Elle – Paul Verhoeven

A violência contra a mulher é onipresente nas telas de cinema e de televisão. Não apenas a violência física, em graus variados, mas também a violência psicológica e a subordinação ao gênero masculino. Sugiro ao leitor fazer um teste: pegue o controle da televisão, vá mudando de canal arbitrariamente e analise as cenas que forem passando. O resultado é impressionante. Muda o canal, mas a tônica é quase sempre a mesma: representantes do gênero feminino sofrendo, chorando, suplicando, apanhando, sentadas olhando com admiração para um homem em pé, deitadas languidamente enquanto um homem se agita, anda pelo quarto, dá ordens. É preciso um olhar consciente para registrar essas cenas, pois elas já nos parecem naturais. Temos ainda a capacidade de notar cenas abertamente violentas, mas outras mais sutis nos escapam, se não formos atentos.

Escrevo estas linhas enquanto leio matérias de hoje sobre a revelação por Bernardo Bertolucci, feita em 2013 mas que só agora está causando choque, de que a cena de estupro anal em O Último Tango em Paris não constava do roteiro e foi decidida por ele e Marlon Brando sem que Maria Schneider soubesse de antemão. Não houve ensaio, a atriz foi simplesmente surpreendida na hora da gravação. O principal crítico de cinema de The Guardian, Peter Bradshaw, comenta o assunto em seu blog, em artigo publicado cinco horas atrás e cujo título já diz tudo: “Last Tango scandal shows toxic extent of male power in the film industry“. Outras fontes lembram que, em 2007, Maria Schneider, que morreria em 2011, havia denunciado o fato, mas que sua voz não fora ouvida. Na ocasião, Maria Schneider indicou que, tendo 19 anos de idade durante a filmagem, se sentira obrigada a obedecer e tomara a gravação da cena como um estupro de verdade, embora o sexo fosse simulado.

Elle é um filme que se desenvolve em torno ao estupro de uma mulher forte, interpretada por Isabelle Huppert. Sua personagem, Michèle, vive rodeada de seres inexpressivos, de inteligência limitada, fracos. Seu ex-marido, de quem permanece amiga (a separação foi causada por um ato de violência física que ele cometeu contra Michèle), seu filho e seu amante não são exceção. Apenas sua mãe e sua nora, de maneiras e por motivações diferentes, têm condições de enfrentá-la.

Assim que o agressor foge, Michèle limpa o ambiente onde o estupro aconteceu, joga fora a roupa de baixo, toma banho e encomenda sushi. Impossível ter mais força de caráter e menos auto-comiseração.

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Acompanho, desde minha adolescência, a trajetória de Isabelle Huppert e é fascinante vê-la cada vez mais bela e mais competente como atriz. Este filme marca talvez o ápice de sua carreira. Poucas atrizes conseguem dizer tanto com um olhar, e ela torna o filme – onde há cenas que alguns considerarão de realidade psicológica discutível – perfeitamente crível.

O filme de Paul Verhoeven pode provocar perplexidade. Alguns críticos, embora elogiosos, manifestaram hesitação sobre se o diretor dá prova de espírito feminista ou de misoginia. Não sei como pode haver dúvidas a respeito. Uma crítica muito positiva, escrita por uma mulher, Sheila O’Malley (alerto o leitor para o fato de que sua resenha revela mais sobre o enredo do que faço aqui), aponta que a personagem de Huppert lembra as “dominant dames” de filmes americanos das décadas de 30 e 40, tipicamente interpretadas por Bette Davis, Joan Crawford, Barbara Stanwyck. Quem, como eu, conhece o trabalho dessas atrizes, se lembrará de filmes como All about Eve (A Malvada), estrelado por Bette Davis e a que já fiz referência em minha postagem Oscar Wilde e o melhor Bellini do Rio de JaneiroMildred Pierce  (Alma em Suplício), com Joan Crawford, e Double Indemnity (Pacto de Sangue), um dos melhores exemplos de film noir, estrelado por Barbara Stanwyck. Esses são filmes onde as mulheres ou superam com coragem enormes vicissitudes ou dominam os homens e o ambiente ao seu redor.

Nessa linha de raciocínio, Verhoeven deu a Isabelle Huppert a chance de ser herdeira de uma tradição cinematográfica. Vítima de violência (do ex-marido, do estuprador, do pai), Michèle a tudo resiste, sozinha ou quase.

Acontece porém que a personagem contribui ela própria para gerar e perpetuar a violência contra a mulher. Rica, habituada a dominar não só por meio de sua personalidade mas também graças ao dinheiro, ela é dona de uma empresa de videogames. O jogo que está sendo desenvolvido por seus funcionários no momento em que transcorre a ação do filme é altamente violento contra as mulheres. Vemos Michèle e sua equipe assistindo a uma cena do videogame onde uma rainha ou princesa medieval é atacada, violentada pelos tentáculos de um monstro. Michèle fica insatisfeita. Autoritária, reclama com seus funcionários que não há sangue,  violência e orgasmos suficientes na cena.

Logo entenderemos que a personagem cresceu rodeada por um nível assustador de violência. Basicamente, essa é uma mulher da qual todos (inclusive o estuprador) exigem que seja compreensiva e tolerante, mas à qual não dão o direito de ser tolerada e compreendida. Dos outros, Michèle aprendeu a esperar o pior: fraqueza, comportamentos absurdos, agressividade física ou verbal. Isso explica sua reação corajosa e fria após ser estuprada. Ao mesmo tempo, fica indignada com seu gato – que assistiu ao estupro – quando este captura um passarinho no jardim.

Quando a identidade do estuprador é revelada,  Michèle, ao invés de denunciá-lo à polícia, desenvolve com ele uma espécie de amizade amorosa, algo que poderá chocar o espectador  – foi o caso com minha mãe – mas que Verhoeven e a espetacular atuação de Isabelle Huppert tornam, a meu ver, coerente com a psicologia dos dois personagens, a vítima e o agressor.

A interação da protagonista com as demais personagens femininas é digna de nota. Duas delas, a mãe e a namorada do filho, são personalidades fortes mas claramente menos inteligentes e seguras do que a heroína. Com a primeira, Michèle mantém relação de incompreensão mútua, e com a segunda de franca animosidade. A terceira personagem feminina, a melhor (única?) amiga de Michèle e sua sócia, é amorosa, cálida, simpática e de inteligência mediana.

Este é um filme que disseca várias coisas: os costumes da burguesia francesa, a psicologia da heroína, suas relações com  os demais personagens. Minha irmã gostou, considerando-o feminista; minha mãe achou a estória absurda (“não faz o menor sentido ela reagir assim”); minha mulher e minha filha não o viram ainda. Uma amiga gostou, apreciando a força de caráter de Michèle. Não ouvi ainda a opinião de nenhum amigo. Pessoalmente, acho que é um filme de mensagem feminista – a celebração da força de uma mulher, que se recusa a ser vítima – mas cuja heroína despreza tanto as outras mulheres quanto os homens.

Além da atuação de Huppert, são exemplares as dos atores masculinos e a de Judith Magre como a mãe.

Meus dois leitores sabem que gosto de analisar filmes onde livros são motivadores ou personagens da trama – exemplos recentes desse apreço são minhas resenhas de O Plano de Maggie, de Rebecca Miller, e No Fim do Túnel, de Rodrigo Grande – ou que fazem referência a textos literários, como apontei nas críticas de Café Society, de Woody Allen, Julieta, de Almodóvar, e Amor e Amizade, de Whit Stillman. Às vezes, o filme me faz lembrar de algum texto, como aconteceu com As Montanhas se Separam, de Jia Zhangke.  

No caso de Elle, livros não aparecem e nem influenciam a trama. Sua presença no filme é mais sutil. Fora o fato de que esta é a adaptação cinematográfica do romance Oh…, de Philippe Djian, há um personagem escritor, o ex-marido, claramente exibido como um fracassado, nos planos pessoal e profissional. Há uma referência a Simone de Beauvoir, mas que não é positiva. Antes de abrir a companhia de videogames, Michèle era editora, mas o fato é apenas mencionado. A referência cultural mais forte no filme não é literária, é o Natal: uma das cenas mais importantes se passa durante a Ceia de 24 de dezembro. Verhoeven, porém, não deixa dúvida, graças ao olhar de Isabelle Huppert enquanto outros personagens assistem na televisão à Missa do Galo oficiada pelo Papa na Basílica de São Pedro, que o espírito religioso não salvará essas almas. De resto, o trauma infantil da protagonista também se deu no Natal.

O filme me prendeu à poltrona, fiquei impressionado que pudesse haver na tela algo tão fora da norma usual e me perguntando se o impacto seria o mesmo sem a atuação de Isabelle Huppert.

Termino porém recomendando a leitura de dois textos menos entusiastas, o de Richard Brody, em The New Yorker, em artigo intitulado The Phony Sexual Transgressions of Paul Verhoeven’s “Elle”, em que faz críticas ao diretor e à atuação da atriz; e o da blogueira espanhola, feminista e crítica de cinema Pilar Aguilar, que considerou o filme “asquerosamente biempensante“. Dão visões interessantes sobre o filme, embora eu não concorde com tudo o que dizem. Pilar Aguilar imagina um diálogo – que diverte o leitor –   entre Verhoeven e seu roteirista, David Birke, sobre o que inserir no filme para deixá-lo mais opacamente chocante. Em sua argumentação, Aguilar afirma que o roteiro coloca em Elle elementos sem sentido, apenas para impressionar, mas termina reforçando a misoginia e o machismo.

Menciono ao leitor que o artigo de Richard Brody e o de Pilar Aguilar revelam mais sobre  a trama do que fiz nesta postagem.

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Elle – Ficha Técnica IMDb

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