Woody Allen e a ArtRio 2016: o que eles têm em comum

Um princípio que adoto neste blog é só tratar de livros, filmes, exposições e artistas de que gosto. Por exemplo, todo ano fico na expectativa de assistir ao novo Woody Allen. Pode ocorrer de eu ficar decepcionado, como aconteceu com Café Society. Vale a pena eu analisar o filme? Não creio. É mais útil pensar no que há de satisfatório ao meu redor… e torcer para que o Woody Allen de 2017 seja melhor.

Da mesma forma, com a ArtRio. Espera-se a nova edição com curiosidade  e é triste quando a visita agrada menos do que a anterior, como aconteceu comigo este ano. Havia, como sempre, muito Pancetti, muito Di Cavalcanti, muito Cruz-Díez, um ar de pouca novidade. Poucos artistas novos estimulantes e menos galerias estrangeiras.

Há porém outro princípio que adoto, não no Blog, mas na vida, que é o de tentar encontrar mérito mesmo nas experiências intelectuais e artísticas mais frustrantes. Discorrer sobre as razões pelas quais Café Society é um filme decepcionante seria pouco proveitoso. Mais vantajoso é eu apontar o que despertou minha atenção de maneira positiva.

Primeiro, a fotografia cálida de Vittorio Storaro, muito comentada em críticas no mundo inteiro mas não apreciada com unanimidade, como demonstra o artigo de Richard Lawson na revista Vanity Fair, que a descreveu como sendo  “cheap-looking period gloss […] oddly lush and intricate and garish for an Allen movie”. Pessoalmente, gostei, e sobretudo dos tons alaranjados dos trechos passados em Hollywood.

Em segundo lugar, fiquei impressionado com a última cena, a mais filosófica do filme. O apreço de Woody Allen pela literatura russa, incluindo Tchekhov,  é conhecido. O final de Café Society me comoveu, ao me lembrar o conto A Dama do Cachorrinho, que Tchekhov conclui – como Allen termina seu filme – deixando incerteza no ar. No conto como no longa-metragem, sabemos que os dois personagens se amam mas vivem em cidades diferentes e são casados com outras pessoas, e percebem não haver solução fácil para seu dilema.

Este ano tem sido fértil em filmes sobre a solidão, como As Montanhas se Separam, de Jia Zhangke, e Julieta, de Almodóvar. Anton Tchekhov e Woody Allen nos falam de uma forma de solidão bem específica: a de pessoas que não vivem sós mas são atormentadas porque não podem estar perto da pessoa amada. Ver na última cena do filme de Allen essa alusão, que me pareceu transparente, ao meu conto predileto de Tchekhov foi uma surpresa e redimiu, para mim, as fraquezas do roteiro e de algumas interpretações e o enredo pouco interessante.

Talvez por causa do impacto que me causou o filme de Zhangke Jia, minha obra preferida na ArtRio foi esta foto de Isaac Julien, No Moon Shining, extraída de seu filme-instalação  Ten Thousand Waves (onde uma das atrizes, aliás, é Zhao Tao, estrela de As Montanhas se Separam), apresentada pela  Galeria Nara Roesler:

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Vejam abaixo este detalhe:

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É tanta beleza, tanta serenidade, que a questão da solidão não se coloca; devemos supor que a figura humana na foto sente contentamento em estar viva e participar desse cenário.

Gostei também desta natureza-morta de Albano Afonso, apresentada pela galeria ˜Casa Triângulo, que mistura de forma natural o tradicional e o moderno:

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Mais até do que do carregador de celular, gostei do detalhe da entrada de teatro no canto esquerdo.

Senti-me feliz diante desta fotografia de Flávia Junqueira, apresentada pela Zipper Galeria:

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O espaço vazio ocupado por uma alegria pura não deixa de ser uma parábola sobre a melhor forma de lidar com a solidão.

O atrativo maior na ArtRio 2016, porém, foi o entusiasmo do público… no sábado 1º de outubro, apesar do mau tempo, os pavilhões estavam cheios. As pessoas pareciam interessadas e animadas. Era estimulante estar no meio da multidão, nos corredores. E, como no caso da sessão em que eu assistira Café Society, algumas semanas antes, saí do Pier Mauá pensando que a experiência de ir à ArtRio não fora totalmente satisfatória, mas que perdê-la teria  sido uma pena.

Estou pensando em como finalizar este texto, quando leio artigo perspicaz de Adrian Searle, no The Guardian de hoje, sobre a Frieze Art Fair, que está começando em Londres, e caio sobre esta frase: “Art fairs are always like this, the art reduced to the status of stage-prop”. O título do artigo de Searle é: “Everyone’s a performer in the boozy, fruity house of fun”. Ao apontar os ridículos da Frieze, Adrian Searle não deixa de transmitir o ambiente eletrizante na abertura da feira.

E é isto, talvez, o que tenha faltado à ArtRio 2016: mais auto-derisão. Quem sabe, o personagem abaixo, que fotografei discretamente, não tenha sido quem melhor entendeu o espírito que deveria prevalecer na feira de arte? Termino me perguntando se o blog  The Sartorialist aprovaria esta foto…

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O título em português dá um sentido levemente diferente do título em inglês (Mountains may depart). O título em francês (Au-delà des montagnes) já dá um terceiro sentido, mais fraco do que os outros dois. Qual dos três sentidos será mais perto do chinês? O enredo justifica os três títulos, dependendo do aspecto que se queira enfatizar.

Jia Zhangke aborda o tema filosófico, a meu ver, mais fascinante de todos: como o ser humano lida com a solidão inerente  a toda vida. Nascemos, vivemos e morremos apenas na companhia de nós mesmos, e se eu fosse o narrador de um filme do Woody Allen, recomendaria agora: “Ame a você mesmo…é muito chato ter de passar a vida inteira com alguém de quem você não gosta”.

Pode-se postular que amamos, fazemos amigos, jantamos fora em grupo e queremos sucesso profissional, em parte, para tentar escapar da solidão. Porém, nem os amores mais profundos, nem as amizades mais verdadeiras, nem a vida social mais intensa, nem a existência mais prestigiada, mais exitosa eliminam totalmente a solidão.

Um amigo, este ano, chamou minha atenção para um artigo de Hans Morgenthau de 1962, bastante surpreendente, intitulado Love and Power, em que o autor equipara a busca por amor e a busca por poder, argumentando serem ambas causadas pela tentativa de fugir da solidão.

Os amores, porém, muitas vezes terminam e os amigos se desentendem (e o poder, em algum momento, termina). Fazemos um esforço de aproximação com outros seres humanos para escapar da solidão, mas frequentemente afastamos de nós essas mesmas pessoas. Fugimos da solidão e a trazemos de volta.

O belo filme de Jia Zhangke é, entre outras coisas — muitos preferem ver no filme uma análise das consequências que o desenvolvimento chinês provoca nas pessoas, mas essa visão não é incompatível com a minha, é apenas uma questão de ênfase  -— uma descrição sobre a solidão a que as pessoas às vezes se condenam. Elas fazem escolhas, ao longo da vida, sem ter como prever as consequências; essas escolhas podem ser equivocadas e aumentar —  em vez de diminuir  — seu grau de solidão.

A frase mais marcante do filme talvez seja: “todo relacionamento humano termina; as pessoas sempre se afastam umas das outras”. A frase não é sempre verdadeira. Amores, amizades e relações profissionais e sociais podem durar a vida inteira, como sei pela minha própria experiência. Toda relação, porém, mesmo a mais indiferente, precisa de esforço constante para ser preservada. Um olhar mau-humorado pode bastar para azedar a relação mais antiga. E Proust nos ensina que todo relacionamento humano varia ao longo dos anos, às vezes mais próximo, às vezes mais distante.

A heroína do filme, em uma comovente interpretação de Zhao Tao, é bela, ética, meiga (sei que o adjetivo soa antiquado, mas é correto, neste contexto) e generosa. Um erro — e é, em qualquer vida, o que pode bastar — a condena, e a vários outros personagens, à solidão. A decisão em questão é perfeitamente natural e parece correta, naquele momento. Suas consequências, porém, afetam negativamente a vida de vários dos personagens principais do filme, e por muitos anos.

A cena final provocou em mim enorme tristeza. Alguns amigos, talvez mais sábios, tiveram percepção diferente: julgaram que a heroína termina feliz, conformada com a sua condição solitária, já que humana.

 

Ficha técnica do filme: imdb

 

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Amor e Amizade -Whit Stillman

Amor e Amizade…dois sentimentos, sugere o filme, que devem ser evitados se quisermos manter a objetividade necessária para vencer na vida. Lady Susan Vernon, a protagonista, é especialista em despertar os dois sentimentos nos outros, sem nunca ser sua vítima. Este filme é mais do que uma nova adaptação da obra de Jane Austen. É um estudo sobre as contingências de uma mulher do século XVIII, ciente de ser mais inteligente do que as pessoas ao seu redor e de que a falta de escrúpulos será seu trunfo. Como bônus, o filme nos entrega interiores soberbos, belas paisagens, Handel e Mozart na trilha sonora, interpretações magníficas e o mais importante: muito senso de humor. Kate Beckinsale está inesquecível como a personagem principal, que hesito em chamar de vilã. Sua Lady Susan merece todos os epítetos listados no poster abaixo mas é também bela, sedutora, irresistível e espirituosa. O diretor do filme, Whit Stillman, nos leva a aceitar que a falta de caráter da protagonista, associada a um constante sorriso, é a melhor arma de que ela dispõe para sobreviver naquela sociedade. Não é culpa sua se é rodeada de tolos, dispostos a se iludir com ela. Tom Bennett, aliás, está estupendo no papel do mais tolo dos tolos. A filosofia de Lady Susan é: a frieza, o cinismo e o oportunismo compensam, se disfarçados pela simpatia e conduzidos com inteligência. Confrontada com sua deslealdade, Lady Susan descarta, sem susto, as acusações contra ela, pontificando: “facts are a horrid thing”. Um filme delicioso.

 

Ficha técnica do filme: imdb

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Loucas de Alegria – Paolo Virzì

Amar pode causar loucura? Paolo Virzì diz que sim, em seu luminoso filme. Ao menos no caso de amor não-correspondido, conceito na minha visão contestável: se não é correspondido, não é amor, é um delírio, uma loucura…Ou será que amar é em si, segundo Virzì, um ato de loucura?

Beatrice (Valeria Bruni Tedeschi), bela, exuberante e aristocrática, e Donatella (Micaela Ramazzotti), bela, melancólica e pobre, estão internadas em instituição psiquiátrica-judicial, por causa dos atos insensatos que cometeram pelo amor – ou pela obsessão – que sentem por homens errados. Surge uma bonita e inesperada amizade entre duas mulheres cujo único traço comum é a vontade de desenvolver vínculo forte com outro ser humano; não será isso já um sinal de loucura? A estupenda interpretação das duas atrizes, assim como o roteiro e o talento do diretor, transformam uma estória potencialmente trágica em uma comédia profunda mas divertida sobre a condição humana.

O filme coloca várias indagações. Primeiro, qual a diferença entre loucura e saúde mental, pois em sua fuga pelas estradas italianas, Beatrice e Donatella encontram figuras perturbadoras, soltas e aceitas pela sociedade, ao contrário delas, que parecem ser punidas pela sua autenticidade e transparência. Em segundo lugar, somos levados a pensar sobre o que é o amor e como demonstrá-lo; pelo desprendimento, parece nos dizer o filme em cena quase no final, entre Donatella e o filho. Finalmente, vem o questionamento sobre se a amizade existe, não só entre as duas, como entre quaisquer outras pessoas. Virzì nos convence que sim, se houver aceitação mútua. Um filme marcante.

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Ficha técnica do filme – IMDb

Julieta – Pedro Almodóvar

Novo dramalhão do Almodóvar, um diretor que eu já desistira de acompanhar. Este filme, porém, é soberbo. São inúmeras as referencias culturais (Alice Munro, Patricia Highsmith e Homero são referências abertas…mas notei também alusões a Hitchcock – vários de seus filmes -, Bernard Herrmann, Debussy e Tolstoi (algumas cenas remetem a Anna Karienina).

Há grande riqueza estética e psicológica. Esteticamente, são marcantes as cenas no trem: dentro do vagão, há o uso das cores e das linhas retas e a beleza de Adriana Ugarte; fora, há a neve, as árvores e um cervo carregado de simbologia.  As cenas na cozinha da casa do marido de Julieta, onde a janela olha para o mar, são também marcantes visualmente e, como as do trem, carregadas de simbolismo. A água, aliás, é um tema recorrente no filme.

No plano psicológico, este é um filme sobre a culpa, o ciúme e também sobre o ciúme levando as pessoas a cometerem atos ou tomarem decisões que levam à culpa. Ao contrário do filme de Jia Zhangke,  As Montanhas se Separam, em Julieta a solidão dos personagens parece ser voluntária.

A denúncia moral do filme, coerente o tempo inteiro, fica explicitada na última cena: infelizmente, o ser humano só aprende a perdoar depois da perda e do sofrimento. Que triste que seja assim, parece dizer Almodóvar, já que a capacidade de perdoar – ou de não guardar mágoas – poderia trazer felicidade e nos poupar, justamente, da perda e do sofrimento. 

Frase da heroína: “Ya no podía con mi alma”. Existirá solidão maior do que essa ? Um belíssimo filme.

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Ficha técnica de Julieta – IMDB.com