensando nela. Ana e, portanto, “tudo o que era para ele importante, interessante, indispensável, aquilo em que ele era sincero e não enganava a si mesmo, o que constituía o cerne de sua vida, ocorria às ocultas dos demais”. Todo o resto, trabalho, clube, relações sociais e familiares era mentira e, no entanto, transcorria à luz do dia. Gurov conclui que “em cada homem decorre, sob o manto do mistério, como sob o manto da noite, a sua vida autêntica e mais interessante”.

Não encontro, na obra de Borges ou em suas entrevistas, referência a Tchekhov. Não sei, por isso, se leu o conto russo. Se o fez, terá apreciado a moral tirada por Gurov sobre a discrepância entre a vida mostrada publicamente e a realidade interna, emocional. “El Zahir”, um dos contos em El Aleph, de 1949, parece elevar ao paroxismo, cinquenta anos depois de Tchekhov, a percepção de Gurov de que nossa mente pode estar continuamente envolvida com algo diferente da vida que nos ocupa em público. Zahir, diz Borges, são os seres ou as coisas “que tienen la terrible virtud de ser inolvidables”. Entre os exemplos, cita um “tigre mágico” na Índia, “que fue la perdición de cuantos lo vieron, aun de muy lejos, pues todos continuaron pensando en él, hasta el fin de sus días”. 

Em Kuala Lumpur, enquanto a vida e o trabalho acontecem, e a eles me dedico com empenho, lá atrás existe um pensamento constante, mas sempre repudiado, pois prefiro não torná-lo consciente demais.  

Trata-se da percepção de que houve, por causa da Covid-19, uma dissolução da minha vida familiar. Minha mulher trabalha em Singapura, nossa filha em Bruxelas e minha irmã em Lisboa; minha mãe mora no Rio. Durante dois anos, nunca as vi, já que viajar ou receber visitas, para quem está na Ásia do Sudeste, tornou-se nesse período uma grande complicação. O convívio familiar reduziu-se à Kiki.  Não poucas vezes, nos dois anos de pandemia, perguntei-lhe, aliás com gratidão: “Como foi acontecer de só nós dois estarmos juntos?”  

A situação vivida por Gurov e Ana — não o adultério, mas o afastamento forçado entre os dois — era a do próprio autor. Ao escrever “A Dama do Cachorrinho”, Tchekhov buscava, no clima mais ameno de Ialta, controlar a tuberculose. No ano anterior, conhecera em Moscou uma atriz, Olga Knipper, que interpretaria personagens em suas peças: Arkadina em A Gaivota, Helena em Tio Vânia, Masha em As Três Irmãs e Liubov em O Jardim das Cerejeiras. Masha e Liubov foram papéis escritos especificamente para Olga Knipper. Foi em um ensaio de A Gaivota no Teatro de Arte de Moscou que eles se conheceram, no outono de 1898. Viriam a se casar em 1901, três anos antes de Tchekhov morrer.

No outono e no inverno, Tchekhov e Olga Knipper ficavam afastados, ele em Ialta, ela em Moscou, atuando na temporada do Teatro de Arte. Compensavam a separação escrevendo quase que diariamente um ao outro. 

Essa correspondência foi editada em 1996 pelo inglês Jean Benedetti, em um volume intitulado Dear Writer, Dear Actress. Ali vemos, em uma carta de 3 de setembro de 1899, justamente quando “A Dama do Cachorrinho” estava sendo escrito ou ao menos sendo concebido no cérebro de Tchekhov, a importância que a atriz já adquirira para ele. Descrevendo seu cotidiano, o autor diz de repente: “Mal tenho saído para o jardim. Fico dentro de casa, pensando em você […] não suporto a ideia de que não poderei vê-la antes da primavera, isso me leva à loucura”.

Em sua biografia de Tchekhov, lançada originalmente em 1997 e reeditada em 2021, o também inglês Donald Rayfield avalia que o caso entre o escritor e a atriz se iniciara no primeiro semestre de 1899. De fato, entre julho e agosto de 1899, logo antes de “A Dama do Cachorrinho” começar a ser escrito, Olga Knipper visitou o escritor em Ialta por duas semanas. Algumas das cenas do conto passadas na Crimeia podem ter sido fruto de experiência pessoal. Em tom que soa como uma repreensão, o biógrafo comenta que, por causa da visita da atriz, “for a fortnight Anton had written nothing”.

No dia 1º de dezembro de 2021, ostentando, além do passaporte, oito documentos, formulários e aplicativos obrigatórios, eu desembarcava em Singapura, onde não pisava desde março de 2020. Minha mulher não pudera vir a Kuala Lumpur desde janeiro de 2021. Antes disso, já havíamos ficado nove meses sem poder nos ver. Por causa da pandemia, nós nos encontramos nesses dois anos menos frequentemente do que Gurov e Ana ou do que Anton Tchekhov e Olga Knipper.

Os dias foram ensolarados. Revisitei museus. Descobri recantos até então desconhecidos da cidade. Passeei pelos parques. Fiz um passeio de barco pelo rio Singapura. Atravessei o mar em teleférico para ir ao balneário de Sentosa. Conheci amigos de minha mulher. Almocei com colegas. Um dos momentos mais encantadores foi um jantar a dois, em um bairro animado, à beira do rio, em um restaurante belga.

No Museu Nacional, gostei especialmente de uma exposição intitulada Singapore, Very Old Tree. A mostra exibe fotos do artista singapurense Robert Zhao que retratam 17 árvores locais e, ao lado delas, pessoas para as quais elas são importantes, e cujas existências talvez sejam, em parte, definidas por essas árvores.

Singapura é uma cidade notavelmente verde. Versos de um poeta singapurense, Gilbert Koh, lembram ser essa abundância de árvores o resultado deliberado de um projeto pessoal de planejamento urbano de Lee Kuan Yew, o fundador do país e seu primeiro-ministro até 1990:  

Let there be trees, the man said, and lo and behold,
there were trees — rain trees, angsanas, flames of the forest,
casuarinas, traveller´s palms and more — springing up against
the steel and concrete of the expanding city.  

Cada foto de Robert Zhao é acompanhada de explicações sobre a localização daquela árvore específica, sua importância para a pessoa mostrada ao seu lado.

A foto mais simétrica e despojada é a de uma casuarina conhecida como “The Wedding Tree”, onde recém-casados gostam de ser retratados. Sentado ao pé da bela árvore solitária, vemos o fotógrafo especializado em casamentos que já registrou ali mais de cem retratos de jovens recém-casados.

Uma história, mais do que outras, me deteve. É a que trata da foto de uma árvore imponente em frente ao prédio da Escola de Artes, diante do qual minha mulher e eu havíamos passado a pé, poucos minutos antes, a caminho do museu. Trata-se de uma angsana, ou jacarandá da Birmânia, ou pau-brasil de Andaman. Seu nome científico é Pterocarpus indicus. O texto do artista explica que a fachada da Escola de Artes foi planejada de forma a preservar essa árvore. Cita uma ex-aluna de teatro lembrando que uma vez, ao se deitar à sua sombra antes de uma representação, conseguira acalmar o seu medo do palco.

Fiquei incomodado de não ter notado a árvore, ao passar frente ao prédio. Mais tarde, em casa, descobri que ela na verdade já não existe. Foi abatida em 2018, porque seu estado de conservação precário — tinha 40 anos segundo a imprensa, 60 segundo Robert Zhao — colocava em risco a segurança dos alunos. A retirada da angsana, tratada como celebridade, foi extensamente divulgada na época. Houve homenagens nos dias anteriores. Alunos e professores despediram-se da grande árvore. Passando frente à Escola de Artes uns dias depois, notei que, no lugar onde existira a angsana, há agora uma escultura verde, no degrau, representando a sua semente. Não se pode deixar de respeitar uma sociedade que homenageia com uma escultura o exemplar específico, desaparecido, de uma árvore.

Assim como o convívio de Gurov e Ana na Crimeia precisou terminar, minhas férias singapurenses atingiam a reta final. Veio o momento do regresso a Kuala Lumpur. Sabíamos, porém, que logo nos veríamos novamente, por causa das festas de final de ano. O relativo abrandamento das restrições às viagens entre os dois países parecia permitir algum otimismo.

“Começaria uma vida nova e bela”, esperam Gurov e Ana no final do conto de Tchekhov. Nesse mesmo espírito, embarquei para Kuala Lumpur, desejoso aliás de rever Kiki, que por causa da minha ausência começara uma greve de fome. O voo já ia decolar quando lembrei ser aquele mesmo dia o aniversário da morte brutal, na adolescência, do meu irmão. Nunca, nos anos anteriores, eu passara tão incólume por essa data.  

Não podia imaginar no avião que, por causa da nova variante do vírus, as regras para viagens mudariam novamente. E que, menos de três semanas depois, em 31 de dezembro, eu teria de autorizar o veterinário a dar a Kiki a injeção fatal.  

As dificuldades e as complicações apenas se iniciavam. Começava o Ano do Tigre.

Esta XIV Carta da Malásia foi primeiro publicada, em 22 de janeiro, na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte

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Visitando Lord Murugan

Visitando Lord Murugan

Uma das maiores atrações turísticas dos arredores de Kuala Lumpur são as Cavernas de Batu. Até chegar à Malásia, no final de janeiro de 2020, eu nunca ouvira falar nelas. Minha mulher, a caminho de Singapura, veio comigo e passou cinco dias. No fim de semana, procurei na Internet o que seria mais interessante visitarmos. As Cavernas de Batu eram recomendadas em todos os guias turísticos, pela singularidade de conterem, engastado na encosta de uma montanha, um dos maiores templos do hinduísmo fora da Índia.

Essa era a época feliz, pré-pandemia. O novo coronavírus era algo de que, mesmo no Sudeste Asiático, ouvíamos falar como uma coisa vaga, de alcance potencial ainda incerto. Sabíamos apenas que uma doença surgira na China, causada por um vírus novo. Muitos em Kuala Lumpur se perguntavam se a Malásia seria atingida, mas não se previa o grau duradouro de transtorno que todos iríamos enfrentar.

Fomos às Cavernas de Batu. Elas ficam dentro de um morro de calcário no Estado de Selangor, a apenas uns 20 minutos de carro do centro de Kuala Lumpur. “Batu” significa “pedra” em malásio. Chegando lá, descobrimos um universo bem diferente do bairro ocidentalizado onde moro na capital, o Kuala Lumpur City Center, conhecido como KLCC. Embora eu tenha estado na Índia duas vezes, todo o pressuposto cultural e religioso das Cavernas era desconhecido para mim.

A maioria dos malásios descendentes de indianos são da etnia tâmil. Os tâmeis manifestam devoção especial pelo deus da guerra do hinduísmo, Kartikeya, conhecido por vários outros nomes, inclusive Murugan. Ele é filho de Shiva e Parvati e irmão de Ganesha, o deus com cabeça de elefante. As Cavernas de Batu, juntas, formam um templo dedicado a Lord Murugan, como ele é chamado.

Quando, estudante universitário em Londres, eu fazia da National Gallery a minha segunda casa, eu gostava particularmente dos primitivos italianos, quadros do final do século XIII ao século XIV. Quase sempre, eles retratam, sobre um fundo dourado, histórias de santos, ou Madonas ou cenas da vida de Jesus. Não só nomes famosos da história da arte, como Cimabue, Duccio e Giotto faziam parte da minha experiência estética; eu me entusiasmava também com artistas excelentes mas menos celebrados, como Bernardo Daddi e Lorenzo Veneziano. Naquele tempo, eu conhecia detalhes de seus quadros de cor, e sabia exatamente onde encontrá-los no museu, e ia ao menos uma vez por semana revê-los, de tarde, depois das aulas, beneficiando-me do acesso gratuito. Hoje, com a exceção dos artistas mais conhecidos, os demais tornaram-se para mim apenas nomes vagos. Embora eu ainda me emocione ao ver suas obras em museus pelo mundo, a intimidade se perdeu. Aos 20 anos, eu teria ficado surpreso de ouvir que, um dia, eu esqueceria amigos como Barnaba da Modena (falecido em 1386) e Ugolino di Nerio (morto em 1349), que meus pensamentos já não seriam povoados pelas suas obras. Tornaram-se para mim uma referência obscura.

Naquela época, começava o auge do turismo japonês à Europa. Eu ficava me perguntando como uma pessoa de cultura oriental via e sentia aquelas pinturas que ilustravam cenas bíblicas. Ingenuamente, eu não percebia que, mesmo para um ocidental, as histórias ou lendas retratadas em obras produzidas seis ou sete séculos antes poderiam ter perdido seu sentido intelectual ou espiritual. Posso admirar esteticamente, se estiver em Londres e for à National Gallery, o quadro de Francesco da Rimini (morto em 1348) intitulado Visão da Bem-Aventurada Clara da Rimini. Não sei porém quem foi Clara da Rimini — entendo apenas que não é a famosa Santa Clara de Assis, a amiga de São Francisco — e nem que visão ela teve.

Tampouco me ocorreu prever, na inocência dos 20 anos, que, mais tarde, ao pisar no Oriente, eu lamentaria a minha ignorância das línguas, dos costumes, das religiões, da História, das literaturas dos povos asiáticos. Já aos 30 anos, na minha primeira viagem à Ásia, a uma reunião em Kyoto, eu perceberia o quanto uma cultura pode ser impermeável, quando não dominamos seus códigos. Gostar de sushi não basta para tornar alguém um experiente japonista. No fim de semana, em Kyoto, visitei os jardins de pedra, os templos; tudo admirei, mas podia admirar apenas na superfície. Fiz essa viagem com meu chefe de então, Antonio Dayrell de Lima. Ele mais tarde se tornaria um grande amigo. Foi ele, por exemplo, quem alguns anos depois me fez passar a gostar, em Paris, do Musée Guimet. Até então, eu entrava no Guimet e, da arte oriental que ele contém, notava somente a profusão de Budas, considerando-a desnecessária, sem conseguir fazer distinção entre as diferentes estátuas.

Uma tarde, em Kyoto, Antonio e eu tomamos um chá. As duas bandejas contendo recipientes de comida e as tigelas de chá verde formavam uma obra de arte. Tudo era perfeito: naquelas bandejas, reinavam a simetria, a beleza e a serenidade. A própria cor intensa e a espessura do chá verde nada tinham a ver com o que eu estava acostumado a tomar no Brasil. Comentei com ele: “Como é possível tanta perfeição, tanta beleza em uma bandeja de comida?”. Meu então chefe, uma das pessoas mais inteligentes e irônicas que já conheci, respondeu, meditativamente mas ao mesmo tempo achando graça: “A ideia agora é você se compenetrar do fato de que toda essa harmonia será desfeita assim que você começar a comer ou a tomar o chá. A perspectiva de desfazer essa harmonia deveria provocar tristeza em você”.

Nas Cavernas de Batu, há beleza, mas não há harmonia ou serenidade. É outra cultura que a japonesa. A 20 minutos do centro de Kuala Lumpur, que lembra São Paulo, vê-se, respira-se a intensidade das cores, dos cheiros da Índia. Era como se minha mulher e eu tivéssemos tomado um avião, em vez de um carro, e viajado ao subcontinente indiano. Não há nada mais exuberante do que um templo hindu, pela profusão de estátuas multicoloridas.

Sobe-se à primeira e mais importante caverna por uma escadaria de concreto, com os 272 degraus de diferentes cores. No começo da subida, há uma estátua gigantesca de Lord Murugan, de quase 43 metros, pintada de dourado.

Eu sofro, desde a infância, de vertigem. A ideia de escalar uma montanha, mesmo por meio de degraus, é sempre problemática para mim. A ida é fácil. A volta, bem menos. Mas esse era um problema para mais tarde. Minha mulher e eu fomos subindo, animadamente.

É tudo bastante pitoresco. Há bandos de macacos ao longo dos degraus, e nos corrimões. Pertencem à espécie Macaca fascicularis, nomeada assim pelo administrador colonial inglês Sir Thomas Stamford Raffles, sobre quem já falei na segunda Carta da Malásia, Juru Damang, o Elefante Real. A presença do público nos degraus e dentro das cavernas não incomoda o macaco-caranguejeiro, como ele é conhecido em português.

A combinação dos degraus coloridos, da profusão de macacos, da beleza da montanha arborizada, mas onde o calcário é visível, da perspectiva de entrar em um templo dentro de cavernas, da lembrança da estátua colossal lá embaixo, tornam a subida uma experiência extraordinária.

Chegando à primeira caverna, que é a principal, ficamos nos perguntando se valeria a pena subir mais. As seguintes, imaginamos, seriam mais escuras e opressivas. Depois de alguns minutos, fui sozinho à segunda caverna, que me pareceu, de fato, mais inquietante do que a primeira. Havia urina no chão, o cheiro era forte. O problema maior, porém, era outro. Talvez este seja um bom momento para revelar que, além de vertigem, eu sofro de claustrofobia. Desci as escadas e juntei-me rapidamente à minha mulher na primeira caverna.

Ao iniciar a descida, vi, ao longe, a silhueta dos arranha-céus de Kuala Lumpur. Depois, concentrei-me nos degraus, evitando olhar para o horizonte ou para muito abaixo na escadaria.

Duas semanas depois, no início de fevereiro, aconteceu o Festival de Thaipusam, que comemora a ocasião em que Parvati presenteia a seu filho Murugan uma lança para derrotar um demônio.  Na região metropolitana de Kuala Lumpur, é nas Cavernas de Batu que o Festival é comemorado, durante todo um fim de semana. Fui no sábado à tarde, a convite dos administradores do templo.

Ao chegar, fiquei impressionado com a multidão. Era um cenário bem diferente do que eu vira duas semanas antes, quando havia umas poucas centenas de visitantes nas Cavernas, na escadaria ou no solo. O Thaipusam concentrara não só boa parte da população de origem tâmil da capital, como milhares dos turistas estrangeiros de passagem por Kuala Lumpur. Parecia que o centro do mundo era ali. Disseram-me meus anfitriões que, todo ano, durante o fim de semana, centenas de milhares de pessoas participam do Festival. Julguei estarem todas ali naquele momento.

Muitos participantes do Festival vão às Cavernas de Batu caminhando em procissões, vestidos de amarelo, e fazem a ascensão ao templo nas cavernas carregando potes de leite na cabeça, como oferenda. Outros carregam na cabeça adereços pesados, presos por estacas ao corpo, aos lábios ou à língua, às vezes por meio de perfurações. Ver isso é penoso, e devemos então imaginar quão doloroso será praticar essa auto-mortificação. Os adereços frequentemente são adornados com plumas de pavão, animal associado a Murugan. Os devotos em estado de auto-mortificação chegam ao local exaustos, quase frenéticos de tão cansados, depois de caminhar quilômetros carregando os adereços. Precisam, às vezes, parar e descansar, antes de enfrentar as escadarias. Vêm acompanhados de músicos, cujos instrumentos emitem sons extremamente parecidos com uma batucada. Alguns carregam seus adereços acompanhando o ritmo da música, como se estivessem dançando. Enquanto isso, seguem em direção às escadarias as procissões dos portadores de leite, homens e mulheres, com túnicas em diferentes tons de amarelo, serenos, monásticos, dando a impressão de pertencer a uma religiosidade diferente da dos homens de torso nu, agitados, carregando as armações na cabeça.

Mais tarde, ao entardecer, tendo voltado para casa, coloquei fotos e vídeos do Festival nas redes sociais. Amigos brasileiros comentaram que parecia Carnaval. Queriam dizer que as cenas lembravam o nosso Carnaval de rua, com seus blocos, a música, a forte concentração humana, o clima de celebração. O Thaipusam, porém, é uma manifestação de espírito religioso, um ato de devoção, o que não é o caso do Carnaval.

Normalmente, evito multidões. Mas assim como, se estou no Rio no Carnaval, saio com a Banda de Ipanema; assim como, se estou no Rio no réveillon, vou à areia de Copacabana; ou, se estou em Paris, em qualquer momento, faço fila para entrar no Louvre; e também em Roma, para revisitar a Basílica de São Pedro, senti contentamento pleno de estar ali, aos pés da estátua colossal de Lord Murugan. Uma realidade nova, misteriosa, até então impossível de imaginar revelava-se aos meus olhos e aos meus ouvidos. Nada ao meu redor era banal. Por mais que eu estudasse aqueles costumes, aquela religião, aquele cenário, muito ficaria para sempre impermeável à minha compreensão.

Nesse dia, não subi ao templo dedicado a Lord Murugan. Pensei que haveria acotovelamento na escadaria e dentro das cavernas. Lembrei também que convinha deixar o espaço apertado para os devotos. Aquele era um dos dias mais importantes do ano para eles. Aproveitei para visitar, o que não pudera fazer na vez anterior, templos ao nível do solo, que homenageiam outras divindades do hinduísmo.

Depois, arrependi-me. Imaginei que o interior das cavernas, amontoado de pessoas fazendo suas devoções e suas oferendas, permitiria observações importantes. Reduziria, talvez, a distância cultural. Prometi a mim mesmo que, no Thaipusam de 2021, eu iria às cavernas.

Na volta a Kuala Lumpur, ao me despedir do jovem colega que fora ao Festival comigo, recomendei-lhe: “Lembra, ao entrar em casa, antes de ir brincar com teus filhos, de lavar as mãos primeiro”. Em apenas duas semanas, a consciência da pandemia se tornara profunda na Malásia. Em um mês, o primeiro confinamento começaria.

Ninguém sabia ainda mas, em 2021, o Thaipusam não seria comemorado. Não pude mais voltar às cavernas.

Esta XII Carta da Malásia foi primeiro publicada, em 21 de agosto de 2021, na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte

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Sibelius e as Ilusões

Sibelius e as Ilusões

Em abril, houve uma boa notícia. A sala de concertos da Orquestra Filarmônica da Malásia reabrira. Desde março do ano anterior, estivera fechada por causa da pandemia.

Nas poucas semanas transcorridas entre a minha chegada a Kuala Lumpur, em janeiro de 2020, e o lockdown provocado pela Covid-19 seis semanas depois, vários domingos à tarde atravessei o parque desenhado por Roberto Burle Marx para ir assistir a concertos. A orquestra costumava então se apresentar nas noites de sábado e, com o mesmo programa, no dia seguinte, em matinê. Ocasionalmente, havia também concertos de câmara na terça, ao final do dia.

Com a pandemia, tudo mudou. Frequentemente, neste terrível último ano, eu pensei nos músicos, muitos deles estrangeiros. Presumi — corretamente, parece — que a empresa estatal Petronas, que financia a Filarmônica, continuava pagando seus salários, mas em Cleópatra no Escritório, em maio do ano passado, comentei que, para um artista, a sobrevivência financeira não é tudo. O apreço, os aplausos, a admiração do público, o contato direto com ele, são igualmente importantes. No último ano, a orquestra pôde apenas gravar, ocasionalmente, concertos para seu canal no YouTube.

A Petronas é uma das maiores empresas do mundo. O “nas” vem de “nasional”, grafia da palavra em malásio. Quanto a “Petro”, refere-se àquilo mesmo que vem à mente. Em sua página na Internet, a estatal declara ser “the custodian of Malaysia’s national oil and gas resources”. Ela opera também no Brasil, desde que, em 2019, adquiriu em leilão o direito de exploração de três blocos na Bacia de Campos, dois deles individualmente, e o terceiro em associação com a empresa francesa Total e a estatal Qatar Petroleum. A Petronas também comprou da Petrobras, no mesmo ano, o direito de exploração e produção de 50% de dois blocos adicionais. É por isso que, em fevereiro de 2020, as revistas especializadas já consideravam a estatal malásia a quinta maior produtora de petróleo e gás natural no Brasil.

A empresa tem os recursos, como se vê, para financiar a fundo perdido a Filarmônica. De fato, em todos os concertos a que assisti, notei que a sala nunca ficava lotada. Algumas empresas privadas — a Mitsubishi me foi dada como exemplo — mantêm assinatura de camarotes.

A sala de concertos, instalada nas Torres Petronas, sede da estatal, e desenhada pelo mesmo arquiteto das torres, o argentino Cesar Pelli, foi inaugurada em 1998. A acústica é excelente, e a beleza da sala, que utiliza madeiras exclusivamente malásias, impressiona. O fundo do palco é ocupado por um gigantesco órgão alemão.

Parte do prazer de ir à sala de concertos é pensar no seu nome em malaio, Dewan Filharmonik Petronas. A palavra “dewan”, assim como suas variações, é oriunda do persa; tem origens antigas e ilustres. Em malaio, significa “sala”, “hall”. Por isso, a Câmara Baixa do Parlamento se chama Dewan Rakyat — a Casa do Povo, ou a Casa das Pessoas. Na Índia, durante o Império Mogol, o termo designava um alto funcionário, um ministro. Nossa palavra “divã” tem a mesma origem. Originalmente, era o assento na sala onde despachavam os que detinham o título de dewan. Há também o conceito de diwan para uma coleção de poemas de um mesmo autor. Assistir a um concerto, sentar-me na Dewan Filharmonik Petronas é, portanto, como ser lembrado de um conto de As Mil e Uma Noites.

Com a flexibilização das regras de isolamento físico na Malásia, a orquestra pôde enfim voltar a se apresentar em abril, com um concerto por semana, nas tardes de sábado, com duração de uma hora. Comprei entrada para 1º de maio. Por causa da pandemia, permitia-se então, e há vários meses, acesso ao parque por apenas um lugar, e exclusivamente para quem quisesse correr; precisei então contorná-lo para chegar às Torres. Esse já é, em si, um passeio bucólico, porque o caminho, um círculo imperfeito, é de lajotas, apenas para pedestres, pouco frequentado, e fica rodeado de um lado pelo prédio, baixo e longo, do centro de convenções, do outro pelo parque.

A Orquestra Filarmônica é de alta qualidade. Seu regente principal foi, de 2014 a 2015, um maestro brasileiro, Fabio Mechetti. No concerto do dia 1º de maio ela foi regida por um dos dois maestros residentes, o japonês Naohisa Furusawa.

Além do uso de máscara, registro de entrada por um aplicativo e medição de temperatura ­ — todas essas, medidas obrigatórias em qualquer local público na Malásia — a direção da orquestra decidira criar espaçamento de duas ou três poltronas vazias entre cada lugar ocupado.

O programa era exclusivamente Sibelius: “Valsa Triste”, “Andante Festivo”, “Suíte Karelia”, “O Cisne de Tuonela” e “Finlândia”. Isso, para mim, não era uma perspectiva entusiasmante. Quando eu era estudante em Londres, e podia assistir a concertos assiduamente, costumava evitar a música de Jean Sibelius, que me parecia lúgubre e enfadonha. Guardo uma lembrança particularmente triste de “O Cisne de Tuonela”, embora não consiga achar em minha coleção de antigos programas de teatro em que circunstância ouvi o poema sinfônico. Minha vontade de retomar em Kuala Lumpur uma vida com parâmetros normais, em vez de ditada pela pandemia, me fez porém querer enfrentar as tristezas de Sibelius, para poder voltar a ouvir a Filarmônica.

Pela primeira vez, não havia programa impresso. Era preciso baixá-lo pelo celular por meio de uma barra de códigos. Isso significa que jamais conseguirei encontrá-lo novamente no meu telefone. Sentado em uma das poltronas vermelhas da sala de concertos, isolado, pelo espaçamento, de qualquer outro membro da plateia, vi os músicos pouco a pouco entrando no palco.

O spalla, o eslovaco Peter Daniš, aparece, a orquestra afina os instrumentos e, então, surge o regente. O público, faminto há um ano por música ao vivo, aplaude com convicção. Já nas primeiras notas, em vez da tristeza que a música de Sibelius no passado provocava em mim, sinto apenas felicidade. Mesmo “O Cisne de Tuonela” injeta-me ânimo. Percebo que havia sido uma perda eu descartar Sibelius durante tantos anos.

Mais tarde, eu procuraria pela minha biblioteca toda referência ao compositor. Sobretudo, olharia com atenção as fotos de sua casa em Maisons de musiciens, um livro publicado em 1997 pelas Éditions du Chêne, com textos de Gérard Gefen e fotografias de Christine Bastin e Jacques Evrard. Na Introdução, Gérard Gefen alerta contra o ímpeto de, ao visitarmos a casa de um compositor apreciado, cairmos na armadilha de uma “manifestação de adoração extática”. No entanto, como ele menciona, “as casas dos grandes criadores, simplesmente porque foram mais bem preservadas do que as de seus contemporâneos anônimos” nos mostram “as formas de vida e os gostos de uma época”. De 1904 a 1957, quando morreu, Jean Sibelius morou no campo, a quarenta quilômetros de Helsinque. É possível que ver as fotos de sua casa não nos ajude a entender melhor a sua música, mas sem dúvida captamos algo de sua personalidade e seu estilo de vida. A fotografia da cozinha é particularmente sedutora. O espaço é todo em tons de branco e bege pálido, ensolarado, olhando para a floresta.

Mas minha sede pela vida de Sibelius aconteceria em casa. Durante o concerto, e logo depois, a sua música é que me interessou. Terminada a hora mágica, tendo a orquestra já abandonado o palco, saí da sala quase que por último. Parecia inacreditável que eu pudesse ter voltado ali, depois de mais de um ano. Semanas mais tarde, em uma videoconferência com o diretor-executivo da Filarmônica, Sareen Risham, comentei o quanto a apresentação de 1º de maio mudara minha percepção de Sibelius. Ele concordou que a orquestra e o regente estavam, de fato, “jubilantes” naquela tarde, pela alegria de poder tocar e reger em público depois de tanto tempo.

Três semanas antes do concerto de Sibelius, eu fora a um espetáculo de odissi, dança indiana clássica, por uma famosa companhia malásia, Sutra. Vira lá um embaixador europeu, contente porque, por causa da pandemia, não pudera ir ao teatro por um ano. Ri e respondi: “no meu caso, faz um ano e meio”. Depois do espetáculo, ele e eu, junto com alguns convidados malásios, fomos levados a uma sala reservada, para cumprimentarmos o fundador da Sutra, Ramli Ibrahim, que dançara em uma das coreografias.

Figura mítica das artes cênicas na Malásia, Ramli Ibrahim recebeu há alguns anos o título malásio de Datuk e também uma das grandes distinções civis da Índia, a medalha Padma Shri. Conversamos. Comentei que meu número preferido havia sido o inspirado em Surya, o deus do sol no hinduísmo. Conduzindo sua carruagem com sete cavalos, Surya levanta-se do mar ao amanhecer, atravessa o céu e traz luz ao mundo. A coreografia mostrava esse momento, incluindo os movimentos dos sete cavalos, de forma altamente eficaz.

Ramli Ibrahim estava feliz e exultante. No último ano, o espetáculo a que acabáramos de assistir tivera de ser adiado mais de uma vez, por causa das repetidas medidas de isolamento social. Pensei novamente nas agruras de ser um artista durante a pandemia.

Eu tinha já entrada para o concerto seguinte da Filarmônica, na tarde do sábado 8 de maio. Na noite desse mesmo dia, iria também à apresentação de uma ópera de Francis Poulenc por uma companhia de ópera local. Os sinais eram claramente de uma volta à normalidade.

Saindo da Dewan, atravessei o amplo corredor que leva da sala de concertos ao centro comercial — que aliás se chama Suria — aos pés das Petronas. Fui à livraria; fui ao supermercado. Voltando para casa pelo parque de Roberto Burle Marx, carregando minhas sacolas, escutei o koel asiático, que canta apenas no final da tarde e de manhã cedo. Fui caminhando, pensando que as fronteiras logo seriam abertas, e eu tiraria férias e poderia ver minha mulher em Singapura, minha filha em Bruxelas, sem ter de me preocupar com quarentenas ou providências burocráticas.

Não saio da Malásia desde o início de 2020 e de Kuala Lumpur desde janeiro de 2021, por causa das restrições até mesmo a viagens dentro do país. Pensei que meus projetos de viagem significariam encontrar antes um hotel em Kuala Lumpur onde deixar Kiki, a gata persa dourada.

O otimismo de que costumo dar demonstrações, e que impressionava meu pai, pareceu-me, enquanto eu caminhava pelo parque ouvindo o koel, cantarolando trechos de Sibelius e pensando na possibilidade de viajar, um raciocínio realista. Minha única preocupação era a provável reação de Kiki. Eu a magoaria, ao deixá-la sozinha por duas ou três semanas.

Poucos dias depois, o aumento nos casos de Covid-19 obrigou o governo malásio a determinar novas restrições na capital. O concerto do dia 8 de maio da Filarmônica foi cancelado, assim como a ópera de Poulenc. Em 1º de junho, novo confinamento completo foi decretado para todo o país. Até mesmo o único acesso ao parque ainda permitido foi fechado.

Não seria ainda agora que Kiki sentiria a minha falta.

Esta Carta da Malásia, a X, foi primeiro publicada, em 3 de julho, na revista de ideias Estado da Arte

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As torres mágicas

As torres mágicas

Hoje, quero apenas compartilhar fotos.

Desde a minha chegada a Kuala Lumpur, em janeiro de 2020, pude fotografar inúmeras vezes as famosas Torres Petronas, estruturas gêmeas que se tonaram o símbolo da capital da Malásia. As torres foram construídas pelo arquiteto César Pelli, entre 1993 e 1996.

Posso vê-las do apartamento onde moro, mas não tirei todas as fotos de dentro de casa.

Nos meus ensaios e crônicas, costumo falar nas Torres Petronas. Mais recentemente, eu as menciono na minha X Carta da Malásia, publicada em 3 de julho no periódico Estado da Arte.

Tenho pronta uma crônica sobre a experiência de vê-las cotidianamente. Talvez eu a publique em breve. Mas não hoje. Ainda não.

As fotos foram tiradas em dias, horários e condições climáticas diferentes. Diga de qual gosta mais — supondo, claro, que goste de alguma.

Talvez seja covardia eu incluir uma foto da Kiki. Ou talvez seja isso que dê graça à postagem.

Até breve.

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A Concubina

A Concubina

Há em Kuala Lumpur um bairro chinês que foi, durante décadas, já na época da colonização britânica, o centro comercial da cidade. Durante as poucas semanas entre minha chegada à capital, em janeiro do ano passado, e o início do primeiro isolamento físico, em março, lá estive algumas vezes. Sempre ia, porém, visitar templos ou pontos turísticos específicos, atravessando as ruas principais. Nunca havia explorado as vias secundárias.  

No primeiro domingo de abril, passado um ano de pandemia, quis conhecer alguns murais ao ar livre que sabia existir ali. Decidi começar o passeio almoçando em um restaurante recomendado pelos guias, Old China Café. O lugar serve comida nyonya, ou peranakan, como são chamadas a culinária e a cultura desenvolvidas pelos imigrantes chineses que, já no século XV, mas de forma mais maciça a partir do século XIX, se instalaram no que hoje são Malásia, Indonésia e Singapura, misturando-se com as populações nativas.

Entrei no café. No estreito espaço, havia apenas famílias de origem chinesa, com uma exceção. Em uma mesa perto de mim estavam duas senhoras ocidentais, ambas com o cabelo branco, e que se pareciam fisicamente. 

Hesitei se eu optaria pelo frango frito, que lera ser uma especialidade da casa, ou pelo peixe com molho agridoce. Escolhi o frango. Enquanto esperava, olhei à minha volta para formar uma opinião sobre o recinto. Eu o definiria como um café chinês da Belle Époque. Pequenas mesas redondas, de madeira escura, com tampo de mármore branco. Cadeiras também de madeira escura, de aparência antiga. Nas paredes, pinturas sobre papel, representando sábios e damas e caligrafia. Pensei que um chinês instruído que entrasse naquele café talvez reconhecesse cenas ou versos de poemas famosos. Senti uma vez mais o quanto as culturas orientais estão fora do nosso alcance, por não dominarmos as línguas em que elas se expressam. Podemos admirar a técnica, a beleza em uma pintura chinesa, mas esse prazer será estético, não intelectual. O que as cenas representam, o que a escrita revela, não podemos alcançar, a não ser que conheçamos a fundo aquela literatura e o idioma.

O frango frito chegou. Eram pedaços pequenos, com ossinho, de cor uniforme, acompanhados de uma tigela contendo um molho azedo. Usei as mãos para comer, depois de passar o álcool em gel que trouxera comigo. A primeira mordida me decepcionou. A temperatura do frango era abaixo de morna. Pensei em Kiki, a gata persa dourada. Lamentei ter saído de casa, deixando-a sozinha, para provar um frango frito no qual eu não via graça. Lembrei do olhar acusador, amuado, que dela recebera ao abrir a porta do apartamento para sair. Senti-me um traidor. Sentado ali, no Old China Café, segurando um pedaço de frango, pensar em Kiki sozinha no apartamento me fez ficar inquieto com minha mãe no Rio de Janeiro, minha irmã em Lisboa, minha filha em Bruxelas e minha mulher em Singapura. Percebi que eu estava prestes a me indagar sobre o sentido da vida.   

Controlei-me a tempo. Filosofar em torno a um frango frito não me levaria a parte alguma. A única conclusão possível sobre o novo coronavírus é a de que ele afetou negativamente a vida de todos. Isso já cria um ponto em comum entre nós. O vírus nos afasta fisicamente dos seres queridos, deixa-nos sós, mas o sofrimento e a preocupação que causa deveriam nos aproximar espiritualmente da humanidade. 

Considerei mais profícuo voltar minha atenção à refeição. Continuei mordiscando o frango. A carne na verdade era tenra e saborosa. A ave estava crocante por fora e macia por dentro. Mergulhada no molho, que era delicioso, ficava mesmo apetecível, apesar da baixa temperatura. Pensamentos positivos começaram a surgir. O ambiente no Old China Café me fez lembrar de minha primeira viagem fora da capital, em julho do ano passado, objeto da primeira Carta da Malásia, A Ásia em Penang. Um dos centros da imigração chinesa e da cultura Nyonya, a ilha de Penang abriga, no seu centro histórico, George Town, um bem conservado bairro chinês. O frango perfeitamente frito, macio, acompanhado daquele molho exótico, podia ser encarado como uma aventura gastronômica tão estimulante quanto as refeições que eu fizera na ilha em julho.

Terminado o almoço, saí do restaurante. As duas senhoras ocidentais lá continuavam. No dia seguinte, de manhã, ao sair para o trabalho, eu descobriria que uma delas é minha vizinha, pois passaria por mim na portaria do prédio onde moro, vestida ela também de maneira mais formal do que no domingo.

Na rua, meu espírito era já outro. O frango frito e seu molho me haviam deixado contente. Pensei em um comentário habitual de minha mulher, de que sempre sabe quando chega a hora do almoço porque, quando eu sinto fome, começo a ver tudo pelo lado mais sombrio.

Em termos geográficos, eu me encontrava na parte ocidental do trecho menos movimentado da rua mais turística do bairro chinês, chamada Petaling, que é um verdadeiro bazar, onde são vendidos roupas e acessórios de marca a preços acessíveis, de origem porém incerta.

Ao meu redor, havia pequenas ruas e becos que eu desconhecia por completo. Virando a esquina, vi a loja da Beryl´s, um chocolate malásio do qual deixei-me tornar dependente, e cuja especialidade são amêndoas cobertas em chocolate ao leite, ou amargo, ou branco, ou ao chá verde. Sou, por razões médicas, proibido de ingerir cacau, sob o risco real de encurtar minha vida, e isso cria um dilema. Chocolate me dá sono de noite se estou insone, me deixa desperto de dia se estou sonolento, me dá energia se estou apático, e me acalma se estou agitado. Em suma, resolve tudo. Renunciar a ele é uma luta cotidiana, e frequentemente perdida. No interior elegante da loja, há um mural representando crianças felizes — presumivelmente por poderem comer chocolate sem culpa — e arranha-céus de Kuala Lumpur, entre eles as Torres Petronas.

No muro lateral da Beryl’s, que dá para uma viela curta e estreita, vi a pintura que eu mais desejava conhecer, uma das atrações famosas do bairro chinês, O Ourives, da artista russa Julia Volchkova.

Continuando pela viela, logo cheguei a outra rua, onde há uma sequência de pitorescas casas amarelas. À direita, notei um beco fechado por uma grade, diante da qual pessoas faziam fila. Um guarda me explicou tratar-se de um lugar muito frequentado, por causa de seus murais e alguns bares. A Covid obrigava a que apenas poucas pessoas fossem autorizadas a permanecer no local simultaneamente. Juntei-me à fila, sob o sol tremendo e o excessivo calor. A espera foi curta. O nome do beco, Kwai Chai Hong, parece querer dizer, em cantonês, algo como “Brincalhão” ou “Malandrinho”. Compõe-se de duas curtíssimas ruas de pedestres, que formam um “T”, onde os muros são cobertos de murais, lembrando o espírito descontraído de Penang. Nenhum de meus guias fala nesse lugar, e descobri-lo por acaso foi uma boa surpresa. Parecia que eu estava a anos-luz da Kuala Lumpur moderna onde moro. Deixei-me levar pela levíssima sensação de estar fora do tempo, em nova realidade.

Ao abandonar o Malandrinho, de volta à rua, caminhei frente às casas amarelas. Pela janela aberta de uma delas, vi um painel na parede que me levou a entrar. Diante de mim, estava um enorme retrato de Ava Gardner. Bem, não realmente. Tratava-se de uma mulher oriental. Algo nela, porém — talvez a grande beleza, o cabelo escuro, o olhar direto e o ar de independência que a figura comunicava — me fez pensar na atriz hollywoodiana. Esta, segundo Sérgio Augusto em sua coletânea de ensaios sobre cinema, Vai Começar a Sessão, “é até hoje considerada a mulher mais linda de todos os tempos”. 

Entendi que eu entrara em um restaurante, cuja sala era no segundo andar. No térreo, nada havia se não Ava Gardner, um bar e a escada que levava ao andar de cima. Em um letreiro de neon, letras estilizadas como um caractere em mandarim formavam o nome do restaurante. Chamava-se Concubine.

Não pude me impedir de rir. Eu estava justamente lendo — e o deixara em cima da cama para ir explorar o bairro chinês — um livro lançado em 2020 pelo historiador britânico Robert Bartlett, intitulado Blood Royal, Dynastic Politics in Medieval Europe, onde o conceito de concubina é relevante. No começo da Idade Média, a concubina real era algo superior, moralmente, à amante casual, particularmente entre os Merovíngios e os Carolíngios. No caso da primeira dinastia, não havia impedimento formal a que o rei fosse sucedido por filho tido de uma concubina. O livro contém subcapítulos com títulos como: “Esperando a Morte do Pai” (atividade principal de todo príncipe herdeiro, na Idade Média como hoje), “Reis Bastardos”, “Madrastas”, “Rainhas Adúlteras”, “Matando os Primos” e — este é o meu predileto — “Tios Malvados” (“Wicked Uncles”). São exemplos desse tipo encantador de tio os príncipes que, para aceder ao trono, precisavam primeiro eliminar fisicamente — e às vezes o faziam com as próprias mãos — o sobrinho, rei menor de idade. Ler o estudo de Robert Bartlett é como segurar nas mãos o roteiro de Game of Thrones, faltando apenas os dragões. George R. R. Martin, autor dos livros que deram origem à série de televisão, notoriamente inspirou-se de eventos verdadeiros da Idade Média e também em um conjunto de romances históricos de Maurice Druon, Les Rois Maudits, que já faziam meu encanto na infância e cujos heróis aparecem, com roupagem acadêmica e não ficcional, no volume de Robert Bartlett.

Procurei na Internet quem seria a Ava Gardner do Concubine. Trata-se da modelo chinesa Fei Fei Sun. O pintor é o artista malásio Najib Bamadhaj.

Isso me fez voltar à realidade. Eu estava no universo do bairro chinês de Kuala Lumpur, não na corte de Filipe, o Belo, e suas noras, as princesas adúlteras, e muito menos na corte de Cersei Lannister e seus crimes em King’s Landing. As concubinas que haviam dado origem ao nome do restaurante não eram as de Carlos Magno, mas as dos enriquecidos imigrantes chineses. Todo aquele canto da cidade, no passado, havia sido um local de jogatinas, bebedeiras e belas cortesãs. Exatamente como em George Town, em Penang, onde existe uma via conhecida como Love Lane, porque ali, diz a tradição, moravam as amantes dos ricos chineses que residiam, com suas famílias, em uma rua adjacente. Os maridos saíam de casa dizendo que iam passear, andavam poucos metros e já estavam em questões de minutos nos braços de suas concubinas.

A tarde avançava. O passeio terminava. Uma gata me esperava.

Voltei à rua da loja da Beryl’s. Do lado esquerdo na calçada, eu notara mais cedo, havia um café, onde uma das atrações era um chocolate quente, cujo ingrediente principal vinha do chocolateiro vizinho. Sentei-me. Logo colocaram frente a mim, na mesa, o melhor chocolate quente da minha vida. A ele só podem se igualar, embora de sabores diferentes, dois outros. Um deles foi tomado há quase trinta anos em um café em Barcelona; o outro é de vez em quando preparado em casa pela minha mulher, derretendo a barra de chocolate no fogo baixo com manteiga.

A experiência durou uns poucos minutos. Enquanto eu olhava dentro da xícara já vazia, sorri.   

Este texto, VIII Carta da Malásia, foi publicada no Estado da Arte em 17 de abril

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A Tinta dos Seres Bons

A Tinta dos Seres Bons

Como toda grande cidade, Kuala Lumpur requer tempo para ser dominada. Desde que cheguei, há pouco mais de um ano, as recorrentes ondas de isolamento social obrigatório limitaram meu aprendizado. Muito do que descobri na capital malásia é resultado das semanas logo após a chegada, antes do primeiro fechamento provocado pela pandemia, iniciado em 18 de março de 2020.

Há alguns meses eu vinha querendo visitar uma livraria independente, Tintabudi, de que ouvira falar. No mapa, notei que ela ficava, e isto era um atrativo, em uma área que eu não conhecia, a uns dez, talvez quinze minutos de carro da minha casa, e bastante perto do antigo bairro chinês.

A rigor, eu não precisava de mais uma livraria. A maior da capital, Kinokunyia, fica a dez minutos a pé de onde moro, do outro lado do parque desenhado por Roberto Burle Marx. Tenho o cartão de usuário frequente, o que me dá um desconto, e vou lá tanto que fiquei amigo de um dos gerentes, Arthur, malásio de origem chinesa, que entende como poucos de música brasileira, sendo por ela apaixonado. Outro nessa situação é um dos nove sultões do país, que considera Tom Jobim o seu compositor predileto. Nosso “soft power” está associado à música, além do futebol. No aniversário de Tom Jobim, em 25 de janeiro, Arthur me escreveu, manifestando a certeza de que os brasileiros “remember the maestro with fondness and gratitude”. Esse certamente é o meu caso; naquele mesmo dia eu fizera um tuíte com o vídeo de 1974 do músico e Elis Regina cantando Águas de Março.

No último domingo de fevereiro, depois de terminar a primeira temporada de uma série policial belga excelente, La Trêve, pensei que eu precisava sair e me recuperar dos assassinatos vistos na tela. Fechando o laptop, olhei pela janela. O dia estava nublado, sem sol, mas não chovia. Isso é uma raridade em Kuala Lumpur, onde faz trinta graus sempre, seja com sol e céu azul, seja com chuva, a qual pode durar poucos minutos ou uma ou duas horas. Na verdade, o tempo lá fora, cinza e com o teto baixo, lembrava justamente a Bélgica, embora não a Bélgica da série. Estranhamente, em La Trêve sempre faz sol, e os personagens, antes de assassinar ou ser assassinados, vivem continuamente, em suas aldeias e florestas nas Ardenas, em uma radiante primavera. Eram quatro da tarde. Resolvi sair da rotina e ir à livraria independente. Desci e chamei um “Grab”, o Uber da Malásia e de Singapura.

O trajeto relativamente curto até a Tintabudi atravessava cantos que eu nunca vira. Havia canteiros de obras por toda parte, mas isso não é novidade na capital, cuja área metropolitana contém 8 milhões de habitantes e onde a construção civil nunca se interrompe, de dia ou de noite. De repente, o motorista de “Grab” parou o carro. Tínhamos chegado.

Kuala Lumpur é hoje um símbolo da modernidade. Por todo lado, há telões em fachadas de prédios mostrando anúncios em 3D, há viadutos suspensos onde o metrô passa ao ar livre, passarelas, túneis aéreos para pedestres e edifícios espetaculares como as gêmeas, e famosas, Torres Petronas. No Natal, um jornalista brasileiro, conhecido pela ironia sutil, me escreveu: “Deve ser curioso celebrar o nascimento de Jesus no cenário de Blade Runner”. Ele não sabia, mas a tese da minha mulher foi a primeira no mundo inteiro sobre Philip K. Dick, que era então um autor pouco conhecido. Vendo Kuala Lumpur pelos olhos dela, posso entender a associação com Blade Runner.

Ao sair do “Grab”, porém, o cenário que vi nada tinha de futurístico. Eu estava frente a um prédio de quatro andares, da década de 50, conhecido como “the Zhongshan Building”. Ele não me pareceu muito diferente de alguns edifícios pequenos, antigos de Copacabana ou Ipanema. Deve ter sido um marco na Kuala Lumpur de setenta anos atrás, quando a cidade ainda não era a sede de um país independente e não iniciara seu processo de verticalização. O lugar me pareceu tão descampado, tão ermo e vazio, naquela tarde cinzenta de domingo, que perguntei ao motorista, com alguma ingenuidade, se dali eu conseguiria condução de volta. Por causa da pandemia, quinze minutos de carro a um lugar novo parecem hoje uma tremenda aventura.

Atrás do Zhongshan Building, reconheci a onipresente torre azul em construção, certamente mais distante do que alguma ilusão de ótica fazia crer. Quando essa obra terminar, talvez ainda em 2021, mais provavelmente em 2022, a torre será o segundo prédio mais alto do mundo. Dependendo da fonte, sua altura final prevista varia de 635 a 678,9 metros. Dos seus 118 andares, 83 serão de escritórios; os restantes serão ocupados por um hotel e restaurantes.

Minha atenção estava porém focalizada no infinitamente mais modesto edifício Zhongshan. Ele abriga lojas pequenas, todas elas modernosas, elegantes e alternativas. Um americano, para definir o espírito do lugar, diria que é “hipster”. Um francês diria que é “bobo”, com o acento tônico no segundo “o”. No térreo, em uma botica decorada com madeira clara, todos os produtos são preparados sem componentes químicos e vendidos em frascos de vidro marrom. Ao lado, uma lojinha de tons pálidos vende cadernos e cadernetas de couro, perto de um café-padaria onde depois me arrependi de não ter ido me sentar. Sei que há pelo prédio uma galeria de arte e lojas de roupas e objetos de decoração, mas não as visitei.

Iniciei a subida até a livraria, que fica no segundo andar. Na metade do caminho, vi uma loja de discos, Tandang, e entrei. O recinto era mínimo e sedutor. A especialidade era punk rock. Gostei da música que estava tocando naquele momento. Descobri tratar-se de The Father, de um grupo de roots reggae inglês chamado Black Roots. O disco, In Session, fora lançado quando eu estudava em Londres. No entanto, eu nunca ouvira aquela canção ou, se a ouvi, minha memória não a registrou. Na época, aos vinte anos, eu estava sempre na universidade ou em algum museu, no teatro ou na ópera. Havia muito pouco tempo disponível para roots reggae na minha vida, inclusive porque eu nem conhecia o conceito, que só descobri no último domingo de fevereiro.

Voltei às escadas. Subi mais um andar e entrei na Tintabudi. Se a loja de discos era mínima, a de livros conseguia ser mais diminuta ainda. Fiquei me perguntando se aquela seria a menor livraria que eu já vira, ou se esse título caberia à Bahrisons de Khan Market, em Nova Delhi, que visitei em 2017 e de que falei, mostrando uma foto do seu interior, em Seis Livrarias.

Como espaço, a Bahrisons, apenas um curto corredor estreito, é sem dúvida menor, mas lá isso é compensado pelo fato de os livros à mostra, empilhados até o teto, preencherem todos os recantos. Na Tintabudi, uma pequena sala quadricular, não há empilhamento de livros. Organizada e aconchegante, ela poderia ser a biblioteca de uma casa particular.

Conversei com Nazir, o proprietário, um jovem malaio. Disse-me que seu nome pode ser traduzido como “aquele que traz a notícia”, o que achei premonitório para um livreiro. Perguntei seu critério para selecionar os volumes, tendo em vista o tamanho reduzido da loja. Respondeu-me: “Escolho para vender apenas os livros que quero ler”. Ele me explicou o nome da livraria.

Até a nossa conversa, eu não me dera conta de que “tinta” em malásio significa isso mesmo, tinta. A presença de Portugal em Malaca, por 130 anos, teve consequências também para o idioma. Assim como tinta é “tinta”, armário é “almari” e igreja é “gereja” (pronuncia-se “greja”). Já “budi” parece ter um sentido mais complexo. Segundo Nazir, é uma palavra oriunda do sânscrito e incorporada ao vocabulário malásio. Significa algo como “o espírito da bondade e da racionalidade do ser humano”. Uma tradução literal do nome da livraria seria talvez algo como: “Os Textos Produzidos pela Tinta dos Seres Bons”. Qualquer variação em que se possa pensar fará desse nome algo lindamente apropriado para uma livraria.

Em razão do pequeno espaço, a Tintabudi necessariamente tem de se especializar. Concentra-se em história dos países asiáticos, poesia, filosofia, temas contemporâneos. Notei forte presença de autores latino-americanos: Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Vargas Llosa, um Jorge Amado — Dona Flor e Seus Dois Maridos — de segunda mão em espanhol, e Clarice Lispector, com a tradução por Benjamin Moser de A Hora da Estrela. Há livros recentes e antigos, novos e de segunda mão.

Namorei a bonita edição de uma coletânea de poetas persas preparada por Abbas Kiarostami, mas era cara. Cedi, no entanto, ao ímpeto de comprar três livros:

Os ensaios de Julian Barnes sobre arte, coletados em 2020 em Keeping an Eye Open, eu já cobiçava há várias semanas, desde que vira o volume na Kinokunyia. O livro de Joan Didion, Let Me Tell You What I Mean, publicado este ano, junta textos antigos — a maioria é de 1968, e o mais recente de 2000 — concisos e cirúrgicos. É cruel a forma como, em “Pretty Nancy”, de 1968, ela destrói Nancy Reagan, cujo marido era na ocasião governador da Califórnia, sem usar uma palavra maldosa sequer. Ela só constata e descreve. Em outro texto, “Why I Write” ela diz: “Had I been blessed with even limited access to my own mind there would have been no reason to write. I write entirely to find out what I´m thinking”. A descrição, em “A Trip to Xanadu”, da visita ao célebre castelo de William Randolph Hearst em San Simeon conclui com a frase: “Make a place available to the eyes, and in certain ways it is no longer available to the imagination”. Comprei o terceiro livro, Horace and Me, porque achei que seria um bom presente para um amigo latinista. Ao chegar em casa e começar a lê-lo, achei tão divertido o tom do autor, o jornalista inglês Harry Eyres, ao falar da sua devoção antiga, desde o colégio — e o colégio era Eton — ao poeta Horácio, que decidi segurá-lo comigo, pelo menos por alguns dias ou semanas. Um capítulo começa com a frase: “I did not always get on with Horace”.

A tarde terminava. Era hora de partir. Ao chegar em casa, depois de alimentar Kiki, a gata persa dourada, tentei descobrir o significado do nome do prédio. Zhongshan é uma cidade na província de Cantão, assim renomeada em 1925 em homenagem a um de seus filhos nativos, considerado o pai da república chinesa, Sun Yat-sen, morto naquele ano. Em 2017, em minha única viagem à China até hoje, visitei o mausoléu de Sun Yat-sen em Nanjing. Sem que eu soubesse disto, ele é mais conhecido na China como Sun Zhongshan, sendo este último nome a pronúncia em mandarim do pseudônimo em japonês que ele precisou adotar ao se exilar no Japão, no ocaso da China imperial. Devemos supor que a família construtora do prédio, de origem cantonesa, ou era oriunda de Zhongshan ou quis prestar tributo ao pai da república chinesa. Alguns dias depois, eu descobriria que Sun Yat-sen, no começo do século XX, morou em Penang, onde há mesmo um museu em sua homenagem. Tenciono visitá-lo quando as viagens internas pela Malásia voltarem a ser permitidas.

No dia seguinte, no trabalho, contei vantagem a meus colaboradores brasileiros sobre o lugar moderninho, “transado”, inovador, o prédio Zhongshan, que eu descobrira. Recomendei, paternalmente, que lá fossem. De uma das minhas colaboradoras, muito jovem, ouvi: “Eu vou muito a esse lugar. Costuma haver festas com rock em um espaço no último andar”.

Tão lapidar quanto Joan Didion.

Esta é a VIII Carta da Malásia, publicada primeiro em Estado da Arte em 6 de março de 2021.

Posteriormente, versão mais curta foi publicada, em 15 de abril, em inglês, na página eletrônica do jornal Sin Chew Daily e, em17 de abril, em mandarim, na versão impressa do jornal, que é o de maior circulação na Malásia.

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Ilhas Misteriosas

Ilhas Misteriosas

Reis, rainhas, sultões, elefantes reais, ilhas misteriosas, frutas exóticas, praias desertas, epopeias, o Mar do Sul da China e mesmo Proust — sim, mesmo ele — estão todos lá, nas cinco Cartas da Malásia que já publiquei, desde julho, em Estado da Arte.

Elas podem agora ser lidas também aqui, em qualquer ordem, pois cada uma é independente.

Carta I: A Ásia em Penang

  • Na ilha de Penang, a Malásia revela ser uma condensação da Ásia

Carta II: Juru Damang, o Elefante Real

  • Descubro Malaca e um elefante do século XVI

Carta III: A Petrópolis dos Mares do Sul

  • A herança britânica na Malásia

Carta IV: A Viagem a Balbec

  • Uma praia no Mar do Sul da China me faz pensar em Proust

Carta V: As Cartas em Istana Negara

  • Com o rei e a rainha, converso sobre futebol e banana com canela

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Kiki em Kuala Lumpur

Kiki em Kuala Lumpur

Em novembro, minha insônia piorou. Nunca fui de dormir bem, mas naquele momento a situação tornou-se dramática. Eu acordava uma ou duas horas depois de adormecer; nada me fazia ter sono de novo. Lia, tomava cálcio, ficava deitado tentando pensar em prados verdes onde pastavam ovelhas brancas. Nenhum resultado. À primeira luz do sol, eu conseguia adormecer, mas pouco depois tinha de me levantar para ir trabalhar. Atravessava os dias cansado, pensando no momento em que poderia deitar-me novamente e procurar o sono. O mesmo ritual porém me esperava: dormir, acordar depois de poucas horas, ficar revirando na cama, passar o dia exausto.

Claramente, algo me preocupava. E eu sabia o que era. Seu nome era Kiki. O que passava pela minha cabeça toda noite e me causava extrema preocupação era o que fazer com a gata persa, diante da nossa próxima partida, em janeiro, para trabalhar na Ásia.

Toda minha vida, estive rodeado por animais domésticos. Com dois anos, já apareço em fotos com um cachorro vira-lata, pequeno e encantador, chamado Bahia. Na Bélgica, onde morei primeiro dos seis aos onze anos, a casa em Rhode-Saint-Genèse mais parecia uma reserva de animais. Havia sempre um cachorro, em geral dois gatos, uma tartaruga, e um fértil casal de periquitos, que procriava a toda hora. Houve aliás dois casais em sucessão, o primeiro integrado por Lune e Soleil, o segundo por Joséphine e Napoléon. Não lembro se o segundo casal de periquitos era filho do primeiro, e nem que destino era dado às sucessivas ninhadas.

Kiki é o meu nono gato desde a infância. O mais longevo foi James, que morreu em Brasília em janeiro de 2018, aos dezenove anos. Era um gato enorme, preto, com o ventre, as patas e o focinho brancos.

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“Morreu” é um triste eufemismo, pois na verdade tivemos de mandar sacrificá-lo. James estava com câncer e todo dia ficava mais frágil. Um dia, a veterinária explicou que chegara o momento de libertá-lo da dor. Essa não foi uma decisão fácil. James nascera na nossa cama, de madrugada, em Quito. Sua mãe, Cory, como ele uma gata vira-lata preta e branca, nos pertencia. Ao sentir que o parto era iminente, ela viera até nós, em um gesto de confiança e carinho.

Marcamos dia e hora. A veterinária veio com um assistente. Enquanto ele abria uma pequena cova no quintal de casa, eu, em outro canto, segurava James nos braços. A injeção entrou. Nada aconteceu. Foi preciso aplicar uma segunda dose. Ele morreu. Depois, minha mulher e eu conversamos sobre o quanto a personalidade de James evoluíra ao longo do tempo. Nascido na nossa frente, ele era porém um gato extremamente arredio, propenso a rosnar com todos, menos com minha mulher, que ele aceitava e no colo de quem gostava de se aninhar. Na velhice, tornou-se manso e carinhoso e começou a me procurar e a se aconchegar comigo. Durante seus dezenove anos, manteve sempre um olhar de quem sente falta de algo. Parecia buscar alguma coisa bem específica no horizonte. Era um gato metafísico. Possuía também um ar altaneiro, majestático, com o porte indicando superioridade. Nossa filha, quando ainda criança, em Quito, dera-lhe o apelido de “Señor Presidente”. Em sua velhice eu o chamava, em espanhol, de “Jaimito”.

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James não foi o primeiro caso em que tivemos de permitir a aplicação da injeção da felicidade eterna. Em fevereiro de 2012, acontecera o mesmo com nossa golden retriever, Missy, meu quinto cachorro. Sobre o quarto, Arusha, uma basset hound, contei em Capitu, a Garota de Ipanema, ser ela a heroína de um livro de meu pai. Nascida em Brasília, Arusha morou em Londres, voltou para Brasília, e morreu de morte violenta em Viena, na casa de minha mãe. Um dia, de madrugada, na exata hora em que meu irmão — o que só viríamos a saber poucas horas depois — morria no hospital, em Brasília, quando éramos adolescentes, Arusha foi ao quarto dele e começou a se agitar. Acordados com o barulho, fomos ver o que estava acontecendo. Lá estava ela, sentada na cama do meu irmão, com a cabeça levantada em direção ao teto, uivando.

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Muitas vezes me arrependi de não ter escrito um livro sobre Missy. Em Quito, em março de 1998, decidi ter chegado o momento de nossa filha, ainda pequena, ter animais de estimação. Saí de carro, fui a uma loja e voltei com Missy e Cory, ambas com dois meses de idade. Cory não viveu muito. Seu espírito inquieto e livre fazia-a sair de casa a todo instante. Morreu atropelada, como é o destino de tantos gatos — foi também o de outra gata nossa, Sassy, poucos anos depois — com dezoito meses de vida, mas ao menos deixou-nos James.

Missy agitou profundamente a nossa rotina. Mesmo para padrões de golden retriever, era de uma simpatia, uma energia, uma doçura ímpares. Quando eu a passeava em Quito por um parque na nossa rua, ela tanto se agitava, tanto corria, ficava tão alegre que frequentemente saltava em mim, me derrubava, grande e pesada como era, mordia ou rasgava a calça do meu terno. Uma vez, arrancou do nosso gramado uma árvore jovem que eu plantara poucos dias antes. Foi a única vez em que me zanguei com ela. Hoje, daria tudo para não ter ficado bravo nesse dia. Ela e eu estabelecemos uma relação de enorme cumplicidade. Depois de Quito, houve em Brasília um período em que eu frequentemente chegava do trabalho passada meia-noite. Ao entrar, exausto, eu sabia que encontraria, do outro lado da porta, Missy sentada à minha espera. Sem cerimônia, ela gostava de se deitar na nossa cama, algumas vezes entre minha mulher e eu, com a cabeça nos nossos travesseiros. Ouvíamos seus suspiros, seu ronco enquanto dormia.

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Missy tinha personalidade própria, mas não vida independente, e nem poderia ter. Seu objetivo era estar conosco, amar-nos e, em troca, receber afeto. Seu compromisso absoluto com esse propósito era irresistível e comovente. Foi o ser mais inocente que conheci. Viveu e morreu sem saber que pode haver maldade no mundo. Sem dúvida, nós a amávamos, tanto quanto ela nos amava. Às vésperas de ela cumprir quatorze anos, seu câncer generalizado obrigou-nos a dar-lhe a injeção. A veterinária veio. Sugeriu que fôssemos até o quintal, onde o assistente abria a sepultura. Tolamente, sem dúvida paralisados pelo choque, aceitamos. Missy nos acompanhou. Ficamos os três, minha mulher, Missy e eu, olhando enquanto ia sendo cavado o buraco na terra. Já na hora isso me pareceu uma crueldade, que ela ficasse à beira de sua própria tumba, curiosa sobre o que estava acontecendo. A partir daí, tudo foi rápido, a injeção surtiu efeito imediatamente. O que não passou rápido foi o meu luto, o qual na verdade nunca terminará.

Em dezembro, Kiki fez quinze anos. Mora conosco desde os dois meses de idade. É uma gata particularmente afetuosa e presente. Pode-se mesmo dizer, coloquialmente, que ela é bem oferecida. Cumprimenta com efusão qualquer visita que venha nos ver. Entra no quarto de hóspedes para dormir na cama de algum amigo para ela até então desconhecido. Ronrona com facilidade. Se levanto de noite, vem atrás de mim. Se ela some pela vizinhança, volta correndo, atravessando jardins ou pela calçada, quando nós a chamamos. Tanto em Brasília quanto em Bruxelas, costumava seguir-nos quando saíamos para passear a Missy. Isso era aliás um transtorno. Tínhamos de controlar na rua dois animais domésticos, um deles, a gata leve e ágil, sem coleira ou guia.

Várias questões colocaram-se para nós, na hora de começar os preparativos da partida para a Ásia. Ela iria para Kuala Lumpur comigo ou para Singapura com minha mulher? Essa foi a única decisão relativamente fácil. A quarentena na Malásia é de uma semana, e em Singapura de um mês, e esse foi o critério. Surgiu aí outra dúvida: não seria melhor deixá-la no Rio com minha mãe, para poupá-la de uma viagem insanamente longa, desconfortável, que seria seguida de uma quarentena? Minha mãe sempre teve gato e acabara de sacrificar seu mais recente. Como todo mundo, acredita que os afagos de Kiki são dedicados exclusivamente a ela. Sentiu ventos favoráveis e durante muitos dias manteve a esperança de ganhar na loteria, sendo Kiki o prêmio. Esse foi o momento em que a insônia mais me atacou. Descobrir o que era melhor para a gata, descartando o meu interesse particular, foi o mais difícil. Depois de muitas semanas de exame de consciência, noites em branco, esperança de que alguém tomasse a decisão por mim, concluí que seria uma covardia eu pôr fim a uma amizade de quinze anos. Kiki viajaria conosco.

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Não mencionarei a dor de cabeça que foi preparar a papelada para a viagem da gata. Em 2006, quando fomos para a Bélgica, e em 2011, quando voltamos, levamos Missy, James e Kiki, numa operação que na minha lembrança foi relativamente fácil. Tenho porém tendência a só lembrar do aspecto positivo das coisas. E fiquei, naturalmente, mais velho. Viajar com a sobrevivente, Kiki, para a Malásia pareceu-me mais difícil do que havia sido transportar os três animais para a Bélgica. Não darei detalhes dos vários dias em que, enquanto a empresa de mudança estava lá em casa empacotando, tive de ir ao serviço de vigilância agropecuária do aeroporto. Evitarei falar da dificuldade no diálogo virtual com a empresa malásia que eu contratara para cuidar da tramitação dos papéis para a quarentena. Determinado a não desfazer, junto ao leitor, a imagem encantadora que, espero, criei de Kiki, direi apenas que na reta final, vendo a mudança em curso, sentindo ares de novidades, ela diabolicamente várias vezes resolveu se esconder subindo ao telhado da casa em frente à nossa. De lá só conseguíamos tirá-la, já noite feita, à custa de muitas amolações.

A viagem de 36 horas foi penosa. Kiki provou ser imune ao remédio recomendado pela veterinária para que dormisse a bordo. Em toda a segunda metade, não fechou o olho e miou sem parar. Isso me obrigou a também ficar acordado, na tentativa inútil de acalmá-la. Ela sobreviveu porém aos três voos e aos quatro aeroportos. No final de janeiro, desembarcamos os três, minha mulher, Kiki e eu em Kuala Lumpur. Esperava-nos no aeroporto a firma que eu contratara, para levá-la à quarentena. Sete dias depois, ela me foi devolvida. Minha mulher já partira para Singapura.

Desde então, estamos, Kiki e eu, vivendo em um apartamento em Kuala Lumpur. Vazio, porque minha mudança chegou à Malásia em meados de março, logo antes da decretação do isolamento social compulsório, causado pela pandemia. Está abandonada desde então no cais do porto de Port Klang. Pela primeira vez, Kiki tem de morar em apartamento. Para ela, houve uma clara perda de liberdade. Já não pode pegar passarinho no quintal ou lagartixa no pátio, zanzar pelos jardins dos vizinhos, subir em seus telhados, sumir durante horas. Sua vida ficou também solitária. Para uma gata que cresceu em casas, em Brasília e em Bruxelas, entrando e saindo, vendo o mundo, a natureza lá fora, na companhia de três seres humanos e outro gato e um cachorro, não deve ser divertido ficar trancada em um apartamento com um homem que passa o dia no escritório e frequentemente tem compromisso de trabalho à noite.

Ou talvez não. Talvez ela prefira assim. A verdade é que Kiki envelheceu. Quinze anos é muita coisa para um gato. Talvez ela prefira hoje levar uma vida mais calma. Ao contrário de James, sua personalidade não mudou. Tanto melhor, porque como sempre foi efusiva e simpática, poderia ter ficado rabugenta, assim como James, de imperioso e antipático, tornou-se um velhinho carinhoso. Neste exato momento em que escrevo, tarde da noite, em meu quarto, durante o confinamento, Kiki está perto de mim, dando a si própria o seu banho. De vez em quando ela para, me olha e faz um delicioso miado, curto e baixo. Recentemente, adormeci enquanto ela, deitada ao meu lado, ronronando, segurava com as duas patas da frente um dos dedos de minha mão esquerda.

Se sua personalidade não mudou, o pelo, laranja, tornou-se mais pálido, mais branco. Ela perdeu muito de sua vivacidade. Dorme mais do que no passado. Há em seu pequeno rosto um ar nítido de senhora elegante e plácida, que já viveu intensamente e prefere hoje levar uma existência tranquila, sem sobressaltos.

Olho para Kiki. Percebo que, até mesmo no caso dela, gatinha que com dois meses de idade chegou lá em casa alegre, sapeca, infatigável, curiosa de tudo, a questão que se coloca é a mesma de todo ser vivo. Nascer, crescer, e procurar viver o máximo possível, para um dia aceitar que tudo termina.

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