Um Brasil consciente e forte

Um Brasil consciente e forte

Hall dos Ministros, Palácio Itamaraty, Rio de Janeiro

Minha coluna quinzenal no jornal Estado de Minas publicada ontem, 24 de maio:

Meu pai, também Ary Quintella, entrevistou em 1970 o político mineiro Afonso Arinos de Mello Franco. A conversa aconteceu na casa de Botafogo, na rua Dona Mariana, onde o ex-ministro das Relações Exteriores morava e que ainda existe, e onde eu mesmo estive quando ela servia de sede ao centro de pesquisas Brics Policy Center.

Naquele mesmo ano de 1970, meu pai conduziu entrevistas com diversos autores brasileiros para o suplemento literário do Jornal do Commercio carioca. Algumas foram publicadas, outras não. Ignoro as razões para a seleção final, ou mesmo para a escolha dos escritores. As conversas realizadas com Rachel de Queiroz e Mário Palmério, outro mineiro, viraram referência e são sempre citadas por estudiosos de suas obras.

A longa entrevista com Afonso Arinos, que eu saiba, nunca veio a público. Apenas em 2019, vinte anos após a morte do meu pai, preparando-me para partir como embaixador na Malásia, descobri, classificando seus documentos, uma pasta contendo a transcrição de todas as entrevistas. O diálogo com Afonso Arinos chamou minha atenção, talvez por vício profissional, já que o senador foi chanceler em dois períodos, de fevereiro a agosto de 1961 e de julho a setembro de 1962, que integram o que viria a ser conhecido como Política Externa Independente.

Há muito a saborear no diálogo, por causa da cumplicidade entre entrevistado e entrevistador. Meu pai explica sobre seu interlocutor: “Sua fala é tranquila e sem vacilações: absoluta sinceridade, que espouca decididamente”. Afonso Arinos comenta ter sido colega de classe no Colégio Pedro II de meu avô, o matemático, também Ary Quintella.

Um dos temas mais presentes é Guimarães Rosa. Discutem sua personalidade, seu “método de composição”. O autor de Grande Sertão: Veredas sentara-se, um dia depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras — quando fora saudado por Afonso Arinos — e um dia antes de morrer, na mesma poltrona na varanda da casa na rua Dona Mariana de onde meu pai conduzia o diálogo. “Guimarães Rosa gostava dessa aí”, diz o político mineiro, apontando a poltrona, e meu pai, que então apenas iniciava sua carreira literária, comenta com o leitor: “sinto um arrepio ao longo da espinha”. Recorda Afonso Arinos que “Rosa era de uma amabilidade exuberante, implacável, minuciosa, que nos obrigava a tomar cuidado para não lhe causar nenhuma decepção”. 

Casa de Afonso Arinos na rua Dona Mariana, Botafogo, Rio de Janeiro

A conversa flui, passando da literatura brasileira para a francesa, e incluindo Jânio Quadros, Che Guevara e o Papa João XXIII. Sobre a Lei Afonso Arinos, de 1951, primeira norma no Brasil contra o racismo, o político declara ter sido “a mais importante realização da minha vida parlamentar”. Afirma que sempre se dedicou à política “com esmero, por uma questão de decoro e consciência, mas sem paixão”. Famoso pela capacidade oratória, admite: “se de fato eu tivesse no coração aquela paixão que demonstrava em minha voz quando fazia discursos violentos, eu já teria morrido há muito tempo”. Meu pai pergunta: “Era simulação?”, e ele responde: “não era simulação, mas a consciência de uma representação. Aliás, é a primeira vez que digo isso com tal franqueza”.

Há momentos de indagação filosófica: “esse problema de fixação no tempo, Ary, é coisa que todos nós nos consultamos permanentemente: quem somos nós, de onde viemos, para onde vamos? Não há ninguém que tenha um pouco de capacidade de se demorar dentro de si mesmo que não esteja sempre perseguido por essas ideias”. Meu pai faz uma pergunta difícil e pertinente, considerando o ano em que se realiza a entrevista: “Não se sente frustrado ao dar aulas de direito constitucional?”. 

Indagado sobre “sua melhor experiência como chanceler”, Afonso Arinos responde: “ela se situa fora do Ministério, depois que o deixei. Durante todo o período em que fui ministro, só encontrei resistências, incompreensões e obstáculos às minhas ideias”. Só depois suas tentativas de “viabilizar a afirmação da personalidade nacional” viriam a ser aceitas. Não sente saudades do Itamaraty, “pelas injustiças” que sofreu, “de ataques feitos por interesses escusos”.

Em um de seus livros de memórias, Planalto (1968), o político estende-se sobre esse assunto e nota que a hostilidade não vinha somente do empresariado ou da imprensa. “Tudo aquilo que podia representar cultura, inteligência, independência, trabalho, nacionalismo não existia para a maior parte do grupo dominante do Itamaraty”, escreve, e condena a “frivolidade condecorada” de diplomatas. Mesmo um senador ilustre, patrício, destacado político conservador não conseguiu que seus objetivos de “criação daquela imagem de um Brasil consciente e forte” fossem aceitos.

Um tema candente no Brasil, desde a década de 1950, era o das colônias portuguesas na África, em relação ao qual o Brasil, até a presidência de Jânio Quadros, se alinhava às teses portuguesas. A mudança de orientação a partir de 1961, diz Afonso Arinos a meu pai, constituiu uma das principais razões das críticas que recebeu como chanceler, ao ser acusado de não guardar “a tradição da fraternidade luso-brasileira”, e lembra: “nós somos o maior país africano do mundo”. Avalia que o Brasil, embora não sendo “uma grande potência”, é “uma grande nação” e “deve e pode” contribuir “como força decisiva no sentido da paz mundial”.   

Como conclusão da entrevista, declara o ex-chanceler: “o grande problema da humanidade é a paz” e lamenta-se com meu pai: “nós poderemos assistir durante toda a nossa vida a essa sucessão monótona de tragédias, limitadas a tais ou quais regiões do planeta, e que desencadeiam brutalidades que não poderemos jamais compreender”.

É desconsolador saber que, desde 1970, nada mudou.

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

Retrato de família, 10 de maio

Benção apostólica, 26 de abril

O presente malásio, 12 de abril

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro

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Bênção apostólica

Bênção apostólica

Transcrevo minha coluna quinzenal no jornal “Estado de Minas“, publicada ontem, 26 de abril:

O desaparecimento do papa marca a imaginação coletiva. A constatação de que pode haver apenas um pontífice em exercício cria para o ocupante da cadeira de São Pedro uma posição única. Presidentes e primeiros–ministros detêm títulos raros, mas há uns duzentos deles no mundo. Mesmo os reis, escassos hoje, são ainda algumas dezenas. O papa é só um.

Tendo sido Francisco um homem humilde na maneira de ser, teremos neste sábado, paradoxalmente, o espetáculo grandioso do seu sepultamento. É um lugar comum a observação de que nenhum protocolo se assemelha ao do Vaticano ou ao da Corte inglesa. Por mais simples que seja um bispo de Roma, ele continua encarnando a figura papal até entrar no túmulo, e o público espera assistir a um belo ritual.

Ao mesmo tempo, por mais admirado e querido que seja o sucessor de São Pedro, iniciam-se imediatamente, quando ele falece, as especulações sobre seu substituto. Haverá sempre um papa, espera-se, até o fim da humanidade, variando apenas os indivíduos que exercem a função ao longo da História.

Quando Francisco partiu, pensei em um diplomata que conviveu com quatro pontífices. Carlos Magalhães de Azeredo chefiou, durante vinte anos, de 1914 a 1934, a representação do Brasil junto à Santa Sé, onde servira anteriormente como secretário. Aposentado, ficou vivendo em Roma, onde faleceu em 1963, aos 91 anos.

Poeta, contista, membro fundador da Academia Brasileira de Letras antes de completar 25 anos, ele hoje é lembrado como amigo de Machado de Assis, 33 anos mais velho. No terceiro volume da correspondência machadiana, publicado em 2011 pela Academia Brasileira de Letras, Sergio Paulo Rouanet comenta: “a partir de 1892, as cartas de e para Azeredo predominam de modo avassalador”. A correspondência entre os dois compõe um livro muito útil, de quase trezentas páginas, editado em 1969 por Carmelo Virgillo. Em O presidente Machado de Assis, Josué Montello já comentava, em 1961, ser essa “a mais importante correspondência epistolar da literatura brasileira”. 

É em uma obra de Afonso Arinos, Amor a Roma (1982), que primeiro li sobre Magalhães de Azeredo. O futuro senador, chanceler e acadêmico, passando semanas em Roma em 1925, aos 19 anos, conviveu com Azeredo — era 33 anos mais jovem do que o embaixador — e afeiçoou-se a ele. Em seu primeiro livro de memórias, A alma do tempo (1961), o político mineiro nos conta ter Azeredo escrito um depoimento, “colorido e curioso”, e nunca publicado, sobre “a atmosfera de inquietação e intriga que reinava nos corredores do Vaticano, nas horas que precederam à morte de Leão XIII”, em 1903. Em Amor a Roma, volta ao assunto. Foi no Janículo que Azeredo leu a ele essa “peça meio crítica, na qual o então secretário brasileiro anotava as intrigas dos vivos ao redor do grande papa moribundo”.

Para entender Azeredo, convém saber que era filho único e póstumo. Seu livro de memórias, organizado em 2003 pelo acadêmico Afonso Arinos, filho, que havia sido ele também embaixador no Vaticano, seria mais interessante se não se fizesse tão presente a veneração por figuras mais velhas ou ilustres, como Dom Pedro II, Leão XIII ou Joaquim Nabuco. Sobre Pedro Augusto de Saxe-Coburgo-Gotha, neto de Dom Pedro II e objeto de um livro de Mary Del Priore de 2007 cujos título e subtítulo, O principe maldito, traição e loucura na Família Imperial, já dizem muito, Azeredo, tendo conhecido o príncipe na adolescência, nos conta apenas que era “de caráter bondoso e extremamente singelo”.

Em 1896, escreve da Itália a Machado de Assis: “Quero dizer-lhe algo da maravilha máxima do Vaticano e de Roma, Leão XIII”. Tendo assistido a uma missa celebrada pelo pontífice, conta que ele o tratou “paternalmente; tomou entre as suas as minhas mãos, unindo-as ao seu coração, e assim as teve durante toda a audiência”.

Não é preciso ser psicanalista para ver em Azeredo a busca constante da figura paterna. As demandas de sua amizade eram exaustivas. Em março de 1897, queixa-se a Machado de Assis: “A falta de cartas suas tem sido muitas vezes para mim objeto de reflexões melancólicas. Não posso crer que o seu coração tenha mudado para comigo. Mas o que creio e vejo é que as manifestações exteriores, visíveis, da sua amizade já não são as mesmas”.

Recente artigo do pesquisador Jair Santos, “Um poeta brasileiro no Vaticano”, me fez chegar aos ofícios enviados de Roma por Azeredo. Alguns, selecionados e apresentados por Luiz Felipe de Seixas Corrêa, que foi ele mesmo embaixador no Vaticano, foram publicados em 2016 pela Fundação Alexandre de Gusmão. Não podendo conhecer o depoimento “colorido e curioso” sobre a morte de Leão XIII em 1903, lemos nesse volume a respeito do falecimento de Bento XV em 1922 e da eleição de seu sucessor, Pio XI. Esses documentos oficiais, burocráticos, não possuem a verve do outro texto, que Afonso Arinos nos faz imaginar. 

Um resfriado rapidamente evolui para a bronquite, que avança para a broncopneumonia, e Bento XV morre. Pio XI, eleito, aparece na sacada pela primeira vez, pronuncia, “com voz clara e vibrante, as preces preliminares”, traça “três vastas cruzes no espaço”, dá a bênção apostólica. E, então, “as aclamações reboaram pela praça inteira”.

É esse ritual de apresentação do novo papa que, em poucas semanas, veremos novamente, dando-nos a sensação de continuidade e perenidade em um mundo onde, cada vez mais, tudo parece efêmero.

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O General de Gaulle e o Príncipe Valente

O General de Gaulle e o Príncipe Valente

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Em junho, presenciei a morte de uma biblioteca. Minha mãe decidiu instalar-se em um apartamento menor do que a casa onde morara por onze anos. Na sua idade, espaços grandes, que ficam facilmente inacessíveis, já não fazem sentido. A casa rodeada de verde, debruçada sobre o mar, tornara-se inadequada, apesar da beleza do cenário.

Objetos, móveis tiveram de ser sacrificados por causa da mudança. Livros também. A biblioteca da casa continha mais de dois mil volumes. Apenas cerca de mil poderiam ser levados para o apartamento. Minha irmã e eu ajudamos nossa mãe a separar os que ela considerava essencial preservar. O que fazer da outra metade? Juntos, Titina e eu decidimos ficar com uns cento e cinquenta livros. Mais do que isso não seria razoável. Em casa, minha mulher e eu temos já seis mil; e Titina mora desde sempre no Chiado, em Lisboa, com a sua própria biblioteca.

Para examinar os restantes oitocentos, novecentos volumes, chamei, sucessivamente, quatro livreiros cariocas. O primeiro retirou da casa pouco mais de cem obras. Interessou-se sobretudo por literatura brasileira, em especial os exemplares que possuíam dedicatória para meus pais, e livros de História do Brasil. Opinou que muitos dos livros autografados eram de autores já não tão lidos. Tentei valorizar os de Fernando Sabino. Todos eles, na biblioteca, continham autógrafos para meu pai, minha mãe, ou ambos, ou mesmo para nós, os filhos. Na minha infância, Sabino era o modelo do escritor de sucesso, um cronista divertido, além de ser dono de uma personalidade carismática.

Lembro dele com afeto, embora, ao falar em mim em uma de suas crônicas no jornal, Fernando Sabino tenha me transformado em exemplo de jovem cansativo, de tão opiniático. Fui tirado de meus pensamentos pelo livreiro, que declarou: “Eu gostava do Fernando Sabino, nós nos dávamos bem, ele era um cara muito legal, mas a dedicatória dele não acrescenta nada. Ele costumava aparecer na feira de livros, quando ela se instalava em Ipanema, na praça Nossa Sra. da Paz. Ficava de papo com todo mundo, sempre simpático, e assinava livro para quem pedisse. A coisa que mais há no Rio é livro com dedicatória dele”. Decidi, na hora, ficar com os exemplares autografados pelo Sabino.

O segundo livreiro comprou talvez uns trezentos volumes. Interessou-se inclusive por aqueles em inglês e francês, sobretudo os de História e de relações internacionais. Alegou que livros de arte caros, ainda mais em outras línguas, já não são comprados. Pagou em média 4 ou 5 reais por cada volume que retirou da casa. Já no dia seguinte, vi na página eletrônica de sua livraria que um dos livros fora imediatamente revendido por 125 reais. Reagi de forma racional a respeito. Aquela obra, aliás nova, intocada, nada significava para mim, em termos afetivos, literários ou editoriais. A surpresa é que pudesse valer tanto para alguém.

O terceiro livreiro só se interessou por cinco volumes, em formato grande, com as aventuras de Flash Gordon e do Príncipe Valente, que décadas atrás haviam sido de meu pai. Declarou: “Essa é a biblioteca típica de quem fala muitas línguas. Já vi outras assim. São todos livros bons, interessantes, mas que não têm saída aqui no Rio”. Meditei, posteriormente, sobre esse esnobismo revertido.

O quarto livreiro era certamente o mais desprendido. Ele é conhecido por vender livros usados por uma ninharia, em uma barraca perto de uma estação de metrô no Centro do Rio, com o objetivo de incentivar as pessoas a lerem enquanto usam o transporte público, em vez de ficarem obsessivamente nas redes sociais. Chegou, olhou por alto as centenas de obras restantes e declarou que as levaria todas, mesmo aquelas em russo e alemão.

Depois do divórcio dos meus pais, duas bibliotecas haviam sido formadas, a dele — relativamente pequena, pois ele passara a morar em apartamento, sozinho — e a dela. Quando ele morreu, em 1999, minha irmã já morava há muitos anos em Lisboa, e eu morava em Quito. Parecera natural que colocássemos seus pertences em um depósito. Quando minha mãe comprou a casa na Pedra da Gávea, transferimos para lá as coisas dele, e colocamos seus livros junto aos dela.

Às vésperas da vinda do primeiro sebista, ao final da tarde, vi-me sozinho em um dos quartos da biblioteca, na verdade um longo corredor com estantes cobrindo integralmente uma das paredes mais compridas. Peguei uma cadeira e sentei-me frente à seção onde Titina e eu havíamos concentrado os livros a serem vendidos. Com os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos segurando a cabeça, olhando as estantes, fui tomado de grande tristeza. Essa era a biblioteca com a qual eu crescera. Esses haviam sido os primeiros livros que eu lera. Criança, adolescente, eu os folheara incessantemente. Muitos haviam sido incorporados em datas posteriores, quando eu já era adulto, e eu os lera ao visitar minha mãe.

Sentado no silêncio e na penumbra da biblioteca, pensei em me revoltar, em levar comigo os livros todos que minha mãe se obrigara a descartar. Essa opção, porém, não era razoável. Não há como fazer crescer uma biblioteca repentinamente, de uma só vez, de seis mil para sete mil volumes. Olhei para as estantes como quem está pondo fim a um romance, ou se despedindo para sempre de um parente ou de um amigo. Aqueles livros haviam marcado a minha vida, formado a minha mente, gerado em mim uma primeira visão do mundo, das pessoas. Em retrospecto, eu via que refundir as bibliotecas de meus pais havia sido uma forma de anular seu divórcio, refazer o quinteto familiar, recuperar a infância e suas esperanças. Abandoná-los era como uma traição, renunciar a algo que fora bonito.

Cheguei a retirar volumes adicionais das estantes, para guardá-los comigo. Em seguida, recoloquei-os de volta. Valia a pena agarrar-me à edição em Livre de Poche, antiga e surrada, das Memórias de Charles de Gaulle? Sem dúvida, é facílimo conseguir novas edições, melhores e comentadas, por exemplo da Pléiade. Aquele, porém — velho, com a capa machucada, as páginas amareladas — era o exemplar com o qual eu crescera, que acompanhara minha vida, e mesmo a dos meus pais. Segurei nas mãos os dois volumes da biografia do presidente Rodrigues Alves por Afonso Arinos de Mello Franco, na edição original, de 1973, pela editora José Olympio. Sem dúvida, eu já não teria tempo de reler esse livro. Desde criança, porém, os dois volumes, um de capa vermelha, o outro de capa verde, me fascinavam. Saber que eu já não os veria, não os folhearia, era sentir como uma perda. O quarto livreiro levou o General de Gaulle e o Rodrigues Alves de Afonso Arinos.

No último momento antes da visita do primeiro sebista, retive uma primeira edição de Carlos Drummond de Andrade com uma dedicatória para meu pai. Entre as visitas do terceiro e do quarto sebista, decidi guardar também livros de Vinicius de Moraes, sem autógrafos.

Duas semanas depois, minha mãe instalou-se no novo apartamento. Minha mulher e eu fomos ajudá-la. Uma das providências necessárias era arrumar as estantes. Mesmo reduzida à metade, a biblioteca deu-nos trabalho por vários dias. Abrir caixas, limpar prateleiras, categorizar os livros, rearranjá-los à medida que novos volumes surgiam representou esforço grande.

O resultado foi surpreendente. Livros de que eu não me lembrava reapareceram. Livros que eu nunca notara seduziram-me. Várias vezes, interrompendo a arrumação, sentei-me para folhear uma obra até então desconhecida ou esquecida. Terminado o trabalho, olhei feliz para as estantes. Havia ali mais luz do que no corredor sem janela da casa sobre o mar. Recolocados em um novo ambiente, em ordem diferente nas estantes, iluminados de forma natural, os volumes remanescentes pareceram ter adquirido nova existência. Eram os mesmos livros, mas era outra biblioteca.

Era uma nova entidade. Era uma nova verdade. Era a promessa de uma nova vida.

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O Palazzo Spada e seus gatos

O Palazzo Spada e seus gatos

Ao chegar a Roma pela primeira vez, em 1786, aos trinta e sete anos, Goethe escreveu: “Todos os sonhos da minha juventude ganharam vida”. Visitando sua casa natal em Frankfurt, em 2013, constatei que o interior havia sido decorado pelo pai do escritor com gravuras representando Roma. Após um ano e meio viajando pela Itália, Goethe precisou partir, em abril de 1788. Triste, pensou em Ovídio, “o poeta que também foi obrigado a se exilar e a abandonar Roma, em uma noite enluarada”:

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Em abril de 1925, o futuro Senador e Chanceler do Brasil Afonso Arinos de Melo Franco visitou Roma pela primeira vez, aos dezenove anos de idade, sem saber que um dia seu nome estaria ligado ao de um período destacado da diplomacia brasileira, o da Política Externa Independente. Em 1982, publicaria um belo volume, Amor a Roma — belo palíndromoque é ao mesmo tempo livro de recordações, história de Roma, relato de viagem e ensaio literário, pois ali discorre sobre escritores que, como ele, se deixaram fascinar pela cidade. Meu exemplar de Amor a Roma foi presente que ganhei de um amigo, aos vinte e quatro anos:

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Quando ganhei o livro, eu já conhecia bem Roma, pois lá estivera pela primeira vez quatro anos antes, e havia regressado em duas ou três outras oportunidades. Desde então, não me canso de voltar. A cada vez, é a mesma surpresa de que possa no mundo existir um lugar assim. A cada vez, é a mesma estupefação diante daquele esplendor. Afonso Arinos, ao descrever o que seria o amor a Roma — considerado por ele “fecundo encantamento” — ensina que “o amoroso de Roma não se transfere para dentro da Cidade, antes transfere a Cidade para dentro de si”.

Como Afonso Arinos, cheguei a Roma pela primeira vez trazendo “no bolso um livro de Stendhal”. Ele não nos diz qual. Terá sido Promenades dans Rome, clara inspiração para Amor a Roma? No meu caso, foi Chroniques italiennes, e sobre isso já escrevi em Papai Noel e a amizade.

Foi em Roma, no Campo dei Fiori, que, pela primeira vez, em 2013, descobri as virtudes do suco de romã feito na hora. Pedro Nava criou para Afonso Arinos um “Palíndromo do amigo”:

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Afonso Arinos detém-se sobre a figura do poeta Joachim Du Bellay (1522-1560), que viveu em Roma de 1553 a 1557, mas não cita o verso de Du Bellay que mais me marcou, desde que primeiro o li em uma coletânea de poesia francesa que recebi de meus pais, na infância:

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O poema, iniciado com o célebre verso “Heureux qui, comme Ulysse, a fait un beau voyage”, permite a Du Bellay declarar a saudade de sua terra natal, Liré, na província de Anjou, e dizer que gosta mais de lá do que do Monte Palatino: “Plus mon petit Liré que le mont Palatin”:

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Já criança, sem nunca ter ido a Roma — mas sim ao Anjou, embora não a Liré — eu ficava intrigado: como era possível uma aldeia de nada no interior da França (2.494 habitantes em 2010) carregar mais peso em um coração do que o Monte Palatino, onde Roma começou e onde moraram Augusto e muitos Imperadores, que lá construíram seus palácios? Isso, porém, foi só até eu começar a pensar nos morros na fazenda de meu avô, na Zona da Mata em Minas Gerais.

Em julho, minha filha e eu passamos um fim de semana em Roma. No domingo de manhã, fomos passear a pé, com uma amiga, pelo Campo dei Fiori e seu mercado. Tenho um fraco por feiras ao ar livre. Costumam ser lugares onde se sente o pulso de uma cidade, ouvem-se conversas de todo tipo à nossa volta, e as frutas e os legumes parecem deliciosos. Mercados trazem-me ecos de contos de As Mil e Uma Noites, uma de minhas leituras prediletas na adolescência. Frequentemente, perambulando por quiosques de frutas, mel, nozes, ervas e condimentos, penso nas aventuras do Califa Haroun-al-Rachid em Bagdá.

Tenho no meu celular fotos tiradas no Campo dei Fiori em diferentes viagens. As minhas prediletas são estas duas, de outubro de 2013:

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Quem será esse casal elegante, parado em pleno mercado? Nunca saberei, e fica a curiosidade. Penso frequentemente nessa foto, no momento em que a tirei, e nas vidas que ela revela.

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Quando publiquei no Facebook a foto acima, uma amiga que então morava em Roma, criou-se em Portugal e é uma purista do idioma me escreveu: “comprei orégano a esse homem ontem!”.

Na foto abaixo, de julho de 2017, conto ao menos dez variedades de tomate no diminuto espaço:

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Apesar do nome poético e da beleza arquitetônica, o Campo dei Fiori é também o local onde, no passado, aconteceram execuções públicas. Em 1600, o dominicano Giordano Bruno foi aqui queimado vivo pela Inquisição por, entre outras coisas, acreditar na existência de diversos sistemas solares. No centro, mesmo local onde ocorreu o suplício, há hoje um monumento em sua homenagem:

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O mercado se desenrola ao pé e ao redor da estátua. Como tantos lugares em Roma, a praça soma o belo ao prosaico:

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O nome do cinema é uma referência ao Palazzo Farnese, ali perto, sede da Embaixada da França.

No mês passado, ao chegarmos à praça, Julia, nossa amiga e eu tomamos um suco de romã. Pouco depois, tendo chegado ao último quiosque, ouvimos o vendedor, nascido em Bangladesh, nos dizer: “I can change your life”. Sorrimos e seguimos adiante, pelas ruas da vizinhança. Aquilo, porém, ficou me martelando. Meia-hora depois, pedi que voltássemos ao estande:

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Perguntei como ele poderia mudar nossas vidas. A resposta nos frustrou: “Fazendo vocês beberem um suco destas laranjas muito especiais. Laranjas darão às suas vidas mais energia, mais saúde”. Aceitamos. Tomamos cada um o seu copo de suco. A laranja era de fato excepcional, mas fiquei decepcionado. Isso era tudo bem banal. Esperava mais; talvez, a revelação do mistério da vida. O vendedor havia feito propaganda enganosa.

Tomado o suco de laranja, perguntei à nossa amiga se conhecia o Palazzo Spada, ali perto. Julia, eu sabia, nunca estivera lá. Diante da resposta negativa, sugeri que o visitássemos imediatamente.

O palácio, construído nos séculos XVI e XVII, contém uma coleção de arte formada por membros eclesiásticos da família Spada, particularmente o Cardeal Bernardino Spada (1594-1661). Menor e menos importante do que, por exemplo, a da Galleria Borghese ou a do Palazzo Doria Pamphilj, a coleção, conhecida como Galleria Spada, é porém atraente e compacta. A fachada externa do palácio e as fachadas no pátio interno, do século XVI, apresentam-se assim:

PalazzoSpada.jpg

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O palácio não é todo visitável, pois é um prédio governamental, sede do Conselho de Estado. Por essa razão, a não ser excepcionalmente, não pode ser vista a estátua de Pompeu que ele abriga, descoberta no século XVI e que, por muito tempo — mas não mais — foi considerada aquela mesma a cujos pés caiu César, ao ser assassinado no Senado. Plutarco, em sua biografia de César, nos diz que a estátua ficou “toda ensanguentada; por isso, ela parecia presidir à vingança e à punição do inimigo de Pompeu, caído aos seus pés”. Não conheço a escultura, mas posso ver sua reprodução todo dia, se quiser, pois ela está na capa deste livro:

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A Galleria Spada compõe-se de apenas quatro salas, de tamanho mediano. Os quadros são expostos ao estilo do século XVII, cobrindo ao máximo possível as paredes. Nesta foto, o retrato cardinalício, na parede da esquerda, representa Bernardino Spada, pintado por Guido Reni (1575-1642):

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Guido Reni é um pintor cujas obras sempre noto, pois era um artista de predileção de Stendhal, que frequentemente fala nele, afrancesando seu nome para “le Guide”. A cada quadro de Reni que vejo, sinto-me mais próximo de um de meus escritores prediletos.

A visita pela Galleria Spada continua:

GalleriaSpada.jpg

A última sala contém o quadro que mais me intrigou nesta visita recente, o maior de todos, visto abaixo na parede da esquerda:

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Vejamos a obra mais de perto. Não foi fácil fotografá-la, pois por mais que eu me movesse pela sala — retangular e relativamente estreita — sempre havia luz incidindo sobre alguma parte da tela:

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Trata-se de A Morte de Dido, pelo Guercino (1591-1666), outro pintor de predileção de Stendhal, que o chama de “le Guerchin”. A obra, teatral, representa o momento em que Dido, rainha e fundadora de Cartago, se suicida ao ser abandonada pelo amante, Eneas, que parte nos barcos vistos ao fundo da tela. A espada usada por Dido para se matar fora um presente de Eneas. O homem à direita na tela nos convida a assistir à cena, o que parece nos inserir em uma peça. Essa percepção é acentuada pela posição do corpo de Dido — que ainda está viva — pouco natural mas fortemente dramática. À esquerda, a irmã da rainha demonstra seu choque, com o gesto das mãos abertas. Barroco pelas roupas e as poses das personagens, o quadro é impressionante.

Era porém hora de sair para o jardim interno do palácio, onde já me esperavam Julia e nossa amiga, e onde queríamos ver a famosa perspectiva criada pelo arquiteto Francesco Borromini em 1653:

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Graças a um efeito de ilusão de ótica, a galeria de colunas parece ter 35 metros, mas na realidade há pouco menos de nove. A estátua de soldado ao fundo parece ser em tamanho natural, mas sua altura verdadeira é de apenas 60 centímetros.

A perspectiva de Borromini é um dos tesouros romanos mostrados em A Grande Beleza (2013), de Paolo Sorrentino, ganhador de numerosos prêmios, inclusive, em 2014, o Oscar de melhor filme estrangeiro. A Grande Beleza é, talvez, a mais bela homenagem que um filme já tenha prestado a qualquer cidade. O personagem principal, Jep Gambardella — em uma convincente atuação de Toni Servillo — nos revela, andando pela cidade, a vida cínica e ociosa que passa junto a membros decadentes da alta sociedade romana, em claros ecos de La Dolce Vita de Fellini. Na loja da Galleria Spada, ao sair, comprei um livro fascinante, do historiador da arte Costantino D’Orazio, que nos explica muito sobre os cenários de A Grande Beleza e o objetivo de Sorrentino ao realizar o filme:

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Segundo D’Orazio, “Os romanos já não sabem apreciar a beleza que os circunda”. O fio condutor do filme de Sorrentino seria o seguinte: “La grande bellezza di Roma, le sue architetture e opere d’arte vengono continuamente deturpate dalla volgarità degli uomini che le abitano”.

Em um filme repleto de cenas memoráveis, uma das melhores dura cinco minutos e mostra Jep e sua nova amiga, Ramona, em um passeio noturno por palácios, museus e jardins. Levaríamos dias, enfrentando multidões, para percorrer o trajeto daqueles cinco minuto de cena. Jep e Ramona estão acompanhados de Stefano, claudicante e de bengala, que carrega consigo uma pasta onde estão as chaves — enormes — dos lugares que contêm vários dos tesouros artísticos da cidade. Ramona pergunta a Jep: “Ele é o porteiro?”. A resposta: “Não, é o amigo das princesas”. A personagem de Ramona é a mais comovente do filme. Quando Jep a conhece, sabemos apenas que ganha a vida fazendo strip-tease na casa noturna do pai, que assiste ao seu show e explica: “Já disse a ela que, aos 42 anos, está velha para isso, mas ela diz que precisa do dinheiro”. Longe de ser mais uma personagem decadente do filme, Ramona é, na verdade, a mais inocente e atraente, e logo descobriremos a razão triste por que precisa do dinheiro.

O poético passeio noturno de Jep, Ramona e Stefano inclui uma visita à perspectiva de Borromini no Palazzo Spada. Ao contrário de nós, Ramona pode caminhar pela galeria de colunas e, chegando ao fim, exclama: “parecia longa, mas é curta!”, com ar de total surpresa e felicidade. Comenta D’Orazio: “Con il sorriso di una bambina… la sua sorpresa è quella che i romani non vivono più di fronte alla grande bellezza di Roma”. D’Orazio classifica a perspectiva como apta a provocar “stupore” e “meraviglia”.

O jardim de laranjeiras de onde se vê a obra de Borromini é silencioso e tranquilo:

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Admirei as laranjas, ouvi o canto de pássaros, senti o sol, reexaminei a galeria de colunas. A paz era profunda. Além de nós três, mais ninguém. Ou assim pensávamos. Logo, sentimos outra presença. Uma gata, grávida, circulava pelo jardim:

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Deitou-se sem cerimônia:

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Logo apareceu um segundo gato, e rapidamente elaboramos a teoria, romântica ou lúcida, de que seria o feliz papai dos filhotes prestes a nascer:

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Tivemos em seguida a certeza de que eram os animais de estimação da casa:

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Fiquei pensando sobre o fato de que, em um canto silencioso de Roma, o Palazzo Spada guarde a estátua antiga de Pompeu e os quadros de Guido Reni e Il Guercino ilustrando figuras da história ou cenas dramáticas da mitologia, ostente as suas nobres fachadas, mas abrigue também dois gatos e sua casinha. Talvez seja esse o mistério de Roma. A cidade é o espetáculo grandioso de várias épocas superpostas, formando ao mesmo tempo um conjunto coeso. Para sempre, porém, seu nome fará lembrar o do Império de que já foi o centro e que ruiu. Por isso, as noções de grandeza e decadência estão, em Roma, interligadas. E a vida continua, agitada mas também serena, espetacular mas também simples, alegre e também triste, e o mesmo espaço nos mostra, magnificamente, a morte de Dido — abandonada por Eneas, preocupado em partir para ir fundar Roma — e uma gata grávida e seu pequeno abrigo. Roma, assim, é todos nós.

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Ary