Oito de Copas

Oito de Copas

Aconteceu na Embaixada da França em Kuala Lumpur, uma noite de abril. O convite dizia que o mágico Anson Chen, de Hong Kong, faria uma apresentação pela primeira vez na Malásia. Éramos pouco menos de trinta convidados, acomodados em fileiras na sala de jantar.

O primeiro truque já causou impacto. O mágico tirou do bolso um papel dobrado e explicou: “há aqui uma mensagem, dirigida a um membro específico do público”. Escreveu, sem nos mostrar, um número no papel, que entregou a um dos convidados na primeira fila, recomendando que o escondesse. Pediu que todos pensássemos em um número na faixa de 1 a 100.

O primeiro que me veio à mente foi 39, o que é coerente, porque tenho forte predileção por múltiplos de 3, desde que não sejam também múltiplos de 2. Gosto de 15, 27, 33, 45 e assim por diante. Anson Chen olhou em volta para a plateia. Acredito que tenha se detido sobre cada um de nós. Escolheu seis dos presentes para que se levantassem e anunciassem que número haviam escolhido.

Revelado em seguida o número escrito pelo mágico, que era 23, uma moça francesa, que dissera 21 —um dos meus favoritos, diga-se de passagem — era quem chegara mais perto de adivinhar corretamente. Anson Chen recuperou o papel, entregou-o à francesa e pediu que o lesse em voz alta. O texto iniciava com as palavras: “A pessoa que está lendo este bilhete usa calças pretas, e uma jaqueta amarelada”. Era uma boa descrição do traje da moça. Sobre os recados que o texto continha para ela, curiosamente não consigo me lembrar. Consultei por whatsapp o próprio mágico, que declarou-me também já haver esquecido.

Muitos dos truques eram inexplicáveis. Um casal malásio que conheço, Wei-Ling, galerista de arte, e Yohan, advogado, foi convidado a se sentar de frente para o público. Ambos vendados, estavam separados por uns dois metros. Anson Chen segurava uma mecha do cabelo de Wei-Ling e passava-o pela ponta do nariz da galerista. Perguntava então a Yohan se sentira algo. “Sim”, respondia o marido, “algo leve, como uma pluma, alisou meu nariz”. O experimento continuou, na testa de Wei-Ling, na face, no ombro, e sempre Yohan sentia o toque no mesmo lugar. Terminada a sessão na Embaixada, ao me despedir deles comentei: “Vocês foram submetidos a um teste de amor verdadeiro, e passaram”.

Uma mulher de verde, também francesa, recebeu nas mãos um livro. Foi-lhe pedido que o abrisse ao acaso, escolhesse uma palavra na primeira linha da página e a memorizasse. Fechado o volume, Anson Chen começou, frente à plateia, a procurar adivinhar a palavra, escrevendo as letras pouco a pouco sobre uma folha de papel. Talvez para aumentar ainda mais o nível de interesse, escreveu-as fora de ordem, formando um termo que nada significava. Colocando-as por fim na ordem correta, mostrou-nos a palavra court, que a mulher de verde admitiu ter sido a que pinçara no livro.

Na segunda ou terceira mágica, fui eu o escolhido como colaborador. Anson Chen pediu que eu me levantasse. Estendeu a mão, oferecendo-me um baralho imaginário. Ao entregá-lo, comentou aliás que eu não o estava segurando da maneira correta. Disse-me que embaralhasse as cartas. A esta altura, eu estava às gargalhadas, em pé, segurando as cartas invisíveis. De um lado, constrangido com a atenção da pequena plateia sobre mim, de outro curioso em ver o que me esperava, e achando graça naquele diálogo sobre um baralho inexistente, mas que adquiria, pela atenção a ele concedida, uma existência bem real.

Nunca fui adepto de jogos de cartas. Apenas no final da infância e na adolescência, na fazenda do meu avô materno, na Zona da Mata em Minas Gerais, muitas vezes joguei biriba. Não era porém do jogo que eu gostava, mas do acesso que me dava ao mundo adulto. Lembro com carinho das tardes passadas à mesa quadrada com tampo de feltro, em um canto do salão principal, onde meu avô, minha mãe, a irmã dela e eu jogávamos partidas que eram, para mim, enciclopédicas. Na infância e na adolescência, eu era calado. Por isso, falava pouco enquanto ouvia os três adultos. Observava. Analisava.

Frequentemente escrevo sobre meu avô e a fazenda. Ele não era muito loquaz, como certamente já tive ocasião de dizer em algum texto. Homem imponente, verdadeiro gigante silencioso, sua presença física comandava respeito, assim como seu olhar. Mas jogando biriba, em um ambiente familiar restrito às duas filhas e a um dos netos, transformava-se. Contava histórias, ria, dava detalhes, às vezes tenebrosos, da vida dos fazendeiros vizinhos, relembrava seus pais e o curso de sua vida, naquela fazenda e em outras onde crescera.

Meu avô quase sempre ganhava nas cartas, e por isso mesmo, nas duplas, era uma tranquilidade atuar como seu parceiro. Hoje, quando estou em salas de espera de dentistas ou médicos e jogo biriba no celular com robôs, lembro sempre de uma de suas regras, que era nunca deixar passar um ás. Adquiri dele, também, o hábito de comprar a mesa com frequência, algo irritante para o jogador subsequente.

Ele era fruto de uma intensa endogamia, o que só vim a entender mais tarde, ao examinar sua genealogia. Não sei até que ponto ele tinha consciência disso. Há algum tempo, perguntei a uma de suas sobrinhas se meu bisavô, Bertoldo, e minha bisavó, Olívia, com os quais ela convivera, tinham presente que eram primos múltiplas vezes, em graus variados de proximidade.

A questão para eles, avaliou minha prima, provavelmente não se colocava assim; terão sabido apenas que pertenciam ao mesmo grupo, e que seus pais se conheciam. Fora, aliás, um casamento arranjado mas, tudo indica, feliz. Na noite de núpcias, Olívia, de 12 anos, queria brincar com suas bonecas. Bertoldo respeitou seu desejo, devolveu-a ao pai e voltou alguns anos mais tarde para recuperá-la. A história soa triste, e parece tirada de algum livro de Gilberto Freyre, mas ilumina, a meu ver, de maneira positiva o caráter do meu bisavô.

Ocasionalmente, enquanto jogávamos biriba, meu avô fazia perguntas sobre minha avó, que se separara dele aos 18 ou 19 anos, grávida da minha mãe, deixando para trás a filha mais velha, de um ano e meio. Aludi ao fim desse casamento em Minha avó e seus dois maridos, sem porém mencionar o sofrimento decorrente da separação, para todos os envolvidos. Naturalmente, a dor maior coubera às duas meninas, crescendo uma sem o pai, a outra sem a mãe. As irmãs só iriam se conhecer dez anos após a partida da minha avó para o Rio de Janeiro.

Mais tarde, depois da morte da sua segunda mulher, surgiu para meu avô a era das namoradas nas cidades da redondeza. Conheci uma delas. Era casada. Aos 14 ou 15 anos, eu ficava boquiaberto ao presenciar a cordialidade com que meu avô tratava o marido, jovem o suficiente para ser seu filho.

Mais uns anos, e meus avós, que não se viam há décadas, iniciariam um namoro. Ele ia ao Rio, ela ia à fazenda. Em retrospecto, já mais velho, vejo que esse reencontro era natural, pois a vida é assim, em ciclos que se cruzam. Na obra teatral que é toda existência humana, em que cada um é diretor, produtor, cenógrafo, autor e ator principal da sua própria peça, as outras personagens aparecem, somem, reaparecem. Há períodos em que algumas são importantes, e permitimos que influenciem nossos rumos, em outros mal chegam a ser coadjuvantes. Minha avó e meu avô, após um afastamento de 45 anos, durante os quais praticamente nunca se viram, nunca se falaram, voltaram a namorar, a querer bem um ao outro. Mas não voltaram a se casar, e nem creio que essa reaproximação haja durado mais do que alguns meses. Terá servido porém para eliminar o rancor mútuo.

Abandonemos a fazenda de Sant’Anna em Minas Gerais, os seus morros, o verde que eu via por toda parte pelas janelas abertas enquanto ia ouvindo a conversa dos adultos e cometendo erros com as cartas. Voltemos a Kuala Lumpur, voltemos à sala de jantar da Embaixada da França, onde o mágico chinês me acusa de não saber embaralhar as cartas.

Ali, em pé, com os outros convidados me olhando, estou rindo, manuseando o baralho imaginário, como eu fazia com as cartas verdadeiras, em Sant’Anna. Separava as cartas em dois blocos, colocava os dois verticalmente, um sobre o outro, e empurrava as cartas do maço superior sobre as de baixo. Bem diferente dos adultos, do meu avô em especial, que sabia embaralhar como um profissional, e com extrema rapidez. Anson Chen me pergunta, em tom de crítica, olhar surpreso: “É assim que você faz?”. Respondo: “Não tenho muita prática. Nunca jogo cartas”. Mas enquanto digo isso, meu avô está bem presente na minha imaginação, e minha mãe, Thereza Quintella, que veio me visitar na Malásia, está aliás fisicamente ali, sentada ao meu lado, na sala de jantar da Embaixada da França.

Anson Chen instrui-me a retirar uma carta do monte invisível e dizer qual é. Com a mão direita fazendo o gesto de quem segura um baralho, com a esquerda interpreto o ato de extrair uma carta. Imediatamente, visualizo o 8 de Copas, o que anuncio em voz alta.

Devolvo o baralho fictício ao mágico e me sento. Ele tira do bolso da calça cartas verdadeiras, que entrega a outro membro do público, a quem pede para verificar se o 8 de Copas está incluído. Não está. Sobe da plateia um som de surpresa e suspense. Anson Chen então coloca a mão em outro bolso, do qual retira o 8 de Copas. Choque na assistência, incompreensão minha. Como ele pudera adivinhar, de antemão, que eu escolheria aquela carta especificamente?

Muito da sua atuação como mágico parece-me baseado em um poder de sugestão da mente alheia. Terá ele, ao me olhar e ao pedir que eu escolhesse uma carta, me induzido a selecionar o 8 de Copas? Mas isso existe? Um indivíduo que se apresenta também como hipnotista pode, ao olhar para outra pessoa, conduzir seu pensamento, levá-la a optar?

Minha própria escolha, na hora, surpreendeu-me. Contradizia minha preferência pelos números ímpares múltiplos de três. Em um baralho, faria sentido eu escolher o 3 ou o 9, ou talvez o 7, que, embora não seja múltiplo de 3, é um número favorito. O 8 nada significa para mim. Tampouco saberia explicar por que copas, e não um dos outros naipes.

Dias depois, ainda intrigado com a escolha do 8, descobri ser esse um número auspicioso na cultura chinesa. A informação veio por acaso. Selecionando em uma loja abotoaduras para dar de presente a meu genro, notei que o único par representando números era um 8. Não havia 5, ou 9 ou 4, só 8. Perguntei a razão à vendedora, e considerei a resposta reveladora: “esse é um número importante para os chineses, representa prosperidade, é um número de sorte”. Sem dúvida, estará mais vivo na mente de Anson Chen, o surpreendente mágico chinês, do que costuma estar na minha.

No carro, voltando para casa, pensei que Anson Chen, tendo ocupado minha mente para me fazer escolher o 8 de Copas, bem poderia ter também instalado nela a solução aos meus problemas. Na infância e na adolescência, na época em que eu jogava biriba na fazenda, essa era uma fantasia recorrente, de que alguém, magicamente, tudo resolveria para mim.

Logo depois, ao deitar, eu já aceitara que isso não aconteceria. Mais uma vez, caberia a mim tomar minhas próprias decisões. Senti-me mais poderoso do que o mágico chinês.    

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Os Bois de Mirza Babur

Os Bois de Mirza Babur

Duas vezes, em 2021, assisti na Malásia ao filme de 1977 dirigido por Satyajit Ray, Os Jogadores de Xadrez. O enredo é sobre como a Companhia Britânica das Índias Orientais decidiu, em 1856, arrogar-se a posse do reino de Awadh, no Norte da Índia, sobre o qual há décadas já exercia um protetorado e do qual recebia vantagens financeiras e soldados.

O roteiro, do próprio Satyajit Ray, é baseado em um conto de Munshi Premchand, escritor de que só tomei conhecimento graças ao filme. Enquanto os ingleses complotam, e o reino se desfaz, os aristocratas locais, simbolizados por dois amigos que passam o tempo jogando xadrez, reagem com indolência e total indiferença aos acontecimentos políticos ao seu redor.

Os Jogadores de Xadrez conta com atuações brilhantes, inclusive a de Richard Attenborough como o comandante militar que decide pôr fim à independência nominal do reino, e a de Amjad Khan como o soberano que logo será deposto, Wajid Ali Shah. Poeta e compositor, esse rei fazia da sua corte um centro das artes. Um monarca mais preocupado em escrever poesia e compor canções parece, por alguma razão, tirado de algum conto de Jorge Luis Borges.

Em uma das primeiras cenas do filme, o personagem de Richard Attenborough, que existiu realmente e se chamava James Outram, conversa com um subordinado. Funcionário monotemático e sem imaginação, Outram manifesta desprezo pelo rei, sugerindo que as atividades artísticas impedem que ele tenha tempo de se ocupar de suas concubinas — pouco depois ouviremos que elas são quatrocentas — e menos ainda dos assuntos de estado. Sequioso por razões para colocar Awadh sob domínio britânico, diz considerar Wajid Ali Shah “a bad king”. Já o militar menos graduado manifesta admiração pelos talentos artísticos do rei: “he´s really quite gifted, sir”.

O primeiro-ministro de Wajid Ali Shah vem comunicar a ele que os ingleses decidiram destroná-lo. Precisa esperar, porém, pois o rei, em uma das cenas mais bonitas do filme, assiste embevecido, alheio a tudo mais, a uma dança. Quando a bailarina termina, quando a música cessa, Wajid Ali Shah nota o ar aflito de seu primeiro-ministro e diz a ele: “O que é isso? Controle-se. Só o amor e a poesia podem molhar de lágrimas os olhos de um homem”. Novamente penso em Borges, sem conseguir definir por quê.

Depois de ouvir a notícia do projeto britânico, o rei, caminhando de forma soturna pela sala do trono, frente a seus ministros, monologa e faz pensar em outro soberano deposto, Ricardo II, como caracterizado na peça de Shakespeare.

Em minha primeira visita ao Museu de Artes Islâmicas de Kuala Lumpur, em janeiro de 2020, uma semana depois de ter chegado à Malásia, notei em uma das vitrines os retratos a óleo, pintados em torno a 1830 por um artista indiano, Muhammad Azam Musavvir, de dois dos predecessores — seu tio e seu primo-irmão — de Wajid Ali Shah. Um dos quadros, representando Nasiruddin Haidar, morto em 1837 aos 33 anos, chamou minha atenção pela melancolia e a falta de energia refletidas no rosto do monarca. O retrato parece uma alegoria da situação dos príncipes destronados ou submetidos a vassalagem.

(@Islamic Arts Museum Malaysia)

Seria um engano eu supor que nunca antes o reino de Awadh chegara a meu conhecimento. Em casa, é extensa a biblioteca — ela está hoje em Singapura — sobre a Índia e sua história. Eu terei lido sobre Awadh sem registrar esse nome, vendo nele apenas mais uma etapa na gradual e absurda conquista do subcontinente indiano pela East India Company. A arte possui o poder de tornar concreto e palpável mesmo aquilo que já conhecemos, e o filme de Satyajit Ray e a expressão de Nasiruddin Haidar no retrato do museu em Kuala Lumpur transformaram Awadh em um conceito sólido em minha mente.

O Museu de Artes Islâmicas em Kuala Lumpur fica ao lado de um vasto parque, eternamente verde e luxuriante, que reúne o Jardim Botânico, o Parque de Borboletas, o Jardim de Orquídeas e Hibiscos e um gigantesco aviário — o Parque dos Pássaros.

Apesar dos sucessivos confinamentos a que a pandemia me condenou na Malásia, estive já seis ou sete vezes no museu. Fico em geral sozinho pelas galerias, pois desde março de 2020 não há turistas estrangeiros no país.

Vários dos objetos da coleção são extremamente raros. Podemos descobrir muito sobre eles na Internet, mais do que no próprio museu, onde a explicação sobre cada peça é reduzida ao mínimo. Uma das mais importantes é uma bandeja redonda de cerâmica de Iznik, datada de cerca de 1480, quando ainda reinava Maomé II, o conquistador de Constantinopla. Sobreviveram apenas cinco bandejas desse estilo, conhecido como Baba Nakkash.

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A bandeja foi comprada, em 2018, em um leilão na Sotheby´s, durante o qual despertou forte interesse. Bateu o recorde de preço alcançado até então por um objeto de arte islâmica. Podemos mesmo conhecer os detalhes de como transcorreu o leilão, que um representante da Sotheby´s declarou ter sido “fiercely competitive”. Os lances duraram vinte minutos e foram feitos por nove colecionadores. A bandeja ilustra a capa do guia geral do museu.

A coleção contém móveis, tecidos, armas, objetos do dia a dia, exemplares do Alcorão de todas as eras e regiões onde há comunidades muçulmanas, porcelanas chinesas com inscrições em árabe e miniaturas persas e do Império Mogol. Há numerosos exemplares da adaga tradicional do povo malaio, o kris, de lâmina ondulada, hoje em dia usado apenas em cerimônias, particularmente por noivos no dia do casamento.

Em uma vitrine são expostos Alcorões tão pequenos, que provavelmente serviam mais como amuleto do que para a leitura. No entanto, alguns possuem belíssimas iluminuras, como este, de dimensões mínimas (5,4 cm por 5,5 cm), copiado na Turquia no século XVI por ‘Ali al-Tabbakh al-Shirazi.

Em minha visita mais recente, admirei o Divã de Hafiz — compilação dos seus poemas — copiado, em 1613, na Pérsia, por Muhammad Qasim Shirazi. Ficarei sem saber que poema é ilustrado pela iluminura na página em que o manuscrito é exposto aberto no museu. A imagem mostra um jardim, e nele parecem reinar a harmonia e a sociabilidade.

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Em 30 de setembro, almocei com Syed Mohamad Albukhary, o diretor do Museu de Artes Islâmicas. Queria conversar com ele sobre a coleção. A refeição foi no restaurante do museu. Ele estava acompanhado de Rekha Verma, diretora das coleções, que é quem, gentilmente, me enviou posteriormente as fotos para este ensaio.

O almoço foi delicioso: húmus com pão árabe, salada de pepino e tomate cortados em cubos, nasi goreng com peixinhos fritos (talvez anchovas) e, de sobremesa, um bread and butter pudding ao molho de leite.

O diretor deu-me de presente um exemplar do livro editado pelo British Museum, em 2018, sobre a reforma, efetuada em colaboração com a Fundação Albukhary, da Malásia, de uma ala do museu londrino, para que este pudesse expor melhor a sua coleção de arte islâmica. O espaço se chama “The Albukhary Foundation Gallery of the Islamic World”. O primeiro texto no livro, assinado pelo príncipe Charles, nos diz que “in our short time here, we are duty bound to keep the past in our sights and to pass it on as best we can”. É uma boa definição de uma das funções de um museu.

Enquanto comíamos o nasi goreng, explicou-me o diretor do museu de Kuala Lumpur haver forte competição entre colecionadores de arte islâmica. Sem dar os detalhes que eu depois leria na Internet, comentou como fora acirrado o leilão para obter a bandeja Baba Nakkash. Citou, como exemplos de boas coleções, a do museu em Doha — que visitei em 2016 — a do museu no Kuaite, a do Metropolitan Museum, a do Museu Aga Khan em Toronto e a do Gulbenkian em Lisboa. Mencionei a seção de arte islâmica do Louvre, que foi para mim, em 2014, uma boa surpresa; ele então manifestou a opinião, que registrei em O Sonho do Louvre, sobre como visitar aquele museu pode ser uma experiência labiríntica.

Perguntei a Syed Mohamad Albukhary que peças prefere na coleção que dirige. Primeiro, ele indicou as miniaturas da arte mogol; depois, falou também nos quadros orientalistas, dos quais há mais de cem no subsolo do museu, que não são exibidos por falta de espaço, e com os quais, em 2023, para comemorar os 25 anos do museu, Syed Mohamad Albukhary tenciona montar uma exposição.

Dezenas dos quadros orientalistas foram mostrados, entre outubro de 2019 e janeiro de 2020, em uma exposição no British Museum, em colaboração com o museu de Kuala Lumpur, intitulada Inspired by the East: how the Islamic world influenced Western art. Foi um desencontro eu passar três dias em Londres uma semana antes da abertura da mostra; esta teria vindo depois para o museu malásio, se não tivesse surgido a pandemia.

A capa do catálogo da exposição no British Museum é um quadro de cerca de 1580 por um seguidor de Veronese retratando Bajazeto I. Esse sultão otomano, bisavô de Maomé II, o Conquistador, foi derrotado em batalha por Tamerlão, antepassado dos imperadores mogóis. Na peça Tamburlaine, que Christopher Marlowe escreveu em 1587 e que inspiraria quatro séculos mais tarde um bom poema de Borges, Bajazeto I nos aparece mantido dentro de uma jaula, prisioneiro de Tamerlão, obrigado a comer os restos de comida de seu inimigo. Indômito, ofende, em toda oportunidade, o seu algoz e se suicida — como ele próprio anuncia, em um verso de sua última fala: “Since other means are all forbidden me” — da única maneira acessível a quem está preso em uma jaula. Marlowe indica, logo após a última fala de Bajazeto: “He brains himself against the cage”.

Uma semana depois do nasi goreng, Rekha Verma mostrou-me, em um depósito no subsolo do museu, os quadros orientalistas, pendurados dentro de cofres. Vi assim de perto, sozinho, a surpreendente coleção. Não pudera esperar uma semana em Londres, em 2019, para conhecê-los no British Museum, mas agora eles estavam todos ali, e apenas meu olhar os examinava. Bajazeto I, tal como idealizado pelo contemporâneo veneziano de Veronese, ficou próximo do meu nariz, mostrando, em vez da vaidade esperada de um sultão, ou do desespero próprio de um prisioneiro de Tamerlão, uma certa afabilidade um tanto desconfiada.

(@Islamic Arts Museum Malaysia)

De todas as obras expostas no museu, a que mais me intriga é talvez uma aquarela intitulada A carruagem puxada por bois do príncipe Mirza Babur. Esse príncipe era um dos muitos filhos do penúltimo imperador mogol, Akbar II. Morreu em 1835, aos 38 anos. Viveu durante os estertores do outrora poderoso império de seus antepassados, fundado no século XVI por Babur, o descendente dos temíveis Tamerlão e Gengis Khan. Em 1857, os ingleses poriam fim oficialmente à dinastia, depondo o último imperador, Badur II, outro soberano poeta, irmão de Mirza Babur. A rainha Vitória se tornaria Imperatriz da Índia em 1876.

(@Islamic Arts Museum Malaysia)

Entre 1815 e 1820, o artista escocês James Baillie Fraser e seu irmão William Fraser, funcionário da Companhia, encomendaram na Índia cerca de 90 aquarelas de artistas indianos, ilustrando a vida em Delhi e seus arredores. O conjunto, descoberto em 1979 em papéis da família, na Escócia, formava o “Álbum Fraser”.

Depois de 1979, o álbum se desfez; as aquarelas foram vendidas e dispersadas. Dezesseis delas estiveram, de dezembro de 2019 a setembro de 2020, entre as cem obras de arte de artistas indianos dos séculos XVIII e XIX, muitos deles anônimos, mostradas pela Wallace Collection em uma exposição, Forgotten Masters: Indian Painting for the East India Company, com curadoria do historiador William Dalrymple.

Este escocês, autor de livros magníficos sobre a história da Índia, ganhou notoriedade mundial no final de 2019, quando sua obra The Anarchy foi incluída por Barack Obama em sua lista de melhores livros do ano. O livro explica como, ao longo da segunda metade do século XVIII e nos primeiros anos do século XIX, a Companhia das Índias Orientais, empresa de capital privado sediada em Londres, pouco a pouco se tornou a potência predominante no subcontinente indiano, no que Dalrymple descreve como “the supreme act of corporate violence in world history”.

A aquarela do “Álbum Fraser” no Museu de Artes Islâmicas de Kuala Lumpur, O carro de boi do príncipe Mirza Babur, teve como dono, depois da dispersão das 90 obras em 1979, o cineasta Ismail Merchant, que aparentemente a comprou em um leilão em 1980. Merchant, até sua morte em 2005, produziu quantidade de filmes elegantes, dirigidos por seu companheiro, James Ivory. Saber que ele admirou essa aquarela torna-a mais preciosa, concede-lhe valor adicional. Durante anos, assistir a uma nova “produção de Merchant Ivory”, extraída de algum romance de Henry James, de E.M Forster ou de algum autor contemporâneo, com roteiro de Ruth Prawer Jhabvala, era uma perspectiva tão instigante quanto ver o novo Woody Allen, embora fossem universos cinematográficos diferentes.

Sobre Mirza Babur, Dalrymple nos diz em outro de seus livros, The Last Mughal, de 2006, que conta o fim da dinastia em 1857, que ele era anglófilo inclusive na forma de se vestir. O historiador narra o destino infeliz de sua viúva — ou uma delas — e de um de seus filhos, após o destronamento de Badur II. Ainda em 1917, velhíssimo, com uma existência obscura e humilde, tendo tido de ganhar a vida primeiro como faquir e depois como trabalhador braçal, o filho de Mirza Babur não deixava esquecerem que era descendente do terrível Tamerlão.

Uma das inscrições em persa sobre a aquarela nos informa o nome do cocheiro, Zana, e sua casta e seu grupo étnico. É esplêndido que possamos herdar tanta informação sobre o condutor dos bois do filho do imperador.

A ilustre história do desenho representando a carruagem do príncipe Mirza Babur me comove menos, porém, do que os dois bois que a puxam. Na fazenda de café do meu avô, na Zona da Mata em Minas Gerais, costumavam também ser brancos os animais que puxavam o carro de boi no qual muitas vezes andei. Embora a fazenda de Sant´Anna pertencesse ao meu avô materno, meu pai, criança, a frequentara, por razões que um dia eu talvez dê a conhecer. Obviamente, os carros de boi da infância dele e da minha não tinham o aparato da carruagem de Mirza Babur.

Meu pai me contou que, ao menos uma vez, chegando a Leopoldina de trem, vindo do Rio de Janeiro, um carro de boi da fazenda de Sant´Anna viera buscá-lo na estação. Terá sido longa a viagem, no carro puxado pelos bois, da estação até a fazenda, pois de automóvel, hoje, ainda seriam uns bons vinte minutos.

Para o Narrador de Marcel Proust, “Combray et ses environs, tout cela qui prend forme et solidité”, tudo emerge, “ville et jardins”, para fora da sua taça de chá. Para mim, os dois soberbos bois brancos pintados há duzentos anos por um artista indiano, como registro dos aspectos luxuosos ou pitorescos do Império Mogol, fazem entrar, dentro da sala de um museu em Kuala Lumpur, toda a vastidão de Minas Gerais.

Este ensaio, a XIII Carta da Malásia, foi originalmente publicado na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte, em 6 de novembro de 2021. Posteriormente, em janeiro de 2022, tradução reduzida foi publicada, em inglês, na versão impressa da revista malásia Options.

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