Quatro telefonemas

Quatro telefonemas

Colette amava os gatos. Teve vários ao longo da vida. Quando era ainda casada com seu primeiro marido, Henry Gauthier-Villars, cujos romances ela escrevia para que ele os assinasse como se fossem seus, com o pseudônimo de Willy, existia um gato chamado Kiki. Mais precisamente Kiki-la-Doucette. Era um angorá. Morreu em 1903, nos diz Judith Thurman em sua biografia da escritora, Secrets of the Flesh, sem especificar a razão da morte e a idade do gato.

Kiki-la-Doucette, gato bem real, inspirou um personagem literário. No livro de Colette Dialogues de bêtes, publicado em 1904, portanto após a morte de Kiki, o gato aparece em vários diálogos conversando com Toby-Chien, o buldogue francês que também existiu. De angorá, Kiki-la-Doucette vira um chartreux, embora sua descrição física — “um corpo listrado” — não se pareça à dos gatos dessa raça. Em 1930, Colette ainda estava revisitando essa obra. Em suas memórias sobre o casamento com Willy publicadas em 1936, Mes apprentissages, a escritora assim descreve o angorá: “Longo, opulento, sutil”.

Nos diálogos com Toby, Kiki-la-Doucette mostra-se intrinsicamente felino, ou como imaginamos que um gato deva ser. É dado a dizer ao buldogue frases como: “Só vejo extravagâncias ao meu redor”; “as sutilezas psicológicas sempre ficarão inacessíveis a você”; “sinto vergonha por você, você ama todo mundo, aceita todas as rejeições de forma servil”; “anda, imita minha divina serenidade”.

Os dois, Kiki e Toby, amam seres diferentes. O gato prefere “Ele”, alter ego de Willy, enquanto o buldogue entrega sua devoção a “Ela”, a própria Colette. Um dos diálogos acontece durante uma viagem de trem, de que participam Ela, Ele, Kiki e Toby. O cachorro está solto, e o gato está em uma cesta fechada. Kiki exclama: “As torturas que sofro são morais. Estou sendo submetido ao mesmo tempo ao enclausuramento, à humilhação, à obscuridade, ao esquecimento e aos sacolejos”. Seu desconforto logo termina. “Ele” retira o gato da cesta, dizendo: “Venha, meu belo Kiki, meu enclausurado, venha, você agora terá rosbife frio e peito de frango”.

Kiki explica a Toby como consegue evitar, ao contrário do seu interlocutor, o óleo de rícino:

Uma vez Ela quis — eu era ainda pequeno — me purgar com o óleo. Eu a arranhei e mordi tanto, que nunca mais Ela tentou. Por um minuto, Ela deve ter achado que estava com um demônio sobre os joelhos. Eu me contorci em uma espiral, soprei fogo, multipliquei por cem as minhas garras, por mil os meus dentes, e fugi, como em um passe de mágica.

Kiki também transmite a Toby sua tática para evitar aquilo que o buldogue classifica como “o suplício do banho”. Explica que, ao ser submetido à experiência, deitara-se de costas e adotara o olhar “clemente e aterrorizado do cordeiro no altar”.

Apenas este ano tomei conhecimento da existência dos dois Kiki-la-Doucette, o real e o fictício. Quando isso aconteceu, minha família havia perdido uma outra Kiki. Muitas vezes escrevi sobre nossa gata persa dourada, que emprestou mesmo seu nome para o título de uma crônica de abril de 2020, Kiki em Kuala Lumpur.

A viagem para trazê-la de Brasília à Malásia, em janeiro daquele ano, durara, de porta a porta, 36 horas, atravessando dois oceanos, a bordo de três aviões. Um percurso, sem dúvida, mais penoso do que o trajeto de trem dos personagens de Colette. Trancada em uma jaula nos três diferentes voos conosco, emulando Kiki-la-Doucette a nossa Kiki miou praticamente as 36 horas. No último trecho, Istambul-Kuala Lumpur, puxei-a um momento para fora da pequena jaula, segurei-a nos braços, e passeamos juntos pela cabine. Os membros da tripulação, em vez de me censurar, começaram a me mostrar fotos dos seus próprios gatos.

Não foi à toa que escrevi sobre Kiki em abril de 2020, quando vigorava na Malásia o primeiro confinamento e o pavor do vírus se iniciava. Era proibido sair de casa, a não ser para comprar comida e remédio. Enjaulado em um apartamento vazio em Kuala Lumpur, sem a biblioteca e sem a mobília, que estavam em um container no cais de Port Klang, sem conhecer quase ninguém na Malásia, onde eu chegara cinco semanas antes do início do confinamento, forçosamente separado da minha família amparei-me na gata persa dourada. Tínhamos apenas, como companhia, um ao outro. Cuidar dela tornou suportável o isolamento provocado pela pandemia. Para mim, a única exceção, além dos livros que eu previdentemente fora comprando depois da chegada, era um amigo brasileiro que, uma vez por semana, me dava carona até o supermercado. Para Kiki, não havia o alívio da quebra da rotina. Era eu apenas em seu universo, e mais ninguém.

Houve, depois disso, outros confinamentos. Aconteceu assim o que sempre acontece quando dois seres que se amam são obrigados a viver encerrados, na presença exclusiva e constante um do outro. O amor cresceu ainda mais.

Em novembro de 2021, as fronteiras entre Malásia e Singapura foram parcialmente reabertas, sob diversas condições. No início de dezembro, viajei a Singapura. Como contei na carta da Malásia de janeiro de 2022, Tchekhov e os tigres, rever minha mulher, conhecer sua casa, pareceu-me um paraíso, após as agruras dos confinamentos. Durante uma semana, tudo transcorreu de maneira perfeita. Até que veio o primeiro telefonema.

Em Kuala Lumpur, Kiki parara de comer. Videoconferências entre nós não a motivaram. Liguei para o veterinário. Ao visitá-la, ele recomendou uma alimentação especial e vitamina B. Avisou que, se ela não voltasse a comer em poucos dias, teria de ser internada.

Dois dias depois, um domingo de tarde, regressei à Malásia. Ao entrar no apartamento, notei um silêncio pouco habitual. Não houve miados. Não houve corrida até a porta para me receber. Chamei. Procurei. Sem resultado. Supus que ela estaria dormindo em algum novo esconderijo.

Desfiz a mala. Guardei as roupas. Liguei para minha mulher. Tomei um chá. Chamei. Procurei. O silêncio continuava. A solidão também. Àquela altura, fazia já duas horas desde minha chegada a casa. O sol se punha. Tentei novamente.

Foi embaixo de um móvel que a encontrei.

Nunca ela havia se escondido ali. Estava acocorada, ensimesmada. O olhar era opaco, indiferente. Ofereci comida, que ela rejeitou. Peguei-a no colo. Trouxe-a para cima da cama. Ela imediatamente saiu do quarto.

Na segunda-feira, levei-a uma clínica. A veterinária declarou: “Ela sofreu um trauma emocional com sua viagem. Por isso parou de comer e daí desenvolveu uma doença típica de gato idoso, lipidose hepática”. Perguntei sobre seu prognóstico. A veterinária hesitou apenas um pouco antes de responder: “Bem, ela tem 17 anos. Já está no bônus”. À noite, recebi da clínica o segundo telefonema de más notícias: “O resultado do exame de sangue é muito ruim”.

Começamos então, Kiki e eu, uma nova existência. Ela não comia de forma espontânea. Trancada em uma jaula, recebia soro por via intravenosa. A comida era forçada pela garganta. Eu ia à clínica na hora do almoço. Abria a porta da jaula. Conversava com ela. Às vezes, ela ronronava, enquanto eu fazia carinho. Muitas vezes, me ignorava. Sugeriram-me que eu a fizesse escutar música. Selecionei árias de Mozart, sobretudo de As bodas de Figaro e de Don Giovanni. A escolha não era arbitrária. Durante os confinamentos, como narrei em Cleópatra no Escritório, à noite eu costumava assistir às gravações oferecidas gratuitamente pela Metropolitan Opera. Chamara minha atenção o fato de que Kiki levantava a cabeça com frequência, atenta, quando a ópera era de Mozart.

As árias de Cherubino e de Don Ottavio, apesar de encantadoras, não pareciam causar efeito algum. A gata persa dourada continuava sem comer.

Eu insistia em falar com a veterinária a cada visita, o que significava esperar que terminasse alguma consulta. Isso determinava quanto tempo eu teria com Kiki. Às vezes, conseguia ficar 45 minutos parado diante da porta aberta da jaula, dizendo-lhe palavras de carinho; às vezes, só podia ficar dez minutos antes de voltar para o escritório.

Chegar em casa de noite significava enfrentar, ao sair do elevador, a perspectiva de entrar no apartamento vazio, sentir sua ausência e enfrentar sozinho o silêncio e a escuridão.

O Natal se aproximava. Viajei a Singapura para passá-lo em família.

Todo dia, ligava para a clínica. A resposta era sempre a mesma:
“Ela continua sem comer”. Uma vez, perguntei à veterinária se ela me avisaria se fosse necessário administrar o que eu prefiro chamar de “a injeção da felicidade eterna”. A veterinária declarou-se, por razões éticas, contra a eutanásia. Imaginei a gata persa dourada talvez definhando por semanas, meses. Conversei com a outra sócia da clínica, que se mostrou mais receptiva.

Na tarde do dia seguinte, 31 de dezembro, estávamos todos assistindo no cinema, em Singapura, a um filme muito ruim, House of Gucci, quando entrou no meu celular o terceiro telefonema portador de más notícias. Saí da sala e fui para o corredor. Não havia ninguém por perto. Atendi. O ultrassom mais preciso que eu insistira fosse feito em outra clínica mostrara que vários órgãos estavam afetados. A veterinária, categórica, afirmou que Kiki estava sofrendo. Não havia esperança.

Enquanto eu analisava o dever exigido de mim, a ligação continuava ativa. A veterinária esperava uma decisão. Era a terceira vez que eu passava por esse momento. Em 2012, já tivéramos de sacrificar nossa cachorra Missy, e, em 2018, outro gato, o majestático James. Dispomos da faculdade de poupar sofrimento aos animais que amamos. Mas se esperamos demais, depois nos sentimos culpados por ter prolongado a sua dor. Se não esperamos, fica a dúvida se não nos precipitamos.

Dei a autorização. Opinei porém que alguns dias, até a minha volta a Kuala Lumpur, não fariam diferença alguma para a Kiki, mas toda para mim, pois permitiriam uma despedida. A veterinária soterrou minha autocomiseração. Repetiu que o animal sofria; seria cruel esperar um dia a mais sequer. Quanto à despedida, ofereceu-me uma videoconferência com Kiki. Colocou o celular frente a ela, que estava solta em cima da mesa de metal do consultório.

Falei longamente de amor e gratidão. Ela miava, se agitava e ronronava sobre a mesa de metal. Desliguei.

Minha mulher apareceu. Conversamos sobre como dar a notícia à nossa filha, que crescera com Kiki, escolhera o seu nome e, dentro da sala de projeção, sabia que algo estava acontecendo. Nesse momento, entrou a quarta chamada. Atendi, aceitando ter de ouvir que tudo terminara.

Não era isso o que nos esperava.

A veterinária ligava para avisar que, após três semanas sem se alimentar espontaneamente, Kiki, na hora em que iria receber a injeção, se jogara sobre um prato de comida destinado a outro gato. Comera.

Dos quatro telefonemas, esse foi o pior. Nosso nível de responsabilidade moral acabara de aumentar consideravelmente. Indaguei: “Ela pode ser salva, então?”. A veterinária, cautelosa, explicou: “Não creio. O que o ultrassom revelou não pode ser ignorado. Os órgãos estão comprometidos. E é também provável que a refeição de agora seja um caso isolado. Mesmo que ela volte a comer sozinha, seriam poucas semanas de vida a mais, talvez alguns meses, em condições difíceis e desconfortáveis para ela”. Assenti.

Pensei no jardim em Brasília e no jardim em Bruxelas, nos quais Kiki crescera e correra, livre, caçara pássaros e lagartixas e fora feliz. Recebi então a mensagem por WhatsApp: “Foi indolor, e ela agora descansa no paraíso dos gatos”.

Kiki, bebê espevitado. Kiki, bela, inteligente e afetuosa. Kiki, ainda viva enquanto eu viver.

Crônica originalmente publicada, em 8 de julho de 2022, no jornal de literatura Rascunho, ilustrada com o desenho de Carolina Vigna, a quem agradeço, assim como ao editor do Rascunho, Rogério Pereira, a autorização para reproduzi-lo nesta página.

Dedico esta crônica a dois amigos que conheceram a gata persa dourada,

Cora Rónai, solidária na perda,

Hudson Caldeira Brant, graças a quem alimentei Kiki na pandemia

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Keira Knightley e os escândalos de Colette

Keira Knightley e os escândalos de Colette

Uma vez, em Londres, eu vi a Keira Knightley. Minha mulher, minha filha e eu fomos ao teatro, e lá estava a atriz, no foyer, esperando para assistir à peça. Rodeavam-na três ou quatro amigos. Para uma estrela do cinema hollywoodiano, ela pareceu simples, sem afetação  e despretensiosa.

A peça era apresentada em um de meus teatros prediletos — pela programação e pela qualidade das produções — o Donmar Warehouse. Com capacidade para 250 espectadores apenas, sentados em três lados ao redor do palco, esse teatro de arena permite o máximo de proximidade entre plateia e atores e entre os membros do público. Naquela noite, cerca de dez anos atrás, três peças curtas eram apresentadas, todas lidando com situações absurdas e reunidas em uma produção intitulada, não por acaso, Absurdia. Duas eram de um mesmo autor, N. F. Simpson. A terceira mini-peça, The Crimson Hotel, era de Michael Frayn, escritor de minha predileção, por causa de seu senso de humor consistente.

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Em The Crimson Hotel, um teatrólogo e a atriz de sua nova peça, ambos casados, fogem a um lugar deserto, para poderem consumar fisicamente a paixão que sentem um pelo outro. Enfrentam todo tipo de vicissitudes, na tentativa de cometer adultério. A farsa de Michael Frayn é curta, intensa e divertida. Um dos personagens — jamais visto em cena e citado apenas esta única vez — é “the Brazilian with bad breath“.

Keira Knightley pareceu gostar da produção. Riu bastante.

Adultério não era um mistério para a escritora francesa Colette (1873-1954), interpretada brilhantemente por Keira Knightley no filme homônimo, recém-lançado, dirigido por Wash Westmoreland. Fui ao cinema sem nada saber do filme, atraído pelo meu interesse pela vida — variada e escandalosa — de Colette e pelo talento da atriz inglesa. Ao final da projeção, saí cativado pela obra do diretor, excelente reconstituição de época. Colette aborda um período específico da vida da escritora, a relação com Henry Gauthier-Villars, seu primeiro marido — houve três — que era treze anos mais velho do que ela e publicava livros com o pseudônimo de Willy. Eles se casaram em 1893 e se divorciaram em 1910, mas estavam já separados desde 1906.

Existe um registro escrito do que foi esse casamento, pois Colette publicou, em 1936, um livro a respeito, intitulado Mes apprentissages. O texto é altamente condenatório de Willy, que morrera em 1931 e não podia assim se defender, e omite detalhes que poderiam transmitir ao leitor visão menos inocente do comportamento da escritora. Mes apprentissages silencia, por exemplo, sobre as relações mantidas por Colette nesse período com outras mulheres, algumas delas incentivadas pelo próprio marido. Em inglês, a biografia mais importante da escritora é a de Judith Thurman, publicada em 1999.

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O filme de Wash Westmoreland — o diretor é também co-roteirista —reconstitui com maestria não somente o ambiente rural em que vivia Colette até se casar, como também o meio literário, sofisticado, em que se desenvolvia a existência de Willy em Paris. Vemos Colette, na figura de Keira Knightley, bela, jovem e com ar perfeitamente ingênuo, transplantada de sua Borgonha natal para os vícios da capital. Descobrimos, pelos olhos da protagonista, que o marido cosmopolita vivia em condições precárias, apesar da celebridade, de suas origens burguesas e do círculo social e literário em que se movia. Vemos o surgimento das desilusões amorosas, quando a provinciana recém-casada descobre que o marido é um adúltero contumaz. Sobretudo, somos confrontados com o fato de que Willy já não escreve, mas utiliza os talentos de outros escritores, contratados para redigir os textos — romances, crítica musical, artigos de jornal — que ele assina. No filme, ele declara: “Willy is a brand“. Colette começa ela também a escrever livros para o marido. Graças ao talento dela, Willy obtém seu maior sucesso financeiro e de público, a série de romances protagonizados por uma personagem feminina, Claudine. Lendo Mes apprentissages — e a autora passa, efetivamente, por vários aprendizados nesse período fica difícil decidir se o que pesou mais na decepção sentida por Colette em relação a Willy foi a descoberta de que ele a traía, ou o fato de que ele não escrevia de verdade as obras publicadas com o seu nome, ou a facilidade com que ele se apropriava dos louros proporcionados pelo talento da mulher. Um dia, sem consultá-la, ele cede a um editor, em troca de significativa soma de dinheiro, os direitos autorais dos livros protagonizados por Claudine.

A crítica elogiou a atuação, no filme, de Dominic West como Willy. Pessoalmente, antipatizei com o personagem, e talvez isso demonstre o talento do ator. Fiquei, de forma decidida, do lado de Keira Knightley; quero dizer, de Colette. Se eu tivesse de apontar um defeito no filme, seria o fato de que aparece pouco na tela a mãe da escritora, Sido, de forte personalidade, e que Colette professava adorar. Interpretada por uma grande atriz, Fiona Shaw, a personagem nos seduz e sentimos falta de uma participação mais longa sua no enredo.

Nas cenas que mostram o meio dos escritores parisienses, por duas ou três vezes aparece brevemente um personagem denominado Madame Arman. Trata-se de Léontine Arman de Caillavet, amante de Anatole France, que mantinha um importante salão literário. Seu filho Gaston e sua nora Jeanne chegam a ser mencionados na história. Senti, porém, a ausência no filme do jovem Marcel Proust, amigo nessa época do casal Colette e Willy e da família Arman de Caillavet — tendo Jeanne sido um modelo para o personagem proustiano de Gilberte Swann.

Em 2013, em Paris, nos jardins do Palais-Royal, vi ao ar livre uma exposição de fotos sobre Jean Cocteau, que morou em um apartamento debruçado sobre os jardins.

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Havia várias fotos suas com Colette, amiga de longa data, que também morou, no fim da vida, no Palais-Royal.

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Como Colette morreu aos 81 anos, temos dela a visão de uma senhora sábia, de bengala ou em cadeira de rodas, com o cabelo curto e branco, enrugada, grande dama das letras francesas de sua época. Cocteau escreveu, em 1947, quando a escritora tinha 74 anos: “Da minha janela, converso com Colette, que atravessa o jardim com a sua bengala”. A escritora foi enterrada com honras nacionais e dá nome, desde 1966, àquela que considero a praça principal de Paris, ladeada pela Comédie-Française e pelo Palais-Royal e seus jardins, por um de meus restaurantes preferidos, a Brasserie du Louvre, e pela livraria Delamain e que fica a um quarteirão do Louvre, como mostra este curto vídeo que fiz em julho:

Colette ganhou um ar sóbrio, com o tempo. Vê-la sob a aparência de Keira Knightley, jovem, bela, sensual, é um choque. Wash Westmoreland nos traz a Colette da faixa dos vinte aos trinta e poucos anos, primeiro inocente e comportada, e depois descobrindo a vida e a si própria, errando, acertando, sofrendo e tentando ser feliz.

São abordadas na tela duas das relações homoafetivas da escritora. A primeira, com uma milionária americana casada com um francês, e cujas atenções Colette descobre um dia estar dividindo com o próprio Willy. A segunda relação — com uma mulher de aparência masculina conhecida como Missy — merece comentário mais demorado. Missy, interpretada no filme pela atriz irlandesa Denise Gough, foi presença marcante para Colette. Estimulou-a a fazer transformações radicais em sua vida, incentivando-a, por exemplo, a virar atriz de music-hall. Nessa fase, a escritora aparecia frequentemente seminua no palco, gerando grande comoção na França da Belle Époque. O nome verdadeiro de Missy era Mathilde de Morny, marquesa de Belbeuf.

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Socialmente, Missy não era pouca coisa. Era mesmo muita coisa. Seu pai, o primeiro duque de Morny, morreu quando ela era criança. Morny era meio-irmão do imperador Napoleão III e filho ilegítimo de uma das figuras mais atraentes da saga napoleônica, Hortense de Beauharnais, enteada de Napoleão I e casada por ele com seu irmão Louis, que Napoleão transformou em rei da Holanda. Morny nascera da relação adulterina da rainha Hortense com Charles de Flahaut, ele próprio filho ilegítimo de Talleyrand. O pai de Missy, portanto, era um duque, filho da rainha Hortense, irmão do imperador Napoleão III, neto da imperatriz Josefina e neto do mais célebre dos diplomatas, Talleyrand. A mãe de Missy era uma princesa russa, Sofia Trubetskoy, que, viúva do duque de Morny, casou-se com um duque espanhol. Este, segundo Judith Thurman, teria abusado sexualmente de Missy na infância.

Uma boa e curta biografia em francês de Colette, acompanhada, como sempre acontece nessa coleção, de farto material iconográfico, é o  Album da Pléiade a ela dedicado.

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Folheando o volume, fico impressionado em constatar como o filme de Wash Westmoreland é fiel à realidade. Há cenas que parecem extraídas de fotos da época. O Album da Pléiade nos mostra Colette aos 18, portanto dois anos antes de seu casamento com  Willy.

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Com pouco tempo de casada, a insatisfação da futura escritora com o casamento, ou com Willy, já aparece nesta foto dos dois:

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O filme captura bem o sucesso fenomenal da série dos romances Claudine e o aparecimento, na vida do casal, da atriz Polaire, que interpretou nos palcos a versão teatral de um dos livros. Willy fez Colette cortar os cabelos, para ficar parecida com Polaire, e associou a autora à atriz. Levava-as para jantar ou ao teatro, juntas, vestindo roupas iguais, chamando-as de suas “gêmeas”. Embora a relação do casal com Polaire pareça ter sido apenas profissional, está claro que Willy, para ajudar o sucesso da peça, desejava passar a ideia de que eles formavam um ménage à trois. Segundo Colette, em Mes apprentissages, isso chocava Polaire. A habilidade de Willy para o marketing é ilustrada por esta caricatura, publicada na imprensa da época:

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Neste cartaz, vemos como apenas o nome de Willy aparecia como autor dos romances e como o rosto de Polaire passou a representar a personagem Claudine:

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Em 1907, o maior escândalo protagonizado por Colette até então deu-se quando Missy montou para ela no Moulin Rouge uma pantomima intitulada Rêve d’Égypte, em que as duas apareciam juntas no palco. Colette, quase nua, fazia o papel de uma múmia pela qual se apaixonava um arqueólogo, representado por Missy vestida de homem — portanto, em seus trajes habituais:

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O público, claramente, fora à estreia no Moulin Rouge na expectativa de saborear um escândalo, pois o cartaz publicitário prenunciava o que aconteceria no palco:

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“Yssim” era um claro anagrama de Missy, e o brasão da marquesa aparecia no cartaz. Uma cena de beijo entre múmia e arqueólogo causou tumulto na plateia, que já vaiara desde o início da representação a presença da marquesa no palco. Em parte, o escândalo foi facilitado pela atitude da família de Missy e dos círculos bonapartistas, chocados com a exibição pública e desejosos de impedir a continuação do espetáculo. Nossa geração, acostumada à divulgação constante dos amores de artistas famosos e a declarações auto-reveladoras na imprensa, não se impressionaria com a pantomima. Em 1907, porém, não era comum ver a neta de uma rainha e bisneta de uma imperatriz ostentando no palco sua relação homoafetiva com a mulher de um célebre escritor. Willy, co-autor da pantomima, separado de Colette mas ainda formalmente casado com ela, assistiu à estreia, acompanhado de sua própria amante. Sua presença complacente chocou a plateia e, contribuiu para criar a comoção.

O jornal Le Figaro, no dia seguinte, publicaria artigo violento condenando a apresentação: “A sala do Moulin Rouge estava arquicheia, e estava além disso ultra-elegante”; “Durante os quinze minutos que durou a pantomima, o tumulto não cessou nem um minuto sequer, e as intérpretes, enfrentando a tempestade, seguiram atuando com uma teimosia digna de uma causa melhor”; “Uma exibição deplorável que, esperamos, não se repetirá”.

No filme, a cena no Moulin Rouge é tratada com grande veracidade. Vemos Keira Knightley no palco com o ar de determinação, sensualidade e vontade de chocar que Colette terá certamente demonstrado naquela noite. Esse é talvez o ponto mais alto da carreira de Keira Knightley até o momento. A cena mostra não só o caminho ousado percorrido por Colette, ex-provinciana ingênua, mas também a evolução da atriz, dona agora de um talento claro, que ela ostenta com segurança.

E assim, encerrando-se o casamento de Colette e de Willy, o filme vai terminando. Seu propósito, mostrar o percurso da escritora no início da vida adulta, por meio da relação com o primeiro marido, está concluído.

Uma indagação colocada pelo filme, e pela existência levada pela própria escritora, diz respeito ao papel reservado a uma mulher talentosa na Belle Époque. Aparentemente, a única oportunidade à disposição de Colette para escapar de um casamento infeliz era a quebra de tabus. Fiquei me perguntando se haverá algum dia um filme mostrando a etapa seguinte da trajetória de Colette. De 1912 a 1924, ela foi casada com o barão, jornalista e político Henry de Jouvenel, com quem teve uma filha. Consagrou-se, nesse período, publicando livros, como Chéri, que demonstram poder de análise psicológica e capacidade de descrever a vida como uma experiência sensorial. Valeria a pena ver na tela Colette baronesa, mulher de senador e escritora famosa e respeitada? Esse segundo filme, porém, teria também de mostrar sua relação afetiva e sexual com o enteado, Bertrand de Jouvenel, iniciada quando ele tinha 16 anos e ela 46. Wash Westmoreland, provavelmente, termina seu excelente filme no momento certo.

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