Cenários do poder

Cenários do poder

Como nos lembra o historiador Thierry Sarmant no livro que publicou este ano, História dos palácios: o poder e sua encenação na França, do século V ao XXI, os locais onde vivem e trabalham os governantes sofrem constantes evoluções.

Há poucos meses, o presidente da França abriu as portas do Palácio do Élysée à cadeia norte-americana de notícias CNN. Entre os temas de que tratou com o jornalista Richard Quest estiveram inteligência artificial, Gaza, sua ambição por uma maior independência estratégica da União Europeia e a guerra na Ucrânia. Pouco pressionado pelo entrevistador, Emmanuel Macron transformou a ocasião em um monólogo, em um inglês fluente mas com sotaque.

Ao final da conversa, exibiu algumas salas do Élysée. Comentaristas franceses apontaram a raridade do tour assim proporcionado pelo presidente. Nas imagens que registram a visita nota-se o contraste entre de um lado obras de arte e peças de mobiliário contemporâneas, de outro móveis do século XVIII e entalhes dourados nas paredes do edifício, construído a partir de 1722 para um membro da alta nobreza.

No Salão Cleópatra, a tapeçaria mostrando o encontro entre Marco Antonio e a rainha egípcia, que empresta seu nome ao aposento, foi retirada. Em seu lugar, pendurou-se uma obra recente e estridente. No Salão Pompadour está exposta outra tapeçaria, “Mulher no espelho”, baseada em uma litogravura de Joan Miró. Minha peça predileta é uma escultura em mármore e bronze por Arman, “Tributo à Revolução de 1789”, encomendada por François Mitterrand para celebrar o bicentenário da Revolução. Colocada no vestíbulo, é a primeira visão que os visitantes ilustres recebem do interior do palácio.

Sobram hoje poucos vestígios dos locais de residência dos reis Merovíngios. Sarmant entende, no entanto, que as jóias e os móveis luxuosos que sobreviveram — como o trono de Dagoberto, que uma vez vi em uma exposição em Veneza — permitem pensar que aqueles soberanos do início da Idade Média viviam de maneira menos rústica do que imaginamos. Já dos Carolíngios restam ainda prédios, embora o mais famoso deles, a Capela Palatina em Aix-la-Chapelle, ou Aachen, esteja situado no que é hoje território da Alemanha. A partir dos Capetos, Paris gradualmente se impõe como capital, e vários castelos dos monarcas, na cidade principal ou perto dela — o Palais de la Cité, o Louvre, Vincennes, Fontainebleau, Saint-Germain-en-Laye — passam a ter perenidade, embora sofram importantes mutações com o tempo. Nos últimos cem anos da monarquia absolutista, Versalhes passa a ser, como sabemos, a residência preponderante.

Sarmant nos mostra como o Elysée, casa e escritório do presidente da República Francesa desde a década de 1870, excluindo-se o período da II Grande Guerra, marcado pela ocupação alemã, é modificado pelos titulares do cargo. Em geral, os presidentes preferem mobília Luís XV ou Luís XVI. Georges e Claude Pompidou, assim como Emmanuel e Brigitte Macron, são exceções, e optaram por artistas e projetistas modernos.

Uma moral que extraí da leitura de Histoire des palais é a transitoriedade até mesmo do poder aparentemente mais sólido. O gradual fortalecimento, ao longo de 800 anos, com sobressaltos, dos Capetos e seus ramos Valois e Bourbon, que resultou na unificação territorial da França e no absolutismo, é eliminado em um par de anos, entre 1789 e 1792. Edificados durante séculos, os palácios da dinastia são rapidamente apropriados por novos governantes, sobretudo aqueles situados em Paris e seu entorno. Versalhes, com sua excessiva carga simbólica, é a exceção.

O Palácio das Tulherias, última morada de Luís XVI e Maria Antonieta antes da sua prisão e da abolição da monarquia em setembro de 1792, é o caso mais emblemático. Já em maio de 1793, lá se instala a Convenção Nacional revolucionária. Como aponta Sarmant, todos os regimes do século XIX que governaram a partir das Tulherias “buscaram o fausto monárquico, na suposição de que assim impressionariam os franceses, mas isso não salvou nem Napoleão I em 1814, nem Carlos X em 1830, nem Luís Filipe em 1848, nem Napoleão III em 1870”.

O Élysée tornou-se residência dos presidentes porque, apesar de suas conexões monárquicas — pertenceu a Luís XV; à sua favorita, a marquesa de Pompadour; a Napoleão I, que lá abdicou pela segunda vez em 1815 (e antes disso à sua irmã, Caroline Murat, rainha de Nápoles); e a Napoleão III — é um palácio de segunda divisão. Luxuoso, mas pequeno para padrões reais, e nunca residência oficial de soberanos franceses. Fica a dúvida no leitor se, caso as Tulherias não tivessem sido incendiadas pela Comuna em 1871, o regime republicano não teria cedido à tentação de lá se instalar.

Duas vezes trabalhei em palácios brasilienses, o Itamaraty e o Planalto. São obras-primas da arquitetura modernista brasileira, os mais bonitos de Brasília, junto com o Alvorada. O Itamaraty pareceu-me sempre acolhedor, apesar das salas subterrâneas. Como o Élysée sob alguns dos presidentes franceses, mas de maneira mais convincente, mistura quadros e móveis antigos com obras mais recentes, ajudado nisso pela arquitetura inovadora. O Planalto é elegante mas francamente gélido. Sentar-se lá é como isolar-se de qualquer outra realidade física conhecida. Quanto ao Alvorada, são conhecidas as queixas de falta de privacidade de alguns de seus moradores.

A leitura me fez questionar a razão pela qual, em uma capital republicana, inaugurada em 1960, deu-se o nome de “Palácio” a esses e a outros edifícios de Brasília. O local ainda considerado o centro do poder no Ocidente é conhecido simplesmente como uma casa, a Casa Branca.

Uma coisa é certa: os títulos dos governantes e os nomes de suas residências mudam mas, como a natureza humana é uma só, perduram as cortes e as intrigas em torno do exercício do poder.

Coluna publicada no jornal Estado de Minas ontem, 5 de julho.

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Memória diplomática, 21 de junho

Batuque na cozinha, 7 de junho

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Benção apostólica, 26 de abril

O presente malásio, 12 de abril

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Grandes diplomatas, 15 de março

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Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

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O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

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Memória diplomática

Memória diplomática

Transcrevo minha coluna quinzenal publicada no jornal Estado de Minas ontem, 21 de junho:

Minha mãe, Thereza Quintella, cumpriu 87 anos em 27 de maio. Pedi uns dias de férias para viajar de Luanda ao Rio de Janeiro e comemorar a data com ela. Decidi maximizar a ida ao Brasil com uma noite de autógrafos em Brasília.

Fiquei feliz de rever tantos amigos, ao assinar dedicatórias de Geografia do tempo na Livraria da Travessa. Aquela seria minha única oportunidade de estar com eles, já que no dia seguinte eu regressaria ao Rio. A divulgação fora bem-sucedida e havia, na fila, muitas pessoas que eu não conhecia, cuja curiosidade fora despertada pelas entrevistas e matérias na imprensa ou em portais na internet. O primeiro a falar comigo na livraria, na verdade, estava ali por acaso. Entrara para explorar as novidades, vira o aviso da noite de autógrafos e quisera saber mais.

Perguntou-me o sentido do título “Geografia do tempo”. Expliquei que uma das minhas indagações sobre o mundo é a constante variação entre a presença e a ausência de pessoas e lugares em nossas vidas. É um fluxo e refluxo em que podemos nunca mais reencontrar os seres mais queridos, por razões fora do nosso alcance; ou, ao contrário, circunstâncias imprevisíveis podem tornar as pessoas ainda mais presentes, por um período que será longo ou curto, mas jamais eterno.

Da mesma forma, avaliamos que um parque, uma cidade, um país, uma obra de arte ou um autor ficarão conosco para sempre; e no entanto, tantas vezes eles acabam por se perder para nós. A memória, assim, é como um ser independente. O tempo nos faz lembrar de algumas pessoas e de alguns lugares, e esquecer de outros, e torna misteriosa, à medida que nos deslocamos por este mundo, a geografia dos nossos sentimentos.   

Assinei exemplares de Geografia do tempo durante três horas e meia. Ao sair da livraria quando já fechavam as portas, liguei o celular e vi mensagens de minha mãe e de minha irmã avisando que, enquanto eu conversava com leitores e amigos em Brasília, no Rio falecera Marcos Azambuja.

Não é fácil discorrer sobre alguém com quem interagimos durante muitas décadas. As pessoas mudam com o avanço dos anos, e o Marcos Azambuja falecido em 28 de maio de 2025, aos 90 anos, era distinto daquele que primeiro conheci quando ele estava na faixa dos quarenta. Minha própria avaliação a seu respeito não poderia ser a mesma de quando eu tinha quatorze anos. Diante do seu falecimento tanto foi dito sobre ele, e da maneira mais elogiosa, na imprensa, nas redes sociais e nos noticiários de televisão, que parece difícil eu poder acrescentar algo.

Não é usual que a partida de um diplomata aposentado desperte tanto interesse midiático, o que diz muito sobre a celebrada capacidade de Marcos de encantar interlocutores. Sua trajetória diplomática, embora notável, por si só não justificaria tamanha comoção. Marcos não chegou a ser chanceler e sua gestão como secretário-geral das Relações Exteriores deu-se no mandato presidencial curto e conturbado de Fernando Collor de Mello. Sempre houve nele, porém, uma luz própria, uma inteligência vivaz, que não dependiam de funções ou cargos para se fazer visíveis e brilhar.

Quando o vi pela última vez, em julho de 2024, ele me lembrou que a aposentadoria lhe permitira dedicar-se a novas atividades, como palestrante em seminários, analista frequente sobre a situação internacional em telejornais, conselheiro de entidades privadas. Ao se aposentar, vira portas se abrirem. Pareceu considerar sua vida pós-Itamaraty tão estimulante, se não mais, do que a sua exitosa carreira diplomática.   

Conhecido como frasista mordaz, daqueles que, como se diz, perdem o amigo mas não perdem a pilhéria, Marcos Azambuja era, na realidade e antes de mais nada, um hábil analista das situações. Isso valia tanto para a política e as relações internacionais como para os relacionamentos pessoais. Dissecava com lucidez e sem sentimentalismo os problemas do interlocutor e era, assim, objetivo e certeiro em seus conselhos. Para minha irmã, que foi sua nora e é mãe de dois de seus netos, ele se mostrou sempre um sogro afetuoso, atencioso, incentivador de seus projetos. Para minha mãe, um amigo cada vez mais presente com o passar dos anos.

O velório foi realizado, no Rio, no térreo do Palácio Itamaraty. Em 1912, o barão do Rio Branco lá também fora velado. Sem dúvida, Marcos teria apreciado essa homenagem. Andei pelas salas e corredores vazios — era sábado de manhã — daquela ala do Itamaraty. Naquele edifício tão carioca, cujo espaço me faz, no entanto, pensar em palácios romanos, iniciaram-se as carreiras de Marcos e de minha mãe. Ali, durante décadas, de 1899 a 1970, antes de a diplomacia brasileira mudar-se para Brasília, sonhos e ambições pessoais, mas também projetos para o País, foram arquitetados e tocados adiante, ou, ao contrário, desmantelados, de maneira muitas vezes arbitrária. Pensei no hábito comum a alguns diplomatas de, tendo morado em diversos continentes e viajado incessantemente pelo mundo, virem a morrer na sua cidade natal. Impossível decidir se há aí uma vitória do indivíduo sobre a geografia, ou da geografia sobre o indivíduo.

Vivenciar o dia a dia de maneira intensa, vibrante, é que era a forma de ser de Marcos Azambuja. Poucos dias antes de viajar ao Brasil, eu soubera pela minha mãe que ele preparava suas memórias. Se estiverem em estado de ser publicadas, trarão luz, com a efervescência e irreverência que o caracterizavam, sobre o que viu e ouviu em uma vida passada dentro do Itamaraty. No caso de Marcos, poderia haver uma vitória do indivíduo sobre o tempo.

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Batuque na cozinha

Batuque na cozinha

Transcrevo minha coluna quinzenal publicada no jornal Estado de Minas esta semana:

Quando Pelé se despediu de nós, em 29 de dezembro de 2022, não ficamos de luto apenas porque um ser humano, e maior futebolista de todos os tempos, falecera. Com a sua partida, desaparecera aquele que fora o esteio central da imagem mais positiva do Brasil no mundo, que ainda é o futebol.

Morando no exterior criança, adolescente e ao longo da minha carreira profissional, sempre fiquei impressionado com o quanto os estrangeiros associam o nome do Brasil ao do jogador. Inúmeras vezes aconteceu, nos lugares mais distantes, de eu ouvir, ao me apresentar como brasileiro: “Ah! Brasil! A terra do Pelé”. Em 2020, quando apresentei credenciais como embaixador do Brasil ao rei da Malásia, o tema da conversa entre nós foi inteiramente sobre o Rei Pelé. Preocupava-se o monarca com o estado de saúde daquele que, por ser o soberano do futebol mundial, era o rei do Brasil.

Acredito não haver muitos outros casos de uma pessoa simbolizar sozinha, aos olhos externos, o seu país inteiro. Dois outros elementos culturais brasileiros seguiam Edson Arantes do Nascimento, em termos de popularidade lá fora, enquanto eu crescia e me tornava adulto: algumas novelas de televisão e a música. Em Luanda, existiu durante vinte anos aquele que foi o maior mercado ao ar livre de toda a África. Seu nome era “Roque Santeiro”. Algumas vezes, em táxis em diversos países do Sul Global, motoristas me disseram: “Lá em casa, todos assistimos à ´Escrava Isaura´”.

No final de abril, testemunhei a dimensão do impacto que pode causar a música brasileira, com a vinda a Luanda de Martinho da Vila. Poucos dias depois de eu chegar, no final de fevereiro, o primeiro casal angolano que minha mulher e eu convidamos para a casa comentara que o músico estava por chegar. Acrescentaram, os dois: “Ele é muito querido aqui”. Mal sabíamos nós ser isso um eufemismo.

No dia do seu desembarque em Luanda, Martinho da Vila, sua mulher, Cleo Ferreira, três de seus filhos e membros da sua equipe jantaram conosco. Vários amigos angolanos vieram com ele. Recebê-lo em casa foi, para nós, algo emocionante. E não somente para nós. Ao longo da noite, todos os convidados quiseram uma fotografia com o cantor, que aceitou a situação com grande simplicidade.

Figura cultural mítica mais acessível na forma de interagir com os outros, eu nunca vi. No entanto, ele chegara do Brasil na manhã daquele mesmo dia, seu hotel era longe da nossa casa, ele devia estar bem cansado. Se estava, não deixou transparecer. Conversou, riu, deixou-se fotografar, abraçar, contou histórias de sua relação com Angola, anterior mesmo à independência do país, já que aqui veio pela primeira vez em 1972.

O seu show, dois dias depois, foi propriamente apocalíptico. Era véspera do feriado de primeiro de maio, que caiu na quinta-feira, e sexta-feira seria feriado também. No entanto, lá estavam milhares de pessoas. Martinho da Vila pisou no palco e já foi ovacionado. Todos se levantaram para filmá-lo ou fotografá-lo. O público conhecia suas músicas, cantava com ele. O carisma, aos 87 anos, continua intacto. Ele rememorou suas relações com alguns amigos angolanos; nem todos eram famosos ou ilustres, o que tornava a narrativa mais cativante.

Uma canção que eu não conhecia despertou meu interesse, como demonstração de internacionalização de um produto cultural. Martinho da Vila comentou de sua amizade com o poeta e dramaturgo Manuel Rui, autor da letra do hino nacional angolano. Mencionou que uma de suas composições, “À volta da fogueira”, é inspirada em um poema de Manuel Rui, “Os meninos de Huambo”. O mesmo poema recebeu também duas outras versões musicais, uma pelo artista angolano Ruy Mingas e outra pelo português Paulo de Carvalho.

O espetáculo foi aberto com apresentação de Eduardo Paim, ninguém menos do que o pai da kizomba. Uma amiga brasileira havia nos falado sobre esse eletrizante ritmo angolano. Eduardo Paim, ele próprio uma lenda viva, cantou e tocou o keytar durante uma hora, em uma atmosfera frenética, empolgante, fazendo-nos conhecer composições suas que eu viria a descobrir depois serem clássicos angolanos, como “A minha vizinha” e “São saudades”.

Entrevistados antes do show por um canal de televisão, minha mulher e eu lembramos à jornalista que crescer no Brasil significa ir acompanhando a carreira musical de ídolos como Martinho da Vila, que ele faz parte da vida pessoal de todos nós brasileiros. Na noite seguinte, a presença do artista brasileiro em Luanda ocupou longo trecho do principal telejornal do país.

O afeto de décadas entre o artista e o público angolano não é um feito banal, se pensarmos no poder global da indústria de entretenimento americana. Na mesma semana, Lady Gaga foi levada ao Rio de Janeiro, e dois milhões de pessoas compareceram para ouvi-la na praia de Copacabana. É uma ironia que a maior potência militar do planeta seja também a de “poder brando” mais efetivo. Não é porém uma ironia inédita. Luís XIV e Napoleão desenvolveram, cada um em sua era, políticas de agressão militar aos países vizinhos, enquanto a cultura francesa ocupava, paradoxalmente, a posição de maior prestígio e influência sobre o resto da Europa.

Na manhã seguinte, cedo, Martinho da Vila viajou para Maputo, levando com ele sua alegria, sua generosidade. Peguei-me cantarolando “Canta, canta minha gente… deixa a tristeza pra lá… canta forte, canta alto… que a vida vai melhorar”. Tendo crescido ouvindo essa canção, e tantas outras do compositor, sinto ser ele um elemento-chave, como é o Pelé, da noção que faço de mim mesmo como brasileiro.

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Um Brasil consciente e forte

Um Brasil consciente e forte

Hall dos Ministros, Palácio Itamaraty, Rio de Janeiro

Minha coluna quinzenal no jornal Estado de Minas publicada ontem, 24 de maio:

Meu pai, também Ary Quintella, entrevistou em 1970 o político mineiro Afonso Arinos de Mello Franco. A conversa aconteceu na casa de Botafogo, na rua Dona Mariana, onde o ex-ministro das Relações Exteriores morava e que ainda existe, e onde eu mesmo estive quando ela servia de sede ao centro de pesquisas Brics Policy Center.

Naquele mesmo ano de 1970, meu pai conduziu entrevistas com diversos autores brasileiros para o suplemento literário do Jornal do Commercio carioca. Algumas foram publicadas, outras não. Ignoro as razões para a seleção final, ou mesmo para a escolha dos escritores. As conversas realizadas com Rachel de Queiroz e Mário Palmério, outro mineiro, viraram referência e são sempre citadas por estudiosos de suas obras.

A longa entrevista com Afonso Arinos, que eu saiba, nunca veio a público. Apenas em 2019, vinte anos após a morte do meu pai, preparando-me para partir como embaixador na Malásia, descobri, classificando seus documentos, uma pasta contendo a transcrição de todas as entrevistas. O diálogo com Afonso Arinos chamou minha atenção, talvez por vício profissional, já que o senador foi chanceler em dois períodos, de fevereiro a agosto de 1961 e de julho a setembro de 1962, que integram o que viria a ser conhecido como Política Externa Independente.

Há muito a saborear no diálogo, por causa da cumplicidade entre entrevistado e entrevistador. Meu pai explica sobre seu interlocutor: “Sua fala é tranquila e sem vacilações: absoluta sinceridade, que espouca decididamente”. Afonso Arinos comenta ter sido colega de classe no Colégio Pedro II de meu avô, o matemático, também Ary Quintella.

Um dos temas mais presentes é Guimarães Rosa. Discutem sua personalidade, seu “método de composição”. O autor de Grande Sertão: Veredas sentara-se, um dia depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras — quando fora saudado por Afonso Arinos — e um dia antes de morrer, na mesma poltrona na varanda da casa na rua Dona Mariana de onde meu pai conduzia o diálogo. “Guimarães Rosa gostava dessa aí”, diz o político mineiro, apontando a poltrona, e meu pai, que então apenas iniciava sua carreira literária, comenta com o leitor: “sinto um arrepio ao longo da espinha”. Recorda Afonso Arinos que “Rosa era de uma amabilidade exuberante, implacável, minuciosa, que nos obrigava a tomar cuidado para não lhe causar nenhuma decepção”. 

Casa de Afonso Arinos na rua Dona Mariana, Botafogo, Rio de Janeiro

A conversa flui, passando da literatura brasileira para a francesa, e incluindo Jânio Quadros, Che Guevara e o Papa João XXIII. Sobre a Lei Afonso Arinos, de 1951, primeira norma no Brasil contra o racismo, o político declara ter sido “a mais importante realização da minha vida parlamentar”. Afirma que sempre se dedicou à política “com esmero, por uma questão de decoro e consciência, mas sem paixão”. Famoso pela capacidade oratória, admite: “se de fato eu tivesse no coração aquela paixão que demonstrava em minha voz quando fazia discursos violentos, eu já teria morrido há muito tempo”. Meu pai pergunta: “Era simulação?”, e ele responde: “não era simulação, mas a consciência de uma representação. Aliás, é a primeira vez que digo isso com tal franqueza”.

Há momentos de indagação filosófica: “esse problema de fixação no tempo, Ary, é coisa que todos nós nos consultamos permanentemente: quem somos nós, de onde viemos, para onde vamos? Não há ninguém que tenha um pouco de capacidade de se demorar dentro de si mesmo que não esteja sempre perseguido por essas ideias”. Meu pai faz uma pergunta difícil e pertinente, considerando o ano em que se realiza a entrevista: “Não se sente frustrado ao dar aulas de direito constitucional?”. 

Indagado sobre “sua melhor experiência como chanceler”, Afonso Arinos responde: “ela se situa fora do Ministério, depois que o deixei. Durante todo o período em que fui ministro, só encontrei resistências, incompreensões e obstáculos às minhas ideias”. Só depois suas tentativas de “viabilizar a afirmação da personalidade nacional” viriam a ser aceitas. Não sente saudades do Itamaraty, “pelas injustiças” que sofreu, “de ataques feitos por interesses escusos”.

Em um de seus livros de memórias, Planalto (1968), o político estende-se sobre esse assunto e nota que a hostilidade não vinha somente do empresariado ou da imprensa. “Tudo aquilo que podia representar cultura, inteligência, independência, trabalho, nacionalismo não existia para a maior parte do grupo dominante do Itamaraty”, escreve, e condena a “frivolidade condecorada” de diplomatas. Mesmo um senador ilustre, patrício, destacado político conservador não conseguiu que seus objetivos de “criação daquela imagem de um Brasil consciente e forte” fossem aceitos.

Um tema candente no Brasil, desde a década de 1950, era o das colônias portuguesas na África, em relação ao qual o Brasil, até a presidência de Jânio Quadros, se alinhava às teses portuguesas. A mudança de orientação a partir de 1961, diz Afonso Arinos a meu pai, constituiu uma das principais razões das críticas que recebeu como chanceler, ao ser acusado de não guardar “a tradição da fraternidade luso-brasileira”, e lembra: “nós somos o maior país africano do mundo”. Avalia que o Brasil, embora não sendo “uma grande potência”, é “uma grande nação” e “deve e pode” contribuir “como força decisiva no sentido da paz mundial”.   

Como conclusão da entrevista, declara o ex-chanceler: “o grande problema da humanidade é a paz” e lamenta-se com meu pai: “nós poderemos assistir durante toda a nossa vida a essa sucessão monótona de tragédias, limitadas a tais ou quais regiões do planeta, e que desencadeiam brutalidades que não poderemos jamais compreender”.

É desconsolador saber que, desde 1970, nada mudou.

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Benção apostólica, 26 de abril

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Convite: Brasília, 28 de maio

Convite: Brasília, 28 de maio

No final de novembro, viajei de Kuala Lumpur ao Rio de Janeiro para lançar meu livro Geografia do tempo. Compromissos de trabalho me obrigaram a viajar de volta à Malásia logo após a noite de autógrafos.

Em 28 de maio, viajarei de Luanda a Brasília especificamente para fazer noite de autógrafos na Livraria da Travessa do CasaPark, a partir das 19h.

Espero vocês lá. Será uma festa. Tragam os amigos.

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Bênção apostólica

Bênção apostólica

Transcrevo minha coluna quinzenal no jornal “Estado de Minas“, publicada ontem, 26 de abril:

O desaparecimento do papa marca a imaginação coletiva. A constatação de que pode haver apenas um pontífice em exercício cria para o ocupante da cadeira de São Pedro uma posição única. Presidentes e primeiros–ministros detêm títulos raros, mas há uns duzentos deles no mundo. Mesmo os reis, escassos hoje, são ainda algumas dezenas. O papa é só um.

Tendo sido Francisco um homem humilde na maneira de ser, teremos neste sábado, paradoxalmente, o espetáculo grandioso do seu sepultamento. É um lugar comum a observação de que nenhum protocolo se assemelha ao do Vaticano ou ao da Corte inglesa. Por mais simples que seja um bispo de Roma, ele continua encarnando a figura papal até entrar no túmulo, e o público espera assistir a um belo ritual.

Ao mesmo tempo, por mais admirado e querido que seja o sucessor de São Pedro, iniciam-se imediatamente, quando ele falece, as especulações sobre seu substituto. Haverá sempre um papa, espera-se, até o fim da humanidade, variando apenas os indivíduos que exercem a função ao longo da História.

Quando Francisco partiu, pensei em um diplomata que conviveu com quatro pontífices. Carlos Magalhães de Azeredo chefiou, durante vinte anos, de 1914 a 1934, a representação do Brasil junto à Santa Sé, onde servira anteriormente como secretário. Aposentado, ficou vivendo em Roma, onde faleceu em 1963, aos 91 anos.

Poeta, contista, membro fundador da Academia Brasileira de Letras antes de completar 25 anos, ele hoje é lembrado como amigo de Machado de Assis, 33 anos mais velho. No terceiro volume da correspondência machadiana, publicado em 2011 pela Academia Brasileira de Letras, Sergio Paulo Rouanet comenta: “a partir de 1892, as cartas de e para Azeredo predominam de modo avassalador”. A correspondência entre os dois compõe um livro muito útil, de quase trezentas páginas, editado em 1969 por Carmelo Virgillo. Em O presidente Machado de Assis, Josué Montello já comentava, em 1961, ser essa “a mais importante correspondência epistolar da literatura brasileira”. 

É em uma obra de Afonso Arinos, Amor a Roma (1982), que primeiro li sobre Magalhães de Azeredo. O futuro senador, chanceler e acadêmico, passando semanas em Roma em 1925, aos 19 anos, conviveu com Azeredo — era 33 anos mais jovem do que o embaixador — e afeiçoou-se a ele. Em seu primeiro livro de memórias, A alma do tempo (1961), o político mineiro nos conta ter Azeredo escrito um depoimento, “colorido e curioso”, e nunca publicado, sobre “a atmosfera de inquietação e intriga que reinava nos corredores do Vaticano, nas horas que precederam à morte de Leão XIII”, em 1903. Em Amor a Roma, volta ao assunto. Foi no Janículo que Azeredo leu a ele essa “peça meio crítica, na qual o então secretário brasileiro anotava as intrigas dos vivos ao redor do grande papa moribundo”.

Para entender Azeredo, convém saber que era filho único e póstumo. Seu livro de memórias, organizado em 2003 pelo acadêmico Afonso Arinos, filho, que havia sido ele também embaixador no Vaticano, seria mais interessante se não se fizesse tão presente a veneração por figuras mais velhas ou ilustres, como Dom Pedro II, Leão XIII ou Joaquim Nabuco. Sobre Pedro Augusto de Saxe-Coburgo-Gotha, neto de Dom Pedro II e objeto de um livro de Mary Del Priore de 2007 cujos título e subtítulo, O principe maldito, traição e loucura na Família Imperial, já dizem muito, Azeredo, tendo conhecido o príncipe na adolescência, nos conta apenas que era “de caráter bondoso e extremamente singelo”.

Em 1896, escreve da Itália a Machado de Assis: “Quero dizer-lhe algo da maravilha máxima do Vaticano e de Roma, Leão XIII”. Tendo assistido a uma missa celebrada pelo pontífice, conta que ele o tratou “paternalmente; tomou entre as suas as minhas mãos, unindo-as ao seu coração, e assim as teve durante toda a audiência”.

Não é preciso ser psicanalista para ver em Azeredo a busca constante da figura paterna. As demandas de sua amizade eram exaustivas. Em março de 1897, queixa-se a Machado de Assis: “A falta de cartas suas tem sido muitas vezes para mim objeto de reflexões melancólicas. Não posso crer que o seu coração tenha mudado para comigo. Mas o que creio e vejo é que as manifestações exteriores, visíveis, da sua amizade já não são as mesmas”.

Recente artigo do pesquisador Jair Santos, “Um poeta brasileiro no Vaticano”, me fez chegar aos ofícios enviados de Roma por Azeredo. Alguns, selecionados e apresentados por Luiz Felipe de Seixas Corrêa, que foi ele mesmo embaixador no Vaticano, foram publicados em 2016 pela Fundação Alexandre de Gusmão. Não podendo conhecer o depoimento “colorido e curioso” sobre a morte de Leão XIII em 1903, lemos nesse volume a respeito do falecimento de Bento XV em 1922 e da eleição de seu sucessor, Pio XI. Esses documentos oficiais, burocráticos, não possuem a verve do outro texto, que Afonso Arinos nos faz imaginar. 

Um resfriado rapidamente evolui para a bronquite, que avança para a broncopneumonia, e Bento XV morre. Pio XI, eleito, aparece na sacada pela primeira vez, pronuncia, “com voz clara e vibrante, as preces preliminares”, traça “três vastas cruzes no espaço”, dá a bênção apostólica. E, então, “as aclamações reboaram pela praça inteira”.

É esse ritual de apresentação do novo papa que, em poucas semanas, veremos novamente, dando-nos a sensação de continuidade e perenidade em um mundo onde, cada vez mais, tudo parece efêmero.

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O presente malásio

O presente malásio
Visitando Anwar Ibrahim

Transcrevo minha coluna quinzenal no jornal Estado de Minas publicada ontem, 12 de abril:

Recebo em Luanda, em 31 de março, dois livros que me envia de presente o primeiro-ministro da Malásia, Anwar Ibrahim.

A primeira vez que o visitei, em novembro de 2020, Anwar Ibrahim era líder da Oposição no Parlamento malásio. Recebeu-me em seu escritório pessoal em um bairro residencial de Kuala Lumpur. Mostrou-me uma estante onde eram expostas recordações dos anos em que esteve preso, condenado por motivos políticos. Entre os objetos, figuravam vários livros que as autoridades malásias de então haviam permitido a ele ler enquanto esteve preso. Fotografei alguns desses volumes. Havia, entre outros, uma edição de “Os ensaios” de Montaigne; a biografia de Barack Obama por David Remnick; “A vida dos grandes compositores”, por Harold C. Schonberg, livro de que gosto particularmente. Na foto que tirei, aparece apenas um romance, “O sol é para todos”, de Harper Lee. Em nossa conversa, o futuro primeiro-ministro citou Ortega y Gasset.

Poucos dias antes de abrir, em Angola, o pacote contendo os presentes de Anwar Ibrahim, eu recebera um telefonema do ministro das Relações Exteriores da Malásia, Mohamad Hasan. Conversamos como bons e velhos amigos que somos.

E hoje, enquanto escrevo esta coluna, leio artigo que me envia o seu autor, outro amigo malásio, Yin Shao Loong, brilhante pensador e analista das relações internacionais, sobre as consequências para a Malásia das tarifas de importação anunciadas pelos Estados Unidos em 2 de abril e revistas uma semana depois.

O Sudeste Asiático, de onde parti há dois meses, voltou assim com muita força, nesses últimos dias, à minha imaginação. De resto, parte do meu tempo livre nas últimas semanas tem sido passado comunicando a amigos daquelas latitudes que cheguei ao meu destino atual, que estou bem e que sinto saudade deles.

Um dos livros que me envia o primeiro-ministro Anwar Ibrahim contém análise da Bienal de Veneza de 2024, organizada por Adriano Pedrosa sob o tema “Estrangeiros por toda parte”. Lamentei perder essa Bienal, a primeira sob curadoria não só de um brasileiro, mas de um latino-americano, e de um residente no hemisfério sul. Uma frase de Pedrosa me chama a atenção: “onde quer que você esteja, você sempre é, verdadeira e profundamente, um estrangeiro”.

Para um diplomata, sentir-se estrangeiro, enquanto representa o seu país em outro, é muitas vezes uma característica do cotidiano. Um trecho da frase de Adriano Pedrosa, porém — “onde quer que você esteja” — parece possuir valor filosófico. De fato, a nossa realidade individual nunca consegue ser perfeitamente compartilhada com outros. Para cada um de nós, brasileiros, o Brasil possui um sentido pessoal, único. Uma das belezas do Brasil é, justamente, que em um país tão vasto, tão rico e diverso culturalmente, com uma população tão numerosa e sofrendo de marcadas diferenças sociais e econômicas, desde a independência tenha predominado entre nós um sentido autêntico de nacionalidade. Esse é o verdadeiro milagre brasileiro.

Neste exato momento, relendo “Sagarana”, penso que apenas o mineiro — e diplomata — João Guimarães Rosa poderia ter descrito tão bem a realidade de Minas Gerais. No entanto, as novelas dele se passam em uma Minas Gerais diferente daquela que eu, por exemplo, tenho entranhada em mim, que é a da Zona da Mata. “Eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias”, diz Guimarães Rosa. Por isso, afirma, optou “pelo pedaço de Minas que era mais meu”.

Quando vivemos em um país estrangeiro, nossa apreensão da realidade local é delimitada pelo bairro onde moramos, pelos lugares que frequentamos, pelos amigos com os quais convivemos, pelos jornais que lemos. Por mais que tentemos, nunca obteremos uma visão completa daquela sociedade. Ao analisar “Sagarana”, o mais brasileiro dos húngaros, Paulo Rónai, que chegou ao Brasil já adulto, comenta: “O leitor vindo de fora, por mais integrado que se sinta no ambiente brasileiro, não pode estar suficientemente familiarizado com o rico cabedal linguístico e etnográfico do país para analisar o aspecto regionalista dessa obra”.

Não quero sugerir que não é possível adquirir uma noção correta da cultura onde estamos baseados. Procurar alcançar essa percepção deveria ser mesmo uma obrigação para todo diplomata. Nos países onde servi, tive sempre muita sorte nas amizades que fiz; elas abriram o acesso para uma melhor compreensão daquelas outras realidades.

Mas também o acaso permite novas percepções. Ano passado, caminhando por um bairro de Kuala Lumpur onde eu nunca antes estivera, de repente vi um mural representando uma cena rural no interior da Malásia. Casas de madeira sobre pilotis, com telhado de palha, alternavam com palmeiras e vegetação tropical. Em primeiro plano, um carro de boi idêntico ao que tantas vezes me transportou na infância, na Zona da Mata, ambos simples e menos aparatosos do que o de uma das novelas de “Sagarana”, puxado por nada menos do que oito bois. Associando-se às melhores lembranças da infância e da adolescência em Minas, aquele mural surgido repentinamente tornou a Malásia ainda mais compreensível para mim.

Voltando, pela imaginação, a Minas Gerais, percebi que conhecer e entender a Malásia era, também, uma forma de amar o Brasil.


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Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro

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Eterna cobiça

Eterna cobiça

Transcrevo minha coluna quinzenal para o jornal Estado de Minas publicada em 29 de março:

Ucrânia e Gaza não são os únicos cenários de conflitos armados no mundo neste momento. Longe disso. Agora em março, assisti em Luanda a uma apresentação do novo presidente da Comissão da União Africana, o chanceler de Djibuti, Mahmoud Ali Youssouf. Ele mencionou, em um francês extremamente elegante, múltiplos conflitos em andamento na África. Anotei nada menos do que sete.

Antes de mais nada, algumas precisões. O presidente de Angola, João Lourenço, assumiu, em fevereiro, por um ano, a presidência rotativa da União Africana, cujo secretariado é a Comissão, sediada em Adis Abeba. Mahmoud Ali Youssouf tornou-se presidente da Comissão também em fevereiro.

A apresentação do chanceler de Djibuti e novo presidente da Comissão da União Africana apontou vários problemas enfrentados pelo continente, entre eles as ingerências extra-regionais, que atribuiu à cobiça despertada pelas riquezas minerais da África. Poucos dias antes, em Adis Abeba, João Lourenço dissera ser necessário “encontrar soluções africanas para os problemas africanos”.

Do ponto de vista de Angola, o conflito mais preocupante é sem dúvida o da região leste da República Democrática do Congo (RDC), país com o qual compartilha 2.600 km de fronteira. No início de março, o alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Volker Türk, lembrou serem já 500 mil as pessoas deslocadas na RDC somente este ano, que se somam às quase 8 milhões deslocadas anteriormente. Declarou que milhares de pessoas morreram desde janeiro, durante ataques conduzidos na RDC pelo grupo armado M23, “com apoio das Forças Armadas de Ruanda”.

Em janeiro, o general brasileiro Ulisses de Mesquita Gomes assumiu o comando militar da Missão da Organização das Nações Unidas para a Estabilização na República Democrática do Congo (MONUSCO), criada em 2010 para suceder à missão anterior da ONU, que fora estabelecida em 1999. Essas datas já indicam quão antiga é a instabilidade na RDC. Há o temor de que a integridade territorial do país esteja em risco.

A RDC é o segundo maior país da África e um dos principais produtores de cobalto do mundo. Produz também diamantes e coltan, de que há importantes reservas na região de Kivu, a leste do país, na fronteira com Ruanda, e do qual se extrai o tântalo usado em celulares. Em dezembro de 2024, o governo congolês deu início a uma ação criminal contra subsidiárias da Apple na Bélgica e na França, acusando a empresa de utilizar minerais extraídos ilegalmente de seu território.

Em fevereiro, o Conselho de Direitos Humanos da ONU emitiu resolução condenando a violência na RDC — inclusive o bombardeio de hospitais e escolas —, a “exploração ilegal de recursos naturais” e o “apoio logístico e militar prestado pelas Forças de Defesa de Ruanda ao M23”.  Poucos dias depois, o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou por unanimidade uma resolução que insta as Forças de Defesa de Ruanda a deixar de prestar apoio ao M23 e a se retirar da RDC. Por sua vez, o representante de Ruanda junto à ONU declarou que a RDC “parece acreditar que a solução para seu conflito interno virá de atores extra-africanos, vários dos quais são a causa histórica deste conflito”.

Em 2024, percebi, em conversas com diferentes interlocutores, que Ruanda estava na moda. Ouvi, no Brasil e na Malásia, a avaliação de que o pequeno país — um pouco maior do que Sergipe — era “a Suíça da África”.

De fato, Ruanda ainda era, no ano passado, um dos países africanos mais bem vistos no Ocidente. Jogadores de três times europeus de futebol, Arsenal, Bayern de Munique e Paris Saint-Germain, usam nas camisas os dizeres “Visit Rwanda”. Londres negociou com Kigali um arranjo, que não chegou a ser implementado por causa da queda do governo conservador, para envio a Ruanda de solicitantes de asilo deportados. Em novembro de 2023, o Brasil criou a Embaixada em Kigali, que não foi ainda aberta.

Desde então, a imagem internacional de Ruanda se deteriorou. Em janeiro, a RDC rompeu relações diplomáticas com o país. Em fevereiro, os Estados Unidos impuseram sanções ao ministro da Integração Regional ruandês, acusando-o de coordenar a exportação, a partir de Ruanda, de minerais extraídos da RDC e de ser “elo de ligação com o M23”. Também em fevereiro, o Reino Unido anunciou, entre outras restrições, a interrupção da ajuda financeira direta ao governo de Ruanda e avaliou que, embora seja “possível” admitir que Ruanda tenha preocupações securitárias, não seria aceitável que essas fossem resolvidas militarmente. Em março, a União Europeia adotou sanções a membros das Forças de Defesa de Ruanda. Em reação às sanções europeias, Ruanda cortou as relações diplomáticas com a Bélgica.

Desde 2022, João Lourenço vinha servindo como mediador entre a RDC e Ruanda. No entanto, em 18 de março, os presidentes dos dois países reuniram-se em Doha, inesperadamente, a convite do emir do Catar, novo ator, extra-africano, que passa a se envolver no assunto. Nesse mesmo dia, estava marcada reunião em Luanda entre a RDC e o M23, mas este, para surpresa de Angola, não compareceu. Dois dias depois, o chanceler angolano, Téte António, declarou à imprensa: “Nós ficamos, de fato, estupefatos pelo encontro em Doha”.

Diante da aceitação, pela RDC e por Ruanda, de um mediador extra-regional, em 24 de março o governo angolano anunciou “a necessidade de se libertar da responsabilidade” de mediar o conflito no leste da RDC. Caberá agora escolher outro país africano para exercer essa tarefa, mas não está claro ainda como uma mediação africana se coadunará com a do Catar, caso esta prossiga.  

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Grandes diplomatas

Grandes diplomatas

Transcrevo minha coluna quinzenal para o jornal Estado de Minas publicada ontem, 15 de março:

Em Escolhas difíceis, livro de 2014 sobre sua gestão como secretária de Estado, Hillary Clinton ridiculariza sutilmente Serguei Lavrov, chanceler da Rússia desde 2004: “ele estava sempre bronzeado e bem-vestido”. Um dos propósitos da obra era contribuir para que a ex-secretária de Estado ganhasse, em 2016, a nomeação do partido democrata para as eleições presidenciais, que viria a disputar e perderia para Donald Trump. O livro de memórias procura provar sua firmeza com a Rússia, considerada ainda então pelos Estados Unidos como seu principal rival.

Contou-me um diplomata russo que, nas reuniões entre Hillary Clinton e Serguei Lavrov, era penoso constatar como a secretária de Estado lidava de forma superficial com os assuntos, os quais parecia não dominar. O livro de Clinton e o comentário do colega russo demonstram que a disputa entre grandes potências se dá também no plano da rivalidade pessoal entre chanceleres, competindo entre si sobre quem transmite a imagem de mais habilidoso.

Não há mulheres entre os biografados no livro editado em 2024 por Hubert Védrine — chanceler da França no gabinete do primeiro-ministro Lionel Jospin, durante a presidência de Jacques Chirac —, intitulado Grandes diplomatas: os mestres das relações internacionais, de Mazarino aos nossos dias.  

Poucos dos perfis ali destacados foram diplomatas de carreira. Muitos ocuparam o cargo de ministro das Relações Exteriores. Dos vinte homens celebrados no livro por vinte historiadores ou jornalistas franceses — dos quais apenas quatro mulheres — doze trabalharam a serviço de França, Alemanha, Áustria ou Inglaterra, e dois a serviço dos Estados Unidos. Dos seis restantes, Kofi Annan e Boutros Boutros-Ghali foram secretários-gerais da Organização das Nações Unidas; três foram chanceleres da Rússia; e um, da China.   

Para um diplomata brasileiro, salta aos olhos a falta de uma representatividade geográfica mais ampla. Não há razão, por exemplo, para a ausência do barão do Rio Branco. Sua gestão como chanceler, entre 1902 e 1912, foi mais bem-sucedida e de resultados mais duradouros do que a da maioria dos biografados.

Escritório do barão do Rio Branco, onde viria a falecer em 1912, no Palácio Itamaraty , Rio de Janeiro

A celebridade parece ter sido um critério para a seleção. No prefácio, Védrine orgulha-se de que podem ser encontrados no livro “quatro nomes de notoriedade mundial: Talleyrand, Metternich, Bismarck e Kissinger”. O culto à notoriedade pode ter influenciado também o espírito às vezes pouco crítico das análises. Lemos no artigo sobre Henry Kissinger que “em 1973, ele tinha virado uma celebridade mundial, uma figura da cultura pop americana”. São apenas afloradas as acusações de crimes de guerra, atribuídas à “ala esquerda do partido democrata”.

Há traços comuns às diferentes trajetórias. Mazarino, Kissinger e Brzezinski, estrangeiros tendo de se adaptar à nova pátria, enfrentam dificuldades de inserção na elite local. Sobre Mazarino, italiano que foi primeiro-ministro da França na infância e juventude de Luís XIV, a historiadora Simone Bertière escreve: “sua inteligência é de um poder tão inquietante que ele é obrigado a escondê-la”, sem que possa “dividir com ninguém suas visões anticonformistas”. Molotov e Zhou Enlai são, em razão da visibilidade de seus cargos, as figuras politicas mais famosas de seus países no exterior, depois de Stalin e Mao Tsé-Tung. Isso basta para despertar a ira e o sadismo de seus chefes. A maioria dos biografados precisa acomodar-se ao temperamento de seus reis ou presidentes e aceitar humilhações. Vários são considerados cortesãos pelos contemporâneos.   

O artigo mais estimulante é o último, que retrata Lavrov, único dos vinte “grandes diplomatas” ainda vivo e ainda em função. A inclusão de seu nome em obra publicada após o início da guerra na Ucrânia e das sanções ocidentais contra a Rússia é, em si, reveladora de sua importância. A autora do artigo, Sylvie Bermann, foi a primeira mulher embaixadora da França, sucessivamente, na China, no Reino Unido e na Rússia.  

Segundo Bermann, Serguei Lavrov se insere “na linhagem de ministros extremamente competentes e temíveis na defesa dos interesses de seu país”, como Andrei Gromiko —um dos grandes ausentes do livro, admite Hubert Védrine no prefácio — e Evgueni Primakov. Lavrov compartilharia a visão desses predecessores de que a Rússia é “uma fortaleza assediada”, à qual interessaria, por isso, um multilateralismo fortalecido.

Como Kissinger em seu tempo, Lavrov pertence à cultura pop: “é uma das figuras mais populares e respeitadas na Rússia; há camisetas com seu rosto”. Sylvie Bermann especula não haver “nem amizade nem proximidade entre ele e Putin”. Sustenta que Lavrov “executa a política decidida no Kremlim, mais do que a elabora”, tendo sido a Chancelaria “marginalizada” nos dois temas de política externa mais importantes para a Rússia nos últimos anos — Síria e Ucrânia.

Putin e Lavrov “compartilham a nostalgia de uma Rússia poderosa e o ressentimento contra o Ocidente e as ações da OTAN, com seus avanços em direção às fronteiras russas”. Pergunta-se a embaixadora que imagem o chanceler deixará na História. Avalia que isso dependerá do resultado da guerra na Ucrânia: “Quando voltar o tempo da diplomacia, é possível que ele conheça uma forma de reabilitação”.

Em suas conclusões, Hubert Védrine critica discretamente a diplomacia europeia da atualidade, para a qual seria tabu, desde 2022, preparar o futuro das relações com Moscou, no pós-guerra da Ucrânia. De forma presciente — o livro foi preparado em 2023 — declara que esse tema é menos inabordável para os Estados Unidos, “para os quais a prioridade é fazer face ao desafio chinês”.

O embaixador Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente no Estado de Minas. Publicou, em novembro de 2024, o livro “Geografia do tempo”.

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Consternação europeia

Consternação europeia

Transcrevo abaixo minha quarta coluna quinzenal para o jornal “Estado de Minas”, publicada ontem, 1o. de março:

“Neste mês de fevereiro, passei dez dias em Bruxelas. Apesar do frio, no plano pessoal esse não poderia ter sido um período melhor. Mas enquanto eu passeava com minha filha e meu genro, frequentava museus e livrarias e retornava a restaurantes prediletos, ao meu redor instalava-se a incerteza. Por obra e graça de Donald Trump, o mundo se transformava a galope e esfacelava-se a celebrada aliança transatlântica.

Meus dias em Bruxelas coincidiram com o anúncio do novo secretário de Defesa dos Estados Unidos, Pete Hegseth, de que não seria “realista” restabelecer as fronteiras da Ucrânia ao que eram antes de 2014. Falando em Bruxelas, Hegseth aproveitou para acrescentar que seu governo não considera conducente à paz a entrada da Ucrânia na OTAN. A frase que mais terá chocado os europeus, porém, é esta: “duras realidades estratégicas impedem aos Estados Unidos focalizar, como prioridade, a segurança da Europa”.

No mesmo dia, Donald Trump e Vladimir Putin conversaram ao telefone por uma hora e meia. Rompeu-se assim o isolamento russo, imposto há três anos pelos próprios Estados Unidos. Dois dias depois, na Conferência de Segurança de Munique, o vice-presidente americano, JD Vance, criticou, em seu discurso, um suposto déficit de liberdade de expressão na União Europeia, avaliando ser este o principal inimigo da Europa, não a Rússia ou a China. Estava eu ainda em Bruxelas quando o experimentado chanceler russo, Serguei Lavrov — ­frequentemente considerado, em círculos diplomáticos globais, o mais competente do mundo — manteve na Arábia Saudita reunião com o novo secretário de Estado, Marco Rubio. Causou forte comoção, na Europa, o fato de americanos e russos se sentarem para discutir ­o fim da guerra na Ucrânia sem a presença daquele país ou da União Europeia.

Meus dez dias na capital da Europa foram, assim, dez dias que abalaram o mundo. Ou ao menos, abalaram os países da União Europeia, além, naturalmente, da Ucrânia. Algumas manchetes dos mais ilustres jornais europeus, naquele período, dão conta do nível de consternação: “Estupefação e angústia em Kiev e na Europa”; “Ucrânia: a Europa marginalizada por Trump e Putin”; “Washington e Moscou reatam, às custas de Kiev”.

Durante 80 anos, desde o final da Segunda Guerra, acostumaram-se os países europeus, não podendo mais dominar o mundo, como haviam feito por séculos, a uma confortável subordinação aos interesses americanos. Gerações de europeus doutrinadas a ver na Rússia, e na China, o inimigo natural defrontam-se agora, com “estupefação e angústia”, com algo muito parecido com um inimigo novo. A guinada de lealdades da administração Trump — anunciada em ritmo acelerado em declarações que colocam em jogo toda a retórica americana precedente sobre a inviolabilidade da soberania ucraniana, a solidez da OTAN e segurança da Europa de maneira geral  — deixou os governos europeus sem fio condutor.

Logo após a invasão da Ucrânia, há três anos, o embaixador em Kuala Lumpur de um dos países mais influentes da União Europeia cometeu um ato falho em uma coletiva de imprensa. Àquela altura, os embaixadores europeus exerciam forte pressão, de forma pública, sobre o governo malásio para que este condenasse a Rússia. “Os malásios têm de entender”, declarou o embaixador europeu, “que essa não é uma guerra que afete apenas homens brancos. Afeta o mundo todo”. Racismo à parte, a declaração produziu a impressão de que, nessa guerra, estavam em jogo, justamente, apenas os interesses de países do hemisfério Norte.

Perguntei uma vez a Samuel Pinheiro Guimarães como era possível que o presidente Lula, em seu primeiro e segundo mandatos, se entendesse melhor, na avaliação de observadores políticos, com George W. Bush do que com Barack Obama. Sua resposta foi: “É mais fácil, para um país como o Brasil, lidar, no campo da política externa, com os republicanos. Os democratas vêm sempre rodeados de uma aura demagógica. Republicanos e democratas executam a mesma política externa, mas os republicanos têm o mérito da transparência”.

É isso o que estamos presenciando: Donald Trump coloca as cartas na mesa e a realidade dos novos interesses norte-americanos aparece agora sem qualquer verniz. O conflito na Ucrânia beneficiou sobretudo os Estados Unidos, ao prender Rússia e União Europeia em um conflito onde aparentemente não poderia haver vencedor. Agora, os ventos mudam e a posição dos EUA parece ser antes a de permitir à Rússia flexibilidade muito mais ampla em termos de área de influência. Será interessante observar se a administração Trump manterá, em relação aos interesses geoestratégicos da China, a mesma compreensão que parece manifestar em relação aos interesses russos sobre o entorno europeu de Moscou.

A verdade é que não terá sido por falta de aviso. Já em seu primeiro mandato, em 2018, Donald Trump declarara ser a União Europeia “inimiga dos Estados Unidos”, por questões comerciais e por não contribuir o suficiente para sua própria defesa. Os países europeus podem ter sentido alívio com a vitória de Joe Biden, nas eleições de 2020. Deixaram porém de prever que Trump, ou outro ator com os mesmos instintos, poderia voltar ao poder. Sua consternação, assim, não deixa de ser consternante.  

Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente no “Estado de Minas”. Publicou, em novembro de 2024, o livro de ensaios “Geografia do tempo”.

As opiniões expressas nesta coluna são de responsabilidade exclusiva do autor.

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