Devo meu prenome a Machado de Assis e a uma peça de teatro. Criança, ouvia que meu trisavô — a quem mencionei na postagem sobre Papai Noel e a amizade, por causa de seu espírito bon vivant e sua amizade com Machado de Assis — teria dado ao filho mais velho, o meu bisavô, o nome de Ary por causa de uma peça francesa que fizera sucesso no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. Meu avô e meu pai carregaram o mesmo prenome e pareceu muito natural, no meu nascimento, por causa da consideração que cercava meu avô, o matemático, então ainda vivo, que eu fosse o quarto Ary. Simplesmente, não ocorreu a ninguém que eu pudesse ter outro nome.
Cresci convencido de que a estória da peça francesa era apenas uma lenda familiar. Adulto, pesquisei e descobri, para minha surpresa, que efetivamente, em 1866, estreou no Rio de Janeiro uma peça importada da França que fez durante anos enorme sucesso, intitulada O Anjo da Meia-Noite, cujo personagem principal se chamava Doutor Ary Koerner. O tradutor da peça no Brasil foi… Machado de Assis.
A peça pode ser lida na Internet, na página Gallica, mantida pela Bibliothèque nationale de France, verdadeiro tesouro, onde se encontram milhões de livros e manuscritos em francês. L’Ange de Minuit estreou em Paris em 1861; foi escrita por Théodore Barrière e Édouard Plouvier. Os dois autores são hoje perfeitamente esquecidos, mas parecem ter sido ambos fecundos e famosos em sua época.
L’Ange de Minuit, hoje tão esquecida quanto seus autores, é um dramalhão passado na Alemanha. O Docteur Ary Koerner é um médico jovem e brilhante, adorado pelos pobres, aos quais se dedica. Mora com a mãe e os dois sobrevivem com grande dificuldade pecuniária. Logo no primeiro Ato, o médico declara que ele e a mãe são “mais pobres até do aqueles a quem ajudamos”. Apesar de boníssimo e caridoso, o médico enfrenta adversários. Tem um grande amigo, Karl, filho do Conde de Stramberg, estudante de medicina e seu discípulo. Um dia, em passeio pelo campo, Ary adoece e, no seu delírio, conhece duas mulheres. Uma é Marguerite de Stramberg, irmã de Karl, secretamente apaixonada por ele. A outra é o Anjo da Morte, que dá o título à peça. O Anjo detesta Ary — e não é sem susto que escrevo isto — sentimento que a ele explica com a seguinte fala: “Tua ciência perturba a ordem indicada… Onde eu chego e te encontro, tenho de partir e voltar mais tarde”. Isso não deixa de ser um belo elogio ao talento do médico. Sem perceber, por causa da febre, Ary faz um pacto com o Anjo: quando este aparecer e assim determinar, o médico terá de deixar morrer o paciente, caso contrário o Anjo levará sua mãe. Ao passar a febre, Ary pensa ter tido dois sonhos, um belíssimo, com a linda mulher – Marguerite – a olhá-lo, e outro terrível, sobre a Morte.
Infelizmente, não era um sonho. A peça prossegue. Ary e Marguerite (minha avó, mulher do matemático, curiosamente se chamava Margarida) ficam noivos; o casamento é facilitado porque ele salva a vida do Conde de Stramberg e porque herda uma fortuna de um tio-avô. Amigo leal e ideal – como todo Ary, naturalmente – salva a vida de Karl, quando este duela com um Barão que quer se casar à força com Marguerite, por ser dono de um segredo prejudicial à reputação do Conde. E acontece o que tinha de acontecer, sendo este um dramalhão: no dia do casamento, Marguerite adoece e está morrendo, a caminho da igreja. O Anjo aparece e pede seu preço. Apenas Ary pode vê-lo. Há diálogo intenso, amargurado e dramático entre Ary e o Anjo: quem o médico deixará morrer, a mãe ou a noiva? Uma hora ele escolhe uma; de repente, opta pela outra. A Religião salva tudo. O Conde de Stramberg, desesperado de ver a filha moribunda, se ajoelha e reza. Os pobres fazem o mesmo. Karl explica ao amigo haver poderes mais altos do que a ciência. Deus se apieda e faz retroceder o Anjo. Marguerite e a mãe do médico ambas sobrevivem. A noiva se levanta e segue feliz para a igreja. Fim da peça.
Estamos bem longe de Shakespeare ou de Racine. Há clara inspiração, empobrecida, no mito de Fausto, marcante no século XIX por causa de Goethe; a ópera de Charles Gounod, Faust, onde o objeto do amor do personagem principal se chama Marguerite, estreara em 1859, dois anos antes de L’Ange de Minuit.
Encontrei na página de Gallica uma nota publicada na edição do jornal Le Figaro de 10 de dezembro de 1863, onde se afirma que Verdi – um de meus ídolos — estava compondo, naquele momento, uma ópera baseada em L’Ange de Minuit. Nunca existiu tal ópera. Théodore Barrière merece uma nota de rodapé na história da Ópera por outra razão, pois colaborou com Henry Murger em uma peça que, junto com uma novela e estórias do mesmo autor, geraria La Bohème de Puccini.
A edição da Nova Aguilar com as Obras Completas de Machado de Assis não fornece suas versões de peças francesas. Estas parecem ter sido numerosas, segundo artigo publicado em 2010 pelo Professor de Literatura Brasileira da USP, João Roberto Faria, na revista eletrônica Machado de Assis em linha. Segundo o autor, “O Anjo da Meia-Noite surpreende no conjunto das traduções, pois é uma peça sem nenhuma qualidade literária”. Posso apenas concordar.
O Dicionário de Machado de Assis, de Ubiratan Machado, publicado pela Academia Brasileira de Letras (e que contém verbete sobre meu trisavô, Francisco José Corrêa Quintella) diz o seguinte, entre outras coisas, sobre O Anjo da Meia-Noite: “Drama fantástico […] foi representado pela primeira vez no Teatro Ginásio, em 5 de julho de 1866, pela Companhia de Furtado Coelho […] Repetindo o que acontecera em Paris, obteve um êxito retumbante”. O verbete menciona que a peça “deu rios de dinheiro a Furtado Coelho, sendo a responsável pelo grande número de crianças batizadas com o nome de Ari, como o herói”.
Em artigo que publicou na Semana Ilustrada, em 8 de julho de 1866, o próprio tradutor da peça, Machado de Assis, se encarregou de elogiá-la, com a assinatura “A”, que utilizava às vezes. A crítica não aparece nas Obras Completas, mas pode ser lida na Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Escreve Machado, sem pudor, que “o público tem na representação deste drama tudo quanto se pode oferecer de belo e de grandioso” e “o público entusiasmado redobra de aplausos e de admiração a cada cena que aparece. Seria temeridade afirmar qual dos Atos é o melhor”.
Explicada a origem do prenome na minha família, fica a pergunta de por que dois autores franceses atribuíram ao seu herói alemão, em 1861, o nome de Ary. A única teoria que me ocorre é que seja uma homenagem ao pintor holandês de origem alemã, muito famoso no século XIX, Ary Scheffer, que fez carreira em Paris. Scheffer morreu em 1858, três anos portanto antes da estréia em Paris de L’Ange de Minuit. Era extremamente ligado aos círculos artísticos e literários franceses – sua sobrinha casou-se com o filósofo Ernest Renan, e o filho de ambos chamou-se Ary – e sua casa é hoje um dos mais interessantes pequenos museus de Paris, o Musée de la vie romantique. Scheffer era também ligado à família de Louis-Philippe, Rei dos Franceses (e não da França, pois o chamado “rei-burguês” queria se distanciar de seus antecessores absolutistas) e a abdicação e o exílio do Rei prejudicaram posteriormente a imagem do pintor.
Um dos temas principais de Scheffer em sua pintura eram cenas extraídas do Fausto de Goethe. Um importante crítico de arte do século XIX, Baudelaire — sim, ele mesmo, o poeta — detestava a obra de Scheffer e escrevia que ele pintava seus Faustos como se fossem o Cristo e seus Cristos como se fossem Fausto. De fato, a primeira foto nesta postagem retrata Fausto e Margarida no Jardim, quadro de Scheffer onde Fausto se parece à representação tradicional de Cristo. Na página 475 do volume II das Oeuvres Complètes de Baudelaire na Bibliothèque de la Pléiade, dedicado aos seus textos como crítico literário e de arte, leio a seguinte frase: “A moda passageira do Sr. Ary Scheffer foi uma homenagem à obra de Goethe”. Paradoxalmente, acaba de terminar em Paris, no Musée de la vie romantique, que, como disse acima, foi a casa de Ary Scheffer, exposição sobre a atividade de Baudelaire como crítico, “L’Oeil de Baudelaire”, por ocasião da qual foi lançado este livro, que serviu também de catálogo:
Procurei em documentos no Galicca confirmação de que Ary Scheffer foi amigo de Barrière ou de Plouvier, mas nada encontrei. Olhei no Journal dos irmãos Goncourt, os maiores fofoqueiros do mundo artístico e literário no século XIX. Há lá referências a Théodore Barrière e a Ary Scheffer, e também a um quadro do pintor intitulado Marguerite, mas nada há sobre L’Ange de Minuit.
Não consigo, porém, pensar em explicação alternativa a essa, de uma homenagem a Scheffer, para que Barrière e Plouvier dessem ao seu herói perfeito um nome, na época, tão inusual.
E é assim que, pelos meandros da pintura e do teatro, e o tempo perdido por Machado de Assis traduzindo uma peça hoje esquecida, e a relação de meu trisavô com ele, e a boa reputação do meu avô e a mania familiar de repetir nomes, que vim a ser registrado.
Na edição de 15 de setembro de 1865, página 4, há no Correio Paulistano um anúncio dessa peça, “traducção do distincto poeta e jornalista o senhor Machado de Assis”.
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Olha só… 👍
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