Os Bragança de Chandor

Iniciar por Goa uma primeira visita à Índia é, para um brasileiro, experiência marcante. De um lado, vê-se a Índia como a imaginamos: vegetação luxuriante, vacas passeando calmamente pela rua, atrapalhando o trânsito, um sem fim de motos buzinando. De outro, nomes portugueses de pessoas, nomes portugueses de lugares e capelinhas ou altares católicos pelos cantos, em profusão.

Como tanta coisa na Índia, Goa é antes de mais nada um estado de espírito. É um estado pequeno na costa Oeste – o menor da Índia – e é também um lugarejo, agora conhecido como Velha Goa, remanescente da antiga e dinâmica capital da Índia portuguesa, “a Roma do Oriente”, que chegou a ter 200 mil habitantes e hoje abriga cerca de 5 mil. Do antigo esplendor, restam as igrejas barrocas. É importante lembrar que Camões lá morou e que Afonso de Albuquerque, que lá morreu, é quem conquistou a região, em 1510, para os portugueses (“Toma a ilha ilustríssima de Goa!”, diz o verso do Canto X dos Lusíadas, referindo-se a alguma das ilhas na desembocadura do rio Mandovi) e foi recompensado com os títulos de vice-rei da Índia e de duque de Goa.

Das igrejas, pude na semana passada visitar duas, a Basílica do Bom Menino Jesus – o nome é esse mesmo; estamos na Índia, mas estamos em Goa – e a Sé. As duas são separadas por uma estrada ao longo da qual, nos dois lados, correm gramados bem cuidados, protegidos do asfalto por cercas pintadas de branco. O espírito bucólico dos jardins é o oposto do que acontece na estrada, onde há ruído, buzina, motos, carros e ônibus.

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E agora, vejam esta foto, tirada em uma rua transversal à estrada, ladeando o gramado mostrado acima, mas que revela universo contrastante:

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Todas as fotos que tirei da fachada da Basílica ficaram ruins, possivelmente porque os cartazes de cada lado da porta principal me pareceram incompatíveis com a beleza do edifício, e resolvi que qualquer foto seria estragada por eles, mas esta talvez dê uma ideia da imponência da igreja:

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O interior é igualmente belo:

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O arco à direita leva ao túmulo de São Francisco Xavier, que viveu em Goa e morreu na China mas teve seu corpo aqui enterrado, após algumas peripécias: em apenas um ano, entre dezembro de 1552, quando morreu o futuro santo, e dezembro de 1553, quando foi enterrado na Basílica em Goa, o corpo passou por túmulos na China e em Málaca.

Do outro lado da estrada, dentro da Sé de Velha Goa, o interior é ainda mais magnífico:

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Do que vi em Goa, nada me chamou mais a atenção do que a casa dos Menezes Bragança, na aldeia de Chandor, no interior do estado, a Leste da costa.

Quando os portugueses chegaram à Índia, no século XVI, não faltaram membros da elite local para se associar a eles. Essas famílias converteram-se ao catolicismo e no batismo adotaram nomes portugueses. Uma delas passou a se chamar Bragança, dividindo-se posteriormente em dois ramos, Menezes Bragança e Bragança Pereira. As famílias da casta dos xátrias (guerreiros) convertidas ao catolicismo, como os Bragança, são conhecidas como chardós.

Quando a família adotou o nome da família real portuguesa? Goa virou colônia em 1510; os Bragança subiram ao trono em 1640. A família hindu passou a apoiar os portugueses depois de 1640 e aí adotou o sobrenome real ou já seria aportuguesada e católica anteriormente, passando apenas a adotar novo sobrenome depois dessa data?

A casa dos Menezes Bragança, que pertence ainda à família, é considerada a mais imponente das que sobrevivem do período colonial. No dia da minha partida de Goa, decidi sair cedo do hotel, e seguir no taxi um desvio por Chandor… em resumo, fui ao Norte passando pelo Leste. A caminho de Chandor, passei por uma agitada cidade de nome Margão e por estradas vicinais praticamente desertas.

A casa fica isolada no campo, rodeada apenas de alguns monumentos indo-portugueses e de uma feíssima igreja católica. Julguei que apenas os dois monumentos mereciam ser fotografados. Um deles, me disseram, é o mausoléu da família (não sei qual dos dois):

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Os vários cabos de eletricidade entrecruzando-se no ar me fizeram pensar no Brasil.

Em frente a esses dois monumentos, mas na diagonal, encontra-se a casa:

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Esta é apenas uma parte da fachada, que é belíssima em seu estilo indo-português. Passada a porta de entrada, o acesso ao andar principal não poderia ser mais despojado:

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Fui recebido pela Sra. Judith Borges, membro da família, que me acompanhou na visita. É proibido fotografar o interior da casa, mas minha guia abriu exceção para mim, deixando-me tirar três ou quatro fotos; para cada uma, precisei mendigar arduamente. Recebi autorização para publicá-las neste blog. Foi uma experiência única, conversar no interior da Índia com uma senhora indiana (“não temos uma gota de sangue português”, disse-me ela, em tom neutro), que fala um português de Portugal perfeito, fluente e sem acento.

A Sra. Borges contou-me a estória da família: aliados ao portugueses durante a conquista e   a consolidação da colônia, tornaram-se nacionalistas durante o processo de independência da Índia. O membro mais ilustre da família pode ter sido Luís de Menezes Bragança (1878-1938), escritor e ativista anticolonialista, nascido na casa, a qual viria a herdar de seu avô materno, Francisco Xavier de Bragança, moço fidalgo, de quem há em uma parede  – não pude fotografá-lo – um retrato sentado, ostentando numerosas ordens e condecorações. Goa foi incorporada à Índia em 1961. No ano seguinte, segundo minha guia, a reforma agrária privou a família de sua fonte de renda principal.

A casa, construída há 380 anos, contém tesouros em móveis, prata e porcelana. Dois vasos pertenceram a São Francisco Xavier. Mostro na foto abaixo a enfileirada de salas:

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O retrato é o de Luís de Menezes Bragança. Pensei em pedir autorização para afastar a cadeira branca de plástico, julgando que a foto, assim, produziria cena mais homogênea. E aí percebi que isso seria um erro, pois a cadeira de plástico dá o toque divergente, humano.

O jornal inglês The Independent publicou, em 2003, artigo bem informativo, mas com erros factuais, sobre a casa, dando-lhe o título exagerado – ou sarcástico  – de The Lost Versailles of the Jungle. O artigo foi fator determinante para minha decisão de visitar o palacete dos Menezes Bragança. De certa forma, entendi a razão do título ao ver o salão de baile: longo, com uma sucessão de espelhos (“vindos da Bélgica”, disse-me Judith Borges), de janelas e de candelabros venezianos, lembra mesmo uma versão reduzida da Galerie des glaces de Versalhes. Recebi autorização para fotografar não o salão todo, mas o canto de que mais gostei, por causa do piano e os porta-retratos que, uma vez mais, humanizam:

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Como no caso da cadeira de plástico branco, o fio de eletricidade comove pela simplicidade.

Em retrospecto, percebo que deixei de fazer perguntas à minha guia que poderiam ter me ajudado a conhecer melhor a colonização portuguesa em Goa e o processo de integração à Índia independente. Por exemplo, vejam a foto abaixo:

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O buraco na parede (há outro igual do outro lado da janela) servia, voluntariou minha cicerone, para inserir armas de fogo. Para proteger a casa de quem, pergunto-me agora… quem era o inimigo?

Não há restrições para fotografar o pátio interno. Das muitas fotos que dele tirei, escolho esta abaixo, porque mostra a janela coberta de madrepérola, material utilizado antes da popularização˜do vidro em Goa e que ajudava a proteger do calor e a diminuir a intensidade da luz:

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A visita é gratuita, mas a família pede uma contribuição voluntária, para ajudar na manutenção da casa. Na saída, no salão verde retratado acima, Judith Borges apontou para uma caixa retangular de madeira, onde eu deveria colocar o dinheiro. Pensei em uma estória que li sobre Chopin, na adolescência: aristocrático, sobrevivia em Paris dando aulas de piano a moças nobres. Ao terminar as aulas, virava as costas para suas alunas, enquanto elas depositavam o pagamento sobre a lareira. Estávamos em plena era romântica, Chopin tinha suscetibilidades que deviam ser preservadas. A estória é narrada por Harold  C. Schonberg em seu The Lives of the Great Composers, onde acabo de relê-la: “Elegant pupils would enter Chopin’s studio and put theit twenty or thirty francs on the mantelpiece while he looked out of the window. He was a gentleman and gentlemen did not soil their hands with anything as vulgar as business transactions”.

Deixei 500 rúpias na caixa de madeira. Fiquei me perguntando se era pouco. Pelo meu contentamento, nunca seria demais. Judith Borges deu-me seu cartão, mas não há endereço eletrônico nem número de celular indicados, então a opção de eu obter respostas a minhas atuais indagações históricas sobre Goa e sobre a casa por meio de mail ou de whatsapp não existe.

O cartão, na verdade, é ainda o de Aida de Menezes Bragança, nora do jornalista e escritor anticolonialista e também sua prima, pois nascera no outro ramo da família, os Bragança Pereira. Falecida em 2012 aos 95 anos, tia de Judith, Aida foi objeto, em 1998, de um documentário, A Dama de Chandor, dirigido por Catarina Mourão. Declara no filme: “Fui colocada em um internato em Paris [isso terá disso em torno de 1930] e as pessoas lá me perguntavam sobre Gandhi. Eu não sabia quem ele era e explicava: ‘Eu sou da Índia portuguesa, não da Índia inglesa’ “.

No taxi, indo ao aeroporto, comecei a pensar no que vira e nas questões que me povoavam a mente, sobre o palacete, a família, a colonização, a integração à Índia. Junto com indianos, esperei o trem passar:

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Passei por este lago, o próprio retrato da serenidade:

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Cheguei ao aeroporto meditando ainda sobre a História e a grandeza desse país, desde sempre objeto das cobiças e devaneios alheios, e dizendo para mim mesmo: “De fato, Incredible India‘”.

 

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10 comentários sobre “Os Bragança de Chandor

  1. Estimado Ary, muito bom seu relato e muito boas as fotos. Fui a Goa e perdi este pitéu da casa Bragança. As plantas do pátio podem ser encontradas em qualquer jardim do litoral do Paraná! Milagre das latitudes…

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