Em sua conta no Twitter, o Papa Francisco disse, há poucos dias, algo que reflete uma de minhas indagações durante a pandemia. O tuíte dizia: “#Rezemosjuntos pelos artistas, que têm uma capacidade de criatividade muito grande e através da beleza nos indicam o caminho a seguir. Que o Senhor nos dê a todos a graça da criatividade neste momento”. Diante da crise universal provocada pelo novo coronavírus, cabe pensar sobre o papel do artista para trazer consolo e alguma luz — aspecto apontado pelo tuíte papal — e também sobre como os artistas enfrentam a pandemia.

Boa parte da humanidade está obedecendo a algum tipo de isolamento social. Viramos todos personagens de um livro ou um filme de ficção científica. Pela primeira vez na História, todos sabemos o que todos estamos pensando, a qualquer momento, em qualquer lugar do mundo. Todos pensamos, com maior ou menor intensidade, sobre a pandemia, se nós e nossos entes queridos seremos atingidos e, nesse caso, se sobreviveremos.

As cidades estão lá fora, mas muitos de nós já não podem vê-las. Estranhamente, nos lugares onde o confinamento é rígido e obrigatório, as pessoas não podem sair, mas a rua pode ir até elas. Um dos resultados do novo coronavírus é que casas de ópera, companhias de teatro e de balé, orquestras passaram a oferecer seus programas gratuitamente, pela Internet. Não podemos viajar, ir ao teatro, à ópera, a concertos ou ao cinema, mas os espetáculos vêm a nós. Aquilo que era caro, acessível a poucos, está agora, temporariamente, disponível para todos; no celular inclusive, se assim quisermos. A Metropolitan Opera, Covent Garden, o Bolshoi, a Ópera de Munique, La Monnaie, a Companhia Deborah Colker, a OSESP, o National Theater e o Shakespeare’s Globe estão na vanguarda. Podemos acessar várias de suas apresentações. Os franceses ficam na retaguarda. A Comédie-Française e o Opéra oferecem suas produções mas, se você mora em outro país, pode ver-se impedido de acessá-las, como é o meu caso. De um lado, a França tenta divulgar sua cultura, de outro cria empecilhos para isso. Outra das veneráveis instituições culturais francesas, o Théâtre de l’Odéon, é mais afiado tecnologicamente, ou mais generoso, e permite acesso a três ciclos — Ibsen, Molière e Pirandello— de produções montadas por seu diretor, Stéphane Braunschweig, no Odéon ou em outras salas. O teatro dá acesso também a duas produções de As Três Irmãs de Tchekhov, uma delas em língua de sinais russa.

No início, fiquei entusiasmado. Ainda assisto quando posso mas, para falar a verdade, há mais oferta cultural disponível do que tenho tempo de consumir, porque a vida social cessou, mas o trabalho não. Essa fartura acessível no computador pode também provocar tristeza. Vejo cantores, atores, bailarinos, músicos cantando, interpretando, dançando, tocando seus instrumentos e penso que talvez, até termos uma vacina ou algum tipo de imunidade contra a Covid-19, nada disso poderá voltar a acontecer nos palcos. Ver centenas, milhares de pessoas na plateia, perto umas das outras, intercambiando o vírus, será uma cena tão impossível quanto ver intérpretes abraçando-se, beijando-se, aproximando-se em cena.

Penso nos anos de estudo, dedicação, trabalho para que um artista desenvolva o seu talento. Para os atores, os cantores, os membros da equipe técnica, os músicos, o regente, o diretor, montar uma produção representa um enorme esforço, primeiro para aprender a exercer aquele talento, depois para se preparar para aquela apresentação específica. Servir de intermediário entre o criador da obra de arte e o seu público é uma tarefa bela e nobre. Não nos iludamos, porém. É também um comércio, é o ganha-pão dos artistas. Eles precisam subir no palco.

Com atraso, os festivais de verão na França aceitaram a realidade, como já haviam feito os organizadores dos festivais de Edimburgo, de Glyndebourne, de Bayreuth e cancelaram ou adiaram seus eventos. Quem já viu as multidões que se acotovelam nos festivais de Avignon e de Edimburgo concordará com a decisão. Pensar que este ano os festivais de verão não acontecerão também dá a impressão de estarmos vivendo em uma obra de ficção científica. As programações estavam divulgadas, os espetáculos sendo preparados, os artistas já ensaiando. Os festivais são atividades não somente artísticas, mas econômicas. Atraem público, geram despesas, investimentos e empregos. Contribuem para dinamizar a economia da região onde acontecem.

Penso nas exposições prontas, preparadas à custa de enormes despesas e de muito trabalho, que não puderam ser vistas. Em Roma, nas Scuderie del Quirinale, as antigas cavalariças papais do palácio do Quirinal, há uma mostra do Rafael. As exposições nas Scuderie são sempre espetaculares. A do Rafael precisou fechar, por causa do confinamento social, poucos dias — três, disse-me uma amiga virtual de Roma — depois de ser aberta ao público. Em Gand, havia, até 30 de abril, uma exposição de Van Eyck no Museu de Belas-Artes. Ficou algumas semanas aberta antes da pandemia requerer o fechamento do museu. Essas são provavelmente as duas melhores exposições que quase ninguém terá visitado. Estão acessíveis pela Internet, mas isso não é a mesma coisa. Artistas plásticos contemporâneos seguirão produzindo suas obras, mas não sabemos quando poderão expô-las. Feiras de arte foram ou canceladas ou adiadas para o segundo semestre, mas não está claro se antes do final do ano as viagens serão retomadas normalmente,

A sina do artista é depender de seu público. Não só financeiramente, mas também emocionalmente. Ele precisa dos aplausos. Uma vez li que o ator de teatro sente-se vivo apenas quando está atuando no palco. Como minha mudança está, há sete semanas, por causa do isolamento social, abandonada em um porto malásio, não posso consultar a biblioteca para confirmar em que livro vi, no passado, essa ideia. Posso lembrar de duas possibilidades, ambas autobiografias de atores: Being an Actor, de Simon Callow, e The Year of the King, em que Antony Sher narra como se preparou para o papel de Ricardo III na peça de Shakespeare, em uma atuação memorável a que tive a sorte de assistir em Londres.

Às vésperas de sua morte prematura, em 1959, o mítico ator Gérard Philipe escreveu em uma caderneta: “Quando o ator não está atuando, ele se sente doente, deprimido, inquieto”. A criatividade dos artistas manifesta-se porém mesmo durante o confinamento, e os leva a encontrar formas de manter o vínculo com seu público. Para os atores, especificamente, as redes sociais são uma alternativa. Patrick Stewart pode ser visto em sua conta no Twitter lendo cada dia um soneto de Shakespeare. Fabrice Luchini, no Instagram, lê fábulas de La Fontaine. Atores ingleses e americanos juntaram-se para criar um grupo chamado Shakespeare Happy Hours, em que, graças ao Zoom, apresentam peças do Bardo, todos em suas respectivas casas, sentados ou em pé, em suas roupas do dia a dia, cada um em uma cidade diferente. São já quatorze peças; a mais recente é Troilus and Cressida. Cada nova apresentação é ao vivo. As anteriores ficam arquivadas e podem ser vistas posteriormente. Para o espectador, é uma experiência original. É como se você por engano invadisse a reunião virtual de algum escritório que não o seu, e os participantes fossem Antonio, Cleópatra e o futuro Augusto; ou Otelo, Iago e Desdêmona; ou o rei Lear e suas filhas.

Outra experiência curiosa é o Ancient Mariner Big Read. Atores, escritores e músicos como Jeremy Irons, Tilda Swinton, Willem Dafoe, Hilary Mantel e Iggy Pop lêem versos do poema de Coleridge, que foi dividido em quarenta blocos sucessivos. Artistas plásticos colaboram com a aparência visual. O projeto começou a ser preparado há três anos, e ficou pronto a tempo de ser mostrado ao público durante a pandemia. No dia em que escrevo este texto, acessei a página eletrônica pela primeira vez. Estávamos no bloco 15 e Marianne Faithfull, que viria depois a ser internada por 22 dias por causa do coronavírus, lia com grande competência o trecho do poema que inclui o verso: “Alone, alone, all, all alone”, perfeitamente adequado à nossa era de distanciamento social. Outro bloco, o 4, inclui os versos:
“The ice was here, the ice was there,
The ice was all around
Um naturalista polar, Peter Wilson, foi filmado ao ar livre na Antártica, lendo esses versos numa folha de papel, em pé, rodeado de pinguins.

A pandemia gerou o evento cultural, a meu ver, mais importante do ano. Fechada, como provavelmente todos os teatros do mundo, a Metropolitan Opera, além de exibir ao público, toda noite, gratuitamente, a gravação de alguma de suas produções, decidiu no sábado 25 de abril montar um espetáculo ao vivo intitulado “At-Home Gala”. Dezenas de cantores líricos baseados na Europa e nos Estados Unidos cantaram de suas casas árias ou duetos — muitos são casados com colegas de profissão — de sua escolha. Foi um verdadeiro tour de force tecnológico. Ou os cantores se faziam acompanhar ao piano por um amigo, ou cantavam com o som pré-gravado de um piano. Uns poucos, como a soprano americana Erin Morley — uma das presenças mais alegres e carismáticas — cantavam e tocavam ao mesmo tempo. Um cantor terminava seu número e passava o bastão ao seguinte. Entrementes, íamos vendo como eles moram, e esse não era um dos prazeres menores do evento. Lembrarei sempre do jardim de Renée Fleming na Virginia, da sala de Peter Mattei à beira da água no arquipélago de Estocolmo e da biblioteca de Roberto Alagna e Aleksandra Kurzak nos arredores de Paris.

Houve números — o Va, pensiero foi particularmente tocante — com orquestra e coro pré-gravados, cada artista tocando ou cantando de casa. A mezzo-soprano Joyce DiDonato pré-gravou, com os violinos, o diretor musical do teatro, Xavier Nézet-Séguin, regendo — de novo, cada um em sua casa — a ária Ombra mai fu, em homenagem a um violinista da orquestra que morreu de Covid-19. Os cerca de quarenta árias ou duetos podem ser ouvidos no Instagram, em #athomegala, onde coloquei uma foto de Kiki, a gata persa, ouvindo a ária de Handel, e em #thevoicemustbeheard, com declarações dos artistas.

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Desde sempre, um dos meus quadros prediletos no Louvre é a pintura de maiores dimensões no museu,  As Bodas de Canaã, de Veronese. Seu infortúnio é ser exposto em frente à Mona Lisa, o que o deixa relativamente ignorado pela multidão adoradora da florentina. Quando, aos 20 anos, li The American, de Henry James, publicado em 1877, foi um choque ver aparecer, no segundo capítulo, o quadro que eu admirava, quando o personagem principal — o americano, Christopher Newman — se detém frente a ele e o observa em detalhe. Muito da ação do livro decorre do fato de que Newman reencontra em frente ao Veronese, por acaso, um velho conhecido. Percebi que havia se estabelecido para mim um elo com Henry James e com seu personagem, e que as mesmas obras de arte afetam a vida de sucessivas gerações.

O depoimento mais impactante em #thevoicemustbeheard é o de Joyce DiDonato. Ela faz a ligação entre a música e os dias de hoje, marcados pela pandemia e a necessidade de mantermos o vínculo com as pessoas. Sem dramaticidade, ela conta como, ao interpretar um personagem, sente que se conectou com o compositor, com todos os cantores que no passado cantaram aquele papel e com todos os que já ouviram aquela ópera.

É assim com toda obra de arte. Assistir a uma peça de Shakespeare, ver o quadro de Veronese no Louvre, ler um romance de Henry James, ouvir Handel, Mozart e Verdi é lembrar de todos os que, antes de nós, já viveram aquela experiência. No fim, tudo passará, mesmo a pandemia. Permanecerá o poder da arte de, nas palavras do Papa Francisco, indicar o caminho a seguir. É a sina do artista.

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21 comentários sobre “Cleópatra no Escritório

  1. Aqui em Portugal, muitos artistas contribuíram para que este período de reclusão social se tornasse mais suportável, sem dúvida. Houve mesmo um dos grandes comediantes em Portugal, Bruno Nogueira, que através do Instagram juntou milhares de portugueses todas as noites. Muitas mais pessoas do que as que esgotam permanentemente os seus espectáculos. Será certamente um caso de estudo.

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  2. Caro Ary, como sempre uma aula de conteúdo e análise. Puxa, queria ser como você nesse conhecimento todo. Abraços, Mosca

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  3. Com tempo para tantas experiências fascinantes, talvez – se sobrarmos – venhamos a ter saudades dos dias da Peste…

    Em dom., 3 de mai. de 2020 às 11:29, Ary Quintella escreveu:

    > aryquintella posted: “Em sua conta no Twitter, o Papa Francisco disse, há > poucos dias, algo que reflete uma de minhas indagações durante a pandemia. > O tuíte dizia: “#Rezemosjuntos pelos artistas, que têm uma capacidade de > criatividade muito grande e através da beleza nos indic” >

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  4. Maravilhoso. Sinto-me mais próxima de alguém que curte a cultura, autores, obras, a grande arte como eu, do que de algum parente próximo que ignora tudo isso. Obrigada por mais esse belo texto!

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  5. Caro Ary, não sei se você ainda se lembra de mim. Eu o conheci ainda jovem, junto com sua irmã Titina, na casa de sua mãe Thereza em Londres. Naqueles anos ela estava no Consulado e eu na Agência do Banco do Brasil. Nossa amizade com sua mãe perdura imutável até hoje.
    Mas não estou escrevendo para lembrar do passado. Você está seguindo uma bela carreira como sua mãe mas o que mais considero importante é a sua carreira paralela como escritor e articulista.
    Acompanho suas cronicas no seu blog religiosamente. Elas enchem minha alma de alegrias e trazem-me recordações que eu pensava estarem já perdidas.
    Durante os 20 anos em que morei na Europa, primeiro na Itália, depois na Inglaterra e na Bélgica tive oportunidade de viajar por quase todos os países da Europa. A França foi um dos que mais visitei não apenas por estar a apenas algumas horas de Bruxelas mas por ter laços familiares com o povo francês. Minha bisavó paterna era francesa.
    Quando você menciona em suas cronicas as suas andanças por Paris, suas visitas às livrarias, sinto-me voltando ao passado, caminhando junto com você, sentindo o cheiro de baguetes recém saídas do formo em Montmartre, do lemon pressé no cafe Flore no Boulevard Saint-Germain, vendo o povo passar.
    Paris será sempre parte da minha história e agradeço a você por ser o cronista fantástico que você é. Infelizmente, na minha idade (tenho a mesma idade de sua mãe) as viagens não são mais fáceis de serem feitas. Agora tenho um oceano entre New York e Paris e menos agilidade física para enfrentar a viagem.
    Continue escrevendo, não pare nunca, suas crônicas são um raio de sol no mundo conturbado de hoje. Sua bagagem cultural, que você transmite a cada crônica, fazem-me acreditar que nada está perdido na nova geração. Ainda existem pessoas para quem a cultura é mais importante que a materialidade.
    Abração forte
    Aloysio

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    1. Caro Aloysio, muito obrigado por escrever. Sua mensagem amiga, generosa, incentivadora tornou meu dia bem melhor. Foi uma surpresa encantadora para mim. Lembro bem da última vez em que nos vimos, em NY, jantando com vocês em seu apartamento, quando minha mãe precisou fazer um exame de saúde grave. São coisas que a gente não esquece. Espero que vocês estejam todos bem, cuidando-se neste momento difícil. Com um abraço forte e amigo, Ary

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