O charme dos pensadores tristes 

Em seu livro iconoclasta, Le charme des penseurs tristes, o filósofo Frédéric Schiffter, no capítulo sobre Cioran, critica os volumes da Bibliothèque de la Pléiade. Segundo ele, o papel é fino demais e os livros acabam virando troféus para colocar na estante e nunca serem abertos. Afirma: “rien n’est moins plaisant que l’usage de ces bouquins“. Alegremente, comenta que seus volumes da Pléiade foram todos surrupiados quando era estudante (“quand je m’ adonnais à la pratique anarchiste de la reprise individuelle“; o estilo do autor é belíssimo). Lastima não o fato de ter roubado, já que afanava livros como forma de redistribuição de renda, mas de ter roubado volumes da Pléiade.

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Com alguma propriedade, Schiffter declara que os volumes não podem ser levados à praia, problema significativo para um autor e leitor residente, como ele, em Biarritz. Posso eu mesmo testemunhar que os livros da Pléiade não devem ser lidos na praia. Em dezembro, em Búzios, um dia levei o quarto  (e último) volume da segunda edição de À la recherche du temps perdu para a praia da Ferradura. Uma tempestade de areia destruiu meu exemplar.

Tirei uma foto enquanto via o livro ser estragado pela areia e a brisa marinha: 

Hoje, o volume está na seguinte condição:

Uma amiga restauradora de livros me informou que recuperar o volume não seria economicamente viável. Um amigo, também leitor de Proust, veio jantar conosco, há poucas semanas; mostrei o volume e ele gentilmente se ofereceu para me trazer novo exemplar de Paris. Sua mulher, porém, fez uma ponderação que me deu no que pensar. Ela disse: “Pensa um pouco se vale a pena jogar esse exemplar fora… esse estado dá a ele uma história”.

Posso entender seu argumento. Os livros da Pléiade, embora caros, não precisam ser tratados como tesouros intocáveis. São publicados para ser lidos. São tesouros, isto sim, de erudição.

A coleção, orgulho da editora Gallimard, vem sendo publicada desde a década de 30. O primeiro autor editado foi Baudelaire, em 1931. No início, o aparato crítico era simples. Hoje, ocupa parte considerável de cada volume. Alguns autores já foram editados mais de uma vez: de cabeça, lembro de Molière, Casanova, Racine, Saint-Simon, Balzac, Stendhal, Montaigne e Proust. Este último foi publicado pela Pléiade, a primeira vez, em 1954, em três volumes. O fato de a nova edição, publicada de 1987 a 1989, ser em quatro volumes dá uma ideia da evolução do aparato crítico. Foi na edição em três volumes, da biblioteca dos meus pais, que comecei a ler Proust, aos 11 anos.

Não conheço, em outra cultura, edições tão cuidadas e eruditas como as da Pléiade. As da Library of America não chegam nem perto.

A crítica de Schiffter, assim, parece excessiva.

Temos em casa mais de 100 volumes da coleção. Uns 110, talvez. Não posso dar um número preciso, porque alguns estão emprestados a meu amigo leitor de Morgenthau. Todos guardam marcas de terem sido lidos. Minha mulher e eu os lemos no jardim, ao sol; sempre viajamos com algum na mala, e eu não sinto compunção em deixar cair água, chocolate, frutas em algumas páginas. Certamente, não os tratamos como objetos valiosos, embora nenhum volume esteja em tão mau estado como o quarto volume de La Recherche. Ele aparece assim na estante:

Alguns exemplares foram comprados de segunda mão, com buquinistas à beira do Sena ou na Livraria Berinjela, no Rio. Em uma de minhas visitas este ano à livraria, encontrei o primeiro volume da edição de 1954 de La Recherche, aquela que conheço da biblioteca dos meus pais. Comprei o livro, que estava em bom estado, e dei-o de presente ao meu amigo leitor de Proust. Ele gostou.

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