Álbum de fotos – Aix-en-Provence

Álbum de fotos – Aix-en-Provence

Dou início hoje à publicação de álbuns de fotos que tirei, em anos anteriores, durante viagens a lugares que, por causa da pandemia, não posso por enquanto revisitar.

Começo com Aix-en-Provence.

Em Roma não está mais em Roma, ano passado, eu falava muito mais em Aix do que em Roma. A capital italiana só aparecia na citação de um verso de Corneille, que dava origem ao título da crônica.

Eu mencionava, no texto, não poder ir ao Festival de Ópera de Aix, o qual, de qualquer forma, tivera de ser cancelado por causa da COVID-19. A Malásia estava então, e está novamente agora, em confinamento total. Meu objetivo era procurar aceitar filosoficamente o isolamento criado pelo confinamento, que me impede de ver a minha família e de viajar a alguns lugares de que gosto. Aparentemente, toquei em um ponto sensível para muitos: Roma não está mais em Roma tornou-se o meu texto mais lido.

Em 2021, o Festival de Aix está acontecendo, neste exato momento. Não é certo que eu teria estado lá, se a pandemia nunca tivesse existido. Mas é certo que a pandemia transformou as viagens internacionais em um contratempo, se não, muitas vezes, em uma impossibilidade.

A primeira vez que fui ao Festival foi em 2008, com minha mulher e minha filha. Na noite da chegada à cidade, assistimos à produção de Abbas Kiarostami para Così fan Tutte. Foi inesquecível. Desde então, associo a imagem do cineasta à de Mozart e à de Aix.

Em um texto autobiográfico publicado em 1987, o historiador Georges Duby escreveu sobre a cidade: “Em que terreno mais fértil poderia eu perseguir minha caça à felicidade?”. Aix-en-Provence em julho, durante o Festival, é para mim um lugar feito para a felicidade.

As fotografias abaixo foram tiradas em dois anos diferentes, 2014 e 2017.

Digam o que acham.

Proximamente, prepararei um álbum sobre algum outro lugar.

Até breve!

P.S: Em julho de 2022, minha mulher e eu voltamos a Aix, para o Festival. A magia continuava intacta.

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Roma não está mais em Roma

Roma não está mais em Roma

“Aix, há 35 anos, era encantadora. Não havia na França outra cidade daquele tamanho (quarenta mil habitantes) que já não tivesse subúrbio. Em apenas uns poucos passos, íamos do cantar das fontes, ainda audível, aos pomares de oliveiras, às colinas. E depois, nas vibrações da noite de verão, Mozart. Em que terreno mais fértil poderia eu perseguir minha caça à felicidade?”. Assim escreveu o historiador Georges Duby, em um texto publicado em 1987, a respeito de sua vida em Aix-en-Provence.

Duby havia se tornado, em 1951, professor universitário em Aix, por escolha sua, recusando-se a concorrer a uma vaga na Sorbonne. Quando, em 1970, tornou-se professor de História das Sociedades Medievais no Collège de France e precisou voltar a morar em Paris, manteve sua casa perto de Aix, e lá passava o verão. A menção a Mozart é uma alusão ao Festival de música que, desde 1948, se realiza na cidade.

Inocentemente, eu tinha no início de 2020 planejado tirar férias em julho e ir a Aix para o Festival. A pandemia transformou porém a ida ao supermercado em uma aventura povoada de riscos e transtornos. O que dizer das viagens. Na Malásia, onde estou morando, até poucos dias atrás nenhum trajeto de mais de dez quilômetros era possível sem autorização prévia, por escrito, da polícia. As fronteiras do país continuam fechadas aos estrangeiros. Na França, o Presidente Emmanuel Macron indicou que o retorno à normalidade será gradual e que haverá restrições a viagens para os franceses no verão. Os festivais, inclusive o de Aix-en-Provence, foram cancelados ou adiados.

O comentário de Georges Duby, que capta de forma poética o espírito de Aix, pode ser lido em um texto autobiográfico, Le Plaisir de l’historien. Esse relato foi incluído na edição de algumas de suas obras — organizada pelo historiador brasileiro Felipe Brandi — publicada em 2019 na Bibliothèque de la Pléiade, da Gallimard. O livro é um dos quatro ou cinco que viajaram na minha mala em janeiro, quando vim morar em Kuala Lumpur.

Em um plano bem mais modesto do que Duby, eu também já troquei Paris por Aix. Em julho de 2017, lá cheguei para passar um fim de semana, a caminho de Paris. A programação de ópera no Festival estava perfeita, o clima sedutor, a alegria na cidade contagiante. Comecei a me perguntar se precisava mesmo ir à capital. Toda manhã, eu avisava à recepção no hotel que ficaria mais uma noite. Viajar de férias, eu decidira, significa não fazer planos nem sequer para o dia seguinte. O centro histórico de Aix é de uma beleza de dimensões quase domésticas. Duby diz que dá para atravessá-lo a pé, de parte a parte, em sete minutos. Se eu estava feliz ali, por que ir a Paris? Acabei não indo. Descrevi, em De carro pela Provença, como foram aquelas férias em Aix. De dia, passeava pela região. À noite, ia à Ópera. Fui ao Festival de Avignon. Fui à praia em Cassis. Contornei a montanha Sainte-Victoire, personagem central na obra de Cézanne.

Justamente, um dos lugares mais sedutores de Aix é o estúdio do pintor, preservado, em grande parte, graças aos esforços, na década de 1950, de dois americanos, o memorialista James Lord e o historiador da arte John Rewald. Uma grande parede de vidro deixa entrar a luz essencial para o trabalho do artista. Vemos objetos — vasos, pratos, figuras de gesso — que Cézanne usava como acessórios em suas telas. É comovente reconhecê-los. Vemos, pendurados, seus sobretudos e chapéus, seu guarda-chuva e sua bengala. Vemos também parte de sua biblioteca. Notei ali, da última vez, uma bela edição das Vidas dos Homens Ilustres de Plutarco. Supus que a tradução seria a mais clássica disponível em francês, a do século XVI feita por Jacques Amyot. Traduzida quase que imediatamente do francês para o inglês, ela serviu de base a Shakespeare para suas tragédias romanas. Transformou-se em um monumento literário e também histórico; foi fonte de inspiração para intelectuais, figuras políticas e artistas que, durante três séculos — e notadamente durante a Revolução — quiseram emular ou celebrar Roma e seus supostos valores heroicos e morais. É a tradução que tenho, editada em dois volumes pela Pléiade.

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A impossibilidade de voltar a Aix este ano não me entristece. A pandemia prejudicou a vida de todo mundo, causando em muitos dor e perdas. O estúdio de Cézanne continuará lá, acessível quando eu puder ir. Apenas, ler a descrição feita por Duby da cidade trouxe à tona o sentimento que tenho por ela. Lembrei do barulho das fontes no silêncio e no calor do verão.

Penso nos emigrantes, ao longo dos séculos, que partiam de sua terra natal para lugares distantes, sabendo que nunca voltariam. Mudavam-se, em viagens longas e arriscadas, com a certeza de que não reveriam parentes, amigos, a cidade ou o campo onde haviam crescido. Essa é uma sensação que hoje nos é estranha. Sentir saudades de um lugar é, no século XXI, uma forma doce, poética, elegante de melancolia. Sabemos, muitos de nós, que poderemos rever aquele lugar, se quisermos realmente, mesmo à custa de sacrifícios pessoais e financeiros.

Uma das revelações da pandemia é que as viagens muitas vezes não são necessárias. Podem se transformar em uma atividade frenética, para fazer passar o tempo, desviando-nos de nós mesmos. Os lugares importantes moram em nós. Vão conosco a toda parte. A ideia desses lugares, o que eles representam, está em nós. Há um bonito verso de Corneille que nos ensina isso, em Sertorius, peça cuja ação se passa durante as guerras civis romanas. O general Quintus Sertorius — cuja biografia em Plutarco serviu de fonte a Corneille — declara a Pompeu que, na Espanha, ele não se vê como um rebelde ao ditador Sula, mas sim como o verdadeiro representante dos mais nobres valores romanos. De forma grandiloquente, ele diz: “Rome n’est plus dans Rome, elle est toute où je suis“. George Steiner, em The Death of Tragedy, o livro dele que prefiro, analisa com admiração a cena onde se insere esse estupendo alexandrino.

Ao abrir o volume da Pléiade de obras de Duby, eu não podia imaginar que a evocação feita de Aix pelo historiador iria me trazer a cidade inteira. É que os lugares vêm a nós da forma mais inesperada. Há poucas semanas, uma amiga virtual paranaense — nunca nos vimos — mandou-me fotos pelo Instagram. Seu apartamento na praia é perto da casa dos meus sogros, onde me casei. Passando lá um fim de semana de sol e calor, e sabendo que eu agora moro em Kuala Lumpur e minha mulher em Singapura, ela fotografou o sítio de longe, do alto do apartamento, com a objetiva do celular. Foi uma surpresa, confinado no sudeste da Ásia, abrir sua mensagem e ver a casa, um dos lugares mais importantes para mim. Vi-a como nunca a vira, de cima, entre o azul do mar e o verde do jardim e da mata, como se eu estivesse atravessando o céu límpido e olhasse para baixo.

Por causa do isolamento social e do fechamento de fronteiras em vários países, muitos meses terão se passado até eu poder rever minha mulher, minha filha, meus parentes, meus amigos. Elas e eles, porém, moram em mim. Como a casa de praia no Paraná, como a fazenda de meu avô em Minas Gerais, como o estúdio de Cézanne em Aix-en-Provence, como meu Plutarco — abandonado em um porto malásio, esperando o fim do confinamento para ser entregue com o resto da biblioteca e a mudança — elas e eles estão onde eu estou.

Para Sertorius, eram os valores romanos que o acompanhavam aonde ele fosse. Para mim, são os sentimentos que carrego pelas pessoas, os lugares, os livros que moram onde eu moro. Como para ele, embora por razões diferentes, para mim Roma não está mais em Roma; ela está toda onde eu estou.

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(Versão mais curta desta crônica foi primeiro publicada, em 28 de maio, no jornal literário Rascunho)

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Seis livrarias

Seis livrarias

Livrarias tendem a aparecer magicamente diante de mim. Caminho pela rua e, quando menos espero, surge uma, como se eu estivesse em um conto de As Mil e Uma Noites. Em vez de um gênio, uma lâmpada, um cão falante ou um tapete voador, aparece uma livraria. Entro, e é como se eu estivesse dentro da caverna de Aladim, com seus tesouros.

Os minutos, as horas passados dentro daquele universo, folheando livros, sentado em uma poltrona ou um banco, talvez tomando um café, provocam em mim o mesmo efeito que a meditação em outros. É como um choque de paz e energia cerebrais. Saio de livrarias atento às coisas ao meu redor, alerta, sereno e feliz.

Tive ocasião de pensar uma vez mais na aparição mágica de livrarias na minha vida em julho de 2017 quando, caminhando a esmo por Aix-en-Provence — durante viagem que narrei em De carro pela Provença — vi em uma praça, sob um toldo vermelho, a porta de um sebo chamado Le Bateau Livre, que eu nunca vira antes, em todas as minhas idas a Aix:

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Pensei estar sonhando. Atravessei a praça:

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Entrei e vi, em um espaço estreito, o Paraíso:

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Após algum tempo examinando as estantes, decidi ser forte e ir embora sem nada comprar. Alguns dos livros, porém, não me saíam da cabeça e minha imaginação voltava sem trégua a Le Bateau Livre. O próprio anúncio na vitrine, dizendo “avant fermeture — 50%”, proclamando o iminente encerramento de atividades do sebo, parecia como criar para mim a obrigação de lá voltar. Como comentei em Oscar Wilde e o melhor Bellini do Rio de Janeiro, ver que uma livraria fechou ou vai fechar provoca em mim inquietação. É uma amizade que termina com o encerramento daquele espaço, é um local calmo e ao mesmo tempo estimulante que não estará mais disponível. Fico também me perguntando o que acontecerá aos livros. O fato de eu ter estado, ainda que somente uma vez, em Le Bateau Livre já transformara o sebo em um amigo. Não podia abandoná-lo em seus últimos dias de vida. A queima de estoque, com liquidação de 50%, terá certamente criado atrativo suplementar. O próprio nome, com ecos de Rimbaud, dava no que pensar.

Dois dias depois da descoberta da livraria, lá voltei. E nessa segunda visita, não saí sozinho. Entre outras, levava comigo para o hotel as seguintes companhias:

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Vathek, de William Beckford, foi um aceno à minha mulher. Em Londres, há vários anos, em uma livraria de Cecil Court, curta rua de pedestres povoada por elegantes sebos que começa na Charing Cross Road, por razões que se perdem no tempo eu a convencera a não comprar uma edição do livro. Suponho que eu tenha achado o preço excessivo. Terá sido a única vez na vida em que impedi — a mim mesmo ou a outra pessoa — a compra de um livro. Desde então, o remorso me corroía. Talvez, de forma excessiva. Ao receber o presente, minha mulher ficou contente mas manifestou não se lembrar do diálogo em Cecil Court. De qualquer forma, encontrar o livro em Aix pareceu-me algo tão prodigioso quanto o surgimento da própria livraria.

Les Pourparlers diplomatiques compila, país por país, a versão em francês de volumes que os governos europeus participantes da Primeira Guerra Mundial publicaram individualmente, ainda durante o conflito — alguns já a partir de 1914 — em um esforço propagandístico, para se defender da acusação de serem responsáveis pela guerra. Desejava cada país provar que procurara, até o último momento, resolver as tensões por meio do diálogo e da moderação. Em graus variados de honestidade intelectual e transparência, os países revelaram ao público, em forma de livro, comunicados, telegramas e memorandos diplomáticos, cada um utilizando uma capa de cor diferente. A coleção francesa é o “livro amarelo”, a inglesa o “livro azul”, a italiana o “livro verde”, a alemã o “livro branco”, a austro-húngara o “livro vermelho”, a russa o “livro laranja”.

O jogo de atribuir ao adversário a culpa pela guerra, vemos em Les Pourparlers diplomatiques, iniciou-se imediatamente. Em 2 de agosto de 1914, um dia após a Alemanha ter declarado guerra à Rússia, o Ministro dos Negócios Estrangeiros russo enviou telegrama circular “aos Representantes de sua Majestade o Imperador no exterior”, onde a primeiríssima frase é: “Está absolutamente claro que a Alemanha se esforça desde já para transferir sobre nós a responsabilidade pela ruptura”. De fato, o conjunto dos documentos presentes no “livro branco” alemão tende a por a culpa pela guerra na mobilização de tropas pela Rússia. O “livro laranja” russo leva a crer que a culpa foi do ultimato austro-húngaro à Sérvia, aliada do Império tsarista. Uma das preocupações do “livro amarelo” francês é inocentar a Rússia, sua aliada.

O “livro vermelho” austro-húngaro se inicia com uma apresentação onde leio o seguinte parágrafo — que traduzo do francês — relativo ao assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando por cidadãos sérvios, crime que foi estopim, motivo ou pretexto para a guerra: “A morte dessa vítima imolada à pátria devia, esperavam nossos inimigos em sua desvairada ilusão, precipitar a dissolução da Monarquia; ao contrário, ela uniu todos os povos austro-húngaros em uma unanimidade apaixonada em torno à sua dinastia. O mundo inteiro pôde ver as bases inquebrantáveis sobre as quais repousam os fundamentos da Monarquia “. O texto foi publicado quatro anos antes do fim do “inquebrantável” Império austro-húngaro.

Folhear os dois volumes equivale a ser transportado a um universo onde Ministros das Relações Exteriores e Embaixadores são Príncipes, Condes e Barões, onde Imperadores são atores cruciais e onde dois primos prestes a levar seus povos a se entre-devorarem, Guilherme II da Alemanha e Nicolau II da Rússia, trocam gentilezas. Vejo no “livro branco” alemão que, em 31 de julho de 1914, um dia antes de declarar guerra à Rússia, Guilherme II escreveu a Nicolau II: “Em resposta ao teu apelo à minha amizade e ao teu pedido de que eu te ajudasse, procurei intermediar entre teu Governo e o Governo austro-húngaro. Enquanto essa intermediação se realizava ainda, tuas tropas foram mobilizadas contra a minha aliada, a Áustria-Hungria […] A amizade por você e o teu reino, que meu avô [o primeiro Imperador da Alemanha, Guilherme I] me transmitiu em seu leito de morte, é sempre sagrada para mim”. É um universo descrito pelo historiador britânico Dominic Lieven, em seu livro Towards the Flame: Empire, War and the End of Tsarist Russia — um dos muitos publicados em torno ao centenário da Primeira Guerra Mundial, tentando explicar suas causas — como sendo “the exquisitely polite facade of ancien régime diplomacy”.

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Em seu celebrado estudo The Sleepwalkers Christopher Clark menciona que, em alguns casos, os documentos publicados por cada país no seu respectivo livro de capa colorida foram manipulados, por exemplo com mudanças de datas.

Conversando com o livreiro de Le Bateau Livre, soube que seu negócio já não era sustentável; ele não podia manter o sebo, e aquele universo seria encerrado no final de julho.

Mais sólida parecia a situação da livraria ao lado do meu hotel no Cours Mirabeau, principal rua do centro histórico de Aix:

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Dentro, a Librairie Goulard é uma enfileirada de salas, cada uma mais atraente do que a anterior, atravessando todo o quarteirão, e é possível sair pela rua de trás:

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Minha última atividade em Aix, antes de ir ao aeroporto, com o taxi já me esperando, foi entrar novamente na Goulard para comprar presentes aos amigos que, sabia, eu veria no dia seguinte. Livros são basicamente o único presente que sei oferecer. Sei onde compra-los, e isso já facilita muito as coisas. Não resisti e saí da Goulard também com dois volumes para mim mesmo, que eu namorara assiduamente ao longo de sete dias:

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Tenho apreço especial pelo historiador e filósofo Lucien Jerphagnon, especialista na Antiguidade Clássica, morto em 2011. O livro de Michel Eltchaninoff explica os fundamentos intelectuais do pensamento político de Vladimir Putin.

O ano de 2017 foi altamente satisfatório, em termos de livrarias. Não posso listar todas aquelas onde estive, porque a cada lugar aonde vou, elas aparecem e eu entro. Seria uma lista infinita. O que me impressiona mais é a peculiaridade de cada espaço. Duas livrarias nunca são iguais, mesmo que ambas pertençam à mesma grande cadeia. Sempre haverá diferenças que tornarão um estabelecimento mais sedutor para nós do que outro.

Mostro a seguir algumas das outras livrarias que mais me agradaram em 2017, onde me senti particularmente bem.

A livraria francesa de Nova York ficava antes no Rockefeller Center e lembro-me bem de visita-la algumas vezes. Hoje, está instalada na Quinta Avenida, em frente ao parque, algumas ruas abaixo do Metropolitan Museum. Dois detalhes dão a ela características próprias: o nome, Albertine, de conotações proustianas, e a decoração inusual. A Albertine — que se apresenta na Internet também como salão de leitura e, de fato, em uma semana de férias em Nova York, lá passei bons momentos, no frio e na neve de janeiro de 2017, sentado em confortáveis poltronas, sem ser perturbado por ninguém — se apresenta assim:

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Por alguma razão, deixei de fotografar o segundo andar, embora tenha um teto fora do comum, mas um amigo me enviou esta foto, única não tirada por mim nesta postagem:

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Boa parte de meu tempo em Nova York transcorreu em livrarias, e eu já havia constituído no hotel uma biblioteca, por isso fui comedido e saí da Albertine com apenas dois volumes:

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Em fevereiro de 2017, na volta de uma rápida viagem a trabalho a Nanjing, passei o domingo em Beijing. Amigos levaram-me ao mercado das pulgas de Panjiayuan, onde uma vez mais fiquei meditando sobre a dificuldade de entender uma cultura, uma civilização, se dela não conhecemos o idioma. Pois em Panjiayuan há vários vendedores de livros a céu aberto:

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Ao menos em Panjiayuan, Mao e seu livrinho vermelho são ainda onipresentes. O efeito propagandístico obtido por esse livro vermelho foi bem superior, no século XX, ao do Império austro-húngaro.

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Tintin também é popular em Beijing. Este não era o único vendedor que oferecia, em Panjiayuan, todos os volumes das aventuras do repórter belga:

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Sobre a livraria Saeed Book Bank, em Islamabad, onde estive em março, tive ocasião de falar na postagem Alexandre, o Grande e os pássaros de Rawalpindi, e será suficiente eu recolocar aqui uma foto da fachada:

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E outra dos livros que lá comprei:

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Em outubro, quando estive na Índia pela última vez, ao sair no domingo, no final da tarde, da casa onde Gandhi foi assassinado — experiência narrada em Mahatma Gandhi em Birla House   — satisfiz um velho sonho, e visitei as livrarias do Khan Market. Este é na verdade um pequeno enclave, com três ruas, e considerado o centro comercial mais caro de Nova Delhi:

Há pelo menos três livrarias no Khan Market, mas eu só pude visitar — as lojas iam fechar — as duas que já conhecia de nome. Primeiro, fui à Full Circle, onde me senti perfeitamente em casa:

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Os vendedores e o gerente foram simpáticos e me ajudaram com a lista de livros que eu levava comigo. Dos cinco, encontrei quatro na Full Circle:

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Sobre Incarnations, do historiador Sunil Khilnani, falei já em Mahatma Gandhi em Birla House. As cinquenta curtas biografias nele contidas têm sido para mim, desde outubro, uma aula constante sobre a história da Índia.

Visitei as livrarias do Khan Market com um ex-aluno e amigo, que por acaso estava em Nova Delhi. Enquanto eu folheava, fascinado, livros sobre a Índia, ele ia selecionando, em outro canto da Full Circle, livros infantis para seus dois filhos pequenos. Tomamos um café na livraria:

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Quando saímos, já era noite:

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Pudemos também visitar a outra livraria de que eu ouvira falar há anos, a Bahrisons. Ela já estava fechada, mas havia ainda um cliente dentro, então o guarda abriu a porta. Puxei para o lado uma cortina verde e entrei. Eu nunca havia estado em uma livraria tão pequena:

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Reparem nas motos, congestionando ainda mais o local, e no vendedor lendo, sentado, calmo. Apesar do espaço reduzido, a Bahrisons fez jus à fama, e lá encontrei o quinto livro, que não estivera disponível na Full Circle:

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Considerei o dia bem aproveitado naquele domingo, pois apesar do jetlag eu conseguira, de tarde, após minha reunião de trabalho, visitar a Birla House e as duas livrarias que vinham alimentando meus sonhos. Essa não é uma figura de linguagem, pois livrarias frequentemente embalam meu sono. Sonho com elas, reais ou imaginárias. Durante anos, o meu sonho mais recorrente era sobre uma livraria francesa no centro de Washington — e, de fato, morei perto da capital dos Estados Unidos — totalmente fantasiosa, criada na minha mente, mas que aparecia sempre da mesma forma no sonho, em detalhes. Eu via a rua, a entrada, os livros, o vão amplo e circular da escada que levava ao andar inferior, igualmente povoado de livros.

Saindo do Khan Market de tuk tuk, carregando meus livros, fui jantar com outro amigo, que agora mora na Índia, o leitor de Proust de quem já falei algumas vezes neste blog, por exemplo em Tolstói, Guerra e Paz e a BBC.  Enquanto eu observava as peripécias do condutor do tuk tuk pelo trânsito de Delhi, pensei em Lisboa e em suas livrarias. Sobre essas amigas lisboetas, porém, falarei em outra ocasião…

                                                                                 Para Vivian Oswald e João Marcos Paes Leme

 

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Minha avó e seus dois maridos

Minha avó e seus dois maridos

Quando criança, morei em Rhode-St-Genèse durante quase cinco anos, como registrei em O Triunfo da Cor e em Papai Noel e a amizade.  O que não contei ainda é que, todo verão, íamos ao Sul da França visitar meu avô materno. Todo ano, ele passava uma temporada em Cannes, hospedado no Carlton. Íamos vê-lo de carro, da Bélgica, atravessando a França, com várias paradas, meus irmãos e eu sentados no banco de trás, frequentemente com algum dos nossos animais domésticos no colo.

Meu amor pelo mar vinha desde sempre, já que sou carioca e, durante a minha mais tenra infância, antes da mudança para a Bélgica, morávamos em frente à praia de Copacabana, justamente com meu avô materno, o que se hospedava no Carlton. A precisão é importante, porque meus irmãos e eu tivemos dois avós maternos.  Eram ambos homens boníssimos e superiores, cada um no seu estilo: um, baiano morando no Rio de Janeiro e francófilo; o outro, fazendeiro mineiro na Zona da Mata. Eles jamais se viram ou se falaram, mas estavam perfeitamente cientes da existência um do outro. Eram pessoas sem excentricidades, fora o fato de que tinham amado – e possivelmente ainda amavam – a mesma mulher, minha avó, amaldiçoada por rara beleza e poder de atração, que provocara um escândalo na família ao se separar, aos 19 anos de idade, do primeiro marido, meu avô mineiro. Bahiano e mineiro ambos adoravam a filha que compartilhavam, minha mãe.

Na Avenida Atlântica, à noite, eu ficava na cama, acordado, ouvindo o barulho das ondas. A vista da praia de Copacabana provoca ainda em mim uma forte sensação de segurança e felicidade, embora hoje em dia eu veja o oceano mais usualmente de São Conrado, como ilustrei com esta foto, em Minha vista no Rio de Janeiro:

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Este ano, em julho, ao passar uma semana em Aix-en-Provence para o Festival de Ópera, aluguei um carro e decidi dedicar ao menos um dia ao Mediterrâneo; o calor estava intenso na Provença e eu queria dar um mergulho. A Côte d´Azur seria longe, para ir e voltar no mesmo dia – ainda mais porque iria ao teatro de noite – mas Cassis, que conheço bem, fica perto de Aix:

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A intensidade do azul no mar estava marcante naquele dia:

Mediterrâneo

Perto da praia, porém, havia tonalidades verdes:

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As expedições anuais à Côte d´Azur na minha infância incluíam passeios pela Provença. Começou aí o meu amor pela região, o que é comprovado pelo fato de que um dos primeiros livros que comprei na infância – ou pedi que comprassem para mim – foi este:

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Assim como preservo ainda muitos amigos da infância, guardo com carinho meus primeiros livros.

Em julho, com o carro alugado, fiz outros passeios, além da ida a Cassis para um mergulho. Sobretudo, realizei uma ambição de anos, até então nunca realizada: contornar a Montagne Sainte-Victoire. Celebrada por Cézanne – que era nascido e criado em Aix e lá faleceu – em dezenas de quadros, o morro é quase um ser vivo para os provençais, de tão mítico. Cézanne o via desta forma:

20170104_172334Tirei a foto acima em Paris, em janeiro, ao visitar na Fondation Louis Vuitton  a exposição sobre a coleção Shushkin, sobre a qual falei em Paris – Moscou – Paris. Intitulado Montagne Sainte-Victoire vue des Lauves, pintado entre 1904 e 1905, o quadro pertence hoje ao Museu Pushkin, em Moscou.           

Comecei a visita à montanha pela vertente Sul, seguindo a estrada D 17, conhecida como Route Cézanne, pois ela passa, em seu início, por vilarejos frequentados pelo pintor.  Fui parando em aldeias ou no meio do campo, para fotografar a Sainte-Victoire:

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A estrada estava vazia; desliguei o ar condicionado e abaixei o vidro, para ouvir as cigarras enquanto dirigia. Reservara mesa para almoçar no restaurante Relais de Saint-Ser, perto da aldeia de Puyloubier. Quase encostado na montanha, o restaurante olha para um vale e da minha mesa, no terraço, eu tinha a seguinte vista:

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Essa é uma região vinícola, a Côtes-de-provence Sainte-Victoire, e o Saint-Ser é também um domaine, produzindo o seu próprio vinho. Como eu estava guiando, não quis ir parando de vinícola em vinícola, provando vinho. Apenas, tomei no almoço um copo de rosé, de um produtor vizinho, o Domaine Sainte Lucie. É, provavelmente, o melhor rosé que já tomei.

Esta foto, que tirei na beira da estrada, coloca em uma mesma imagem vários clichés da Provença – o cipreste, o campo de lavanda, as videiras e a Montagne Sainte-Victoire:

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Ao sair do restaurante, antes de entrar no carro, gravei este vídeo, para registrar o canto das cigarras:

Segui meu caminho… continuei parando, tirando fotos, sempre acompanhado pelas cigarras:

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Gradualmente, cheguei à vertente Norte, onde se encontra aquele que era um de meus objetivos principais no passeio: o castelo de Vauvenargues, o qual, da estrada, aparece assim:

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Como mencionei em Tracey Emin e eu, Luc de Clapiers, marquês de Vauvenargues, oficial do exército morto em 1747 aos 31 anos, é hoje meu moralista predileto:

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Nascido em Aix, faleceu em Paris desconhecido, pobre, desfigurado pela varíola, tendo levado uma existência triste e frequentado na capital apenas uns poucos amigos, entre eles Voltaire, vinte anos mais velho do que ele.  Após a morte de Vauvenargues – que ao deixar o exército não conseguira ser diplomata por causa de sua sáude combalida – Voltaire escreveu: “Foi graças a um excesso de virtude que você não foi infeliz, e essa virtude não te custava esforço algum. Sempre reconheci em você o mais desafortunado dos homens, e o mais tranquilo”.

Vauvenargues viveu, na juventude, no castelo paterno, que ganhou súbita fama na segunda metade do século XX por ter sido comprado, em 1958, por Picasso, que lá passou relativamente pouco tempo, mas nunca dele se desfez. Enterrado no parque da propriedade, Picasso acabou lá ficando para a eternidade. O castelo pertence ainda aos herdeiros de sua última mulher, Jacqueline Roque, e não é visitável, como mostra a placa pouco simpática, mas de certa forma engraçada, colocada no portão:

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Ri particularmente com a frase: “O museu fica em Paris”.

Picasso parece ter comprado o castelo sobretudo para se associar a Cézanne, a quem não conheceu pessoalmente, mas que admirava, que o influenciara e de quem possuía obras. John Richardson escreve no segundo volume de sua biografia de Picasso, com quem conviveu, que os sentimentos do artista por Cézanne não eram puramente reverenciais. Picasso via Cézanne como “a mentor whose shadow he wanted to assimilate as well as escape”, enquanto ao mesmo tempo o chamava de “mother, father and even grandfather”. Como um pai, “Cézanne had to be transcended – exorcised – metaphorically killed”. No catálogo da sensacional exposição Picasso, the Mediterranean years, 1945-1962 que organizou para a galeria Gagosian, em Londres, em 2010, e que tive a sorte de visitar, Richardson escreve: “Vauvenargues might also have proved a mixed blessing in regard to Cézanne. Picasso had devoured Cézanne at the time of Cubism, but after poaching on his favourite motif he may well have felt in danger of being devoured himself”.

O  catálogo – cuja qualidade faria, como a exposição na Gagosian, muito museu empalidecer –  inclui esta foto tirada por Edward Quinn de Picasso e Jacqueline Roque, olhando pela janela de uma sala de Vauvenargues:

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Fico imaginando o moralista dois séculos antes, olhando melancolicamente pela mesma janela do castelo do pai, com quem mantinha relações difíceis, sem poder prever a Revolução de 1789 e as seguintes, as duas Guerras Mundiais e a chegada na propriedade paterna do espanhol genial – que era também um pai difícil.

Outro amigo de Picasso, David Douglas Duncan, publicou em 1961 livro surpreendente, Picasso’s Picassos, sobre o que eram até então centenas de obras desconhecidas do artista, guardadas no castelo de Vauvenargues e em outra de suas propriedades, La Californie, perto de Cannes. O livro apresenta fotos preciosas tiradas por Duncan, como estas duas, de Picasso diante da fachada de Vauvenargues e sentado no salão transformado em estúdio:

20170812_205103Duncan se orgulha, com alguma razão, de ter conseguido capturar o arco-íris coroando o castelo e o artista: “the most remarkable combination of natural phenomenon with newsbreak timing”. Segundo ele, “No single landmark is more renowned in modern art than Sainte-Victoire”, por causa de Cézanne.

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Duncan menciona no livro ter ouvido de Picasso o comentário de que, com a compra do castelo, parte da montanha, inclusive o pico, agora lhe pertencia. Isso me faz lembrar ter ouvido de uma amiga em Quito, proprietária da melhor livraria da cidade, que a escritura de posse da fazenda familiar especificava: “Incluye el cerro”. O “cerro” em questão era nada menos que o magnífico Chimborazo, vulcão de mais de 6.200 metros de altitude.

O castelo fica entre a montanha e a aldeia de Vauvenargues, Aqui, a rua principal:

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Da aldeia, há vistas excelentes do castelo:

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Vendo a cena acima, lembrando que o escritor e o artista viveram nessa casa e que a montanha, atrás, inspirou Cézanne,  pensei que  o modesto vilarejo de Vauvenargues acabou sendo um farol da cultura ocidental.

Era tempo de regressar a Aix. Retomei a estrada, sempre bela, quase sempre vazia:

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Pouco após Vauvenargues, notei que eu passava entre a Sainte-Victoire à esquerda e, à direita, um campo de lavanda. Parei o carro e saltei. O campo de lavanda ficava em uma propriedade particular, mas não havia cerca e a casa era distante.  Andei pelas flores, fixando a montanha, impressionado com o silêncio – quebrado apenas pelas cigarras – com o isolamento, com a beleza do lugar.

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Seria poético eu dizer que ali, naquele campo de lavanda, encarando a Sainte-Victoire, pensei nas inúmeras vezes em que, criança e adulto, passeara de carro pela Provença; dizer que meditei sobre o tempo, as incoerências da vida, a impermanência das pessoas e das coisas, que deve nos fazer valorizar o que se revela permanente; dizer que refleti sobre o poder da arte e da literatura para dar sentido à vida, e que se Vauvenargues, Cézanne e Picasso, seus sonhos, decepções e experiências vieram e se foram, eles ao menos nos deixaram obras que ajudam a tornar nossas vidas mais ricas, suportáveis.

Mas nada disso aconteceu. Parado sozinho naquele momento, naquele lugar, pensei apenas na felicidade que era ver a imponência da montanha, sentir o perfume da lavanda, ouvir as cigarras, viver plenamente aquelas sensações, exercitar os meus sentidos, atento somente ao que me rodeava.

Enviei a foto da lavanda aos pés da Sainte-Victoire à minha mulher e à minha filha e regressei a Aix. Ainda pude visitar uma exposição antes da ópera.

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Uma foto e três livros

Uma foto e três livros

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Em meados de julho, passei uma semana em Aix-en-Provence. Os jornais franceses ainda analisavam a foto oficial de Emmanuel Macron, divulgada pelo Palais de l´Élysée em 29 de junho:

A fotografia foi tirada por Soazig de La Moissonnière, que acompanha Macron desde a campanha eleitoral e tornou-se, com sua eleição, fotógrafa oficial do Presidente.

Todos os detalhes da foto foram dissecados na imprensa e nas redes sociais e nem o relógio – presença aparentemente anódina – escapou. Sabemos tratar-se de uma peça do século XVIII, de duas faces, normalmente vista no Salon Murat do Élysée, onde se reúne toda quarta-feira o Conselho de Ministros. Antes de cada reunião do Conselho, o relógio é tirado da lareira onde fica e colocado sobre a mesa. Sentados um frente ao outro, rodeados de seus Ministros, o Presidente e o Primeiro-Ministro acompanham, de cada lado da mesa, o andar das horas. Ao figurar na foto oficial, o relógio cumpre uma função política e também bem-humorada, pois desde a campanha presidencial Macron se auto-define como “le maître des horloges”. Com isso, ele quer dizer que é dono de seu tempo e não aceita ser apressado ou retardado por circunstâncias externas à sua pessoa. O relógio na foto provavelmente significa que, sendo agora Presidente, Macron tenciona determinar também o tempo político, o que poderá ser facilitado pela maioria que obteve nas eleições legislativas de junho, mas talvez dificultado pela brusca queda, desde que a foto foi tirada, na sua popularidade.

As bandeiras francesa e europeia indicam que, ao se colocar entre elas, o Presidente quer reiterar sua posição como garante do compromisso da França com a União Europeia. A janela aberta às suas costas, que leva o olhar ao jardim do palácio, é uma forma de declarar que fará um governo aberto, transparente, “arejado”. Desde a divulgação da foto, porém, o Presidente tem sido criticado pela reticência em se submeter a coletivas de imprensa. Os dois celulares à sua direita demonstram o espírito moderno, tecnológico, empreendedor que quer atribuir à França. Muitos notaram que o galo – símbolo do país – do tinteiro está refletido sobre o celular superior. A meu ver, o rosto revela decisão e segurança, mas alguns quiseram ver o oposto e consideraram que o ar é crispado e mostra ansiedade e tensão.

O jornal Le Figaro consultou fotógrafos profissionais. O artigo resultante apresentou críticas; vários opinaram que o enquadramento é estreito demais para tanto objeto na foto, criando uma sensação de asfixia no observador (“on étouffe”). Em outros veículos, alguns consideraram a foto exagerada quanto ao glamour e um gozador no twitter escreveu: “Adoro o novo anúncio do Dior” (“J´adore cette nouvelle campagne Dior!”). A edição francesa da revista GQ publicou, em sua página eletrônica, artigo crítico do traje do Presidente; considerou, por exemplo, que a gravata era estreita demais para o nó Windsor. Sem dúvida, faz todo sentido que o Presidente da França – país detentor da bomba atômica, membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas e motor fundamental da integração europeia – se preocupe toda manhã se fez o nó certo da gravata.

Os três livros sobre a escrivaninha são o que mais me interessou. Sua presença não é casual. Trata-se de três volumes de autores diferentes, mas todos publicados pela prestigiosa coleção da Bibliothèque de la Pléiade – sobre a qual já escrevi no blog, particularmente nesta postagem – publicada pela editora Gallimard. Assessora de imprensa de Macron, Sibeth Ndiaye divulgou este vídeo sobre a preparação do Presidente para a foto oficial:

Após empilhar cuidadosamente os dois celulares, Macron folheia um dos volumes – o que na foto ficará aberto à sua direita, na beirada da escrivaninha – escolhe uma página, transmitindo a ideia de que busca um trecho específico de sua predileção, no qual busca inspiração. Não sabemos que página abriu, que frase desejou deixar ao seu alcance. De resto, os funcionários do Élysée comentariam depois que o vento vindo da janela aberta fez as páginas abertas mudarem.

O Élysée revelou que o volume tratado com tanta atenção por Emmanuel Macron são as Memórias do Général de Gaulle. Vários comentaristas opinaram que com isso o Presidente quis transmitir ao país uma mensagem centrista, de harmonia, já que de Gaulle se considerava um aglutinador de forças políticas.

Abro por acaso livro que acabo de comprar, André Malraux – Charles de Gaulle: une histoire, deux légendes, por Alexandre Duval-Stalla,

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e leio, na página 235, que ao renunciar ao cargo de Presidente do Governo provisório em janeiro de 1946, de Gaulle anunciou ao Conselho de Ministros que o fazia por observar que “O regime exclusivo de partidos reapareceu. Eu o condeno […] Vocês assumem as disputas de seus respectivos partidos. Não é assim que eu compreendo as coisas. Por isso, eu me demito”.

Não vi, no contexto da foto oficial de Macron, nenhuma análise que lembrasse um outro aspecto do legado do Presidente Charles de Gaulle, que pode também ser relevante. Suas Mémoires de guerre se iniciam com a célebre frase “Toute ma vie, je me suis fait une certaine idée de la France”. Duas frases depois, o General declara que a França está prometida a um “destino eminente e excepcional”. De fato, de Gaulle permanece associado à noção de “grandeur”: uma França firme, de forte presença política e cultural no mundo, respeitada. No discurso em que, em novembro de 2016, lançou sua candidatura às eleições presidenciais, Macron declarou estar imbuído de “un sens de l´Histoire”.

Os dois outros volumes da Pléiade na foto, à esquerda do Presidente, são obras de Stendhal e de Gide; segundo o Élysée, respectivamente, Le Rouge et le Noir e Les Nourritures terrestres. A informação nos fornece uma precisão aparentemente desejada pelo Presidente. Com efeito, tanto as obras de Stendhal como as de Gide são editadas em vários volumes na Pléiade, cada um contendo muitos títulos, como mostram as fotos abaixo, tiradas em uma livraria de Aix:

20170719_141138~3Les Nourritures terrestres, de Gide, está incluído no primeiro de dois volumes de Romans et Écrits

20170719_135624Le Rouge et le Noir aparece no primeiro de três volumes de Oeuvres Romanesques Complètes, na mais recente edição de obras de Stendhal na Pléiade (a edição que tenho em casa é a anterior)

Sobre Le Rouge et le Noir, escrevi em minha postagem Papai Noel e a amizade: trata da ambição de um provinciano, Julien Sorel, que se envolve com uma mulher mais velha, vem a Paris, faz sucesso – até aqui parece que estamos lendo o resumo da vida de Macron – mas no final é condenado por ter atirado em sua ex-amante e guilhotinado. Macron poderia ter preferido fazer referência a outro retrato clássico da literatura francesa de um jovem ambicioso de origem provinciana, o Eugène de Rastignac de Balzac, um dos personagens principais de Le Père Goriot que, em volumes posteriores de La Comédie Humaine, faz bela carreira política e vira Ministro de Estado, sendo assim mais bem-sucedido do que Julien Sorel. Embora os romances em que transcorre a saga dos dois personagens tratem ambos do mesmo período histórico, o da Restauração dos Bourbons após a queda de Napoleão, Julien Sorel, de origem humilde, é bem mais atraente, como figura literária, do que Rastignac, falido mas nobre e, portanto, inserido no “sistema” que destruirá Julien Sorel. Este é o herói da juventude e de seus entusiasmos, enquanto que Rastignac é o modelo para os calculistas. Ao escolher Le Rouge et le Noir, Emmanuel Macron declara ser stendhaliano, portanto alguém para quem a busca da felicidade e do amor é importante, enquanto que Rastignac era movido sobretudo pela ambição. A escolha de Macron, assim, quer revelar um lado poético, idealista da alma presidencial, que conviveria bem com o lado ambicioso. É possível também que Macron tenha querido fazer uma alusão bem-humorada a quem  critica seu casamento com uma mulher bem mais velha.

A opção por Les Nourritures terrestres é menos óbvia para o público de hoje. É importante ter presente que o livro de André Gide, publicado pela primeira vez em 1897, foi, para muitas gerações de jovens franceses, um guia libertário. Pelo menos até a década de 70, influenciou o público e intelectuais. Como mencionei na postagem sobre Tagore, a fama de Gide foi colossal. Coroou-se, em 1947, com o Prêmio Nobel. Hoje, ele já não é tão lido.

Les Nourritures terrestres contém a célebre frase “Famílias! Eu vos detesto!”. Trata-se de um poema em prosa, com belas imagens sobre a luz, a natureza, as árvores, o mar, a chuva. É uma celebração da sede de viver, da sensualidade, do individualismo e um incentivo à independência – inclusive com relação ao próprio livro e à sua mensagem. Ao contrário de Le Rouge et le Noir – clássico dos clássicos – Les Nourritures, como seu autor, é hoje desconhecido do grande público. Coaduna-se com o livro de Stendhal, porém, ao fazer a apologia da libertação do ser humano de toda restrição familiar ou social que impeça sua felicidade.

Encontro no Journal de Gide, na entrada para 26 de agosto de 1926, a seguinte apreciação sobre Les Nourritures, que o autor então revisava para nova edição: “Leio nele a permissão para ser” (“J´y lis la permission de devenir”). Deve ser entendida dessa forma a decisão de Macron de inserir o livro na foto oficial: em sua vida pessoal como em sua rápida ascensão política, desafiou várias convenções para criar uma identidade muito particular e, contra todas as expectativas, tornar-se aos 39 anos Presidente da França.

A fotografia oficial de Macron tem o propósito de declarar ser o Presidente uma figura excepcional. Homem mais jovem a assumir o poder supremo na França desde Napoleão, como este casado com uma mulher mais velha e protagonista de uma ascensão fulgurante, Macron quer mostrar-se na foto como moderno, dinâmico, seguro, independente, sem amarras políticas, capaz de levar a França rumo a um futuro promissor e, ao mesmo tempo, como um conhecedor do passado e das tradições de seu país, lido, instruído, culto. Trata-se de imagem coerente com a mensagem que procurou passar durante a campanha eleitoral e é, assim, notavelmente eficaz.

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