A Vingança

A Vingança

Às vésperas de partir do Brasil para morar e trabalhar em Kuala Lumpur, publiquei um texto, A Partida, em que mencionava os livros que viajariam comigo na mala. A mudança foi fechada em Brasília em 17 de janeiro de 2020. Recebi-a apenas na última semana de maio, por causa do primeiro confinamento na Malásia, decretado em 18 de março de 2020. Ela ficou dez semanas abandonada no cais de Port Klang.

De janeiro a maio, montei uma pequena biblioteca no apartamento vazio em Kuala Lumpur. Trouxe cinco livros do Brasil. Recebi da França, umas duas semanas antes de o isolamento social começar, uma encomenda com outros cinco. Houve as visitas, aos domingos, à minha livraria local predileta, Kinokuniya, filial de uma cadeia japonesa. Outros foram presentes de amigos. Um dia antes do início do confinamento, fiz uma última visita à Kinokuniya e comprei sete volumes, para mitigar o desconforto de saber que durante semanas livrarias ficariam inacessíveis.

No apartamento, até final de maio de 2020, havia apenas minha cama, a mesa de cabeceira, a escrivaninha no quarto. Uma mesa redonda na sala, algumas cadeiras. As roupas que vieram na mala, 33 livros e Kiki, a gata persa dourada. Foi bom viver de forma tão ascética, por tantos meses, sem um objeto sequer.

Pouco a pouco, comecei porém a sentir falta da biblioteca. Vieram saudades de livros que eu gostaria de ler, reler, folhear, segurar. Não podia fazê-lo; eles estavam inalcançáveis. Proust sobretudo foi uma ausência forte. Uma edição de À la recherche du temps perdu publicada entre 1946 e 1947 está disponível na página eletrônica Open Culture, que aliás não considero agradável de usar. O Projeto Gutenberg também oferece os sucessivos volumes, mas não vi lá o último, Le temps retrouvé. Durante vários dias, entrei em um dos dois serviços, para reler algumas páginas específicas. Livros porém são entidades personalizadas. Havia a falta de Proust, mas havia também a falta da minha edição de Proust, a segunda da Pléiade, em quatro volumes, coordenada entre 1987 e 1989 pelo biógrafo do escritor, Jean-Yves Tadié. E havia a falta dos meus exemplares dessa edição, muitas vezes manuseados, já surrados, um deles, o quarto, estragado pela areia, o vento e o mar da praia da Ferradura em Búzios.

No Projeto Gutenberg, encontrei também Guerra e Paz, na primeira tradução para o francês, de 1879. É anônima, “por uma russa“, mas a Internet não preserva segredos e, pesquisando, descobri, apesar da ausência de meus livros, que essa tradutora foi a condessa Irina Ivanovna Paskevitch. Parece-me significativo que a primeira versão para o francês tenha sido por uma russa morando na Rússia, em claro esforço para tornar uma obra-prima da literatura de seu país acessível a leitores estrangeiros. Deu certo. A primeira tradução para o inglês, em 1886, foi baseada na versão francesa de Irina Paskevitch. O Projeto Gutenberg oferece a tradução de Louise e Aylmer Maude, de 1922-1923, famosos por terem sido amigos — e ele também seu biógrafo — de Tolstoi. Essas porém não são a tradução de que gosto, a de Henri Mongault, publicada na coleção da Pléiade em 1944. Um dia, no começo do maio, acordei pensando em Anatole Kuraguin e em sua irmã, a bela Hélène Bezukhova, as duas principais encarnações do Mal no romance. Reli no Projeto Gutenberg alguns trechos em que eles falam, atuam, seduzem, traem, interagem um com o outro, planejam suas maldades, morrem. Não era porém o meu Tolstoi.

Nunca há como saber de que livros vamos sentir falta. A necessidade de abrir um volume específico vem de repente. Na página eletrônica da National Gallery de Londres vi uma referência que me fez ter vontade de reler algumas páginas de Viagem à Itália de Goethe. Informa o museu que um quadro em sua coleção de que gosto particularmente, A família de Dario diante de Alexandre, de Veronese, pintado entre 1565 e 1567, e que revi em setembro de 2019, é descrito pelo escritor. É a única pintura mencionada por ele na relação de sua visita a Veneza, em 1786. Novamente, o Projeto Gutenberg me socorreu. Pude ler — ou reler — o que Goethe tem a dizer sobre o quadro, que naquela época encontrava-se ainda, e desde que fora pintado duzentos anos antes, em mãos da família Pisani, que o venderia à National Gallery em 1857. A obra, opina Goethe, possui “encantadora harmonia” e “está em excelente estado de conservação e se apresenta a nós com o frescor de ontem”.

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É perturbador, provoca humildade pensar que o olhar do escritor, em 1786, pousou-se, no palácio Pisani Moretta, em Veneza, sobre o mesmíssimo quadro de Veronese que descobri aos 20 anos em Londres, dois séculos depois. Nós todos decairemos e partiremos. Outras gerações virão, e a tela de Veronese seguirá viva, protegida, conservada, restaurada, perpetuando o nome do pintor e ajudando a propalar a fama de Alexandre, o Grande e a derrota de Dario III. Em 2019, disse-me um iraniano: “Os americanos têm de lembrar que nós, os persas, nunca fomos derrotados”. Supus imediatamente que ele nunca havia ido à National Gallery e visto a família do rei dos reis ajoelhada frente ao conquistador macedônio, solicitando sua clemência.

Foi um reconforto poder acessar no Projeto Gutenberg o texto de Goethe elogiando o quadro. Teria eu, porém, preferido ler suas palavras no meu exemplar do livro, aquele que é empacotado e desempacotado a cada mudança, que já morou em vários países e descobriu a Itália junto comigo. Exemplar de uma edição barata e fácil de achar, mas onde as páginas estão amareladas, foram abertas muitas e muitas vezes e têm a marca dos meus dedos, da poeira de trens italianos e manchas de chocolate criadas por mim. Senti falta do livro como objeto, como algo que eu reconhecesse como sendo parte da minha história.

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Em dezembro, cometi um grave erro. Reli Quincas Borba. A questão com Machado de Assis é que, quando caímos em seu universo, não podemos mais sair por um bom tempo. O carinho que ele dedica a seus personagens — cujas preocupações compartilhamos — e o humor delicado tornam a leitura viciante. Em maio, pensei muito em Quincas Borba. Senti saudades da evocação da praia de Botafogo, que Machado transforma em um lugar mágico. Sua obra está disponível na Internet, gratuitamente, em mais de uma página. Entrei em Quincas Borba. Li: “A lua estava então brilhante; a enseada, vista pelas janelas, apresentava aquele aspecto sedutor que nenhum carioca pode crer que exista em outra parte do mundo.” Uma frase, em si, tão simples. No entanto, era todo o Rio de Janeiro e uma certa ideia de Brasil que ela trazia ao meu apartamento vazio em Kuala Lumpur. Meu olhar cai sobre um conto intitulado Antes que cases… A primeira frase já me gruda na tela do computador: “Era um dia um rapaz de vinte e cinco anos, bonito e celibatário, não rico, mas vantajosamente empregado.” Parece o início de um conto de fadas. Depois de algumas linhas, porém, começo a ficar incomodado com a luminosidade da tela e a sentir falta dos três volumes da edição da Nova Aguilar, imperfeita como é, ou da antologia de contos por John Gledson, em dois volumes, publicada pela Companhia das Letras, esta sim perfeita.

Dos livros que comprei na Kinokuniya até o começo do confinamento, o mais lúdico é The Man in the Red Coat, obra de não-ficção de Julian Barnes, lançada em 2019. O escritor inspirou-se de um quadro de John Singer Sargent de 1881, Dr. Pozzi em Casa, que retrata um célebre médico francês da época. O retratado está em pé, aos 35 anos de idade, vestindo um roupão vermelho frente a uma cortina também vermelha. Do corpo, vemos apenas as mãos, magras e elegantes, de dedos finos, e o rosto — que a princesa de Mônaco daquele tempo, segundo Julian Barnes, considerava “irritantemente bonito” — com barba curta e bigode. A narrativa de Barnes mistura biografia de Samuel Pozzi, divagações sobre a Belle Époque e comentários sobre literatura e vida artística na França e na Inglaterra nas últimas décadas do século XIX e sobre a mania dos duelos entre escritores e rivalidades literárias.

Fazem aparições Proust, Oscar Wilde, Flaubert, Maupassant, Huysmans, Edmond de Goncourt, Henry James, Baudelaire, o então famoso conde Robert de Montesquiou — lembrado hoje por ter sido um dos modelos para o barão de Charlus — Sarah Bernhardt, Whistler, Degas, Gustave Moreau e Jean Lorrain, jornalista e escritor só conhecido hoje por causa de seu duelo a bala com Proust. Todo o volume pode ser tomado como a transcrição das ideias surgidas em Julian Barnes ao ver o retrato de Pozzi em Londres, em uma exposição na National Portrait Gallery dedicada a Sargent. A melhor anedota relatada envolve um jornalista, Robert Caze, que, ferido de morte em um duelo aos 33 anos, agonizante, recebe a visita, em seu último dia de vida, de Huysmans e Edmond de Goncourt. Ao morrer, Caze, que acabara de publicar um romance, ia deixar uma viúva e dois filhos pequenos, que ficariam desamparados. Sua preocupação porém foi indagar de Huysmans: “Você leu meu livro?”.

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Até certo ponto, The Man in the Red Coat satisfez meu constante apetite por Proust, que conheceu bem Samuel Pozzi, amigo de sua família e um dos modelos para o desagradável Dr. Cottard, personagem de La Recherche. O que Julian Barnes não consegue é transformar o homem, médico próspero, famoso, bem-sucedido, bem-relacionado, em algo tão interessante quanto o retrato pintado por Sargent. Seu êxito profissional e seus problemas matrimoniais parecem irrelevantes e tediosos. Do poder de encantamento que ele exercia sobre seus contemporâneos, nada sobrou. O pintor criou uma obra fascinante. Da pessoa em si, resta um eco dificilmente apreensível. A frase mais recorrente no livro, quando Barnes tenta explicar aspectos da vida ou da personalidade de Pozzi, é: “we cannot know“.

Um homem inspira um pintor. Por meio do quadro resultante, o mesmo homem motiva um escritor. O modelo porém é bem menos marcante do que as obras de arte — quadro e livro — que a existência dele provocou. Da mesma forma, as pessoas que inspiraram Proust na criação de seus personagens, como o próprio Pozzi, morreram e são lembradas apenas pela presença na vida e no romance do escritor. É a vingança do artista sobre a morte. É a vingança da arte sobre a vida.

(Este texto, em versão diferente e com outro título, foi primeiro publicado, em 14 de maio, em O Estado da Arte)

Nota de outubro de 2021: o livro de Julian Barnes foi publicado pela Editora Rocco em agosto de 2021, em tradução de Léa Viveiros de Castro, com o título O Homem do Casaco Vermelho.

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Tolstói e a BBC

Recentemente, a perspectiva de ficar 14 horas dentro de um avião me pareceu mais suportável quando notei que o entretenimento disponível na pequena tela frente à minha poltrona incluía a nova produção de Guerra e Paz da BBC, apresentada no Reino Unido entre janeiro e fevereiro deste ano. A série, eu sabia, fora muito bem recebida pela crítica britânica.

Na foto abaixo, extraída da página da BBC, vemos Paul Dano, à esquerda, como Pierre, Lily James como Natasha e James Norton como Andrei.

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Tolstói é uma referência intelectual e filosófica forte para mim. Como mencionei neste blog, sua casa é um dos lugares de que mais gosto em Moscou. Aos 20 anos, fazendo minha graduação em Londres, ao mesmo tempo em que idolatrava Beethoven, comecei a estudar russo porque queria ler Tolstói e Tchekhov no original, e esse esforço durou alguns anos, mas acabou sendo abandonado, o que hoje lamento. Na era pré-Internet, troquei várias cartas com Tatiana Belinky, renomada tradutora (nascera na Rússia) e grande amiga de meu pai, em busca de precisão sobre a pronúncia de alguma letra ou palavra e regras gramaticais. Nunca cheguei a conhecê-la, e talvez ela tenha sido meu primeiro amigo virtual, quando o conceito não existia ainda; na época falava-se em amigo epistolar. Ela me respondia com impressionante paciência.

Nesse período, eu não perdia uma peça de Tchekhov nos palcos londrinos, em produções normalmente bem sombrias; eu não entendia como o autor pudera declarar que suas peças eram comédias. Ia à English National Opera para assistir Guerra e Paz de Prokofiev. Assistia também, na televisão, a uma reprise da série de 1972 da BBC, em vinte episódios, em estilo “teatro filmado”. A música de abertura era uma lenta e solene interpretação do hino russo tsarista, o que já dá uma ideia do espírito dessa produção, marcante pela atuação de Anthony Hopkins como Pierre Bezukov. A série de 1972 não é Tolstói e não é russa e sim um bom exemplo da excelência do teatro inglês. 

Anos mais tarde, quando minha mãe morava em Moscou, pedi que me comprasse livros do Tolstói, para que eu pudesse ver – embora não pudesse ler – os que os russos vêm ao abri-los. Ela me ofereceu uma edição de 1951, em quatorze volumes, dos quais Guerra e Paz ocupa quatro:

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A primeira vez em que abri o romance, na belíssima tradução para o francês de Henri Mongault, publicada em 1941 na edição da Bibliothèque de la Pléiade, coleção sobre a qual já escrevi neste blog, senti nas primeiras linhas que meu universo iria mudar. Tolstói nos mergulha imediatamente nas intrigas da alta sociedade de São Petersburgo, por meio de uma recepção oferecida por uma dama da Corte de Alexandre I, Ana Pavlovna Scherer. Muitos dos principais personagens do romance participam dessa festa. Entramos junto com eles no salão da anfitriã. Somos apresentados a eles, vemos como são percebidos por seus pares, ouvimos suas palavras, vemos seus gestos e queremos que a recepção dure para sempre.

Além dos quatro volumes em russo, e da edição da Pléiade, temos em casa uma edição pela Oxford World’s Classics da tradução de Louise e Aylmer Maude, que viajou muito com minha filha e ficou nas condições abaixo:

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A tradução do casal Maude – ambos conheceram Tolstói pessoalmente – é ainda mais antiga do que a de Henri Mongault. Geralmente, prefiro ler os russos em francês, porque é assim que os conheci. Meu amigo leitor de Proust entendeu perfeitamente a situação ao me dizer uma vez, de maneira irônica: “Se você lê os russos em outra língua que não o francês, parece uma tradução, certo?”. Li porém uma novela de Tolstói em português, Padre Sérgio, na bela tradução de Beatriz Morabito publicada em 2001 pela Cosac & Naify. Quem poderá jamais lamentar suficientemente o fim dessa editora, que nos brindou, da obra de Tolstói, com traduções de Guerra e Paz, Anna Kariênina, Khadji Murat e uma edição de Contos Completos?

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Editora 34 vem publicando traduções de autores russos. Por enquanto, Tolstói comparece em seu catálogo apenas com quatro livros de contos e novelas, uma delas A Sonata a Kreutzer, certamente a sua pior obra de ficção e, portanto, uma escolha estranha para receber tal prioridade.

Guerra e Paz se inicia com uma frase de Ana Pavlovna Scherer em francês, língua da elite social russa da época, sobre o poder de Napoleão e o fato de que a Itália passara a ser um apanágio da família Bonaparte. O interlocutor de Ana Pavlovna é o príncipe Vassily Kuragin. Na versão da BBC, tão fiel ao livro colossal quanto poderia ter sido uma série em seis episódios, essa frase de Ana Pavlovna é suprimida, o que é uma pena. A vida e a personalidade dos personagens, inclusive a dos presentes nessa festa, será afetada pelas guerras napoleônicas e pela invasão da Rússia. Não é à toa que Tolstói, já na primeira frase de Guerra e Paz, nos fala de Napoleão.

A nova versão da BBC, como o livro, consegue nos prender desde o início. Gillian Anderson, no papel de Ana Pavlovna, é uma anfitriã eficaz. Ela nos recebe, dá à sua personagem, secundária, uma força que o original não possui no livro, nos convida a permanecer na estória durante os seis episódios, e aceitamos de bom grado ficar. Na televisão, alguns personagens são eliminados, mas o que me surpreendeu foi como a série conseguiu desenvolver bem a linha narrativa de todos os protagonistas e ser bastante fiel ao original.

Abaixo, vemos Gillian Anderson, reencarnando Ana Pavlovna Scherer, recebendo em seu salão o príncipe Vassily Kuragin, interpretado por Stephen Rea:

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As interpretações são quase todas excelentes, com destaque para Paul Dano, Stephen Rea e Tuppence Middleton como a filha de Vassily Kuragin e mulher de Pierre, Hélène. Os três membros da família Bolkonsky são igualmente bem representados – o velho príncipe, por Jim Broadbent; seu filho, o príncipe Andrei, por James Norton; e sua filha, a princesa Maria, por Jessie Buckley. Sendo esta uma série inglesa, podemos ter a certeza de que mesmo os papéis secundários são interpretados por grandes atores. A Natasha de Lily James me convenceu menos, mas talvez esse seja um dos papéis mais ingratos para qualquer atriz: como representar a heroína russa por excelência? Como se destacar em um papel que já foi de Audrey Hepburn? Lily James está porém convincente na famosa cena de dança camponesa, que deu aliás a Orlando Figes o título de seu livro sobre a estória cultural da Rússia, Natasha’s Dance. O irmão de Natasha, Nikolai Rostov, está bem feito por Jack Bowden, em um papel particularmente difícil, porque Nikolai, ao longo do romance, pode ser sucessivamente inocente e ambicioso, pouco inteligente e antipático e logo depois sedutor e comovente.

Abaixo, a cena do casamento entre Pierre e Hélène. Um casamento feito pelo pai da noiva, em um faz-de-conta de que os dois se amam. Ele gostaria de poder amá-la; ela gosta do seu dinheiro, de que pretende gozar sem ser importunada. O olhar dos atores captura bem esses sentimentos:

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Uma palavra sobre a família Kuragin. No romance, o príncipe Vassily e seus três filhos – um, o diplomata infantilizado Hyppolite, foi excluído da série da BBC – simbolizam toda a corrupção e a falsidade da alta sociedade. Tuppence Middleton dá a sua Hélène (morena, e não loura como no livro) uma inteligência que o personagem original não possui. No texto de Tolstói, é uma mulher bela, fria, imoral, egoísta e obtusa. Uma das evoluções pessoais mais surpreendentes no romance é a transformação de Hélène em dona do salão aristocrático mais celebrado de São Petersburgo. Pierre não entende como os homens mais prestigiados podem considerá-la inteligente e instruída e tratar de temas filosóficos em seus jantares. A BBC decidiu mostrar o que é apenas sugerido no romance: vemos Hélène na cama com Boris Drubetskói, bem interpretado por Aneurin Barnard; e vemos Hélène praticar incesto com o irmão, Anatole, interpretado por Callum Turner, que em algumas cenas, estranhamente, está parecido com fotos de Tolstói quando jovem. A imprensa britânica não deixou de registrar essa sexualização da personagem e regozijou-se com uma alegada reação negativa dos russos, mas a mim parece-me próprio que a televisão ostente aquilo que é apenas alusão no romance. De resto, em seu livro de memórias, lançado pela primeira vez apenas em 2010, Sofia Tólstoi se orgulha de ter conseguido convencer o marido a retirar do texto “os trechos cínicos onde Liev Nikolayevich narra episódios da vida devassa da bela Hélène Bezukov” (traduzo da edição em francês do livro da Condessa Tolstói), sob o argumento de que “por causa desse detalhe insignificante e sujo” as jovens seriam impedidas de ler seu romance.

Abaixo, a cena do baile, em que Andrei e Natasha se apaixonam:

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Infelizmente para Natasha, seu noivo cede à pressão do pai, posterga o casamento por um ano e parte para a guerra. Para o romancista, essa era uma decisão inevitável na evolução da trama, pois a ausência de Andrei fará de Natasha uma presa dos irmãos Hélène Bezukov e Anatole Kuragin, que quererão corrompê-la por puro prazer, dando novo impulso ao ritmo narrativo. Abaixo, Natasha deslumbrada com a beleza e a segurança de Hélène, sem saber o que esconde a máscara amável da Condessa; a cena se passa na Ópera:

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Teatro e Ópera são, para Tolstói, locais onde demonstrações artísticas pouco naturais, artificiais ocorrem e servem, assim, para revelar a corrupção da sociedade.

Natasha será logo assediada por Anatole, com resultados nefastos. A imagem abaixo mostra o espírito perverso de Anatole e a realização de Natasha de que, noiva de Andrei, está se deixando seduzir por outro homem:

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De toda a discussão filosófica de Tolstói sobre a História, que inspirou Isaiah Berlin a escrever The Hedgehog and the Fox, nada foi transportado para a série, mas talvez seja melhor assim, pois uma adaptação passa a ser uma obra por si própria, que pretende no máximo oferecer uma versão do pensamento do autor original.

O que fica bem demonstrado na série é o quanto Pierre e Andrei, como amigos, fazem na verdade um ser humano só, em toda a sua complexidade. Parecidos de personalidade, ambos insatisfeitos com a vacuidade do meio social em que vivem, buscam caminhos distintos para dar sentido à vida, Andrei atrás de glória no exército e na administração, Pierre filosofando na franco-maçonaria, no casamento, no dia-a-dia. É um comentário comum que os homens desejam ser Andrei mas temem ser Pierre. Enquanto o primeiro esconde sua tristeza e insatisfação sob um ar altaneiro, receita segura de sucesso entre seus pares, Pierre ostenta perplexidade diante da vida e é objeto de desprezo, mesmo depois de se tornar milionário. Na série, as numerosas cenas entre os dois amigos capturam bem a sensação de que estão interagindo não propriamente duas pessoas diferentes, mas duas versões do mesmo indivíduo.

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Semanas depois de vista em um vôo, a série permanece na memória pelas atuações,  pela produção cuidadosa e luxuosa e pela tentativa bem-sucedida de recriar o ambiente russo do romance. Vemos na tela os personagens sofrendo, rindo, mudando, morrendo ou sobrevivendo e percebemos que assim é a vida, que um nobre ou um militar russo das guerras napoleônicas tentava, como nós, fazer sentido das suas circunstâncias. Alguns conseguem, outros não, mas o esforço nunca é fácil, nos ensina Tolstói, e reitera a BBC.

Guerra e Paz – Ficha técnica IMDb

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