O espaço do diplomata

O espaço do diplomata

Recebi o convite em janeiro. O Festival de Arquitetura de Singapura, evento anual patrocinado pelo Singapore Institute of Architects, queria que eu fizesse uma apresentação sobre Roberto Burle Marx. Hesitei. O Festival seria em junho, quando eu já não estaria na Malásia mas em Angola, longe do Sudeste Asiático. O Festival insistiu. Pensei que eu não deveria deixar passar uma nova oportunidade de divulgar o nome do grande paisagista brasileiro. Aceitei.

Em uma coluna nestas páginas publicada em fevereiro, “Da Pampulha para Kuala Lumpur”, falei do jardim projetado por Burle Marx na capital malásia e do livro Um brasileiro em Kuala Lumpur: Roberto Burle Marx e o Parque KLCC. Resultado particularmente tangível do meu trabalho como embaixador na Malásia, o livro serviu ao meu propósito de tornar o Brasil e seus maiores talentos mais conhecidos naquele país.

Cada edição do Festival de Arquitetura de Singapura é organizada por um arquiteto diferente. Este ano, a tarefa coube a Rene Tan, cujo estúdio é responsável pelo conjunto residencial que considero o mais espetacular de Kuala Lumpur, o Fennel, com o qual ganhou vários prêmios internacionais.

Seminários de três dias, com multiplicidade de palestras, mesas-redondas e estandes são como a batalha de Waterloo na forma descrita por Stendhal em A Cartuxa de Parma. Muita coisa acontece ao mesmo tempo, em diferentes lugares, e captamos somente aquilo que está ao alcance mais imediato do olhar. Apenas Rene Tan, que durante três dias circulou incessantemente de um lado a outro, terá podido avaliar o resultado final do Festival. Para os palestrantes, restava o privilégio de estar ali, no Centro de Convenções do icônico Marina Bay Sands, símbolo arquitetônico de Singapura por excelência. 

No painel de que participei, Alexander Wong, de Hong Kong, que eu já conhecia, expôs sua atividade como projetista de salas de cinema na China, com desenho futurista arrojado, em trabalhos amplamente elogiados pela imprensa ocidental. Em outro painel, o indiano Ambrish Arora explicou como, ao criar um hotel em Jodhpur, no Rajastão, na base da montanha onde sobressai o Forte de Mehrangarh, edificado entre os séculos XV e XVII, levou em conta a necessidade de não destoar da arquitetura histórica dos arredores mas evitar, ao mesmo tempo, um pastiche. No dia seguinte, no café da manhã no hotel, descobriríamos uma amizade em comum, André Corrêa do Lago, presidente da COP30 e membro do júri do Prêmio Pritzker.

Renata Furlanetto incluíra em sua fala uma foto do Palácio do Itamaraty, com o jardim aquático em evidência, idêntica a uma imagem que eu mostraria mais tarde em minha apresentação. Apontei não ser coincidência os dois brasileiros presentes no Festival exibirem um prédio que é, na conjunção da arquitetura de Oscar Niemeyer e do paisagismo de Burle Marx, um marco do modernismo brasileiro. Mostrar e ver em Singapura a sede da diplomacia brasileira, neste momento de tensões e incertezas geopolíticas, trouxe-me reconforto. A sua própria solidez parecia uma garantia de continuidade e equilíbrio.

Teria gostado de assistir a mais palestras no Festival. Perdi a de uma grande estrela, o japonês Riken Yamamoto, ganhador do Pritzker em 2024. Jantando com alguns dos participantes, conversei com o austríaco Dietmar Eberle. Sediado em Bregenz, ele me explicou que o grau de prosperidade da sua região geográfica é exemplificado pelo número elevado de museus de arte contemporânea ali abrigados. Por esse cálculo, os milionários brasileiros precisam ainda desenvolver a filantropia na área da museografia — e em tantas outras —, mas minha primeira reação foi pensar no fato extraordinário de Inhotim existir no Brasil.

Ao final do painel de que eu participava, o moderador, Calvin Chua, retomando o tema do Festival este ano, “Não pense (apenas) como um arquiteto”, perguntou o que nós, os quatro debatedores, sugeriríamos ao público como forma de pensar. Ofereci que pensassem como um diplomata. O diplomata um dia edita um livro sobre Burle Marx, no outro negocia um acordo internacional, mas seu objetivo final não varia ao procurar sempre promover a conciliação entre interesses por vezes distintos. Precisa, idealmente, desenvolver uma atitude serena, paciente, zen, no fundo bastante asiática, se quisermos usar um clichê. Seria útil para todo mundo cultivar um temperamento assim no dia a dia.

Uma pergunta da plateia sondou como lidar com o conceito de espaço. Melhor indagação impossível, em um festival de arquitetura. Decidi responder falando do espaço a ser almejado pelo diplomata. A questão que se coloca para mim, ao trabalhar no exterior, é como me inserir na sociedade local para influenciá-la em favor do Brasil. A defesa dos interesses e da imagem do seu país constitui, por definição, o espaço do diplomata. É no cumprimento desse dever, e não na expectativa de reconhecimento, que encontramos o propósito e a gratificação da vida profissional.

A palestra em Singapura permitiu-me incluir curtas estadas, na ida e na volta, em Kuala Lumpur. Foi maravilhoso rever amigos nas duas cidades, nessa intensa viagem de uma semana. No último dia, uma jornalista malásia me perguntou se voltar ao Sudeste Asiático, de onde eu partira em fevereiro, me causava nostalgia. Respondi com sinceridade que não. Meus cinco anos em Kuala Lumpur foram perfeitamente felizes. Voltar menos de cinco meses depois proporcionara momentos mágicos. Mais importante do que o espaço exterior, contudo, é o espaço interno.

Esse começa vazio, enorme, infinito. Gradualmente, como pedras ou tijolos em uma construção física, família, amigos, lugares, livros, obras de arte, o tempo e a memória vão construindo um edifício. Onde eu estiver, ele sobrevive, continuamente acrescentando andares, mais sólido do que qualquer arranha-céu, casa ou gabinete.

Coluna publicada no jornal Estado de Minas ontem, 19 de julho.

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

Cenários do poder, 5 de julho

Memória diplomática, 21 de junho

Batuque na cozinha, 7 de junho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

Retrato de família, 10 de maio

Benção apostólica, 26 de abril

O presente malásio, 12 de abril

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

Digite seu endereço de e-mail para assinar este blog e receber notificações de novas publicações por e-mail.

Da Pampulha para Kuala Lumpur

Da Pampulha para Kuala Lumpur

Transcrevo abaixo minha terceira coluna quinzenal para o jornal Estado de Minas, publicada ontem, sábado 15 de fevereiro:

“Quando vocês lerem esta coluna, caras leitoras e caros leitores, eu já não estarei fisicamente na Malásia. Depois de trabalhar cinco anos em Kuala Lumpur, minha profissão estará me levando a caminho de um novo continente, de novas tarefas, de novos deveres.

Neste momento, escrevo ainda de casa em Kuala Lumpur, na reta final do meu tempo aqui, olhando pela janela para o Parque KLCC, projetado por Roberto Burle Marx. 

Há poucos dias, uma jornalista malásia me perguntou o que eu considerava ser meu maior êxito como embaixador do Brasil no seu país. Respondi, de maneira previsível — mas nem por isso menos verdadeira —, que o principal resultado da minha gestão terá sido a participação do primeiro-ministro Anwar Ibrahim na Cúpula do G20 no Rio de Janeiro, em novembro de 2024, e o convite malásio para que o presidente Lula participe da Cúpula da ASEAN em outubro deste ano. Lembrei que nunca antes um presidente brasileiro participou de Cúpulas da ASEAN.

Minha interlocutora me olhou surpresa e disse: “Pensei que você diria: o livro”. Admiti que eu pensara em responder a ela mencionando o livro a que se referia, Um brasileiro em Kuala Lumpur: Roberto Burle Marx e o Parque KLCC, publicado pela Embaixada do Brasil nos últimos dias de 2023.

O parque, o mais central da capital, estende-se aos pés das famosas torres gêmeas, as Petronas, sede da estatal de petróleo da Malásia. A sigla KLCC significa “Kuala Lumpur City Centre” e é o nome do bairro, do parque e do centro comercial situado entre as torres.

Burle Marx era certamente, na década de 1990, e vinha sendo há muito tempo, o arquiteto paisagista mais famoso do mundo. É natural, portanto, que a Malásia, embora em termos geográficos tão distante do Brasil, tenha decidido escolhê-lo para projetar o parque KLCC, no coração do novo centro financeiro da capital. No final da vida, o grande arquiteto paisagista brasileiro visitou a Malásia duas vezes para trabalhar no projeto, que foi concluído após o seu falecimento, acontecido em 1994. É sua única obra na Ásia.

Desde minha chegada a Kuala Lumpur, eu desejava celebrar esse elo — vivo, nítido, tão eloquente — entre o Brasil e a Malásia. Depois de quatro anos de esforços, atingi meu objetivo, graças ao apoio do Instituto Guimarães Rosa, unidade do Itamaraty responsável pela diplomacia cultural e educacional. O IPHAN cedeu material sobre o Sítio Burle Marx, no Rio de Janeiro, que, ao encerrar o volume, ilustra a trajetória do paisagista. Os desenhos, fotos e documentos fornecidos pelo Instituto Burle Marx são muitos deles inéditos, já que sua catalogação ocorreu especificamente para poder ilustrar o livro. A Vale Malásia, empresa que é a maior investidora latino-americana no país, garantiu a impressão em capa dura.

O trabalho diplomático apresenta a característica, às vezes ingrata, de que muito do empenho, das tarefas exaustivas realizadas gera frutos apenas meses, anos depois que partimos para novas funções. A diplomacia é uma atividade de longo prazo. É uma aula constante de que o ser humano não é eterno. Eu já não estarei em Kuala Lumpur quando o presidente Lula vier à Malásia para a Cúpula da ASEAN. Vários acordos bilaterais a que me dediquei, nas áreas por exemplo de saúde, investimentos, semicondutores, só poderão ser finalizados após a minha partida.

Os resultados são frequentemente imateriais, mas nem por isso menos importantes. O cotidiano é árduo, e no entanto pode-se chegar ao final  do dia sem nada de concreto a mostrar. Mas sementes foram plantadas, que o futuro verá florescer.

Já o livro sobre o parque de Burle Marx em Kuala Lumpur, bilíngue em português e inglês, será sempre um resultado tangível. Cumpriu o propósito de tornar o nome do Brasil mais presente no imaginário malásio. Foi distribuído a políticos, jornalistas e formadores de opinião. Em janeiro de 2024, quando comecei a divulgar o volume, eu estava completando quatro anos como embaixador na Malásia. Podia, com confiança, acreditar conhecer bem o país. Quanto mais você trabalha, porém, mais seus horizontes se abrem, mais você aprende, e surge mais trabalho. O livro trouxe-me novas amizades, novas atividades profissionais, gerou novos interesses, mais acesso à mídia, fez-me conhecer mais gente relevante para o meu trabalho. Abriu portas.

Os mineiros têm sorte. Burle Marx projetou, na década de 1940, quando era ainda muito jovem, jardins na Pampulha. Os belorizontinos podem assim usufruir em casa do seu talento, podem passear por sua obra. Cinquenta anos depois, a trajetória do paisagista encerrou-se com o Parque KLCC. De família da Zona da Mata, há anos não vou à Pampulha. Da mesma forma, talvez venham a passar anos até eu poder sonhar em caminhar novamente pelo Parque KLCC.  

Ary Quintella, diplomata de carreira, escreve quinzenalmente no Estado de Minas. Publicou, em novembro, o livro de ensaios Geografia do tempo.

As opiniões expressas nesta coluna são de responsabilidade exclusiva do autor”.

Burle Marx da minha janela

Burle Marx da minha janela

Agradeço ao semanário econômico malásio The Edge a matéria sobre mim na edição corrente de sua revista trimestral Haven.

Nas fotos, uso batik, camisa formal malásia, equivalente a terno e gravata.

Clique no link acima para ler o texto

Digite seu endereço de e-mail para assinar este blog e receber notificações de novas publicações por e-mail.

Gérard Philipe e a Fama

Gérard Philipe e a Fama

Albert Camus sugere, em Le Mythe de Sisyphe, que toda fama é passageira; do ponto de vista da estrela Sirius, mesmo o renome de Goethe será efêmero, ainda que perdure por dez mil anos. Poucas horas antes de sua morte, em novembro de 1959, o ator Gérard Philipe releu o livro de Camus. Não sabemos se viu o comentário sobre a transitoriedade da fama. Não sabemos se ele suspeitava que estava morrendo. Tinha 36 anos.

Seu desaparecimento foi abrupto, causado por uma forma aparentemente rara de câncer no fígado, descoberto durante uma operação banal, duas semanas antes de ele falecer. Jovem, carismático, talentoso, o ator era extremamente popular. Sua celebridade era mundial.

Nos palcos, ele teve como mentor Jean Vilar, lendário diretor do Festival de teatro de Avignon e do Théâtre National Populaire em Paris. Foi particularmente incensado o seu desempenho como Rodrigue em Le Cid, que interpretou pela primeira vez em Avignon, em 1951, dirigido por Vilar.

Explica-se assim o título do livro sobre Gérard Philipe, Le dernier hiver du Cid, publicado em 2019 por seu genro, o jornalista e escritor Jérôme Garcin. Trata-se de uma crônica, dia após dia, das últimas semanas de vida do ator. A leitura do curto volume — menos de duzentas páginas — é fascinante. O texto é um ato de devoção de Jérôme Garcin. O amor pela sua mulher, Anne-Marie, filha do ator e personagem do livro, motivou sem dúvida a redação. Não há aqui revelações constrangedoras. O Gérard Philipe descrito por Garcin — que não o conheceu — é aquele de quem gostamos, cuja imagem valorizamos: intenso, vivendo de forma febril, bom pai de família, marido apaixonado, amigo leal, profissional dedicado à sua arte. O que nos é oferecido é a figura de um ser humano apto a ser idealizado.

wp-1670151791600.

Gérard Philipe e o livro de Jérôme Garcin

Quando o livro começa, é verão e a família está na Provença, na casa de férias em Ramatuelle, perto de Saint-Tropez. A atmosfera é de otimismo e felicidade, e o ator faz planos para o futuro próximo. Dentro de alguns meses, começará a rodar uma versão cinematográfica de Le Comte de Monte-Cristo. Estuda a possibilidade de interpretar Hamlet nos palcos. Uma constante dor no ventre, um cansaço contínuo criam indagações, mas não preocupação excessiva. Ele acaba de voltar do México, onde trabalhou em um filme de Buñuel, La Fièvre Monte à El Pao. A indisposição é atribuída aos hábitos alimentares adotados em Acapulco. Nos primeiros dias de setembro, ele faz uma rápida viagem a Paris, para participar do lançamento de seu penúltimo filme, Les Liaisons dangereuses, dirigido por Roger Vadim, no qual sua parceira é Jeanne Moreau. No começo de outubro, vai a Stratford-upon-Avon para ver uma montagem por Peter Hall de Coriolanus, com Laurence Olivier. Viramos as páginas, sonhando com esses nomes pertencentes à mitologia do século XX, esquecendo-nos de que construir essa existência, exitosa nos planos pessoal e profissional, terá requerido dedicação, esforço, trabalho.

Na volta a Paris, no começo do outono, o ritmo do texto se acelera. O mal é atribuído a uma ameba. Uma operação é marcada para 9 de novembro. A partir daí, seguimos o calendário cotidianamente. É uma leitura angustiante, pois sabemos como, em 25 de novembro, tudo terminará.

Ao se internar em 5 de novembro, Gérard Philipe leva uma pilha de livros com ele. “Essencialmente”, nos diz Jérôme Garcin, “peças de Racine, Molière, Marivaux”. Há também quatro traduções de Hamlet; três por escritores prestigiosos — André Gide, Marcel Schwob, Marcel Pagnol — e a de um renomado tradutor do inglês, Pierre Leyris. O ator quer interpretar o príncipe dinamarquês na primavera seguinte, dirigido por Peter Brook. Em uma caderneta, faz anotações de caráter pessoal: “Quando o ator não está atuando, ele se sente doente, deprimido, inquieto”. Consagrado em Le Cid, deseja atuar em outras peças de Corneille. Pensa em montar tragédias gregas, talvez como diretor. No dia 19 de novembro, após internação de dez dias, Gérard Philippe sai do hospital. Sua mulher decidiu, seguindo conselho do médico que o operou, não dizer a ele que lhe sobram apenas poucos dias ou semanas de vida. Esse médico, embora isto não seja dito em Le dernier hiver du Cid, é um tio-avô do próprio Jérôme Garcin. No carro conduzido por um amigo do casal, no trajeto da clínica até o apartamento na rue de Tournon, perto dos jardins do Luxembourg, Anne Philipe nota como a aliança ficou larga no dedo do marido. Em quatro dias, estará viúva.

Em casa, ao observador desatento tudo parece normal. O ator recupera-se da sua operação, vê os filhos, recebe na sala amigos, a mãe, faz planos de férias. Em seu último dia de vida, Gérard Philipe parece melhorar. O médico, ao visitá-lo, surpreende-se com sua vitalidade. Recebe um amigo e anota peças de Eurípides, além de reler Le Mythe de Sisyphe — para nós, que temos o dom do conhecimento retrospectivo, é estranho saber que Camus também morreria de forma repentina, aos 46 anos, seis semanas depois do ator. Em Le Mythe de Sisyphe, que li há alguns anos, Camus discorre bastante sobre o trabalho dos atores. Com senso teatral, Jérôme Garcin comenta que o sogro, ao reler o livro em suas últimas horas de vida, nota o seguinte trecho: “Para o ator, uma morte prematura é irreparável. Nada pode compensar a soma de rostos e de séculos que, sem isso, ele teria percorrido”. Ao reler essa frase de Camus no livro de Garcin, percebi ser ela crucial para a minha visão sobre as artes cênicas em geral. Nunca saberemos como teria sido o Hamlet de Gérard Philipe. Para quem gosta de teatro, isso é uma grande perda. Penso que, de alguma maneira, a história do personagem de Hamlet deixou de ganhar mais uma dimensão, porque um ator como Gérard Philipe não lhe deu vida. Se ele tivesse sobrevivido por mais trinta anos que fosse, e morrido digamos em 1989, aos 67 anos, novas gerações, a minha inclusive, poderiam tê-lo visto no palco e talvez suas vidas sofressem modificações por isso. Naturalmente, já não seria o mesmo Gérard Philipe de 1959. Interpretações suplementares, outras experiências de vida teriam feito evoluir sua personalidade e sua técnica dramática. Devemos porém supor que, em 1989, em 1995, seu talento teria sido ainda maior.

Gérard Philipe interpretara, aos 22 anos, em 1945, o papel-título na primeira produção de uma famosa peça de Camus, Caligula. Quando lemos que ele, em seu último dia de vida, estava com um livro de Camus nas mãos, um ciclo parece se fechar. Quase que obedecendo à necessidade futura de efeito literário de seu genro, o ator morre naquela madrugada.

Jérôme Garcin gosta de escrever sobre vidas breves. Anteriormente, eu lera um único livro seu, Olivier, em que fala de seu irmão gêmeo morto por atropelamento aos cinco anos. Foi uma leitura particularmente perturbadora para mim, ao me tocar de maneira direta. Outro volume seu é sobre o pai, morto aos 45 anos em um acidente de equitação.

Fiz a leitura de Le dernier hiver du Cid em um domingo no final de fevereiro de 2020, recém-chegado a Kuala Lumpur. Não conseguia largar o volume. Ao me aproximar do dia da morte do ator, caiu sobre mim uma tristeza. Gostaria que a vida não fosse assim, que as pessoas não morressem jovens, sem terminar aquilo que estão destinadas a fazer. Diante da iminência da morte do ator, precisei parar a leitura por algumas horas. O talento de Garcin, e seu envolvimento emocional na história narrada, tornavam a proximidade do desfecho algo quase insuportável. Saí de casa a pé. Passeei pelo parque desenhado por Roberto Burle Marx aqui em Kuala Lumpur. A pandemia era ainda uma ameaça vaga na Malásia, o isolamento social não havia sido decretado, a vida das pessoas, dos animais e das plantas ao meu redor seguia seu rumo usual. Seguia porém em direção ao Nada, já que toda existência é absurda e, afinal, do suor, das lágrimas e também das alegrias, um dia nada fica. Como outras vezes antes, perguntei-me o quanto do parque respeita, hoje, o desenho original de Burle Marx. Quanto tempo dura a obra de um artista?

Voltei para casa, impus-me a tensão de terminar o livro. Li sobre a morte, talvez sem sofrimento pois ocorrida durante o sono, li sobre a comoção nacional que ela provocou, li sobre o enterro em Ramatuelle, com o cadáver vestindo os trajes que o ator usava no palco para interpretar Rodrigue, incorporando assim o Cid até depois da morte.

Em outubro de 2019, Garcin participou, para falar de seu livro, de uma emissão do programa La grande librairie, intitulada “Assuntos de família: escrever sobre eles é uma traição?”. Sobre o programa e o entusiasmo de François Busnel ao conduzi-lo, escrevi há um ano em Um lugar encantado. Aos escritores convidados naquela noite, Busnel colocou a questão sobre se, ao escrevermos sobre as pessoas próximas a nós, estamos quebrando a sua confiança. No caso de Jérôme Garcin, o problema não se colocava já que Le dernier hiver du Cid não degrada a imagem do sogro do autor. Garcin respondeu que, para ele, escrever é um ato de amor, que seu objetivo nunca poderia ser o de ferir seus próximos. Ao terminar de escrever o texto, decidira mostrar o manuscrito à sua mulher, para que ela julgasse se ele podia publicá-lo.

No livro como na entrevista, Garcin aborda a questão da fama de Gérard Philipe. Na televisão, declarou sem rodeios já não ser o ator tão conhecido: “la nouvelle génération ne sait plus qui c’est“. Possivelmente, referia-se ao talento do sogro, não tanto ao seu rosto ou ao seu nome. Jean Vilar não permitia que as montagens do Théâtre National Populaire fossem filmadas. Não podemos, por isso, ver hoje como atuava Gérard Philipe em Le Cid, em Lorenzaccio, em O Príncipe de Homburgo, em Ruy Blas, em Richard II. Meu apreço grande por essa peça de Shakespeare me faz lamentar não poder ver uma gravação do ator no papel do rei decaído. Garcin admitiu a François Busnel sua contrariedade ao ir, no verão de 2019, ao Festival de Avignon e não ver uma referência sequer ao fato de que cumpriam-se sessenta anos da morte do sogro, que contribuiu para a celebridade do Festival, do qual foi, por muitos anos, a figura mais emblemática.

É possível que ninguém tenha pensado em Gérard Philipe em Avignon em 2019, mas eu lá pensei nele em 2014. Naquele ano, no Festival, com minha mulher e minha filha, assisti a uma nova produção de O Príncipe de Homburgo, de Heinrich von Kleist. Nessa peça, sob a direção de Jean Vilar, Gérard Philipe cobriu-se de louros interpretando o personagem principal, no Festival de Avignon de 1951, de 1952 e de 1956, ali mesmo onde minha família e eu víamos a nova produção, no pátio interno do Palácio dos Papas. Em 2014, achamos a peça tediosa, apesar dos elogios da crítica. Saí pensando se seria por causa da tradução ou da produção ou simplesmente por causa do texto em si, de sua temática, de sua argumentação. Como puderam Jean Vilar e Gérard Philipe brilhar com aquele material? Produções teatrais têm sua lógica própria; um detalhe pequeno, difícil de identificar, pode criar, aos olhos de um espectador específico, uma impressão favorável ou negativa. A sensibilidade coletiva de uma época tampouco é permanente, e diferentes gerações podem ter diferentes leituras de um mesmo fenômeno estético.

wp-1670152377421.

Esperando começar a apresentação de O Príncipe de Homburgo

Garcin não omite o mau conceito em que os diretores da Nouvelle vague tinham Gérard Philipe. François Truffaut parece ter tido especial antipatia pela sua persona nas telas. Le dernier hiver du Cid nos diz que Truffaut  escrevia sobre o ator coisas como: “terror dos bons diretores de cinema”, “comprometido com personagens melancólicos e tuberculosos de olhar marejado”, “ídolo do público feminino que tem entre 14 e 18 anos”. Na entrevista a François Busnel, Jérôme Garcin especula se essa atitude antagônica não era em parte causada por divergências ideológicas. O fato é que muitos dos filmes em que atuou Gérard Philipe estão esquecidos. Seu último, La Fièvre Monte à El Pao, é uma das obras mais obscuras de Buñuel. Nem a beleza imponente da atriz mexicana María Félix consegue salvá-la.

Criança, adolescente, vi alguns de seus filmes na televisão, ou em retrospectivas no  cinema. Sua aura perdurava ainda. É impossível, para mim, pensar em Julien Sorel e não visualizar o personagem tal como encarnado pelo ator na versão cinematográfica de Le Rouge et le Noir dirigida por Claude Autant-Lara em 1954. Para várias gerações, é inesquecível sua atuação em Fanfan la Tulipe, filme de 1952 dirigido por Christian-Jaque, onde representa um herói do século XVIII livre, sorridente, enérgico. Suponho que o personagem de Fanfan la Tulipe tenha contribuído para a fama de personalidade luminosa do ator.

Na Internet, encontrei com facilidade uma cópia integral, embora de má qualidade, de um filme de 1954 dirigido por René Clément e estrelado por Gérard Philipe, Monsieur Ripois, a que eu nunca assistira antes. Trata-se de uma história contemporânea, passada em Londres. É um excelente filme, e a interpretação do ator é bem diferente dos “personagens melancólicos de olhar marejado” denunciados por Truffaut. Seu papel é o de um casanova moderno. Na melhor cena, Ripois e a mulher por quem ele naquele momento está interessado são surpreendidos na rua pela chuva. Como quem não quer nada, ele menciona que mora ali perto. Ela finge não entender e sugere de eles irem à National Gallery. Nesse momento, encarnando Ripois e seu vazio interior, Gérard Philipe, que está de costas para o espectador, vira o rosto para trás, olha em direção a um ponto à nossa direita e retruca, com expressão amuada, olhar angustiado, voz contrariada: “La peinture me déprime“. É um grande momento cinematográfico.

Jérôme Garcin termina o livro deixando-nos na companhia de um antigo ator, e professor de arte dramática, que dera aulas a Gérard Philipe. Em seu apartamento, enlutado, Georges Le Roy pensa naquele que, com sua morte, deixara-o sentindo-se “órfão de um filho”. Um mês antes, os dois haviam se visto, e o ator mais jovem, feliz, dissera que proximamente encarnaria Hamlet. Sentado em sua poltrona, melancólico, o velho mestre lembra daquele momento. Afinal, Gérard Philipe nunca pôde dizer nos palcos “Ser ou não ser, eis a questão”.

Meu pensamento, ao terminar o livro, foi porém de consolo. Afinal, o ator tão celebrado “foi”; viveu, atuou, trouxe alegrias, inquietações, indagações, certezas ao seu público. Foi o que pôde ser, no tempo de vida, tão curto, a que teve direito. O importante é o que ele trouxe a quem o conheceu ou a quem pôde vê-lo no palco e o que pode trazer ainda a quem o vê nas telas. Questões sobre a durabilidade da obra são irrelevantes. O livro trata da rápida decadência física e da morte de Gérard Philipe para, no fundo, nos falar da beleza da vida.

Continuar lendo “Gérard Philipe e a Fama”