Minas e as formigas

Minas e as formigas

Os mineiros são um povo privilegiado, ao poder contar com a Universidade Federal de Minas Gerais. Alguns dos diplomatas brasileiros mais preparados e competentes que conheço nas novas gerações do Itamaraty lá estudaram. Para minha sorte, alguns já trabalharam comigo.

Pela editora da UFMG, lançou-se este ano o livro De Bonifácio a Amorim, de Dawisson Belém Lopes, professor de Política Internacional e Comparada naquela universidade. Antes de encomendar a obra, eu supusera que se trataria de uma história da política externa brasileira. Não tinha ainda tomado conhecimento do subtítulo: “Elementos de uma teoria social da política externa brasileira”.

Foi uma boa surpresa constatar que o enfoque adotado é diferente de uma análise histórica, porque a obra que será o texto clássico, nesta geração, sobre a história da política externa já existe — trata-se do estupendo livro do embaixador Rubens Ricupero, A diplomacia na construção do Brasil, de 2017, que mereceu no ano passado uma segunda edição.

Diferentes pontos de vista sobre a evolução da política externa brasileira serão sempre úteis e bem-vindos, e Dawisson Belém Lopes está plenamente preparado para um dia apresentar o seu, se assim quiser, mas a tarefa a que ele se dedicou em De Bonifácio a Amorim é outra e é igualmente importante. O autor do prefácio é justamente Rubens Ricupero e ele o inicia com a frase: “Originalidade é a impressão predominante de quem abre e folheia este livro”. Recolhi da leitura o mesmo sentimento.

É  uma análise sociológica da diplomacia brasileira e do Itamaraty o que nos propõe Dawisson Belém Lopes, e é daí que decorre o ineditismo de seu novo livro.

Discute o autor como a diplomacia brasileira tem-se adaptado, ao longo dos duzentos anos desde a Independência, para lidar com fatores internos e circunstâncias externas que provocaram, com maior ou menor sucesso, mudanças ou permanências no Itamaraty. É na Conclusão que encontro a definição mais clara do objetivo do livro, em frase colocada em itálico pelo próprio autor: pensar o bicentenário do Brasil a partir das raízes sociais de sua política exterior.

Cito um trecho que me parece ilustrar bem o sabor da singularidade do estudo de Belém Lopes: “Embora a fama meritocrática do Itamaraty não fosse infundada, dado seu histórico de recrutamento rigoroso e excelência profissional, a era pós-golpe [de 64] viu essa imagem ser manipulada para servir aos interesses do regime militar. O Ministério propalou imagem de neutralidade e eficiência burocrática para o mundo externo, o que ajudou a mascarar a natureza profundamente política de suas operações reestruturadas”.  

Um tema, sobretudo, o do elitismo e conservadorismo, serve para que o autor analise o longo processo de continuidades no Itamaraty. Em coluna anterior neste jornal, que intitulei “Um Brasil consciente e forte”, tratei de uma entrevista que meu pai conduziu, em 1970, com o senador e ex-chanceler Afonso Arinos, em que o político mineiro explicitava a frustração que experimentara ao chefiar o Itamaraty. “Só encontrei resistências, incompreensões e obstáculos às minhas ideias”, relatava Afonso Arinos, que enfrentou da parte dos diplomatas brasileiros, e apesar de suas impecáveis credenciais aristocráticas, obstinada oposição para implementar a chamada “Política Externa Independente”.

Na avaliação de Belém Lopes, há uma “interação entre interesses econômicos dominantes e a gestão diplomática”. Entende, por exemplo, que “Não se explica o comportamento histórico do Brasil na arena internacional, tampouco as orientações contemporâneas do Itamaraty ao chefe de Estado, sem recorrer à base econômica do poder nacional, responsável, ademais, por construir uma identidade de país exportador da periferia capitalista global”.

Em vários momentos de sua narrativa, Dawisson Belém Lopes insere “estudos de caso”, todos fascinantes, nos quais examina de maneira mais concreta até que ponto fatores domésticos podem afetar a formulação da política externa. Ao frisar nossa “identidade de país exportador de gêneros agrícolas”, importador de fertilizantes, sustenta que a resposta brasileira à guerra na Ucrânia seria “profundamente informada pelo desproporcional peso político da velha elite agrária”. Esse é um ponto em que não compartilho inteiramente de seu diagnóstico, pois vejo razões geopolíticas sólidas para embasar a posição brasileira tendente ao apaziguamento das tensões. O próprio autor matiza sua opinião ao comentar, corretamente, que o Brasil “vê a paz e a estabilidade como pré-requisitos para o desenvolvimento econômico e a prosperidade global”.  

Os “estudos de caso” criados pelo professor Belém Lopes, particularmente apropriados, permitem que ele se debruce de forma profunda e detalhada sobre determinado fato ou momento para iluminar aspectos da práxis externa brasileira. Gostei particularmente do estudo de caso referente ao BRICS, em que ele apresenta uma verdade fundamental, mas nem sempre assim percebida, sobre a história da política externa brasileira: “As mudanças de direção que houve, via de regra, resultaram de cálculo e determinantes estruturais, não de idiossincrasias e frivolidades”. Sua conclusão é de que termina geralmente por prevalecer, no caso brasileiro, um componente de neutralidade e não-alinhamento às superpotências e de universalismo diplomático do país.  

Se eu tivesse de fazer alguma crítica a uma obra de análise tão rica, oportuna e inovadora como a do professor Dawisson Belém Lopes, seria a de que, considerando ser a sua uma abordagem sociológica, ele poderia talvez ter investigado de maneira mais extensa as ramificações de dois outros temas que aborda, as questões de gênero e raça.

Ao final da leitura, fica a dúvida se o livro é elogioso ou crítico em relação ao Itamaraty. Ao refletir a respeito, chego à conclusão de que os admiradores e os detratores da diplomacia brasileira se sentirão igualmente justificados com essa obra, e nisso reside um de seus méritos. 

Para mim, como diplomata, foi uma curiosa sensação deparar-me com um estudo em que a instituição na qual se desenrola minha atividade profissional é observada e analisada com verdadeiro talento de entomologista.

Coluna publicada no Estado de Minas ontem, 6 de dezembro

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Cem anos na Ásia do Leste, 27 de setembro

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O espaço do diplomata, 19 de julho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

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Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

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Belém, capital do mundo

Belém, capital do mundo

“Belém é a cidade principal da Polinésia. Mandaram vir uma imigração de malaios e no vão das mangueiras nasceu Belém do Pará”. Assim brincava Mário de Andrade em maio de 1927, enquanto ia descobrindo a Amazônia com a riquíssima Olívia Guedes Penteado, a “Rainha do Café”, como ele diz, no que era então, para sulistas, uma viagem rara. Deslumbrou-se com a cidade. Fora a queixa do calor — calor também sentido, agora em novembro, pelos participantes da Conferência do Clima, a COP30 — todos os seus comentários são afetuosos: “Belém foi feita para mim e caibo nela que nem mão dentro de luva”. Depois de dois meses subindo os rios amazônicos, volta à capital do Pará no final de julho, no longo caminho de regresso a São Paulo. Suspira: “Belém gostosíssima, a milhor coisa do mundo”. No último dia, em 1º de agosto, resume: “nunca na minha vida encontrei uma cidade que me agradasse tanto” e “passei em Belém os melhores dias de minha vida, inesquecíveis”.

Garimpo as frases acima na mais recente edição de O turista aprendiz, de 2024, organizada por Flora Thomson-DeVeaux, que também traduziu para o inglês esse livrinho delicioso. O nosso poeta, um dos maiores intelectuais do país, foi ainda mais direto em uma carta a Manuel Bandeira de junho de 1927, enviada depois da primeira passagem por Belém. Escreve ao amigo: “Quero Belém como se quer um amor. É inconcebível o amor que Belém despertou em mim”. “Meu único ideal de agora em diante”, diz ele, “é passar uns meses morando no Grande Hotel de Belém. O direito de sentar naquela terrasse em frente das mangueiras tapando o Teatro da Paz, sentar sem mais nada, chupitando um sorvete de cupuaçu, de açaí”.

Duas vezes estive em Belém. Na primeira, viajei de férias com minha irmã, quando éramos estudantes; na segunda, minha mulher e eu, ainda namorados e alunos do Instituto Rio Branco, fizemos uma viagem à Amazônia com os colegas, naquilo que era, naquela época, parte da formação na academia diplomática. Lembro bem do impacto sentido com a descida do rio Amazonas, de Manaus a Belém. É preciso viver essa experiência para ter a noção do que significa ser brasileiro, perceber a imensidão daquele rio e a imensidão do país. Como Mário de Andrade, também eu tomei ali pela primeira vez um sorvete de cupuaçu, na calçada, olhando para a fachada do Teatro da Paz.

Além de me fazer reler, em Luanda, O turista aprendiz, o noticiário sobre a COP30 me levou de volta a um filme de Bruno Murtinho, Amazônia Groove, lançado em 2018. Foi há dois anos que tomei conhecimento desse documentário sobre a variedade da produção musical no Pará. Querendo em 2023 realizar, pela primeira vez, um Festival de Cinema Brasileiro em Kuala Lumpur, decidi apresentar ao público malásio uma retrospectiva de Kleber Mendonça Filho. Tive a sorte de contar na Malásia com uma equipe excepcionalmente competente, inclusive meu colega Marcelo Hasunuma, que me ajudou a montar o Festival do zero, por ser uma iniciativa inédita. Foi ele quem me convenceu a incluir na programação, além de filmes do diretor recifense, também Amazônia Groove para inaugurar o Festival.

Na sessão de abertura, o convidado de honra foi o ministro de Turismo, Indústria Criativa e Artes Cênicas do estado de Sarawak, Abdul Karim bin Rahman Hamzah. Sarawak, situado na ilha de Bornéu, ocupa uma área equivalente à da Inglaterra. Produz 30% do petróleo malásio e preserva a maior cobertura de floresta nativa no país. Suas importações de produtos agropecuários são supervisionadas por serviços próprios, independentes dos da Malásia continental. Sentado ao meu lado, o ministro Abdul Karim viu na tela igarapés, a floresta, populações ribeirinhas, o Ver-O-Peso. Tomou conhecimento de estilos musicais como carimbó e tecnobrega. Ouviu o violão de Sebastião Tapajós tocar no Teatro da Paz e Dona Onete cantar “Banzeiro” em um barco. Em O turista acidental, leio que a palavra significa “movimento agitado das águas, quando o navio passa e deixa a esteira violando a mansidão do rio”.

Ao terminar o filme, o ministro virou-se para mim e exclamou, surpreso: “A Amazônia lembra demais Sarawak!”. Se eu tivesse relido Mário de Andrade antes do filme, teria citado a Abdul Karim a brincadeira de que Belém fora fundada por malaios. 

A realização da COP30 em Belém gerou críticas, por causa do custo da hospedagem. Não consigo imaginar, porém, onde mais, no Brasil, a reunião poderia ter acontecido, pelo peso simbólico daquela cidade, situada na vasta desembocadura do rio Amazonas. Como disse ao início da reunião o presidente Lula, nas duas semanas seguintes Belém seria “a capital do mundo”, ajudando a mostrar que a Amazônia é uma realidade, e não uma abstração.  

Mário de Andrade, então com 33 anos, conta que, em Porto Velho, explicou a um interlocutor local que ele e seus companheiros de viagem “éramos um grupo de amigos paulistas, curiosos de conhecer outros brasis, pela vaidade ou ventura de conhecer coisas”. Assim é nosso país, composto de tantos “brasis”, que apenas parcialmente conseguimos percebê-lo.

Como o poeta há cem anos, muitos dos 56 mil participantes da COP30 terão se apaixonado por Belém. Preparo estas palavras na reta final da Conferência, e os delegados estarão partindo quando elas forem impressas. Um primo mineiro, que participou na primeira semana, me escreve: “Gostei de Belém, gostei da COP. O saldo é positivo. No meu último dia, passeei um pouco pela cidade, foi ótimo. Talvez eu nunca tivesse ido lá se não fosse a COP”.

Afinal, uma conferência internacional serve também para isto: para revelar a multiplicidade de “brasis” não somente aos estrangeiros, mas também a nós brasileiros.

Coluna publicada no Estado de Minas ontem, 22 de novembro

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As pedras do Louvre

As pedras do Louvre

O roubo espetacular ocorrido no museu do Louvre no domingo 19 de outubro chama a atenção do mundo inteiro. Vejo várias razões para isso, a principal sendo que ele representa todos os seus pares. É o museu por excelência: o mais famoso, o maior em termos de espaço de exposição e o que mais visitantes recebe — nove milhões em 2024.

O filme Francofonia, de 2015, do diretor russo Aleksandr Sokurov, é uma divagação sobre o papel e a função dos museus. Muito naturalmente, é o Louvre o modelo utilizado. Sugere Sokurov, a meu ver corretamente, que o Louvre é o símbolo não somente de todos os museus, mas também da França em si. Não entendo o sentido do ditado “ir a Roma e não ver o papa”, pois já estive muitas vezes em Roma e nunca vi papa algum. Mas entenderia um ditado que soasse como “ir a Paris e não ver a Mona Lisa”, entendendo-se a Mona Lisa, aqui, como uma marca que englobaria o Louvre e ao mesmo tempo seus múltiplos tesouros, como o Escriba Sentado; a cabeça de Akhenaton; a Vênus de Milo; a Vitória de Samotrácia; o busto de Germânico — há mais de um nas salas romanas, eu tenho o meu predileto; o Escravo Morrendo, esculpido por Michelangelo; a Coroação de Napoleão por David; e todas as obras-primas das diferentes escolas de pintura.

Antigamente, décadas atrás, quando por exemplo eu era aluno universitário na London School of Economics, seria impensável eu ir de Londres a Paris, mesmo que apenas para o fim de semana, e não dar um pulo até o palácio-museu, para rever ao menos algumas das minhas peças prediletas. Hoje, visitá-lo tornou-se tarefa árdua, demonstração de persistência e resiliência. Já lá não vou há alguns anos. A fila de espera é longa e o museu, tentacular. Encontrar as obras de arte que procuramos é um exercício físico exaustivo e, às vezes, desesperador. Fiquei mais velho, mais sereno, menos influenciável esteticamente e o prazer de rever aquelas obras já é menos significativo, comparado ao esforço envolvido. Em 2019, escrevi uma crônica, A culpa foi da Mona Lisa, contando minha frustração ao não conseguir chegar até a galeria onde são exibidas pinturas do Rubens, porque a tela de Leonardo da Vinci que retrata, como eu dizia, “a florentina do sorriso misterioso”, estava temporariamente exposta ali, atraindo a multidão de sempre e criando caos.

Outra razão para o fascínio do público com o roubo é, certamente, o fato de que são joias os objetos roubados. É inexistente minha sensibilidade para joias. Vejo-as como um amálgama de pedras coloridas, sem valor intrínseco a não ser aquele a elas atribuído, ilogicamente, pelas pessoas em geral. Da mesma forma, a realeza sobrevive em alguns países pela esdrúxula crença de alguns de que determinada família seria, magicamente, superior e merecedora de preservar um privilégio hereditário.

A proveniência das joias roubadas e o local onde eram expostas contribuem para o interesse sobre o roubo de 19 de outubro. Pertenceram a Maria Luisa da Áustria, segunda mulher de Napoleão I e irmã querida da imperatriz Leopoldina; a Eugenia de Montijo, mulher de Napoleão III, último soberano que a França teve; e a Maria Amélia de Bourbon-Sicílias, mulher do rei Luís Filipe e tia da imperatriz Teresa Cristina. A combinação entre joias caras e origem real cria um elemento de fascínio popular. Quanto ao local de onde os objetos foram subtraídos, a Galerie d´Apollon, renovada no século XVII, é talvez o espaço mais luxuoso do museu. Seu arquiteto foi Louis Le Vau e o teto é, em parte, de autoria do pintor Charles Le Brun. Ambos trabalharam no Palácio de Versalhes. Duzentos anos depois, Delacroix contribuiu com uma das pinturas no teto.

Em Geografia do tempo (2024), no qual o Louvre é bem presente, menciono um pesadelo de Henry James a respeito da Galerie d´Apollon, em que era vítima de uma perseguição, na galeria, por “uma criatura, uma presença”. Como digo no meu livro, “o pesadelo, descrito em detalhe pelo escritor, é maçante, como costumam ser os sonhos alheios, mas tornou-se célebre, por pertencer a Henry James e por ter a Galerie d´Apollon como palco”.

A galeria, agora, virou cenário de um pesadelo bem real, em que as deficiências de segurança do palácio-museu ficaram escancaradas, apesar das declarações em contrário da ministra da Cultura, Rachida Dati. Ao defender o museu, tenta preservar a imagem do ministério que chefia, e também a sua própria. É candidata, como política de direita, à prefeitura de Paris, nas eleições municipais de março de 2026, para suceder à atual prefeita, de esquerda, Anne Hidalgo. A arguição no Senado da diretora do Louvre, Laurence des Cars, em 22 de outubro, demonstrou o alto grau de politização em torno às percepções sobre o roubo.

Fora o aspecto histórico, as joias roubadas valeriam 88 milhões de euros. Os ladrões certamente desmontarão as peças formadas pelas pedras coloridas, que serão vendidas de maneira individual. A não ser que a polícia consiga rapidamente prender os Arsène Lupin de carne e osso, os objetos de vaidade de duas imperatrizes e de uma rainha, os símbolos de um luxo ostentatório se perderão para sempre. Paradoxalmente, essas joias adquirirão a partir de agora um aspecto mítico, como o célebre e também desmontado “colar da rainha”, que Maria Antonieta nunca possuiu, nunca desejou, desprezou mesmo, mas que contribuiu para desonrá-la.

O detalhe pitoresco é a coroa da imperatriz Eugenia ter sido abandonada na rua pelos ladrões. Acharam-na pesada? Difícil de desmontar? De mau gosto? Leio que ela é constituída por 1.354 diamantes e 56 esmeraldas. É muita pedrinha.

A Galerie d´Apollon, local do crime, como a fotografei há alguns anos. Por uma das janelas do lado esquerdo entraram os ladrões

Esta coluna foi publicada no Estado de Minas ontem, 25 de outubro.

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O Sudeste Asiático e suas verdades

O Sudeste Asiático e suas verdades

Em maio, viajando de Angola ao Brasil, assisti no avião ao filme americano Crazy Rich Asians, dirigido por Jon M. Chu. Era a primeira vez que o revia desde 2018, ano de seu lançamento, quando minha mulher e eu o vimos em Brasília, no cinema.

No Brasil, o título foi traduzido para Podres de ricos, o que não me parece uma escolha feliz. Passa uma ideia de leviandade, enquanto que o filme, divertido e leve como é — pode ser entendido, por quem assim quiser, como uma versão moderna, transplantada para a Ásia, do conto da Cinderela — trata, subliminarmente, de um tema sério, a força econômica do Sudeste Asiático.  

O filme é extraído de um romance de Kevin Kwan, autor nascido em Singapura, como seus personagens; como seus personagens, de origem chinesa; e naturalizado americano. O verbete sobre ele na Wikipedia melindrará autores brasileiros. Recomendo que não o leiam, a não ser como exercício de masoquismo. Todos os livros de Kevin Kwan são campões de vendas; todos parecem destinados a virar filmes hollywoodianos. Tudo isso significa dinheiro, muito dinheiro. Significa sucesso, muito sucesso. 

Em 2018, minha mulher nunca havia viajado à Ásia; eu, por razões de trabalho, lá estivera algumas vezes, sobretudo desde 2016, mas não no Sudeste Asiático. Quando terminou a sessão, julgamos que Crazy Rich Asians, fora a questão do padrão de vida exorbitante da maioria dos personagens, nos provara, de uma maneira mais impactante do que qualquer livro sobre economia ou relações internacionais conseguiria, a realidade sabida mas nunca antes tão fortemente visualizada do dinamismo do Sudeste Asiático. Presenciáramos no cinema a firme evolução daquela região como um dos centros mundiais do poder econômico e comercial.

Um detalhe sutil chamou minha atenção já em 2018. Trata-se de um filme americano, distribuído por estúdio americano, mas onde os personagens ocidentais são figurantes que transitam pela tela de relance. Se olharmos um segundo para o balde de pipoca no nosso colo, perderemos os raros momentos em que a câmera os mostrou rapidamente. Os ocidentais, nas cenas em Singapura, são apenas prestadores de serviço para os asiáticos. Não participam da trama.

Somente na primeira cena do filme, em Londres, cerca de vinte anos antes da ação principal, figuras ocidentais aparecem e têm falas próprias. Isso acontece, porém, para mostrar o seu ridículo. Empregados brancos e mesquinhos de um hotel destratam e humilham, por preconceito racial, a bilionária singapurense que lá deseja se hospedar. Na mesma hora, de Singapura, o marido compra o estabelecimento para vingar a mulher. A bilionária, que mais tarde se tornará a sogra em potencial da heroína e também sua antagonista, é interpretada pela cativante atriz malásia Michelle Yeoh. Por trás do humor da cena, esse momento inicial é profundamente político e carregado de simbologia. Ilustra a ascensão da Ásia e a decadência do Ocidente.

Ao assistir a Crazy Rich Asians em 2018, minha mulher e eu não sabíamos ainda que, no ano seguinte, pediríamos para trabalhar no Sudeste Asiático, ela em Singapura e eu em Kuala Lumpur, e que chegaríamos aos dois postos no início de 2020. Rever o filme no avião, em maio de 2025, depois de cinco anos na Malásia, de onde eu partira apenas três meses antes, proporcionou uma experiência mais rica. 

Em diferentes momentos dos meus cinco anos no Sudeste Asiático conversei, na Malásia e em Singapura, com ao menos quatro dos atores de Crazy Rich Asians. Inclusive, em 2023, com a própria Michelle Yeoh, quando visitou Kuala Lumpur depois de ganhar seu Oscar. Ao rever o filme, percebi sotaques, formas de falar, expressões corporais que observei muitas vezes nos dois países.

No avião, reconheci locações. É uma história singapurense, mas muitos cenários de filmagem se encontram na verdade na Malásia. Como exemplo, direi que o “bar em Nova York” onde o casal protagonista decide viajar a Singapura é na verdade um restaurante em Kuala Lumpur, em frente ao prédio onde morei. Em uma coluna nestas páginas, Tempos de incerteza, escrita ainda em Kuala Lumpur, mencionei que, em um sábado de janeiro, eu fizera uma palestra intitulada “BRICS e ASEAN: Liderança Global de Brasil e Malásia em Tempos de Incerteza”. Cheguei ao instituto onde aconteceria minha apresentação vindo diretamente desse restaurante, onde almocei tantas vezes.

Assistindo ao filme, que é uma sátira, achamos graça nos excessos dos bilionários asiáticos. As risadas tornam fácil obliterar as verdades políticas, comerciais e econômicas que ele escancara. Por mais que seja repetida, é naturalmente difícil para brasileiros que nunca estiveram no Sudeste Asiático assimilar esta verdade: alguns dos países da região, notadamente Singapura e Malásia, são hoje destinos mais importantes para as exportações do Brasil do que a maioria dos países da União Europeia ou da América do Sul. Politicamente, é no Sudeste Asiático que é sentido mais nitidamente o sentimento de rivalidade dos Estados Unidos em relação à China.

Foi um privilégio trabalhar, até poucos meses atrás, para o estreitamento dos laços entre o Brasil e a Malásia e a Associação de Nações do Sudeste Asiático, a ASEAN. O ano de 2024 foi particularmente rico para esse fim e sobre isso já falei aqui mesmo no Estado de Minas, em O ponto de inflexão.

A Malásia é hoje uma nação próspera, prestes a se tornar um país de alta renda e que compartilha muitas das posições defendidas pelo Brasil. É esse o país que o presidente Lula descobrirá ao desembarcar em Kuala Lumpur, no final de outubro, para ser o primeiro chefe de Estado brasileiro a participar de uma cúpula da ASEAN. Um país onde o Brasil é hoje particularmente querido e admirado.

A Mansão azul, em Penang, Malásia, cenário do jogo de mahjong em Singapura entre sogra e nora

Esta coluna foi publicada no Estado de Minas ontem, 11 de outubro.

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O diplomata robô, 30 de agosto

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Cem anos na Ásia do Leste

Cem anos na Ásia do Leste

Aldeia de Qing Xin Ling, perto de Ipoh

Em março de 2020, quando eu acabara de chegar à Malásia, a Covid-19 me fez presenciar um fenômeno: a multiplicidade de identidades.

Cidadãos brasileiros, nascidos no Brasil, onde moravam suas famílias, mas que residiam, por opção, na Itália, procuraram a embaixada em Kuala Lumpur. A pandemia capturara-os passeando pela Ásia. Voos para a Itália tornavam-se escassos; as passagens eram vendidas a preços proibitivos.

Queriam ser incluídos no voo de repatriação de brasileiros. Tinham, porém, deixado seus passaportes brasileiros na Itália. Viajavam apenas com os documentos italianos. A embaixada brasileira forneceu-lhes novos passaportes.

Pouco depois, souberam que haveria voo de repatriação para a Itália. Embora não gratuito como o brasileiro, era financeiramente mais acessível do que o comercial. Mesmo conferindo precedência novamente à sua identidade italiana, voltaram a procurar, mais de uma vez, nossa embaixada, para obter informações, por exemplo, de como podiam se submeter a teste de COVID-19, condição para a viagem no voo oferecido pelo governo italiano. Deduzo que a embaixada que eu chefiava era a mais amistosa das duas.

Sou imune aos conflitos – ou, se quiserem, às potencialidades – criados pela posse de nacionalidades múltiplas. Minha mulher e eu detemos apenas o passaporte brasileiro, por considerá-lo suficiente.

A leitura de um livro sobre a China lançado este ano me fez lembrar as inquietações desses compatriotas. Recebi-o de um amigo malásio, Liew Chin Tong, vice-ministro de Investimentos, Comércio e Indústria. Político respeitado, intelectual admirado, Liew Chin Tong fez visita de trabalho a Brasília e ao Rio de Janeiro em maio de 2024. Era a sua primeira viagem ao Brasil. No Rio, entre uma reunião e outra, quis conhecer a Biblioteca Nacional.

Há três meses, ao passar por Kuala Lumpur depois da minha palestra em Singapura sobre Roberto Burle Marx, experiência de que tratei nestas páginas em O espaço do diplomata, almocei com Liew Chin Tong, ocasião em que ele me ofereceu o livro.

A obra, do historiador Wang Gungwu, intitulada Roads to Chinese Modernity: Civilisation and National Culture, coleção de ensaios seus dos últimos anos, trata de vários temas. O principal é a análise dos desafios que se apresentam à China neste início de século XXI. Talvez eu comente em uma próxima coluna o tratamento do assunto por Wang Gungwu. Abordo hoje apenas o capítulo final, “Aceitando minhas múltiplas identidades”. Seu objetivo é analisar o que significa ser de origem chinesa mas cidadão de outros países, sobretudo no Sudeste Asiático.

Nascido de pais chineses em 1930 em Surabaya, no que era então as Índias Orientais Neerlandesas e hoje é a Indonésia, Wang Gungwu cresceu na cidade de Ipoh, no estado malásio de Perak, protetorado britânico. Sua escola era inglesa; os professores, “britânicos, indianos, cingaleses, chineses e malaios”. Em casa, falava-se mandarim. Amigos chineses comunicavam-se em cantonês, hakka e hokkien, sendo cantonês a língua franca. A ocupação japonesa na Península Malaia, de 1941 a 1945, foi, cabe lembrar, particularmente cruel para a população de origem chinesa.

Os estudos universitários iniciaram-se em 1947 em Nanjing, onde ele percebeu que os ensinamentos de seu pai em literatura clássica chinesa se contrapunham “à identidade moderna” dos colegas. A Guerra Civil entre o Kuomintang e o Partido Comunista forçou-o a abandonar a China e voltar para Ipoh depois de um ano e meio. O conflito armado e ideológico fez com que perdesse “todo senso de identidade com a nova China”, por sentir-se crítico em relação aos dois lados.

Seu passaporte até então era o da República da China. Ao voltar a Perak, o pai o convenceu a se tornar cidadão da Federação Malaia, ainda uma colônia britânica. Os estudos universitários prosseguiram na Universidade Malaia, no campus de Singapura. Obteve o doutorado na Universidade de Londres. Regressando ao que pouco depois se tornaria a Malásia, lecionou na Universidade Malaia, no campus de Kuala Lumpur. “Possuir mais de uma identidade parecia normal”, comenta, e “ser malásio não me libertava da identidade como chinês”. Uma frase chama minha atenção: “o status legal conferido pela cidadania e o passaporte não captura as muitas camadas de identidade que todos possuem”.

Seu interesse maior como historiador é o estudo da diáspora chinesa, cerca de 60 milhões de pessoas espalhadas pelo mundo. Sentia-se restringido intelectualmente na Malásia, onde livros chineses contemporâneos eram proibidos. Havia tensões étnicas entre os malaios e os malásios de origem chinesa, exemplificadas de maneira dramática pela expulsão de Singapura da Malásia em 1965 e os violentos motins de 1969 em Kuala Lumpur, “the riots”, citados ainda hoje como uma página soturna na história do país.

Em 1968, Wang Gungwu e sua família mudaram-se para Camberra, onde ele lecionaria na Universidade Nacional Australiana. Adquiriu a nacionalidade australiana, por duas razões: a boa adaptação de seus filhos no novo país e a liberdade acadêmica. Em 1986, mudou-se por dez anos para Hong Kong, como vice-reitor da universidade. Desde 1996, mora em Singapura, onde trabalha no Instituto de Ásia do Leste, ligado à Universidade Nacional.

O historiador é modesto sobre sua carreira acadêmica, durante a qual ocupou posições prestigiosas. Manifesta apreço por Singapura, que considera uma das cidades verdadeiramente globais e multiculturais; mas nunca adquiriu a nacionalidade do país. Termina o livro dizendo: “estou feliz sendo um chinês pelo nascimento, admiro o êxito de Singapura e me sinto confortável tendo uma visão de mundo formada pelo fato de ser oriundo do Sudeste Asiático”.

Wang Gungwu, de quem tomei conhecimento graças ao presente do amigo malásio, passou a simbolizar para mim as impressionantes mutações políticas, militares, econômicas e sociais experimentadas pela Ásia do Leste nos últimos cem anos. Cresceu em meio a essas mutações. Resiliente, pode agora nos ajudar a pensar a respeito.

Esta coluna foi publicada no Estado de Minas ontem, 27 de setembro.

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O delírio do Chimborazo, 13 de setembro

O diplomata robô, 30 de agosto

Botas diplomáticas, 17 de agosto

O embaixador decapitado, 2 de agosto

O espaço do diplomata, 19 de julho

Cenários do poder, 5 de julho

Memória diplomática, 21 de junho

Batuque na cozinha, 7 de junho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

Retrato de família, 10 de maio

Benção apostólica, 26 de abril

O presente malásio, 12 de abril

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

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Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

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O delírio do Chimborazo

O delírio do Chimborazo

Abro a biografia de João Cabral de Melo Neto escrita por Ivan Marques, publicada em 2021, para reler o capítulo sobre a sua experiência no Equador, onde foi embaixador de 1979 a 1981. Vinte anos depois, minha família e eu também moraríamos em Quito. Para minha mulher e para mim, foi o nosso segundo posto na carreira diplomática.

Nenhuma experiência humana pode ser replicada. O Equador do poeta pernambucano não foi o nosso. Mas o livro de Ivan Marques, verdadeiro modelo de como deve ser o estudo biográfico sobre um autor, me transporta à época em que lá vivi.

O centenário de nascimento, em 2020, foi profícuo para a memória de João Cabral, falecido aos 79 anos em outubro de 1999. Ao escrever isso, noto que meu pai morrera apenas um mês antes, embora bem mais jovem.

Além da biografia de Ivan Marques, houve pelo menos, no período do centenário, a “Fotobiografia” de 2021, organizada por Eucanaã Ferraz e coordenada por Valéria Lamego; e uma edição da obra integral, “Poesia completa”, lançada pela Alfaguara em 2020, com prefácio de Antonio Carlos Secchin.

Temos os três livros em casa. No início de 2022, reabertas as fronteiras na Malásia depois de dois anos de pandemia, eu os encomendei a um colega, diplomata mineiro que vinha trabalhar na embaixada em Kuala Lumpur. Selecionei também, entre outros, “Copo vazio”, de Natalia Timerman, “O som do rugido da onça”, de Micheliny Verunschk, e “O castiçal florentino”, de Paulo Henriques Britto, sobre o qual eu viria a escrever um ensaio, que publiquei no “Estado da Arte”.

Falta na nossa biblioteca a edição bilíngue, editada pela embaixada em Quito em 2020, quando João Almino lá era embaixador, dos dez poemas cabralinos sobre o Equador contidos em “Viver nos Andes”, seção do livro “Agrestes”, de 1985.

Na edição da Alfaguara, são vários os poemas, alguns inéditos, a mencionar o Chimborazo, imenso vulcão dormente, ponto no mundo mais distante do centro da Terra. Em três deles, há menção a Simón Bolívar.

O Libertador, que subiu a montanha em 1822, escreveu um poema em prosa, “Mi delirio sobre el Chimborazo”. O texto é mistura de postulado político e experiência metafísica. Há trechos bonitos, como este conselho — péssimo, a meu ver: “não escondas os segredos que o céu te revelou: diz a verdade aos homens”. A neve é um “imenso diamante que me servia de leito”. Termina o poema, que podemos tomar como a descrição de um transe, com os versos: “abro com minhas próprias mãos as pálpebras pesadas: volto a ser homem, e escrevo o meu delírio”.

Em “Bolívar e o Chimborazo”, João Cabral explica que “Bolívar viu no Chimborazo todo o enorme de sua missão”. Mas, de maneira muito característica da secura do nosso poeta, contrapõe-se em outro poema, “Sem retórica”, à noção de que o vulcão inspira grandiloquência; estima ser o Chimborazo “apenas geologia”, cuja altura “nenhuma grandeza anuncia”.

Trabalhei três anos e meio no Equador; visitei o páramo do Cotopaxi, a quase cinco mil metros de altitude; mas nunca subi às alturas do Chimborazo. O trajeto de 200 quilômetros pelos Andes, desde Quito, dura quase quatro horas. Nossa filha era pequena, não viajava confortavelmente, e isso restringiu os passeios pelo país. E no entanto, sou fascinado com o vulcão desde a infância, quando morávamos em Montevidéu e minha mãe viajou a Quito para uma reunião. Voltou trazendo-nos um livro sobre o Equador, de 1970. O autor era Arturo Eichler, nascido na Alemanha e, exilado do nazismo, naturalizado equatoriano.

As fotos revelavam uma vida distante, misteriosa. Eichler deixou fama como um dos primeiros conservacionistas ambientais, e a obra, registro de suas andanças pelo país de adoção, em estilo de romance de aventuras, focaliza a belíssima natureza equatoriana. Um dos capítulos narra sua ascensão ao Chimborazo em 1947. O prefácio é de Alfredo Pareja Diezcanseco, intelectual que seria mais tarde chanceler, no período em que João Cabral de Melo Neto foi embaixador em Quito; é, por isso, citado na biografia de Ivan Marques.

Para as crianças que nós éramos, o mais surpreendente era a capa, de cores intensas, desenhada por Oswaldo Guayasamín, mostrando plantas tropicais. Bem no centro está, límpido, azul, com o cone branco, um vulcão. Acarinhei-me ao livro. Guardo-o até hoje, com suas páginas já tão desgastadas. Na infância, eu não podia prever que um dia trabalharia em Quito, conheceria a família Guayasamín e passaria anos desejando conduzir o carro ao Chimborazo.

Um dia, no Equador, revelei à fotógrafa Marcela García essa antiga aspiração. Ela então me disse: “Quando meu avô comprou uma fazenda, no começo do século XX, o contrato especificava: ´Incluye el cerro´. O morro assim mencionado na escritura de posse da terra era o Chimborazo”. Pareceu-me extraordinário que um particular pudesse ter sido dono do maior dos vulcões equatorianos; julguei a história digna de ser contada em meu livro “Geografia do tempo”.

O Chimborazo, que o poeta-diplomata considera ser “só capaz de ensinar silêncio” e viver em “uma imensa espera”, simboliza todos os lugares cobiçados e que não conheci até hoje: Pantanal, Ceará, Porto Seguro, Hong Kong, Luang Prabang, Castel del Monte, Iasnaia Poliana. A lista é, na verdade, bastante longa. Forma uma geografia própria, fustigada pelo tempo, cada vez mais inalcançável.

Os anos passam, e os sonhos se eternizam. O vulcão serviu de inspiração grandiosa para Bolívar e monumental para João Cabral. De maneira bem mais simples, eu gostaria apenas de pegar um avião, satisfazer a ambição da infância, ver o Chimborazo e, diante de sua imponência, acreditar na noção de eternidade da Terra. Pensar na beleza do mundo e viver assim o meu delírio.

Esta coluna foi publicada no Estado de Minas ontem, 13 de setembro.

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O diplomata robô, 30 de agosto

Botas diplomáticas, 17 de agosto

O embaixador decapitado, 2 de agosto

O espaço do diplomata, 19 de julho

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Memória diplomática, 21 de junho

Batuque na cozinha, 7 de junho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

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O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

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O diplomata robô

O diplomata robô

No final de junho, em Luanda, foi inaugurado o novo edifício da embaixada da China. É um prédio colossal e funcional. Conheço muitas das embaixadas brasileiras. Nenhuma lhe pode ser comparada, em termos de área.

Na recepção de inauguração, o embaixador da China mencionou haver em Angola quatrocentas empresas chinesas e investimentos de seu país da ordem de 25 bilhões de dólares. São números impressionantes. O embaixador anunciou que o objetivo da China, agora, é passar a cooperar com Angola em áreas novas e novíssimas, como energias renováveis e inteligência artificial.

E justamente, em um pátio externo, havia demontrações do avanço tecnológico chinês. Um carro elétrico superinteligente, com modelo avançado de integração digital, chamava a atenção dos convidados. Não tanto a minha, porque considero automóveis apenas máquinas úteis. Alguém ao meu lado, mais entusiasmado, comentou: “É o tipo de carro que pode andar e estacionar sozinho”.

Notei um grupo fazendo círculo. Aproximei-me. No centro, um robô humanóide tagarelava, feliz, em português. Respondia sem hesitação a qualquer pergunta, dialogava com serenidade, em tom amistoso. Despertava curiosidade e provocava sorrisos nos convidados. Falei “boa noite”. Ele se virou, veio até mim, estendeu-me a mão. Apresentou-se. Seu nome era Mateus. Conversamos. Perguntei como estava, o que achava de Luanda, se suportava bem o clima seco e invernal desta época do ano, conhecido como cacimbo.

Quem imagina a África subsaariana como um continente de clima sempre quente se engana. Como no Sul e no Sudeste do Brasil, o termômetro tem caído em Luanda, sobretudo à noite. Ao longo do dia, fica agradável, mas pode haver vento gelado. Lembro as temperaturas que durante anos seguidos vivenciei, em julho, na Zona da Mata em Minas Gerais.

Mateus revelou-se um verdadeiro diplomata. Respondia às minhas perguntas com educação e de forma a agradar a qualquer um dos presentes que escutavam nosso diálogo. Podia ser um humanóide mas, ao contrário de muitos humanos, não demonstrava qualquer propensão à violência, à agressividade, à ironia ferina.

Algo porém me intrigava, a sua forma de falar. Perguntei-lhe: “Você é brasileiro?”. Ele se surpreendeu, não confirmou nem negou. Reagiu indagando por que eu pensava aquilo. Expliquei que o seu sotaque parecia o de um compatriota. Na verdade, era um nítido sotaque do norte do Paraná ou interior de São Paulo. Sempre diplomático, rodeado de autoridades angolanas que ouviam a nossa conversa, e não querendo ferir nenhuma sensibilidade, Mateus retrucou, amavelmente, que seu português era “neutro” e não podia ser atribuído a uma nacionalidade específica. A essa altura, minha mulher, que é curitibana, juntara-se ao grupo onde o diálogo transcorria. “Você tem certeza de que não é de Guarapuava?”, perguntou ao robô.

Despedimo-nos de Mateus para ir ao salão onde o bufê era servido. Enquanto alguns convidados se dirigiam diretamente às mesas carregadas de pratos da culinária chinesa, passeamos pela sala. Canais de televisão iam de uma a outra autoridade local. Um ministro explicava à imprensa que o comércio bilateral, em 2024, atingiu o volume de 24 bilhões de dólares, sendo a China o maior parceiro comercial de Angola e principal investidor estrangeiro no país, excluindo-se o setor petroleiro, onde ainda predominam França, Estados Unidos e Reino Unido. Ouvimos outro ministro declarar exatamente o que estávamos pensando: “Um país que constrói uma embaixada deste tamanho é porque veio para ficar, porque confia no futuro de Angola”.

Poucos dias depois, viajei de férias por uma semana, para fazer em Singapura, no Festival de Arquitetura, uma palestra sobre Roberto Burle Marx, tema de que tratei em coluna anterior, “O espaço do diplomata”. Tanto na escala em Kuala Lumpur como em Singapura, ouvi de meus amigos asiáticos a pergunta “Que tal Angola?”. Essa é uma indagação natural quando revemos alguém com quem convivíamos e que partiu para um país que não conhecemos.

Se há algo que os países do Sudeste Asiático compreendem bem, é o peso geopolítico, a eficiência, a objetividade da China, sua vizinha. Considerei, assim, que a maneira mais ilustrativa para definir Angola junto aos meus interlocutores malásios e singapurenses seria mencionar a dimensão da presença chinesa, os investimentos, a sua nova embaixada em Luanda, o número de empresas, o volume de comércio. Ouvindo-me desfiar esses dados, entenderam meus amigos a importância que a China atribui à África e, neste caso mais especificamente, a Angola.

De regresso da Ásia, jantei na casa do embaixador da China. Sondei quantos diplomatas trabalham na embaixada. São 28, sem contar o proprio embaixador e o numeroso pessoal de apoio. De novo, nenhuma embaixada brasileira é tão grande, em termos de pessoal diplomático.

Perguntei por Mateus. Respondeu o embaixador que ele já estava de volta à China. Entendi então plenamente o sentido da celebração pela inauguração da embaixada. Ao contrário do que podem pensar os inocentes ou os maldizentes, uma recepção diplomática nunca é apenas uma festa. É sempre mais uma ocasião de atingir um objetivo político.

O novo prédio demonstrara para os angolanos e para o corpo diplomático estrangeiro como a China vê Angola. Esclarecera que este não é um país banal para a diplomacia chinesa, mas constitui uma ambiciosa aposta no futuro. Ao mesmo tempo, o carro superinteligente e o robô haviam sido uma evidência palpável, para os convidados, do avanço tecnológico, da modernidade da China. Provaram, se é que isto ainda era necessário, que a intenção chinesa de participar do desenvolvimento econômico de Angola é baseada em uma capacidade real, não em promessas insustentáveis.

Deduzi que, de fato, a presença de Mateus na embaixada já não era necessária. Sua curta missão diplomática em Luanda pudera ser concluída. Fora eficazmente cumprida.

Mateus na embaixada da China.

Essa é a minha coluna no jornal Estado de Minas publicada ontem, 30 de agosto.

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Botas diplomáticas, 17 de agosto

O embaixador decapitado, 2 de agosto

O espaço do diplomata, 19 de julho

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Botas diplomáticas

Botas diplomáticas

Coluna publicada no jornal Estado de Minas no domingo 17 de agosto.

A notícia de que o governo do Catar estaria doando um Boeing 747 para servir de novo  Air Force One para o presidente dos Estados Unidos gera discussões sobre a conveniência de que o presente seja aceito. O debate me fez tirar da estante o livro de um diplomata britânico, Paul Brummell, publicado em 2022, Presentes diplomáticos.

Ali são analisados, de forma espirituosa, cinquenta presentes — da Estátua da Liberdade a cisnes, queijos, louças e pinturas — trocados ao longo da História entre países, povos ou chefes de Estado, e a mensagem que procuraram transmitir. Brummell insere cada objeto em seu contexto histórico e cultural e aponta aspectos sociológicos do ato de presentear. Cita várias vezes o sociólogo e antropólogo francês Marcel Mauss, por conta da sua obra clássica, Ensaio sobre o Dom, de 1925. O livro Estruturas da vida social, do antropólogo americano Alan Fiske, em que os relacionamentos humanos são divididos em quatro tipos, foi também uma fonte para a visão de Brummell.

Tanto a introdução quanto a conclusão mencionam anedotas pitorescas. Só isso já indicaria ser o autor um diplomata, pois diplomatas adoram contar anedotas, embora raramente o façam de maneira tão inteligente, instruída e engraçada como Brummell. Lemos sobre o filhote de camelo que François Hollande, então presidente da França, recebeu do governo do Mali em 2013, quando visitava o país. Seus assessores deixaram o animal com uma família em Tombuctu, até que providências fossem tomadas para transportá-lo à França. Por um erro de compreensão, o filhote “serviu de ingrediente principal para um tagine particularmente delicioso”.

Os dois pandas presenteados pela China ao Japão, em 1972, foram um exemplo daquilo que, criança, aprendi chamar-se “diplomacia do panda”. Quando minha família e eu fomos morar em Washington, em 1994, pudemos ainda conhecer Hsing-Hsing, sobrevivente do célebre casal doado, também em 1972, aos Estados Unidos. Ling-Ling morrera em 1992. Durante muitos anos, nos diz Brummell, pandas serviram de presente excepcionalmente prestigioso, para a China e para o país destinatário: raro e encantador, e por essas razões admirado no exterior, o animal é exclusivamente chinês, servindo de cartão postal para o país.

Animais são numerosos entre os presentes analisados no livro. Em 1514, D. Manuel, o Venturoso, destinatário da Carta de Pero Vaz de Caminha, enviou um elefante indiano ao Papa Leão X. Ao contrário dos pandas em relação à China, o elefante não simboliza Portugal. O objetivo do rei era demonstrar a expansão territorial de Portugal em outros continentes, o seu poderio marítimo. Leão X, membro hedonístico da família dos Médicis, adorou o elefante, que morreria dois anos depois em Roma.

É notável o capítulo sobre os Três Reis Magos, sua viagem para conhecer o Menino Jesus e os presentes que levaram. O tema, mencionado apenas em um parágrafo do Evangelho segundo Mateus — que não nos fornece seus nomes, não diz que eram reis e nem sequer que eram três —, foi ao longo dos séculos adquirindo importância cultural e religiosa. Contida na história dos presentes oferecidos pelos magos, há a menção a outra doação, a dos seus ossos ao arcebispo de Colônia em 1162. Na catedral daquela cidade, um relicário medieval, dourado, contém teoricamente os restos mortais de Melchior, Baltasar e Gaspar. A narrativa de Brummell, cativante, me fez sentir pena, por um momento, de não poder me deslocar imediatamente a Colônia e rever o relicário.

Há dois capítulos envolvendo diamantes. No primeiro, o xá da Pérsia envia seu neto a São Petersburgo, em 1829, para se fazer perdoar pelo massacre, por uma multidão, dos funcionários da Embaixada da Rússia em Teerã, incluindo o embaixador, Aleksandr Griboiedov. A figura de Griboiedov, cujo cadáver desfigurado e decapitado representa os riscos da vida diplomática, me interessa há muitos anos. Também escritor, ele hoje é lembrado como autor de uma peça de teatro. Brummell nos conta que a missão persa entregou ao tsar Nicolau I um diamante, exemplo de “presente oferecido para pedir desculpas e evitar penalidade”.

A outra história refere-se a muitos diamantes, aqueles recebidos pelo presidente da França Valéry Giscard d´Estaing de Jean-Bédel Bokassa, presidente e depois imperador centro-africano. L´affaire des diamants estará para sempre ligada ao nome do presidente francês e contribuiu para que fracassasse sua tentativa de reeleição, em 1979.

Severo com Giscard d´Estaing, Brummell evita tratar de jóias ligadas à monarquia inglesa. Fernando Morais, em “Chatô, o rei do Brasil” lembra como, em 1953, Assis Chateaubriand — fundador dos Diários Associados — escolheu, sem consultá-los, “oito felizardos” para que se cotizassem e pagassem, como presente de coroação brasileiro a Elizabeth II, “um conjunto de colar e brincos de águas-marinhas e brilhantes”. A rainha da Inglaterra, uma das mulheres mais ricas do mundo, aceitou o luxuoso conjunto, entregue em nome do povo de um país mais pobre. Usou o colar e os brincos frequentemente. Ainda hoje, de vez em quando, surgem notícias na imprensa sobre jóias doadas por potentados árabes a membros da família real britânica.          

Brummell nos conta haver razões culturais e religiosas — entre elas “a tradição islâmica de presentear generosamente” — para que dons diplomáticos de valor material elevado venham agora sobretudo de países do Oriente Médio.

Em 2008, o primeiro-ministro da Austrália, Kevin Rudd, ofereceu ao presidente da Indonésia, Susilo Bambang Yudhoyono, um par de botas da marca R. M. Williams. Símbolo australiano, as botas seriam “objetos desejáveis, mas não excessivamente caros”. Peças de vestuário, indicariam “uma relação amistosa entre os dois líderes”. Presenteadas a um governante estrangeiro, ajudariam a promover a marca e as exportações do produto. De todos os dons descritos no livro, talvez sejam, entre os mais recentes, o mais útil e o mais hábil.  

Fotografei o mural dos elefantes em Kuala Kangsar, capital real de Perak, na Malásia

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O embaixador decapitado

O embaixador decapitado

Um telefonema a Kuala Lumpur, semana passada, me fez viajar no tempo ao dia em que vi o embaixador decapitado.

Preparando um ensaio sobre o Museu de Artes Islâmicas da capital malásia, há quatro anos, acolhi a sugestão de seu fundador e diretor, Syed Mohamad Albukhary, de visitar o depósito no subsolo do edifício. Por falta de espaço nas salas, ali é guardada a coleção de arte orientalista: pinturas de artistas ocidentais, em geral do século XIX, representando locais e personagens de Turquia, Oriente Médio e norte da África.

A diretora de coleções do museu, Rekha Verma, mostrou-me as obras. De repente, a revelação. Vi-me frente a um quadro famoso que eu não sabia pertencer àquele acervo. Poucos dias antes eu lera alguns parágrafos sobre ele no livro de memórias da artista que o pintara. A coincidência me surpreendeu.

Mais impressionante, porém, era o quadro em si. É um retrato em pé, grande, majestoso, de Muhammad Dervish Khan, enviado em 1788 à corte francesa por Sultão Tipu, soberano de Mysore, na Índia. O nome em português é Maiçor. Castro Alves, em “Vozes d´África” e “Jesuítas”, usa Misora, que soa mais bonito. Sultão Tipu, cujo apelido era Tigre de Mysore, representou o último esforço nativo de resistir ao avanço da Companhia das Índias Orientais britânica no subcontinente indiano. Seu objetivo, com o envio da missão, era obter o apoio militar da França contra a expansão inglesa. 

Dervish Khan, acompanhado de dois outros embaixadores, Akbar Ali Khan e Mohammad Osman Khan, e uma comitiva de cerca de quarenta pessoas, embarcou em julho de 1787. O navio aportou em Toulon em junho de 1788. Em julho, os embaixadores chegavam a Paris. Por onde iam, os enviados do Tigre de Mysore causavam sensação. As Memórias de um pajem de Luís XVI, o conde d´Hézecques, ecoam o impacto gerado pelos indianos: “eles despertaram fortemente a atenção de toda a França”. Para os franceses da época, viajantes indianos ou mesmo de qualquer lugar da Ásia representavam uma raridade.

A audiência pública com Luís XVI em Versalhes aconteceu em 10 de agosto. Félix d´Hézecques nos diz que havia multidões no palácio nesse dia. Então representante dos Estados Unidos em Paris, Thomas Jefferson, testemunha da cerimônia, escreveu ao Secretário de Estado, John Jay: “Os embaixadores de Sultão Tipu foram recebidos hoje em Versalhes, com uma pompa inusual. As pessoas presentes eram tão numerosas que pouco se podia captar do diálogo com o rei. Pelo pouco que pude escutar, houve apenas promessas mútuas de boa vontade”.

E assim foi. Os emissários de Sultão Tipu chegavam à França em momento inoportuno. Cinco anos antes, em 1783, a Paz de Paris pusera fim à Guerra de Independência dos Estados Unidos, onerosa para a França, aliada dos americanos. Dificilmente poderia Luís XVI, com as finanças francesas em situação calamitosa, envolver-se em novo conflito com a Inglaterra. Noto que apenas dois dias antes da recepção dos enviados indianos em Versalhes, o rei anunciara que a reunião dos Estados Gerais, ideia lançada em 1787 para se concretizar em 1792, aconteceria em maio de 1789. Acabara de ser dado o pontapé inicial no processo que desembocaria na Revolução. Em onze meses, a Bastilha seria tomada. Os embaixadores de Sultão Tipu, assim, ocasionaram e ao mesmo tempo presenciaram um dos últimos momentos faustosos do Ancien Régime.

Foi Élisabeth Vigée Lebrun quem pintou o retrato de Dervish Khan que encontrei no subsolo do museu em Kuala Lumpur. Retratista habitual de Maria Antonieta, a quem provavelmente embelezava na tela, a artista é em parte responsável, hoje, pelo sentimento de empatia despertado no observador pela rainha guilhotinada. Em suas Memórias, Madame Vigée Lebrun nos conta como foi sua interação com os enviados de Mysore. Ela os viu na Ópera e achou-os “extraordinariamente pitorescos”. Sua decisão de pintá-los provocou situações rocambolescas. Fez, além do retrato de Dervish Khan, o de Osman Khan, mas esse se perdeu.

Ao regressarem a Mysore, onde chegaram em maio de 1789, os enviados se depararam com a enorme contrariedade do soberano diante do seu fracasso. A mais antiga fonte impressa a respeito da missão que pude acessar é um livro de 1801 sobre o reino de Mysore. Seu autor, o historiador francês Joseph-François Michaud afirma, sem citar a origem da informação, que Sultão Tipu se irritou não só com o insucesso do pedido de ajuda militar contra os ingleses, mas também com os continuados elogios à França feitos pelos seus enviados: “ele não gostava de ouvir que havia uma monarquia mais rica e mais florescente do que a sua”. Michaud relata que, um dia, passeando de maneira afastada com dois dos embaixadores, “ele mandou matá-los”. É frequentemente repetida a asserção de que Dervish Khan e seus companheiros foram decapitados.

Dez anos depois, em 1799, a capital de Sultão Tipu, Seringapatam, foi conquistada e saqueada pelos britânicos. Ele próprio aí morreu, em combate, vítima da transformação da Companha das Índias Orientais, como diz o historiador William Dalrymple em seu livro The Anarchy, de corporação comercial convencional, que negociava sedas e especiarias, em um “poder colonial agressivo”. 

No telefonema da semana passada, soube por Rekha Verma que em agosto abrirá no museu em Kuala Lumpur uma exposição sobre o Tigre de Mysore. A iniciativa pareceu-me tempestiva, em um contexto em que questões comerciais são novamente usadas como arma política, agora por meio de tarifaços.

O retrato de Dervish Khan estará exposto. Saindo do subsolo onde é preservado, envolto na lenda que o acompanha, ilustrará para o público a miragem e os riscos de toda missão diplomática.   

  

@Islamic Arts Museum Malaysia

Coluna publicada no jornal Estado de Minas ontem, 2 de agosto.

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O espaço do diplomata

O espaço do diplomata

Recebi o convite em janeiro. O Festival de Arquitetura de Singapura, evento anual patrocinado pelo Singapore Institute of Architects, queria que eu fizesse uma apresentação sobre Roberto Burle Marx. Hesitei. O Festival seria em junho, quando eu já não estaria na Malásia mas em Angola, longe do Sudeste Asiático. O Festival insistiu. Pensei que eu não deveria deixar passar uma nova oportunidade de divulgar o nome do grande paisagista brasileiro. Aceitei.

Em uma coluna nestas páginas publicada em fevereiro, “Da Pampulha para Kuala Lumpur”, falei do jardim projetado por Burle Marx na capital malásia e do livro Um brasileiro em Kuala Lumpur: Roberto Burle Marx e o Parque KLCC. Resultado particularmente tangível do meu trabalho como embaixador na Malásia, o livro serviu ao meu propósito de tornar o Brasil e seus maiores talentos mais conhecidos naquele país.

Cada edição do Festival de Arquitetura de Singapura é organizada por um arquiteto diferente. Este ano, a tarefa coube a Rene Tan, cujo estúdio é responsável pelo conjunto residencial que considero o mais espetacular de Kuala Lumpur, o Fennel, com o qual ganhou vários prêmios internacionais.

Seminários de três dias, com multiplicidade de palestras, mesas-redondas e estandes são como a batalha de Waterloo na forma descrita por Stendhal em A Cartuxa de Parma. Muita coisa acontece ao mesmo tempo, em diferentes lugares, e captamos somente aquilo que está ao alcance mais imediato do olhar. Apenas Rene Tan, que durante três dias circulou incessantemente de um lado a outro, terá podido avaliar o resultado final do Festival. Para os palestrantes, restava o privilégio de estar ali, no Centro de Convenções do icônico Marina Bay Sands, símbolo arquitetônico de Singapura por excelência. 

No painel de que participei, Alexander Wong, de Hong Kong, que eu já conhecia, expôs sua atividade como projetista de salas de cinema na China, com desenho futurista arrojado, em trabalhos amplamente elogiados pela imprensa ocidental. Em outro painel, o indiano Ambrish Arora explicou como, ao criar um hotel em Jodhpur, no Rajastão, na base da montanha onde sobressai o Forte de Mehrangarh, edificado entre os séculos XV e XVII, levou em conta a necessidade de não destoar da arquitetura histórica dos arredores mas evitar, ao mesmo tempo, um pastiche. No dia seguinte, no café da manhã no hotel, descobriríamos uma amizade em comum, André Corrêa do Lago, presidente da COP30 e membro do júri do Prêmio Pritzker.

Renata Furlanetto incluíra em sua fala uma foto do Palácio do Itamaraty, com o jardim aquático em evidência, idêntica a uma imagem que eu mostraria mais tarde em minha apresentação. Apontei não ser coincidência os dois brasileiros presentes no Festival exibirem um prédio que é, na conjunção da arquitetura de Oscar Niemeyer e do paisagismo de Burle Marx, um marco do modernismo brasileiro. Mostrar e ver em Singapura a sede da diplomacia brasileira, neste momento de tensões e incertezas geopolíticas, trouxe-me reconforto. A sua própria solidez parecia uma garantia de continuidade e equilíbrio.

Teria gostado de assistir a mais palestras no Festival. Perdi a de uma grande estrela, o japonês Riken Yamamoto, ganhador do Pritzker em 2024. Jantando com alguns dos participantes, conversei com o austríaco Dietmar Eberle. Sediado em Bregenz, ele me explicou que o grau de prosperidade da sua região geográfica é exemplificado pelo número elevado de museus de arte contemporânea ali abrigados. Por esse cálculo, os milionários brasileiros precisam ainda desenvolver a filantropia na área da museografia — e em tantas outras —, mas minha primeira reação foi pensar no fato extraordinário de Inhotim existir no Brasil.

Ao final do painel de que eu participava, o moderador, Calvin Chua, retomando o tema do Festival este ano, “Não pense (apenas) como um arquiteto”, perguntou o que nós, os quatro debatedores, sugeriríamos ao público como forma de pensar. Ofereci que pensassem como um diplomata. O diplomata um dia edita um livro sobre Burle Marx, no outro negocia um acordo internacional, mas seu objetivo final não varia ao procurar sempre promover a conciliação entre interesses por vezes distintos. Precisa, idealmente, desenvolver uma atitude serena, paciente, zen, no fundo bastante asiática, se quisermos usar um clichê. Seria útil para todo mundo cultivar um temperamento assim no dia a dia.

Uma pergunta da plateia sondou como lidar com o conceito de espaço. Melhor indagação impossível, em um festival de arquitetura. Decidi responder falando do espaço a ser almejado pelo diplomata. A questão que se coloca para mim, ao trabalhar no exterior, é como me inserir na sociedade local para influenciá-la em favor do Brasil. A defesa dos interesses e da imagem do seu país constitui, por definição, o espaço do diplomata. É no cumprimento desse dever, e não na expectativa de reconhecimento, que encontramos o propósito e a gratificação da vida profissional.

A palestra em Singapura permitiu-me incluir curtas estadas, na ida e na volta, em Kuala Lumpur. Foi maravilhoso rever amigos nas duas cidades, nessa intensa viagem de uma semana. No último dia, uma jornalista malásia me perguntou se voltar ao Sudeste Asiático, de onde eu partira em fevereiro, me causava nostalgia. Respondi com sinceridade que não. Meus cinco anos em Kuala Lumpur foram perfeitamente felizes. Voltar menos de cinco meses depois proporcionara momentos mágicos. Mais importante do que o espaço exterior, contudo, é o espaço interno.

Esse começa vazio, enorme, infinito. Gradualmente, como pedras ou tijolos em uma construção física, família, amigos, lugares, livros, obras de arte, o tempo e a memória vão construindo um edifício. Onde eu estiver, ele sobrevive, continuamente acrescentando andares, mais sólido do que qualquer arranha-céu, casa ou gabinete.

Coluna publicada no jornal Estado de Minas ontem, 19 de julho.

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

Cenários do poder, 5 de julho

Memória diplomática, 21 de junho

Batuque na cozinha, 7 de junho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

Retrato de família, 10 de maio

Benção apostólica, 26 de abril

O presente malásio, 12 de abril

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

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