Uma edição mágica

Uma edição mágica

A coleção literária Bibliothèque de la Pléiade, editada pela Gallimard, é a mais prestigiosa do mundo. Nenhuma outra se compara a ela, em razão da qualidade do aparato crítico que acompanha cada volume. Poucos escritores entram ainda em vida na coleção. Até o momento, apenas dezoito receberam essa consagração. O mais recente foi Philip Roth, em outubro de 2017, alguns meses antes de morrer em maio de 2018. Em setembro de 2018, houve notícias de que António Lobo Antunes seria incluído. Isso foi celebrado pelo escritor e gerou felicitações oficiais a ele do Presidente de Portugal, o que dá a dimensão do prestígio da coleção. Por enquanto, a publicação não se concretizou.

Nenhum escritor brasileiro, vivo ou morto, integra até hoje esse panteão.  O único lusófono é Fernando Pessoa, com um volume de obras poéticas — o que exclui Bernardo Soares — publicado em 2001, de 2.176 páginas.

Em setembro de 2019, Georges Duby (1919-1996) entrou para a Pléiade, com um volume denso — 1.972 páginas — que reúne parte de sua obra. É o primeiro historiador contemporâneo a ser publicado na coleção. Antes dele, o historiador mais recente incluído no catálogo era Jules Michelet (1798-1874).

O editor do volume com obras de Duby é o brasileiro Felipe Brandi, que obteve na França, em 2017, pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, seu doutorado em História e Civilização, com uma tese sobre o reverenciado historiador francês.

Entrevistei Felipe Brandi sobre seu trabalho de edição do volume da Pléiade nos últimos dias de abril, quando o mundo aprendia ainda a lidar com a pandemia. A entrevista foi publicada em Estado da Arte, em 5 de junho.

I- Essa foi certamente a primeira vez que um brasileiro editou um volume da Pléiade. É significativo um estrangeiro preparar, na França, a edição da obra de um monstro sagrado como Georges Duby. A escolha de seu nome o consagra como um dos maiores especialistas da obra do historiador. Como aconteceu de você ser escolhido? Qual foi sua reação diante da responsabilidade?

O convite para preparar a edição das obras de Georges Duby na Pléiade foi, para mim, uma grande surpresa. Fui contatado por Hugues Pradier, Diretor literário da coleção, no momento em que havia entregado a minha tese de doutorado e antes mesmo de defendê-la em junho de 2017. Eu estava bem situado. Estava na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), que oferece uma projeção importante, e já pesquisava há muitos anos o trabalho de Georges Duby. A minha pesquisa, antes mesmo de encerrada, já era conhecida, não apenas por parte dos professores da EHESS, mas também por outros pesquisadores e editores na França graças a alguns artigos que eu havia publicado. Creio que uma expectativa havia se formado em torno do meu trabalho de tese, como costuma acontecer com teses elaboradas pacientemente ao longo de muitos anos. Pelos contatos que são feitos durante a preparação, e também pelos artigos publicados, as pessoas acabam ouvindo falar de sua pesquisa e se interessam por ela muito antes que ela esteja concluída.

Gostaria primeiramente de agradecer a você, Ary, pelo convite e pela oportunidade de conversar com você e de poder falar um pouco sobre o meu trabalho e sobre a preparação do volume Œuvres de Georges Duby, editado pela Bibliothèque de la Pléiade em setembro de 2019.  

Pierre Nora havia descoberto há muito a minha pesquisa através de um artigo que eu publicara, e desde então acompanhava o seu desenvolvimento. É possível que Hugues Pradier tenha tomado conhecimento do meu trabalho através de Nora. O projeto de uma edição de Georges Duby na Pléiade é uma ideia antiga. Desde a acolhida de Claude Lévi-Strauss na coleção, em 2008, falou-se de uma eventual edição de Duby. Rumores circularam, mas nada de concreto. Considerado autor “de la maison” pela Gallimard, ele já havia sido homenageado com dois volumes da coleção Quarto, em 1996 e 2002. No entanto, Hugues Pradier estava convencido, parece-me com razão, da relevância da entrada de Duby na Pléiade, pela incontestável qualidade literária de seus escritos, que fez de sua obra uma das grandes expressões do mundo das letras francesas do final do século XX. Sou infinitamente grato a Hugues Pradier pela confiança que ele depositou em mim, ao me escolher. Outros pesquisadores tinham nomes muito mais conhecidos do que o meu, ademais de terem o francês como língua materna. Durante os primeiros meses (eu ainda não havia defendido a minha tese), ia visitá-lo regularmente no belíssimo Pavilhão da Pléiade para falar do projeto e pensar o perfil do volume, discutindo a seleção dos textos e revendo inúmeros detalhes. Conversávamos durante horas até tarde da noite, quando as edições Gallimard já estavam fechadas. Acho que rapidamente se instaurou uma cumplicidade, uma boa relação entre nós. Creio que a minha visão do volume o agradou, indo na direção do projeto que ele havia inicialmente idealizado. Para mim, o desafio foi considerável. Desde jovem, admiro as edições da Pléiade e me senti honrado de poder participar delas.  

II – Das 1.972 páginas do volume, cerca de 340 são suas: introdução de 56 páginas, notas e comentários sobre cada uma das obras de Georges Duby incluídas no volume. O resultado é um trabalho de extrema erudição, como aliás é usual na Pléiade. Isso é notável, considerando que francês não é a sua língua materna. Por quanto tempo você trabalhou na edição? Entre surgir a ideia de inclusão de Duby na coleção e o livro ficar pronto, quanto tempo se passou?

O tempo total de preparação do volume foi de dois anos e alguns meses. Fui contatado na primavera de 2017 (abril/maio) e já em nosso primeiro encontro, Hugues Pradier me disse que o lançamento do livro seria em finais de setembro de 2019, para celebrar o centenário do nascimento de Georges Duby. A data de lançamento não era, portanto, negociável. Dito isto, o prazo de dois anos representa um tempo curto de preparação para um volume desse tamanho e com essa densidade — é o que todos me dizem na Pléiade. Trabalhei com dedicação total. Durante esses dois anos. De outro modo, não teria sido possível respeitar o prazo estabelecido.

Se reconstituo a cronologia da preparação, distingo três grandes etapas: primeiramente, a da construção do projeto e da seleção das obras, nos primeiros meses entre maio e setembro de 2017; em seguida, o início da leitura (ou releitura) de todos os textos e a elaboração do aparelho crítico, com a preparação das notas e a redação das notícias que acompanham cada obra. Enfim, de janeiro de 2019 até julho do mesmo ano, o trabalho de acabamento e de revisão de todo o volume — dessa vez, acompanhado de Henrianne Rousselle, da Pléiade, que me ajudou imensamente. Que contraste com a etapa precedente, extremamente solitária, e que alegria ter um interlocutor com quem discutir cada detalhe do trabalho! Fiquei muito impressionado com a sua generosidade, a sua experiência e o seu profissionalismo, relendo cada nota, cada citação, cada linha que escrevi com uma extraordinária atenção. Foi um prazer conhecer e ter tido a oportunidade de trabalhar com Henrianne Rousselle. Ela sempre me encorajando a ir ainda mais adiante, a buscar alguma nova informação, a enriquecer ainda mais a edição. Insisto que o seu trabalho por detrás dessa edição e das demais que ela supervisiona seja amplamente reconhecido.

O desafio da língua é imenso. A língua francesa, tão rica e saborosa, é repleta de sutilezas, de nuances e também de armadilhas. E os leitores franceses são particularmente atentos à qualidade da expressão, zelosos do emprego dessa língua que consideram o tesouro nacional. No caso de uma edição da Pléiade, eu tinha consciência de que precisaria preparar, tanto na introdução quanto nas notícias que acompanham cada uma das obras do volume, um texto capaz de interessar a uma audiência bastante heterogênea, composta pelo grande público culto dos leitores da Pléiade, mas também por historiadores de profissão, assim como pelos medievalistas mais severos e os estudiosos especialistas da obra de Duby, que a conhecem bem e estão atentos aos mínimos detalhes. São exigências e expectativas muito diversas, e foi um desafio preparar todos esses textos em uma edição que deveria conciliar interesses e leituras, não apenas muito distintos, mas muitas vezes também incompatíveis.          

III – Qual é grau de orientação que os editores de volumes da Pléiade recebem? Você teve, por exemplo, liberdade para escolher as obras de Duby que seriam incluídas? Qual foi o critério usado na seleção de obras? Houve algum livro ou texto de Duby que você lamentou ter de descartar, por falta de espaço?

Eu sinto ter trabalhado com grande liberdade, e sou mais uma vez muito grato à confiança de Hugues Pradier. Ele, a Pléiade e a Gallimard apostaram em mim, deixando-me único responsável pela edição científica de todo o volume. Imensa responsabilidade. Intimidante. Nos primeiros meses, quando ainda precisávamos “montar” a edição, Hugues Pradier e eu discutíamos vários detalhes em longas sessões de trabalho que eram muito prazerosas. Mas uma vez decidida a seleção das obras, me senti com carta branca para elaborar os meus próprios textos e preparar as notas de erudição à minha guisa. A seleção das obras nunca é fácil. Sobretudo no interior de uma produção tão rica e prolífica. A seleção, sim, foi feita junto com Hugues Pradier. Ele estava muito atento a essa etapa do processo. Há necessariamente sempre algo de subjetivo na seleção dos textos. O nosso critério foi o de privilegiar os textos que nos pareciam os mais representativos do Georges Duby escritor e que haviam sido também os seus maiores sucessos editoriais, como Le Temps des Cathédrales, Le Dimanche de Bouvines ou Guillaume le Maréchal. Outros importantes livros, todos admiráveis, como a sua tese sobre a região de Mâcon nos séculos XI e XII ou os seus estudos sobre a economia rural na Idade Média nos pareceram não se ajustar tão bem à ambição do volume. São obras mais austeras, que interessam a um público mais reduzido de especialistas da civilização medieval. Lembro de longas discussões sobre a inclusão do livro Les Trois Ordres ou l’imaginaire du féodalisme, de difícil leitura. No interior do volume, este é claramente o título mais austero. Nem Hugues Pradier nem Pierre Nora estavam convencidos da pertinência desse título. Denso, complexo, poderia desencorajar o leitor e se diferenciar do resto da edição. Eu defendi a sua causa e intervim a favor da sua inclusão no volume, pois estou convencido de que esse livro, admiravelmente escrito ainda que muito exigente, ocupa uma posição central dentro da produção de Georges Duby, como uma espécie de chave de abóbada do seu modelo de explicação da sociedade feudal dos séculos XI e XII.

Como leitor e admirador da obra de Duby, eu teria gostado de incluir ainda mais textos, mas não era possível. O volume atingiu o seu limite. Qualquer nova inclusão nos obrigaria a uma edição em dois volumes. O que significaria uma modificação importante do projeto inicial.             

IV – Georges Duby costumava publicar seus livros sem notas ou indicação de fontes. Para a edição na Pléiade, você preparou notas extensas, recuperou as fontes para cada um dos textos. Como se desenvolveu esse trabalho?

Essa foi, para mim, uma parte decisiva da edição da Pléiade. Sou leitor de Georges Duby há vinte e cinco anos e minha admiração aumenta a cada nova leitura. Lembro-me bem de minha primeira leitura do Tempo das Catedrais, aos 19 anos, ou do Domingo de Bouvines, ainda quando estudante de graduação na PUC-Rio. Desde então, sonhava ter algum dia em mãos uma edição especial, uma edição mágica, que contivesse as notas desaparecidas que me dessem acesso ao conjunto de autores medievais citados em suas páginas, assim como a todo o arcabouço invisível que preside à construção de seus livros. Sempre acreditei ser este um trabalho quase impossível de ser realizado. No entanto, quando recebi o convite de Hugues Pradier, decidi me aventurar nessa longa empreitada. A tarefa é singularmente árdua. Significa penetrar em algumas das literaturas mais difíceis da história ocidental, desde as referências bíblicas e da patrologia até os escritos de cléricos, monges, teólogos e trovadores dos séculos XI-XIII. Estão incluídos aí crônicas, sermões, homilias, tratados teológicos, epístolas, poemas, canções. Tudo em latim medieval ou em francês antigo. Isso se complica ainda mais por Georges Duby não dar, muitas vezes, qualquer indicação do autor ou da obra de onde extrai a passagem citada, geralmente por ele traduzida para o francês contemporâneo com muita liberdade — o que torna muito trabalhoso, às vezes extenuante, o esforço de reconstituição.

Apesar das dificuldades enfrentadas, motivava-me a ideia de poder oferecer aos novos leitores e à comunidade científica essa edição anotada, essa edição única com a qual eu havia tanto sonhado. Outra motivação foi, para mim, o conjunto de críticas e ataques ferozes dos quais Duby foi objeto ao longo dos anos por causa dessa sua decisão de não revelar a referência de suas fontes. Encontrar essas referências e colocá-las agora à disposição dos leitores significa pôr em evidência a impressionante construção erudita por detrás de seus textos e, assim, refutar, de uma vez por todas, essas acusações que lhe foram feitas, alegando que a sua obra teria sacrificado a erudição da história em proveito do efeito literário. A dúvida consistia, então, em saber se essas notas, laboriosamente preparadas, não acabariam se opondo à intenção do próprio Duby, desrespeitando o projeto de escrita, o projeto formal, literário de seus textos. Certamente, exibir todas essas longas notas no pé de página acabaria por desfigurar a própria forma de seus escritos, tal como ele os havia concebido. Mas a Pléiade oferece a oportunidade de colocar as notas no final do volume, dando ao leitor a opção de consultá-las sem com isso comprometer o projeto narrativo, formal de Georges Duby. Dessa oportunidade, me servi.  

V – Você dedica a Introdução à memória da viúva do historiador, Andrée Duby, que faleceu em 2016. Nos agradecimentos, você relata que ela acompanhou suas pesquisas “durante anos”. Seu convívio com ela foi determinante em algumas decisões que você terá precisado tomar na preparação do volume?

Serei sempre grato à senhora Andrée Duby pelo apoio, o encorajamento, a atenção e a ajuda que recebi durante muitos anos enquanto preparava a minha pesquisa de tese. A dedicatória é um testemunho do meu reconhecimento, mas também uma lembrança do papel primordial que Andrée Duby exerceu ao longo da carreira de seu marido e na construção dessa obra que, de acordo com muitos amigos do casal, parecia em vários aspectos feita a quatro mãos. Andrée Duby teria gostado muito de ver a entrada de Duby na Pléiade. Em muitos aspectos, essa edição também é sua.

Pessoalmente, o convívio com ela foi determinante no desenvolvimento de minha abordagem e no amadurecimento do meu olhar, me permitindo adquirir uma maior proximidade com a obra e o seu autor. E acredito que essa proximidade e a abordagem mais pessoal transparecem do começo ao fim da edição. Em todo o caso, essa foi a minha intenção.    

VI –O Prefácio do volume que você editou é do historiador Pierre Nora, e começa com a afirmação de que a entrada de Georges Duby na coleção confere a ele uma “majestade solitária” entre os historiadores seus contemporâneos. Pierre Nora no Prefácio, e você na Introdução, ambos destacam que isso se justifica pela qualidade estilística, literária da obra de Duby. Tanto você quanto Nora, porém, apontam o seu domínio do grande instrumento midiático da época, a televisão. Ele era entrevistado, preparava emissões e presidiu um canal cultural. Isso fez dele, a partir da década de 1970, um intelectual famoso e muito presente e ativo na vida cultural francesa. Isso ainda é possível para um historiador hoje, mesmo na França?

De fato, você tem razão de chamar a atenção, ao mesmo tempo, para a qualidade literária dos livros de Georges Duby e para a sua extraordinária projeção social, muito além dos muros da universidade. Ambos os fenômenos estão ligados. Com efeito, uma das singularidades do trabalho de Duby reside no seu desejo de oferecer uma história de qualidade, uma história científica e, pode-se dizer, de vanguarda em sua época para uma audiência cada vez mais ampla. Um trabalho de divulgação, no sentido mais nobre da expressão. Georges Duby sempre concebeu a história como um “métier de communication”; a história devendo ser, do seu ponto de vista, simultaneamente um meio de formação, de evasão e de diversão. Portanto, trabalhou incansavelmente para ampliar o seu público, servindo-se dos mais diferentes meios de comunicação (rádio, televisão e cinema). Nos anos 1980, assumiu funções importantes em grandes empreendimentos culturais na França, presidindo o comitê do Grand Louvre e a rede de televisão cultural francesa, La Sept, ancestral da atual ARTE. Esse engajamento, sacrificando parte do tempo que poderia dedicar ao seu trabalho de historiador, se justifica pela sua convicção quanto à importância de oferecer ao maior número de cidadãos franceses o acesso à criação cultural de excelência (não apenas a história, mas também as letras, artes plásticas, música, espetáculos).

O seu trabalho junto à televisão — por exemplo, na série O Tempo das Catedrais, inspirada em seu livro, e, mais tarde, na presidência da Sept — lhe conferiu uma celebridade comparável à de um grande nome da literatura. Seus livros eram disputados pelos grandes editores. Suas aulas no Collège de France eram um acontecimento. Duas horas antes de seu curso, filas imensas, repletas de estudantes, intelectuais e membros da alta sociedade já se formavam, todas as quintas, na entrada da prestigiosa instituição no Quartier latin. Uma das grandes singularidades da geração de intelectuais franceses da segunda metade do século XX reside nessa extraordinária projeção social de trabalhos rigorosos e austeros, na vanguarda das ciências humanas e do pensamento filosófico. Esse é o caso, para citar apenas alguns nomes, de Claude Lévi-Strauss, de Georges Dumézil, de Michel Foucault, de Roland Barthes, de Pierre Bourdieu… Os franceses permanecem muito interessados pela produção de conhecimento. Os historiadores da geração de Duby viveram uma espécie de era de ouro. A comunidade historiadora não desfruta, na França de hoje, da mesma voga que conheceu nos anos 1970 e 1980. Mas a figura do intelectual continua ocupando um espaço importante, respeitado e admirado, no interior do debate social francês e também dentro da representação que a sociedade francesa faz de si mesma. Isso é invejável, quando vemos o descaso do qual são objeto, em boa parte do mundo, os professores, a ciência, as ideias, a educação e a cultura letrada. Creio que ainda hoje alguns intelectuais franceses, inspirados por essa geração feliz que os precedeu e se servindo de meios de comunicação cada vez mais desenvolvidos, logram exercer um papel ativo junto ao grande público. A sociedade francesa continua grande consumidora de exposições artísticas, de eventos literários e de emissões culturais, como as que oferecem o canal de televisão ARTE e, sobretudo, France Culture, que é a meu ver um verdadeiro patrimônio do qual todos os franceses têm o direito de se orgulhar.     

VII – A sua Introdução revela uma profunda admiração por Duby. Qual sua avaliação sobre ele, como ser humano, figura pública e historiador?

É verdade, deixo rapidamente transparecer a minha admiração por Georges Duby. Acredito no valor da sua obra. Admiro o modo com que a sua prática de historiador sempre esteve combinada a uma reflexão audaz acerca da própria história, da natureza do conhecimento que ela produz, do seu lugar em meio às nossas práticas culturais. Os grandes mestres, parece-me, são aqueles que conseguem desenvolver, em suas respectivas áreas, uma visão de conjunto, integrada, da própria atividade que exercem. Isso vale para escritores, cientistas, músicos, artistas e artesãos, grandes chefes de cozinha… Não apenas são grandes executantes, dominando plenamente a sua arte, mas ainda expressam, em cada trabalho que realizam, a maturidade de uma reflexão sobre a natureza de sua prática, o lugar social da mesma, o passado de suas tradições, assim como suas imperfeições, desvios e ciladas. O que admiro em Duby é um pensamento da história que é total, e que se preocupa tanto com os métodos mais modernos de leitura das fontes quanto com as condições de possibilidade do conhecimento histórico, tanto com o diálogo com as demais ciências sociais quanto com o ensino da história para as crianças do primário, tanto com o uso da memória social por parte dos poderes políticos quanto com a função cívica que o historiador, o professor de história deve exercer junto a uma sociedade democrática e emancipada.

A própria qualidade estilística de seus escritos, sobre a qual falamos aqui algumas vezes, não era, por exemplo, puro lirismo ou coqueteria. Mas sim o fruto de uma reflexão sobre a natureza (subjetiva) do conhecimento histórico, sobre as forças e as fraquezas do discurso que constrói o historiador e sobre a distância que o separa do ideal de objetividade científica. A história, para Duby, surge do ato criador do historiador e ela será tanto mais fértil quanto mais o historiador, apaixonado por seu labor, se entregar e der de si mesmo. A historiografia atual coloca hoje questões e enfrenta desafios que já não são os mesmos enfrentados pela geração de Duby, nos anos 1960 e 1970. O nosso conhecimento do passado não cessa de se renovar. No entanto, as questões a que Duby submeteu a história, a sua forma de pensar as armadilhas ideológicas que ameaçam o olhar que o historiador lança sobre o passado, a sua recusa de dogmatismos e de qualquer ferramenta teórica passe-partout continuam sendo, a meu ver, estímulos para se pensar a história de hoje e abrir os caminhos da pesquisa de amanhã. Georges Duby sempre defendeu — cada um de seus escritos o prova — os valores positivos do homem que desabrocham graças à cultura, à democracia e à liberdade. Valores humanistas que nos são tão caros. Sobretudo nos dias atuais.

VIIII – Quais são seus próximos projetos ou estudos como historiador?  A publicação do volume da Pléiade encerra um ciclo ou a obra de Georges Duby seguirá sendo sua área principal de interesse?

Eu mesmo me pergunto muitas vezes se, após a conclusão da minha tese, esta edição da Pléiade encerra, para mim, o ciclo Duby. De certa forma, sim, mas não completamente. Durante a longa preparação de minha tese, sempre esperei conseguir construir um trabalho com uma profundidade que me abrisse um campo de estudo, um campo de especialização e que também fosse uma base sólida na qual eu pudesse me apoiar ao longo da minha carreira. Reuni ao longo dos anos muito material que eu gostaria de poder utilizar, na forma de artigos e de livros. Não abandonarei, portanto, Georges Duby tão cedo, pois acho que não seria correto deixar de me servir de todo esse material coletado. No entanto há um ciclo que se encerra. Depois de duas longas pesquisas, que se sucederam cronologicamente mas que foram tão distintas uma da outra — a de minha tese de doutorado e a da preparação da edição da Pléiade — tenho a sensação de ter concluído a minha pesquisa sobre Georges Duby. Continuarei interessado por tudo a seu respeito, mas o que espero poder publicar sobre ele será feito a partir da pesquisa que já empreendi. A minha tese, que o teve por protagonista, não se limitou à sua obra, mas pretendeu ser também uma tese mais ampla sobre a história da escola histórica francesa ao longo do século XX, com o propósito de definir o meu campo de especialização. Desejo, então, poder inaugurar novas pesquisas, assentadas sobre parte do material de que já disponho, voltadas desta vez para outros aspectos (autores, grupos, tendências) da escola histórica francesa e para algumas questões teóricas do campo da Historiografia, inclusive para poder voltar a pesquisar também a historiografia brasileira, a produção histórica nacional, que eu tanto admiro. A Historiografia é o meu campo de estudo, e a produção intelectual francesa, a minha área de especialização. Neste momento, estou relendo muitas coisas, procurando construir um novo questionário. Há uma infinidade de caminhos e de temas a serem explorados. Na origem de qualquer pesquisa, acho que todo o pesquisador sente uma excitação e uma dose de medo. É muito excitante e desafiador iniciar uma pesquisa, se lançar numa aventura intelectual. Nunca se sabe aonde ela vai nos levar.

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Roma não está mais em Roma

Roma não está mais em Roma

“Aix, há 35 anos, era encantadora. Não havia na França outra cidade daquele tamanho (quarenta mil habitantes) que já não tivesse subúrbio. Em apenas uns poucos passos, íamos do cantar das fontes, ainda audível, aos pomares de oliveiras, às colinas. E depois, nas vibrações da noite de verão, Mozart. Em que terreno mais fértil poderia eu perseguir minha caça à felicidade?”. Assim escreveu o historiador Georges Duby, em um texto publicado em 1987, a respeito de sua vida em Aix-en-Provence.

Duby havia se tornado, em 1951, professor universitário em Aix, por escolha sua, recusando-se a concorrer a uma vaga na Sorbonne. Quando, em 1970, tornou-se professor de História das Sociedades Medievais no Collège de France e precisou voltar a morar em Paris, manteve sua casa perto de Aix, e lá passava o verão. A menção a Mozart é uma alusão ao Festival de música que, desde 1948, se realiza na cidade.

Inocentemente, eu tinha no início de 2020 planejado tirar férias em julho e ir a Aix para o Festival. A pandemia transformou porém a ida ao supermercado em uma aventura povoada de riscos e transtornos. O que dizer das viagens. Na Malásia, onde estou morando, até poucos dias atrás nenhum trajeto de mais de dez quilômetros era possível sem autorização prévia, por escrito, da polícia. As fronteiras do país continuam fechadas aos estrangeiros. Na França, o Presidente Emmanuel Macron indicou que o retorno à normalidade será gradual e que haverá restrições a viagens para os franceses no verão. Os festivais, inclusive o de Aix-en-Provence, foram cancelados ou adiados.

O comentário de Georges Duby, que capta de forma poética o espírito de Aix, pode ser lido em um texto autobiográfico, Le Plaisir de l’historien. Esse relato foi incluído na edição de algumas de suas obras — organizada pelo historiador brasileiro Felipe Brandi — publicada em 2019 na Bibliothèque de la Pléiade, da Gallimard. O livro é um dos quatro ou cinco que viajaram na minha mala em janeiro, quando vim morar em Kuala Lumpur.

Em um plano bem mais modesto do que Duby, eu também já troquei Paris por Aix. Em julho de 2017, lá cheguei para passar um fim de semana, a caminho de Paris. A programação de ópera no Festival estava perfeita, o clima sedutor, a alegria na cidade contagiante. Comecei a me perguntar se precisava mesmo ir à capital. Toda manhã, eu avisava à recepção no hotel que ficaria mais uma noite. Viajar de férias, eu decidira, significa não fazer planos nem sequer para o dia seguinte. O centro histórico de Aix é de uma beleza de dimensões quase domésticas. Duby diz que dá para atravessá-lo a pé, de parte a parte, em sete minutos. Se eu estava feliz ali, por que ir a Paris? Acabei não indo. Descrevi, em De carro pela Provença, como foram aquelas férias em Aix. De dia, passeava pela região. À noite, ia à Ópera. Fui ao Festival de Avignon. Fui à praia em Cassis. Contornei a montanha Sainte-Victoire, personagem central na obra de Cézanne.

Justamente, um dos lugares mais sedutores de Aix é o estúdio do pintor, preservado, em grande parte, graças aos esforços, na década de 1950, de dois americanos, o memorialista James Lord e o historiador da arte John Rewald. Uma grande parede de vidro deixa entrar a luz essencial para o trabalho do artista. Vemos objetos — vasos, pratos, figuras de gesso — que Cézanne usava como acessórios em suas telas. É comovente reconhecê-los. Vemos, pendurados, seus sobretudos e chapéus, seu guarda-chuva e sua bengala. Vemos também parte de sua biblioteca. Notei ali, da última vez, uma bela edição das Vidas dos Homens Ilustres de Plutarco. Supus que a tradução seria a mais clássica disponível em francês, a do século XVI feita por Jacques Amyot. Traduzida quase que imediatamente do francês para o inglês, ela serviu de base a Shakespeare para suas tragédias romanas. Transformou-se em um monumento literário e também histórico; foi fonte de inspiração para intelectuais, figuras políticas e artistas que, durante três séculos — e notadamente durante a Revolução — quiseram emular ou celebrar Roma e seus supostos valores heroicos e morais. É a tradução que tenho, editada em dois volumes pela Pléiade.

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A impossibilidade de voltar a Aix este ano não me entristece. A pandemia prejudicou a vida de todo mundo, causando em muitos dor e perdas. O estúdio de Cézanne continuará lá, acessível quando eu puder ir. Apenas, ler a descrição feita por Duby da cidade trouxe à tona o sentimento que tenho por ela. Lembrei do barulho das fontes no silêncio e no calor do verão.

Penso nos emigrantes, ao longo dos séculos, que partiam de sua terra natal para lugares distantes, sabendo que nunca voltariam. Mudavam-se, em viagens longas e arriscadas, com a certeza de que não reveriam parentes, amigos, a cidade ou o campo onde haviam crescido. Essa é uma sensação que hoje nos é estranha. Sentir saudades de um lugar é, no século XXI, uma forma doce, poética, elegante de melancolia. Sabemos, muitos de nós, que poderemos rever aquele lugar, se quisermos realmente, mesmo à custa de sacrifícios pessoais e financeiros.

Uma das revelações da pandemia é que as viagens muitas vezes não são necessárias. Podem se transformar em uma atividade frenética, para fazer passar o tempo, desviando-nos de nós mesmos. Os lugares importantes moram em nós. Vão conosco a toda parte. A ideia desses lugares, o que eles representam, está em nós. Há um bonito verso de Corneille que nos ensina isso, em Sertorius, peça cuja ação se passa durante as guerras civis romanas. O general Quintus Sertorius — cuja biografia em Plutarco serviu de fonte a Corneille — declara a Pompeu que, na Espanha, ele não se vê como um rebelde ao ditador Sula, mas sim como o verdadeiro representante dos mais nobres valores romanos. De forma grandiloquente, ele diz: “Rome n’est plus dans Rome, elle est toute où je suis“. George Steiner, em The Death of Tragedy, o livro dele que prefiro, analisa com admiração a cena onde se insere esse estupendo alexandrino.

Ao abrir o volume da Pléiade de obras de Duby, eu não podia imaginar que a evocação feita de Aix pelo historiador iria me trazer a cidade inteira. É que os lugares vêm a nós da forma mais inesperada. Há poucas semanas, uma amiga virtual paranaense — nunca nos vimos — mandou-me fotos pelo Instagram. Seu apartamento na praia é perto da casa dos meus sogros, onde me casei. Passando lá um fim de semana de sol e calor, e sabendo que eu agora moro em Kuala Lumpur e minha mulher em Singapura, ela fotografou o sítio de longe, do alto do apartamento, com a objetiva do celular. Foi uma surpresa, confinado no sudeste da Ásia, abrir sua mensagem e ver a casa, um dos lugares mais importantes para mim. Vi-a como nunca a vira, de cima, entre o azul do mar e o verde do jardim e da mata, como se eu estivesse atravessando o céu límpido e olhasse para baixo.

Por causa do isolamento social e do fechamento de fronteiras em vários países, muitos meses terão se passado até eu poder rever minha mulher, minha filha, meus parentes, meus amigos. Elas e eles, porém, moram em mim. Como a casa de praia no Paraná, como a fazenda de meu avô em Minas Gerais, como o estúdio de Cézanne em Aix-en-Provence, como meu Plutarco — abandonado em um porto malásio, esperando o fim do confinamento para ser entregue com o resto da biblioteca e a mudança — elas e eles estão onde eu estou.

Para Sertorius, eram os valores romanos que o acompanhavam aonde ele fosse. Para mim, são os sentimentos que carrego pelas pessoas, os lugares, os livros que moram onde eu moro. Como para ele, embora por razões diferentes, para mim Roma não está mais em Roma; ela está toda onde eu estou.

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(Versão mais curta desta crônica foi primeiro publicada, em 28 de maio, no jornal literário Rascunho)

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A Partida

A Partida

Ao longo de 2019, notei que frequentemente eu me indagava sobre os livros que escritores levam em suas viagens. Vinha naturalmente à minha mente a curiosidade sobre que volumes são colocados na bagagem na hora da partida talvez definitiva, da travessia arriscada, da ruptura com o passado.

Escrevendo em O Mar por toda parte sobre o Padre Antonio Vieira, procurei ver se, na sua correspondência, ele especificava com que volumes embarcaria em uma de suas sete travessias do Oceano Atlântico ou levaria em suas andanças pelo Norte e pelo Nordeste do Brasil. Encontrei apenas, na antologia de suas cartas que retirei da casa de praia de meus sogros, este trecho, escrito por ele no Maranhão em 1653: “Sabei, amigo, que a melhor vida é esta. Ando vestido de um pano grosseiro cá da terra mais pardo que preto; como farinha de pau; durmo pouco; trabalho de pela manhã até à noite; gasto parte dela em me encomendar a Deus; não trato com mínima criatura; não saio fora senão a remédio de alguma alma; choro meus pecados; faço que outros chorem os seus; e o tempo que sobeja destas ocupações, levam-no os livros de Madre Teresa e outros de semelhante leitura”, referindo-se a Santa Teresa de Ávila.

Relendo o Diário de Etty Hillesum, fiquei fascinado em descobrir, como mencionei em O encontro de Avignon, que ela planejava colocar na mala, quando fosse deportada para Auschwitz, a Bíblia, sua gramática russa, O Idiota, Rilke e os contos populares de Tolstoi. Em O leitor irresponsável, registrei que o patriarca de Iasnaia Poliana, ao fugir de casa na madrugada de 28 de outubro de 1910, naquela que seria sua última viagem, encomendou à filha que se juntaria a ele seus exemplares de Os Irmãos Karamazov, os Essais de Montaigne, o romance Une Vie, de Maupassant, além do livro espiritual de um autor russo, P. P. Nikolayev.

Apenas no final de novembro racionalizei que minha curiosidade era causada pelo fato de que logo eu também ficaria privado, por alguns meses, de minha biblioteca. Soubera, em março, que em algum momento eu partiria para viver e trabalhar na Ásia. A partida está marcada para agora em janeiro, e a mudança chegará à Malásia meses depois. A rigor, eu não precisaria levar livro algum na mala. Desde muito cedo, um de meus grandes talentos é o de constituir rapidamente, onde quer que eu esteja, mesmo que lá esteja por poucos dias, uma pequena biblioteca. Os livros que eu já conheço, que já me pertencem são porém um reconforto. Tirar das estantes alguns de meus amigos, fazê-los viajar comigo tornará a nova vida, por enquanto desconhecida, imediatamente assimilável.

A questão que se coloca é definir que volumes receberão a missão de, com sua presença, tornar tudo natural, normal, previsível, além de se prestarem a ser lidos “no tempo que sobeja a estas ocupações”, à noite, após o trabalho. A empresa de mudança já se apossou de nossa casa; o tempo é limitado para grandes indagações. Além disso, minha mulher, também por razões profissionais, irá morar em Singapura, e isso significa que a biblioteca será dividida. São portanto duas decisões importantes: que livros viajarão comigo no avião, e quais ficarão de cada lado dos Estreitos de Johor. A segunda decisão foi tomada rapidamente, de forma consensual. A primeira é a mais difícil.

Sem dúvida, o candidato principal a viajar na minha mala é o volume de obras de Georges Duby lançado em setembro pela Gallimard, em sua prestigiosa coleção da Pléiade. Duby foi um medievalista prolífero. Hoje vejo que, embora eu o lesse com afinco no final da adolescência e nos anos subsequentes, perdi muito de sua produção intelectual. Poder abordá-lo agora, com as notas, os ricos comentários habituais na Pléiade é ter dele uma nova visão. O editor do volume é um historiador brasileiro, Felipe Brandi. Vários autores não-francófonos fazem parte do catálogo da Pléiade, inclusive Jorge Luis Borges e, em rara homenagem a um autor vivo, Mario Vargas Llosa. Nenhum escritor brasileiro, até hoje, recebeu a consagração das letras que a entrada na coleção representa. A edição esmerada, preparada com rigor por Felipe Brandi, dos textos de Duby, incluindo a longa introdução que redigiu em francês, é o mais perto a que já chegamos.

Para quem estuda História, e gosta dos livros densos e analíticos, porém claros, de Duby, os romances históricos podem parecer ou fascinantes ou desprezíveis. Tudo dependerá da habilidade do escritor, da seriedade com que estudou a época retratada e da luz que joga sobre personagens reais. Neste exato momento, estou mergulhado na leitura de um romance histórico e epistolar cativante, que irá na mala comigo para a Malásia, Augustus, de John Williams. Eu nunca ouvira falar no livro até 2019, quando Cora Ronai me deu de presente a tradução para o português lançada no Brasil em 2017 pela editora Rádio Londres. Fiquei curioso e comprei às vésperas do Ano Novo, na Livraria da Travessa de Ipanema, o original em inglês. Às voltas com a mudança, não tenho podido ler tanto, mas mesmo que eu consiga terminar o livro antes de viajar, ele virá comigo.

Augustus é uma biografia romanceada do primeiro imperador romano. Compõe-se de cartas e memórias fictícias de contemporâneos seus, por meio das quais vamos formando ideias, às vezes contraditórias, sobre sua personalidade. Ao mesmo tempo, cada missivista possui, na criação de John Williams, um modo próprio de pensar, de escrever, de ser, e assim as cartas de Cícero, Lívia, Marco Antonio, o diário de Julia, as memórias de Agripa revelam vozes individuais, coerentes, muito distintas umas das outras.

Susan Sontag — ela mesma autora de um romance histórico pelo qual sinto enorme carinho, The Volcano Lover —  escreveu em 2001: “The literature of the second half of the twentieth century is a much traversed field and it seems unlikely that there are still masterpieces in major, intently patrolled languages waiting to be discovered“. Esse conceito, de que as obras-primas da segunda metade do século XX já foram todas descobertas, é uma afirmação que talvez só Sontag teria tido a ousadia de fazer. Ela própria, aliás, nega sua veracidade em seguida. A frase é a primeira da introdução preparada pela escritora para uma edição em inglês de um livro russo de 1982, Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsipkin, que li há alguns anos. A segunda frase da introdução de Sontag diz: “Yet some ten years ago I came across just such a book“, que é o de Tsipkin. Verão em Baden-Baden, publicado no Brasil em 2003 pela Companhia das Letras, mistura aspectos da vida de Dostoiesvki durante seu segundo casamento, com Anna Grigorievna — incluindo a famosa e desastrada conversa com  Turgueniev na cidade alemã — com a vida do narrador, que é Leonid Tsipkin.

Leonid Tsipkin

Ao contrário de Susan Sontag, acredito ter ainda muito a descobrir sobre as “obras-primas da segunda metade do século XX”. Leio John Williams pela primeira vez e não questiono por que não o fizera ainda. Simplesmente, ele não surgira no meu caminho.  A obra de Williams, morto em 1994, é mais apreciada hoje do que enquanto ele era vivo. No Ano Novo, o namorado de minha filha, que é belga, ao me ver no Rio com Augustus nas mãos, comentou: “você está lendo John Williams… está gostando? Li Stoner há alguns anos. É um livro incrivelmente triste. Aliás, entra em toda lista de livros tristes”. Augustus não é triste, e sim uma indagação sobre como mudamos ao longo do tempo, sobre o que fazemos de nossas vidas mas, ao mesmo tempo, sobre como a vida nos molda. Na edição que comprei, há uma introdução de Daniel Mendelsohn, festejado autor de An Odyssey: a Father, a Son and an Epic, onde ele diz que os romances de Williams examinam como “whatever our characters may be, the lives we end up with are the often unexcepted products of the friction between us and the world itself”.

Um terceiro livro que eu tencionava levar na mala para Kuala Lumpur era uma História da Malásia, que li em 2019 e teria sido útil nas primeiras semanas de instalação no país. Mudanças porém possuem ritmo próprio, e não separei o volume a tempo. Já no primeiro dia ele foi embalado, e para Singapura, junto com uma pilha de livros que descansavam pacificamente sobre uma mesa no escritório.

Há assim um lugar a ser ocupado. Surge a dúvida: prefiro um amigo antigo, possivelmente já lido várias vezes, e cuja companhia é garantia de bem-estar, ou um dos muitos novos que esperam ainda despertar o meu interesse? Às vezes, um livro fica anos na estante ou na mesa de cabeceira, ignorado. Um dia, de repente, sentimos que precisamos lê-lo, que precisamos daquele volume naquele momento para ser felizes. Ele é aberto, devorado, e percebemos que a vida mudou.

Durante anos, levei comigo ao embarcar em aviões uma seleção de bolso, leve, de cartas de Voltaire. Foi sempre uma excelente companhia, por causa da inteligência e da verve voltairianas. O hábito de viajar com textos do filósofo possui, aliás, precedente ilustre. Em uma carta de 1775 a Frederico, o Grande, Voltaire agradece a informação que dele recebera de que “se digna viajar com minhas pobres obras” (“mes faibles ouvrages“). O convívio dos dois na Prússia, de julho de 1750 a março de 1753, passado o fascínio mútuo inicial, fora turbulento. Voltaire e Frederico separaram-se em maus termos e nunca mais se viram. Mantiveram, porém, uma correspondência amistosa. Talvez a seleção de cartas do filósofo volte a fazer parte de minha bagagem.

E por que não um quarto livro, sobretudo sendo o Voltaire tão leve? Há poucas semanas, comprei o Lezioni americane de Italo Calvino. Publicado postumamente em 1988, o volume contém as palestras que, se não tivesse morrido em setembro de 1985, Calvino teria dado em Harvard entre 1985 e 1986, como o convidado naquele período letivo para as prestigiosas “Charles Eliot Norton Lectures”. Ao folhear os ensaios na livraria, caí na seguinte frase, no início da segunda palestra: “L’imperatore Carlomagno in tarda età s’innamorò d’una ragazza tedesca“. Essa é a habilidade do escritor, iniciar uma conferência sobre literatura, destinada a um ambiente acadêmico, narrando “una vecchia leggenda“. Funcionou comigo. Comprei o livro. Desejo lê-lo.

Calvino trabalhava nas seis palestras ao morrer. Na apresentação de Lezioni americane, sua viúva, Ester Calvino, ela mesma falecida em 2018, nos diz que o escritor, ao partir, deixou os textos datilografados sobre a escrivaninha, “in perfetto ordine“. Cada conferência se encontrava em uma pasta transparente, e todas juntas em uma pasta dura. O conjunto estava “pronto per essere messo nella valigia“. Pode-se dizer que esse é o livro que ele levou consigo em sua última viagem.

Aqui em casa, parte da biblioteca vai para Singapura. A parte que vai para Kuala Lumpur não voltará a estar acessível antes de março, abril. A biblioteca porém já está em mim. Somos a soma de tudo o que aconteceu, de tudo o que fizemos ou pensamos, de tudo o que as pessoas ao nosso redor pensam ou fazem. Somos também a soma de tudo o que já lemos, de todos os livros que já tivemos nas mãos.

Minha mulher me acompanhará até Kuala Lumpur, em seu trajeto até Singapura. Nossa gata persa, Kiki, virá junto. Companhias melhores, impossível. John Williams, Augusto, o Duby da Pléiade, Voltaire, Italo Calvino e todos os autores de que ele fala e Carlos Magno e sua “ragazza tedesca” são o bônus. Como todas as pessoas de quem eu gosto, eles já estão em mim.

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(Este ensaio foi primeiro publicado, em 10 de janeiro, na revista literária São Paulo Review)

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