Visitando Lord Murugan

Visitando Lord Murugan

Uma das maiores atrações turísticas dos arredores de Kuala Lumpur são as Cavernas de Batu. Até chegar à Malásia, no final de janeiro de 2020, eu nunca ouvira falar nelas. Minha mulher, a caminho de Singapura, veio comigo e passou cinco dias. No fim de semana, procurei na Internet o que seria mais interessante visitarmos. As Cavernas de Batu eram recomendadas em todos os guias turísticos, pela singularidade de conterem, engastado na encosta de uma montanha, um dos maiores templos do hinduísmo fora da Índia.

Essa era a época feliz, pré-pandemia. O novo coronavírus era algo de que, mesmo no Sudeste Asiático, ouvíamos falar como uma coisa vaga, de alcance potencial ainda incerto. Sabíamos apenas que uma doença surgira na China, causada por um vírus novo. Muitos em Kuala Lumpur se perguntavam se a Malásia seria atingida, mas não se previa o grau duradouro de transtorno que todos iríamos enfrentar.

Fomos às Cavernas de Batu. Elas ficam dentro de um morro de calcário no Estado de Selangor, a apenas uns 20 minutos de carro do centro de Kuala Lumpur. “Batu” significa “pedra” em malásio. Chegando lá, descobrimos um universo bem diferente do bairro ocidentalizado onde moro na capital, o Kuala Lumpur City Center, conhecido como KLCC. Embora eu tenha estado na Índia duas vezes, todo o pressuposto cultural e religioso das Cavernas era desconhecido para mim.

A maioria dos malásios descendentes de indianos são da etnia tâmil. Os tâmeis manifestam devoção especial pelo deus da guerra do hinduísmo, Kartikeya, conhecido por vários outros nomes, inclusive Murugan. Ele é filho de Shiva e Parvati e irmão de Ganesha, o deus com cabeça de elefante. As Cavernas de Batu, juntas, formam um templo dedicado a Lord Murugan, como ele é chamado.

Quando, estudante universitário em Londres, eu fazia da National Gallery a minha segunda casa, eu gostava particularmente dos primitivos italianos, quadros do final do século XIII ao século XIV. Quase sempre, eles retratam, sobre um fundo dourado, histórias de santos, ou Madonas ou cenas da vida de Jesus. Não só nomes famosos da história da arte, como Cimabue, Duccio e Giotto faziam parte da minha experiência estética; eu me entusiasmava também com artistas excelentes mas menos celebrados, como Bernardo Daddi e Lorenzo Veneziano. Naquele tempo, eu conhecia detalhes de seus quadros de cor, e sabia exatamente onde encontrá-los no museu, e ia ao menos uma vez por semana revê-los, de tarde, depois das aulas, beneficiando-me do acesso gratuito. Hoje, com a exceção dos artistas mais conhecidos, os demais tornaram-se para mim apenas nomes vagos. Embora eu ainda me emocione ao ver suas obras em museus pelo mundo, a intimidade se perdeu. Aos 20 anos, eu teria ficado surpreso de ouvir que, um dia, eu esqueceria amigos como Barnaba da Modena (falecido em 1386) e Ugolino di Nerio (morto em 1349), que meus pensamentos já não seriam povoados pelas suas obras. Tornaram-se para mim uma referência obscura.

Naquela época, começava o auge do turismo japonês à Europa. Eu ficava me perguntando como uma pessoa de cultura oriental via e sentia aquelas pinturas que ilustravam cenas bíblicas. Ingenuamente, eu não percebia que, mesmo para um ocidental, as histórias ou lendas retratadas em obras produzidas seis ou sete séculos antes poderiam ter perdido seu sentido intelectual ou espiritual. Posso admirar esteticamente, se estiver em Londres e for à National Gallery, o quadro de Francesco da Rimini (morto em 1348) intitulado Visão da Bem-Aventurada Clara da Rimini. Não sei porém quem foi Clara da Rimini — entendo apenas que não é a famosa Santa Clara de Assis, a amiga de São Francisco — e nem que visão ela teve.

Tampouco me ocorreu prever, na inocência dos 20 anos, que, mais tarde, ao pisar no Oriente, eu lamentaria a minha ignorância das línguas, dos costumes, das religiões, da História, das literaturas dos povos asiáticos. Já aos 30 anos, na minha primeira viagem à Ásia, a uma reunião em Kyoto, eu perceberia o quanto uma cultura pode ser impermeável, quando não dominamos seus códigos. Gostar de sushi não basta para tornar alguém um experiente japonista. No fim de semana, em Kyoto, visitei os jardins de pedra, os templos; tudo admirei, mas podia admirar apenas na superfície. Fiz essa viagem com meu chefe de então, Antonio Dayrell de Lima. Ele mais tarde se tornaria um grande amigo. Foi ele, por exemplo, quem alguns anos depois me fez passar a gostar, em Paris, do Musée Guimet. Até então, eu entrava no Guimet e, da arte oriental que ele contém, notava somente a profusão de Budas, considerando-a desnecessária, sem conseguir fazer distinção entre as diferentes estátuas.

Uma tarde, em Kyoto, Antonio e eu tomamos um chá. As duas bandejas contendo recipientes de comida e as tigelas de chá verde formavam uma obra de arte. Tudo era perfeito: naquelas bandejas, reinavam a simetria, a beleza e a serenidade. A própria cor intensa e a espessura do chá verde nada tinham a ver com o que eu estava acostumado a tomar no Brasil. Comentei com ele: “Como é possível tanta perfeição, tanta beleza em uma bandeja de comida?”. Meu então chefe, uma das pessoas mais inteligentes e irônicas que já conheci, respondeu, meditativamente mas ao mesmo tempo achando graça: “A ideia agora é você se compenetrar do fato de que toda essa harmonia será desfeita assim que você começar a comer ou a tomar o chá. A perspectiva de desfazer essa harmonia deveria provocar tristeza em você”.

Nas Cavernas de Batu, há beleza, mas não há harmonia ou serenidade. É outra cultura que a japonesa. A 20 minutos do centro de Kuala Lumpur, que lembra São Paulo, vê-se, respira-se a intensidade das cores, dos cheiros da Índia. Era como se minha mulher e eu tivéssemos tomado um avião, em vez de um carro, e viajado ao subcontinente indiano. Não há nada mais exuberante do que um templo hindu, pela profusão de estátuas multicoloridas.

Sobe-se à primeira e mais importante caverna por uma escadaria de concreto, com os 272 degraus de diferentes cores. No começo da subida, há uma estátua gigantesca de Lord Murugan, de quase 43 metros, pintada de dourado.

Eu sofro, desde a infância, de vertigem. A ideia de escalar uma montanha, mesmo por meio de degraus, é sempre problemática para mim. A ida é fácil. A volta, bem menos. Mas esse era um problema para mais tarde. Minha mulher e eu fomos subindo, animadamente.

É tudo bastante pitoresco. Há bandos de macacos ao longo dos degraus, e nos corrimões. Pertencem à espécie Macaca fascicularis, nomeada assim pelo administrador colonial inglês Sir Thomas Stamford Raffles, sobre quem já falei na segunda Carta da Malásia, Juru Damang, o Elefante Real. A presença do público nos degraus e dentro das cavernas não incomoda o macaco-caranguejeiro, como ele é conhecido em português.

A combinação dos degraus coloridos, da profusão de macacos, da beleza da montanha arborizada, mas onde o calcário é visível, da perspectiva de entrar em um templo dentro de cavernas, da lembrança da estátua colossal lá embaixo, tornam a subida uma experiência extraordinária.

Chegando à primeira caverna, que é a principal, ficamos nos perguntando se valeria a pena subir mais. As seguintes, imaginamos, seriam mais escuras e opressivas. Depois de alguns minutos, fui sozinho à segunda caverna, que me pareceu, de fato, mais inquietante do que a primeira. Havia urina no chão, o cheiro era forte. O problema maior, porém, era outro. Talvez este seja um bom momento para revelar que, além de vertigem, eu sofro de claustrofobia. Desci as escadas e juntei-me rapidamente à minha mulher na primeira caverna.

Ao iniciar a descida, vi, ao longe, a silhueta dos arranha-céus de Kuala Lumpur. Depois, concentrei-me nos degraus, evitando olhar para o horizonte ou para muito abaixo na escadaria.

Duas semanas depois, no início de fevereiro, aconteceu o Festival de Thaipusam, que comemora a ocasião em que Parvati presenteia a seu filho Murugan uma lança para derrotar um demônio.  Na região metropolitana de Kuala Lumpur, é nas Cavernas de Batu que o Festival é comemorado, durante todo um fim de semana. Fui no sábado à tarde, a convite dos administradores do templo.

Ao chegar, fiquei impressionado com a multidão. Era um cenário bem diferente do que eu vira duas semanas antes, quando havia umas poucas centenas de visitantes nas Cavernas, na escadaria ou no solo. O Thaipusam concentrara não só boa parte da população de origem tâmil da capital, como milhares dos turistas estrangeiros de passagem por Kuala Lumpur. Parecia que o centro do mundo era ali. Disseram-me meus anfitriões que, todo ano, durante o fim de semana, centenas de milhares de pessoas participam do Festival. Julguei estarem todas ali naquele momento.

Muitos participantes do Festival vão às Cavernas de Batu caminhando em procissões, vestidos de amarelo, e fazem a ascensão ao templo nas cavernas carregando potes de leite na cabeça, como oferenda. Outros carregam na cabeça adereços pesados, presos por estacas ao corpo, aos lábios ou à língua, às vezes por meio de perfurações. Ver isso é penoso, e devemos então imaginar quão doloroso será praticar essa auto-mortificação. Os adereços frequentemente são adornados com plumas de pavão, animal associado a Murugan. Os devotos em estado de auto-mortificação chegam ao local exaustos, quase frenéticos de tão cansados, depois de caminhar quilômetros carregando os adereços. Precisam, às vezes, parar e descansar, antes de enfrentar as escadarias. Vêm acompanhados de músicos, cujos instrumentos emitem sons extremamente parecidos com uma batucada. Alguns carregam seus adereços acompanhando o ritmo da música, como se estivessem dançando. Enquanto isso, seguem em direção às escadarias as procissões dos portadores de leite, homens e mulheres, com túnicas em diferentes tons de amarelo, serenos, monásticos, dando a impressão de pertencer a uma religiosidade diferente da dos homens de torso nu, agitados, carregando as armações na cabeça.

Mais tarde, ao entardecer, tendo voltado para casa, coloquei fotos e vídeos do Festival nas redes sociais. Amigos brasileiros comentaram que parecia Carnaval. Queriam dizer que as cenas lembravam o nosso Carnaval de rua, com seus blocos, a música, a forte concentração humana, o clima de celebração. O Thaipusam, porém, é uma manifestação de espírito religioso, um ato de devoção, o que não é o caso do Carnaval.

Normalmente, evito multidões. Mas assim como, se estou no Rio no Carnaval, saio com a Banda de Ipanema; assim como, se estou no Rio no réveillon, vou à areia de Copacabana; ou, se estou em Paris, em qualquer momento, faço fila para entrar no Louvre; e também em Roma, para revisitar a Basílica de São Pedro, senti contentamento pleno de estar ali, aos pés da estátua colossal de Lord Murugan. Uma realidade nova, misteriosa, até então impossível de imaginar revelava-se aos meus olhos e aos meus ouvidos. Nada ao meu redor era banal. Por mais que eu estudasse aqueles costumes, aquela religião, aquele cenário, muito ficaria para sempre impermeável à minha compreensão.

Nesse dia, não subi ao templo dedicado a Lord Murugan. Pensei que haveria acotovelamento na escadaria e dentro das cavernas. Lembrei também que convinha deixar o espaço apertado para os devotos. Aquele era um dos dias mais importantes do ano para eles. Aproveitei para visitar, o que não pudera fazer na vez anterior, templos ao nível do solo, que homenageiam outras divindades do hinduísmo.

Depois, arrependi-me. Imaginei que o interior das cavernas, amontoado de pessoas fazendo suas devoções e suas oferendas, permitiria observações importantes. Reduziria, talvez, a distância cultural. Prometi a mim mesmo que, no Thaipusam de 2021, eu iria às cavernas.

Na volta a Kuala Lumpur, ao me despedir do jovem colega que fora ao Festival comigo, recomendei-lhe: “Lembra, ao entrar em casa, antes de ir brincar com teus filhos, de lavar as mãos primeiro”. Em apenas duas semanas, a consciência da pandemia se tornara profunda na Malásia. Em um mês, o primeiro confinamento começaria.

Ninguém sabia ainda mas, em 2021, o Thaipusam não seria comemorado. Não pude mais voltar às cavernas.

Esta XII Carta da Malásia foi primeiro publicada, em 21 de agosto de 2021, na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte

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O Sonho do Louvre

O Sonho do Louvre

Em 14 de maio de 1717, às seis horas da manhã, Pedro, o Grande, foi à Grande Galerie do Louvre, onde então ficavam expostos mapas em alto relevo de praças-fortes francesas. Quem nos conta isso é o duque de Saint-Simon em suas Memórias. Lá ele nos diz, sem dar mais detalhes, que o czar, depois de “examinar por muito tempo” os mapas, “visitou depois vários lugares do Louvre, e saiu ao jardim das Tulherias, do qual todo mundo havia sido retirado”.

Essa anedota não é mencionada pelo crítico de arte e de arquitetura americano James Gardner em seu livro sobre o palácio-museu publicado em 2020, The Louvre: The Many Lives of the World´s Most Famous Museum. A associação que Gardner prefere fazer entre o czar e o Louvre remete a outra observação encontrada nas Memórias de Saint-Simon, embora a fonte usada pelo autor americano não seja o duque diretamente, mas L´Histoire du Louvre, obra em três volumes, de 2016, editada por Geneviève Bresc-Bautier e Guillaume Fonkenell.

Ao chegar a Paris, uma semana antes da visita aos mapas, o czar considerara excessivamente luxuoso (“trop magnifiquement tendu et éclairé”) o apartamento reservado para ele no palácio, ocupado no século XVII pela rainha Ana d´Áustria, mãe de Luís XIV, e preferira hospedar-se em uma residência particular.

Quando o soberano russo esteve no Louvre, este não era ainda um museu, mas um palácio desertado pela realeza. Nele viviam e trabalhavam artistas e acadêmicos, em apartamentos e ateliês cedidos pela monarquia. James Gardner aponta que muitos dos quadros e das esculturas de artistas franceses expostos hoje em dia no museu foram criados ali mesmo. Chardin, Hubert Robert, Quentin de La Tour, Fragonard, David, Pigalle e Falconet, entre outros, moraram no Louvre.

Luís XV, então com sete anos de idade, residia perto, no palácio das Tulherias, conectado ao Louvre pela Grande Galerie. Em 1722, o rei faria a corte retornar a Versailles, abandonado desde a morte de Luís XIV, seu bisavô, em 1715.

O Louvre visitado por Pedro, o Grande era menor do que a construção que vemos hoje. O edifício é um resumo da história da França e com ela se identifica. Inúmeros arquitetos, pintores, escultores trabalharam nele, ao longo de 800 anos. Nesse período, se poucos reis moraram no palácio, vários se dedicaram a embelezá-lo e ampliá-lo.

Construído no final do século XII por Felipe Augusto como uma fortaleza, em uma área que hoje representa apenas uma quarta parte, o quadrilátero sudoeste, da atual Cour Carrée, o Louvre foi no século XIV uma das residências do rei Carlos V. No Renascimento, a Cour Carrée ganhou uma fachada ilustre, do arquiteto Pierre Lescot. James Gardner comenta que a ala edificada por Lescot influenciou não somente a arquitetura subsequente do Louvre, mas também o classicismo francês, “which in turn inspired the Beaux-Arts idiom of Baron Haussmann that is so integral to what we imagine when we think of Paris today”.

Passou a ser necessário, no século XVI, transformar o castelo medieval em palácio imponente, mas o fato é que o Louvre foi crescendo apenas aos poucos. Uma das muitas histórias contadas por Gardner é a de que, ao chegar a Paris em 1601, como segunda mulher de Henrique IV, a rainha Maria de Médicis, que crescera em Florença, achou espantoso que “os reis da França em geral, e ela mesma em particular, tivessem de residir em algo de tanto mau gosto e tão degradado”. Parece-me uma das ironias da longa existência do Louvre que um dos períodos de maior embelezamento do palácio tenha acontecido na primeira metade do reinado do neto de Henrique IV e Maria de Médicis, Luís XIV, que abandonaria Paris por Versalhes.

Até o século XVIII, ainda existiam habitações modestas, ocupadas por particulares, no centro da Cour Carrée. Em meados do século XIX, vias públicas e casas particulares ocupavam o espaço onde hoje estão a Cour Napoléon e a Cour du Carrousel. Isso foi antes de Napoleão III terminar a ala norte e dar ao prédio a aparência uniforme que ele possui aos nossos olhos, quando o vemos do Arco do Carrossel e do jardim das Tulherias. Autores que escrevem sobre o Louvre costumam lembrar que, em La Cousine Bette, de Balzac, publicado em 1846, a personagem principal mora em uma viela obscura e perigosa nesse bairro hoje extinto que o palácio como que abrigava.

Quando, há muitos anos, li o livro de Balzac, fiquei intrigado. Não conseguia imaginar de que forma, nos pátios hoje circundados pelo esplendoroso edifício do palácio-museu, onde estão a pirâmide de I. M. Pei e a cópia em chumbo da estátua equestre de Luís XIV por Bernini, houvera anteriormente casas, albergues e tavernas. Em La Cousine Bette, Balzac descreve o bairro no capítulo 13 e já o apresenta como condenado a desaparecer, considerando sua sobrevivência até então como um atentado “contre le bons sens”. Afirma o escritor: “nossos sobrinhos, que sem dúvida verão o Louvre completado, se recusarão a acreditar que uma tal barbárie tenha subsistido” por tantos anos no coração de Paris. Napoleão I começara a demolir o bairro; trinta anos depois, em 1838, quando tem início o romance de Balzac, sobravam ainda uma rua e uma via sem saída. A descrição feita das casas pelo escritor é lúgubre. Dramático, ele faz o Louvre gritar: “Extirpem essas verrugas do meu rosto!”.

Parece inconcebível, e somente muitas leituras sobre a expansão do Louvre me fizeram entender a evolução daquele terreno ao longo do tempo. James Gardner, de resto, sofre das mesmas inquietações. Já na introdução do seu volume, ele nos diz que “no final do período galo-romano, nos primeiros séculos da Era Comum, duas fazendas, uma na Cour Napoléon, a outra no lugar da praça do Carrossel, criavam gado e porcos, e eram fartas em ameixoeiras, pereiras e macieiras, assim como vinhedos”.

Não sei porém se podemos dizer que foi Napoleão III quem terminou a construção do Louvre. Digamos que ele concluiu as fachadas e o processo secular de interligar o Louvre ao palácio das Tulherias. Desde então, houve acréscimos, como o projeto do Grand Louvre de François Mitterrand, que incluiu a Pirâmide de I. M. Pei, inaugurada em 1989. Em 2012, abriu-se em um dos pátios o pavilhão de arte islâmica, cujo teto é coberto por uma tela dourada, ondulada, a meu ver, como um tapete voador. James Gardner prefere considerá-lo inspirado de “uma tenda beduína”.

Uma vez, em 2014, visitei a coleção de arte islâmica por acaso. Nunca mais consegui chegar até ela. O Louvre é assim, um universo próprio, onde parte do prazer é ir andando, sem rumo certo, descobrindo salas que nem sabíamos existir, ou que foram modificadas desde a última visita. Mais problemático é quando queremos ver ou rever salas ou peças específicas. Pode haver dificuldade em encontrar o caminho certo pelos meandros do museu. Em A culpa foi da Mona Lisa narrei minha frustração de não poder, em 2019, chegar até a Galerie Médicis para ver as grandes telas de Rubens narrando a vida de Maria de Médicis. Há muitos anos, não visito a coleção egípcia, que abriga duas das minhas peças prediletas, o famoso Escriba Sentado e o gigantesco busto de Akhenaton.

No último dia de setembro, almocei no Museu de Arte Islâmica de Kuala Lumpur — sobre o qual escrevi em novembro uma Carta da Malásia, “Os Bois de Mirza Babur” — com seu fundador e diretor, Syed Mohamad Albukhary, que me disse considerar o Louvre confuso. Falou com mais apreço de outros museus, os Uffizi e o Gulbenkian, e posso entender a razão. O Gulbenkian, especialmente, é compacto, agradável, fácil de visitar, apesar de sua coleção abrangente e extraordinária. A opinião de Albukhary sobre o museu parisiense não é isolada. Em um livro intitulado O Louvre e seus Visitantes, de 2009, que reúne algumas das fotos tiradas por Alécio de Andrade, ao longo de quase quatro décadas, retratando o público frente a obras de arte no museu, o sociólogo Edgar Morin nos diz, no prefácio que “luxe, immensité, étrangeté, poids du pouvoir et de la richesse” são parte integrante do palácio-museu, “labirinto acachapante” (“labyrinthe écrasant“), todas elas características que podem criar “desestabilização” no visitante.

Ninguém nunca considerou o museu mais famoso do mundo fácil de visitar. Outro “biógrafo” do Louvre, Pierre Rosenberg, que foi seu diretor de 1994 a 2001 e publicou, em 2007, pela editora Plon, um Dictionnaire amoureux do museu, comenta, no prefácio, que “apenas uma longa prática do lugar impede que a pessoa se perca nele. Mas será que é tão desagradável assim perder-se no Louvre?”.

O livro de James Gardner, de início, frustrou-me. Localizei nele algumas imprecisões sobre a história da França que me decepcionaram. Um ano depois, com o prolongamento da pandemia, e o continuado fechamento das fronteiras na Malásia, passei a ver suas qualidades. Uma viagem a Paris e uma visita ao Louvre soam, por enquanto, como um sonho não impossível, mas de realização incômoda, por causa das novas regras impostas pela Covid-19. Mergulhar na história do prédio como ela é narrada por Gardner, aliás de forma cativante, é uma boa substituição. Reconciliei-me com o livro, também, por causa de uma observação de Pierre Rosenberg no prefácio de seu Dictionnaire amoureux, a de que alguns o criticarão “pelas negligências e as imprecisões, os erros e os desconhecimentos. Il faudrait tout savoir, tout connaître…”.

A questão com o Louvre é que a arquitetura e a história do prédio são tão fascinantes quanto as suas coleções. Uma época, quando eu era estudante em Londres, e de vez em quando podia ir a Paris, o que eu mais admirava no exterior do palácio era a Colonnade, a fachada leste encomendada por Luís XIV e terminada na década de 1670 em estilo clássico. Sua influência sobre a arquitetura foi grande. Essa fachada é famosa também porque Bernini foi convidado a vir de Roma a Paris, em 1665, para apresentar projetos para sua construção. Seus planos foram rejeitados, embora ele tenha sido tratado na França como uma celebridade do mundo do cinema hoje seria. Da sua visita, sobrou um renomado busto em mármore de Luís XIV, que podemos admirar em Versalhes. Mais tarde, de Roma, ele enviou uma estátua equestre do rei que desagradou, e cuja cópia em chumbo é a que vemos perto da Pirâmide, na Cour Napoléon.

A fachada leste é também conhecida como Colonnade Perrault, por causa de um dos arquitetos que trabalharam na sua concepção, Claude Perrault, irmão de Charles Perrault, o autor de contos de fadas. Lembro nitidamente que, ao menos uma vez, aos 20 anos, foi frente a essa fachada que fiz fila para entrar no museu. Hoje, muitos turistas nem percebem que a Colonnade existe, apesar da sua imponência, simplesmente porque nunca passam diante dela. Outro crítico de arte americano, John Russell, em seu belo livro sobre Paris em formato grande, ilustrado, publicado em 1983, nos diz, no capítulo dedicado ao palácio: “The colonnade has become, in fact, the disregarded back door of the Louvre”. Concebida para ser a entrada principal, virou, nas palavras de Russell, “an ordinary gateway through which disoriented sightseers occasionally pass”. Ele cita a respeito a frase de um comentarista de 1856 que nos mostra que já era assim em meados do século XIX.

Há poucos dias, a Colonnade apareceu em um dos meus sonhos: parado frente a ela, eu a olhava e sentia felicidade. Claramente, estava aí simbolizada minha ambição, apesar da pandemia e do fechamento das fronteiras na Malásia, e do transtorno em que as viagens de avião se transformaram, de voltar a viajar. É um belo sonho, perfeitamente inocente, penso eu, querer estar em Paris para rever a fachada leste do Louvre.

Devemos a Henry James a descrição de um sonho famoso sobre o edifício. Em 1855, aos 12 anos, ele entrou pela primeira vez no museu, que aparece algumas vezes em sua obra de ficção. É porém em um de seus livros autobiográficos, A Small Boy and Others, publicado em 1914, que pode ser lida sua impressão do prédio: “O Louvre é, de forma geral, o mais povoado de todos os cenários, mas também o mais silencioso dos templos”. Suponho que o termo “povoado” refira-se aos muitos personagens retratados nas pinturas, pois para Henry James — como seria também para Marcel Proust algumas décadas mais tarde — o Louvre era sobretudo a coleção de pinturas, embora ele mencione o Escravo Morrendo de Michelângelo em outro livro autobiográfico.

É a Galerie d’Apollon que Heny James descreve de maneira mais detalhada e com mais afeto em A Small Boy and Others. A galeria é talvez a mais luxuosa de todo o Louvre; sua decoração foi iniciada no reinado de Luís XIV e terminada sob Napoleão III, quando Delacroix dela participou, com uma pintura no teto. Henry James nos conta que, durante anos, a galeria tornou-se para ele “a splendid scene of things”. Viria a ser porém o cenário do pesadelo — “the most appalling yet most admirable nightmare of my life” — que ele teria muitos anos depois de visitar o museu pela primeira vez. O pesadelo, descrito em detalhe pelo escritor, é maçante, como costumam ser os sonhos alheios, mas tornou-se célebre, por pertencer a Henry James e por ter a Galerie d’Apollon como palco.

Naturalmente, o espaço predileto de todo mundo é a Salle des États, onde está a Mona Lisa. A célebre florentina obscurece os outros quadros expostos em torno a ela. No entanto, há nessa sala obras famosas, de Ticiano, de Veronese, que pintou o maior quadro do museu, As Bodas de Canaã, pendurado frente à tela de Leonardo da Vinci. As Bodas de Canãa sempre exerceu sobre mim um total fascínio. Sobre essa pintura, Cynthia Saltzman publicou este ano o livro Plunder: Napoleon’s Theft of Veronese’s Feast, que descreve como ela foi extraída da parede em Veneza para a qual fora pintada, no século XVI, e levada para a França em 1797.

A Salle des États foi redecorada em 2019, e hoje está pintada de um azul escuro, não mais da cor areia com que a vi nas minhas últimas visitas. Ela abre, por uma de suas duas portas, sobre a Grande Galerie. Acho que ninguém continua a ser a mesma pessoa, depois de seguir os passos de Pedro, o Grande e caminhar pela galeria que corre ao longo do Sena e é hoje povoada por obras-primas da pintura italiana. Ela inspira livros e filmes, alguns medíocres, como é o caso de The Da Vinci Code. No filme, vendo de madrugada o cadáver do avô estendido no chão da galeria, e sabendo que ele, antes de morrer, deixara uma pista sobre seu assassinato na Mona Lisa, o personagem de Andrey Tatou diz ao de Tom Hanks: “Professor, the Mona Lisa is right over here!”. Inocente criatura. Ela acha de verdade que alguém pode não saber disso?

Algumas das numerosas referências contemporâneas ao Louvre e aos seus tesouros na literatura e nas artes contribuem para revitalizar nossa percepção sobre o museu. Em 2018, Beyoncé e Jay-Z lançaram o vídeo de uma música, “Apeshit”, que se passa no Louvre, frente a algumas de suas peças mais famosas, fazendo-nos vê-las de uma maneira impactante. A Vitória de Samotrácia, o Escalier Daru que leva a ela, As Bodas de Canãa, e duas telas de David — o retrato de Madame Récamier e a Coroação de Napoleão I — ganham uma vida mais rica e novo significado, ao se tornarem cenário da música e da coreografia. Diante das obras do Louvre, é impossível não pensar nos milhões de seres humanos, geração após geração, cujo olhar já se pousou sobre elas, nos muitos autores que já as mencionaram, e nos pintores que já as retrataram.

Nas últimas vezes em que fui ao museu, meu lugar predileto foram as salas enfileiradas de estatuária romana no apartamento de Ana d’Áustria, o mesmo que Pedro, o Grande, achou de um luxo excessivo. É uma sucessão ilustre de estátuas e bustos de imperadores, imperatrizes, generais e seres anônimos ou não-identificados. Não passo por acaso por essas salas. Busco-as de forma determinada, para rever o busto de Germânico, a quem admiro simplesmente porque ele é uma das poucas figuras descritas de forma empática por Tácito em seus Anais.

Depois dos primeiros anos do reinado de Luís XIV, nenhum soberano voltou a morar no Louvre. Os reis que residiram em Paris a partir daí moraram no palácio das Tulherias, na outra ponta da Grande Galerie. As Tulherias foram incendiadas em 1871, durante a Comuna, porque era esse o prédio, cuja construção fora iniciada em meados do século XVI por Catarina de Médicis, que ficara associado, no imaginário popular, à monarquia. De 1882 a 1883, a estrutura chamuscada do palácio foi destruída por ordem do governo republicano.

O Louvre, assim, beneficiou-se de já não ser a casa dos reis. Foi poupado pelos communards. Outro dos “biógrafos” do grande museu, Jean-Pierre Babelon, em ensaio sobre o palácio na coleção dirigida por Pierre Nora Les Lieux de Mémoire – e o fato de o palácio-museu merecer um texto na coleção demonstra sua centralidade para a identidade francesa – aponta a ironia de que as Tulherias tenham sido destruídas poucos anos depois de ter sido finalmente completada, em 1857, a interligação entre os dois edifícios, esforço de 250 anos e de vários governantes.

O incêndio e a demolição trouxeram porém uma compensação. Abriram o Louvre para a cidade, para os jardins do palácio queimado, fizeram dele parte da perspectiva em direção à Place de la Concorde, aos Champs-Elysées, ao Arco do Triunfo e ao Arco da Défense. Babelon estima que o palácio das Tulherias deixou de ser monumento histórico para dar lugar, “dans la mémoire collective, à un palais fantôme”. Deixou a lembrança de “un destin maléfique”, sendo o “palácio das revoluções, o palácio dos reis fugitivos”. De fato, dos soberanos que nele residiram a partir de 1789, Luís XVI, Carlos X, Napoleão I, Napoleão III perderam todos o trono; o primeiro foi guilhotinado, e os demais morreram no exílio. A exceção foi o irmão de Luís XVI, Luís XVIII, que agonizou em sua cama nas Tulherias, em 1824. Mas  também ele perdera o trono por três meses, em 1815, durante os Cem Dias da volta de Napoleão ao poder, e tivera de fugir das Tulherias e se exilar em Gand.

Para o turista que passeia pelos arredores do Louvre, pelos seus pátios ou as suas salas, nada disso tem importância. Não é preciso saber que o cortejo de núpcias de Napoleão I e sua segunda mulher, a arquiduquesa Maria Luísa da Áustria, passou pela Grande Galerie em 1810, a caminho da capela montada no Salon Carré; que pela mesma galeria a imperatriz Eugénie fugiu, em 1870, vindo do palácio das Tulherias a caminho da saída pela Colonnade e do exílio, após a queda de seu marido, Napoleão III.

Em seu filme de 2015 sobre o Louvre, Francofonia, Aleksandr Sokurov toma a Ocupação alemã e o temor que ela ocasiona sobre o futuro das obras-primas no palácio-museu como base para suas reflexões sobre a arte : “quem seríamos sem os museus?”. O cineasta russo opina que o Louvre deve valer mais do que toda a França.

James Gardner termina seu livro com uma citação de A Small Boy and Others, uma frase na qual Henry James escreve que a Galerie d´Apollon — e, devemos presumir, por extensão o Louvre — representa “não só beleza e arte, e concepção suprema, mas história, fama e poder, o mundo in fine elevado à sua expressão mais rica e nobre”.

Existirá o Louvre para sempre? Voltará a servir de pastagem para “gado e porcos”? Virará um arranha-céu? Será poupado de incêndios? As obras-primas que contém permanecerão culturalmente valiosas até o fim dos tempos? Tudo isso, ou nada, pode acontecer.

Um dos quadros mais surpreendentes sobre o edifício, exibido em uma de suas salas, é o de Hubert Robert, de 1796, intitulado Vista Imaginária da Grande Galeria do Louvre em Ruínas. E é exatamente o que vemos: a Grande Galerie como se fosse uma ruína romana, sem teto, com colunas ainda em pé, pessoas sentadas em blocos de pedras. Apenas uma obra de arte sobreviveu, a versão em bronze da célebre escultura romana Apolo do Belvedere. O original em mármore era, no final do século XVIII, nos diz Kenneth Clark em seu livro The Nude: a study of ideal art, de 1956, “one of the two most famous works of art in the world”. A cópia em bronze possui uma origem ilustre. Encomendada por Francisco I, ficou no castelo de Fontainebleau do século XVI até a Revolução, quando foi levada para o Louvre, onde permaneceu até 1967. Naquele ano, voltou para Fontainebleau. A própria escultura original chegaria de Roma a Paris em 1797, parte do botim obtido pelo exército de Napoleão, então ainda general, na Campanha da Itália. Foi devolvida ao Papa em 1815, após a derrota final do imperador.

As obras de arte viajam; desaparecem; ganham ou perdem importância. Os nomes de seus criadores são esquecidos. Se uma fortaleza, um palácio, uma estação de trem viram museus, o contrário deve também ser passível de acontecer. Mas, por enquanto, o Louvre e suas coleções continuarão a existir à beira do Sena. Serão ainda visitados por milhões, de forma física, virtual ou onírica.

O museu e suas obras vivem em mim desde que, criança, prestes a iniciar a subida da escadaria Daru pela primeira vez, vi no seu topo a Vitória de Samotrácia, bela, imponente mas etérea, prestes a voar, parecendo convidar-me e simbolizando, para sempre, a independência e os sonhos que a arte traz.

As fotos são todas do autor

Versão mais curta deste texto foi publicada originalmente na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte, em 9 de outubro de 2021

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Joseph Brodsky no Corcovado

Joseph Brodsky no Corcovado

Em 1979, Joseph Brodsky passou uma semana no Rio de Janeiro. O poeta e ensaísta lá participou de um congresso do Pen Clube Internacional. On Grief and Reason, sua segunda e última coleção de ensaios, publicada em 1995, um ano antes de sua morte por ataque cardíaco aos 55 anos, inclui um texto intitulado “After a Journey, or Homage to Vertebrae”. A viagem ao Rio de Janeiro é o assunto do texto.

Na prosa de Brodsky, não são muitas as cidades que recebem destaque. Em sua primeira coletânea de ensaios, Less Than One, de 1986, que contribuiu para a concessão do Prêmio Nobel ao autor em 1987, há uma homenagem a São Petersburgo, “A Guide to a Renamed City”. Brodsky nascera em São Petersburgo em 1940, no período em que a ex-capital, de 1924 a 1991, se chamou Leningrado. No mesmo volume, um longo ensaio, “Flight from Byzantium”, descreve não tanto uma viagem ao Bósforo, mas as percepções sobre a História que o lugar, como antiga sede dos impérios romano, bizantino e otomano, fornece a ele: “I came to Istanbul to look at the past”. Em On Grief and Reason, onde se insere o texto sobre o Rio de Janeiro, outro ensaio, “Homage to Marcus Aurelius”, fala pouco de Roma, e muito da Antiguidade e do Império Romano. Um livro avulso de 1992, Watermark, de cerca de 130 páginas, é todo sobre Veneza.

O Rio, assim, mereceu de Joseph Brodsky uma distinção pouco usual. Seus sentimentos sobre a cidade foram, porém, ambíguos.

No embarque, em Nova York, iniciam-se as frustrações. Brodsky nos diz que a VARIG vendera o dobro dos assentos disponíveis e que a situação era caótica. Ele nos explica que a atitude “indiferente” dos funcionários era de se esperar, já que a companhia, está convencido, era estatal: “you sense you are dealing with a state — the company is nationalized and everyone is a state employee”.

Nas primeiras linhas, portanto, já se vê o quanto Brodsky viajou ao Brasil despreparado e desinformado. Ele erra inclusive a data de sua viagem: diz que ela ocorreu em 1978. Pesquisando, descubro que o congresso do Pen Clube aconteceu em 1979 e fico intrigado de que o autor possa ter confundido o ano da sua única visita ao Brasil e, na verdade, à América do Sul.

Depois de um voo terrível — o avião está lotado, a poltrona não reclina, bebês choram — há a chegada ao Rio e o primeiro contato com um motorista de táxi carioca. O carro que o leva até o hotel contorna, acredita ele, “a margem direita do famoso rio Janeiro”. Não estou inventando. O texto diz: “From the airport to downtown, the taxi is rushing along the right (?) bank of that famous January River”. O ponto de interrogação é dele. Será a frase irônica? Em todo caso, de tão absurdo, esse é o trecho mais engraçado — o único, talvez — do texto.

No trajeto do aeroporto ao Hotel Glória, surgem pensamentos esdrúxulos. O poeta avalia que a forma como as pessoas dirigem no Brasil explica “os triunfos” do país no futebol. Todo motorista brasileiro “é uma mistura de Pelé e de um kamikaze”. Não entende como o Brasil consegue, com seu trânsito perigoso, ter crescimento populacional. A cada cem metros, “garotos cor de cacau” (“cocoa-shaded kids”) estão batendo bola nas ruas.

Mais algumas páginas, e ele nos contará, ao falar brevemente dos delegados de países africanos ao congresso, que eles tinham, “abaixo do cinto, alguma experiência parisiense, porque a vida não vale a pena para uma esquerdista da Rive Gauche, se ela nunca teve um negro revolucionário do Terceiro Mundo” (“if she never had a revolutionary Negro from the Third World”). É constrangedor que, em 1995, um escritor ganhador do Prêmio Nobel se sentisse à vontade para publicar frases assim, em um texto de não-ficção, de cunho memorialístico.

Os deuses, ou os cariocas, estavam naquela semana determinados a fazer com que o poeta se desiludisse com a cidade. Uma ida à praia de Copacabana termina mal, pois roubam dele, na areia, um relógio, valioso ao menos do ponto de vista sentimental, e 400 dólares. A quantia, hoje, equivaleria a pouco mais de 1.500 dólares.

Um dado particularmente enigmático é que, no Rio de Janeiro, Brodsky vê a Alemanha em toda parte. A primeira coisa que ele nota é a prevalência, no trânsito, do fusquinha. Os aparelhos telefônicos, aprendemos ao lê-lo, eram todos da Siemens. O roubo na praia é feito graças à participação de um cão pastor alemão, pertencente ao assaltante, que distrai a vítima enquanto seu dono pega o dinheiro. O cônsul da Alemanha Ocidental — estamos na época em que havia duas Alemanhas — gentilmente informa ao poeta, antes russo e, desde 1977, naturalizado americano, que as prostitutas, no Rio, “do not take money” e ficam surpresas se um cliente se oferece para pagá-las. De maneira característica, Brodsky nos diz que não teve oportunidade de comprovar se essa afirmação era verdadeira, porque ficou “ocupado, como se diz, de manhã até de noite, com uma delegada nórdica de longas pernas”. O prestimoso diplomata alemão aconselha também cuidado com o mar, pois as praias do Rio são frequentadas por tubarões.

A obsessão em ver uma forte presença germânica, e mesmo nazista, no Rio me fez lembrar que Brodsky passara, criança, pelo cerco alemão a Leningrado, de quase dois anos e meio, de 1941 a 1944. Ao menos um milhão e meio de habitantes da cidade morreram.

O Cristo Redentor, pelo menos, ele não germanizou. Preferiu italianizá-lo. Partiu do Rio convencido de que a estátua fora um presente de Mussolini à cidade.

O Rio de Janeiro visto por Joseph Brodsky é um lugar sem história. Ele lamenta que os prédios sejam todos contemporâneos e, na sua avaliação, feios: “a very monotonous city […] the two- or three-kilometer strip between the ocean and the looming cliffs is entirely overgrown with utterly moronic — à la that idiot Le Corbusier — beehive ‘structures’ […] the eighteenth and the nineteenth centuries are completely wiped out”. Ele não está totalmente errado, mas faltou alguém que o levasse ao Mosteiro de São Bento, ao Theatro Municipal, ao Palácio Itamaraty. Para um poeta e ensaísta que refletia sobre a História, a falta de referência ao passado, no Rio que ele pôde conhecer, terá contribuído para sua má vontade em relação ao lugar.

A cidade pode também ter ficado associada para ele à monotonia do evento que o fizera viajar até a margem do “famoso rio Janeiro”. Ele nos diz que o congresso foi “excruciating in its boredom, vacuity”. Outros participantes aparecem com pseudônimos. Mario Vargas Llosa, então presidente do Pen Clube Internacional e que, leio em outra fonte, foi o responsável pela ida de Brodsky ao Rio, vira Julio Llianos.

Um dos delegados é mencionado duas ou três vezes como “the Great Translator”. O apelido não me soa amável porque sinto nele, foneticamente, ecos do “Grande Inquisidor” de Dostoiesvki. Fiquei me perguntando quem seria. Uma frase de Brodsky dá a chave: ele nos diz que o “Great Translator” talvez fosse o escritor mais importante presente no congresso, pois “a reputação [literária] de todo o continente repousava sobre ele”.

Trata-se, sem dúvida, de Gregory Rabassa, cujas traduções do português e do espanhol para o inglês foram responsáveis, em seu tempo, pelo sucesso da literatura latino-americana nos países anglófonos. Embriagado (“stupefied by alcohol”), Brodsky questiona junto ao “Grande Tradutor” a qualidade dos escritores que ele traduz, criticando um livro em particular, o Cien años de soledad. É conhecida a anedota de que Gabriel García Márquez considerava melhor do que o original a tradução feita por Gregory Rabassa do seu romance.

Brodsky partiu do Rio sem levar nenhuma recordação física. Chega a perguntar-se: “Was I really there?”. As fotos tiradas dele e da “nórdica” no Jardim Botânico ficaram na câmera dela. Uma embalagem de talco foi a única coisa que ele comprou na cidade. Com ironia, comenta que mesmo os seus 400 dólares terão sido rapidamente gastos pelo ladrão, sem deixar rastros.

Sobrou da viagem apenas um poema, intitulado Rio Samba, que sequer ele próprio considera muito bom, embora julgue que “some rhymes aren´t so bad”. Já sem me surpreender, constato que a Alemanha é bem presente nos versos:

Come to Rio, oh come to Rio.
Grow a mustache and change your bio.
Here the rich get richer, the poor get poorer,
here each old man is a Sturmbannführer.

Come to Rio, oh come to Rio.
There is no other city with such brio.
There are phones by Siemens, and even Jews
drive around like crazy in VWs.

Come to Rio, oh come to Rio.
Here Urania rules and no trace of Clio.
Buildings ape Corbusier’s beehive-cum-waffle,
though this time you can’t blame this on the Luftwaffe.

Come to Rio, oh come to Rio.
Here every bird sings “O sole mio.”
So do fish when caught, so do proud snow geese

in midwinter here, in Portuguese.

Come to Rio, oh come to Rio.
It’s the Third World all right, so they still read Leo
Trotsky, Guevara, and other sirens;
still, the backwardness spares them the missile silos.

Come to Rio, oh come to Rio.
If you come in duo, you may leave in trio.
If you come alone, you’ll leave with a zero
in your thoughts as valuable as one cruzeiro.

O humor nesses versos ofensivos está ligado à curiosa certeza de Brodsky de ser o Rio, naquela época, um antro de ex-nazistas escapados da Alemanha depois de 1945 — o que explica o segundo verso, “Grow a mustache and change your bio”.

Poucos dias antes de ler “After a Journey”, eu lera Watermark, o curto livro de Brodsky dedicado a Veneza. O espírito é bem diferente do texto sobre o Rio. Veneza, que Brodsky visitou todos os anos depois de ser expulso da União Soviética, em 1972, era sua paixão, e ele lá está enterrado, no cemitério da ilha de San Michele, embora tenha morrido, em 1996, no seu apartamento no Brooklyn. Ele costumava visitar a cidade no inverno pois, como explica, suportava mal o calor.

Duas entrevistas revelam as visões divergentes do autor sobre o Rio de Janeiro e Veneza. Em dezembro de 1979, cinco meses após a sua viagem ao Brasil, entrevistado por The Paris Review, ele é perguntado sobre seu amor por Veneza. A resposta é longa e entusiasmada e inclui a frase: “É tão bonita, que você sabe que nada, na sua vida, que você possa inventar ou produzir poderia ter uma beleza equivalente”. Em 1994, entrevistado para o jornal O Globo por Edney Silvestre, este lhe pergunta: “Que imagem lhe ocorre quando ouve falar no Brasil?”. A resposta de Brodsky é sucinta e desinteressada: “Caos, eu suponho”. Não faz referência à sua viagem ao Rio, quinze anos antes.

Watermark não é uma descrição da arquitetura de Veneza. Não há quase referência aos museus, às igrejas, aos edifícios. Brodsky faz por Veneza, na escrita, o que Turner fazia por ela na pintura. Deseja mostrar as sensações, as impressões que a cidade desperta nele. De resto, Goethe já escrevera em Viagem à Itália: “Tanto foi já dito e escrito sobre Veneza, que eu não pretendo descrevê-la minuciosamente”.

Embora em prosa, Watermark é o texto de um verdadeiro poeta. Estuda a luz, seus efeitos sobre os prédios e os canais, a variação da cor da água. Um dia, último do autor na cidade naquela temporada, ao terminar de almoçar em um restaurante e caminhar para ir pegar as malas, Brodsky percebe o quanto é, ali, “absolutely, animally happy”. Sem Veneza na sua vida, escreve, ele estaria já internado em alguma clínica. Cada partida provoca tristeza. Há uma bela imagem sobre como o olho se identifica não com o indivíduo a que pertence, mas com o objeto de sua atenção. Para o olho, partir de Veneza não significa o corpo deixar a cidade, mas a cidade abandonar a pupila. “This city is the eye´s beloved. After it, everything is a letdown”. Por isso, o olho chora, “porque partimos e a beleza fica”. O choro é “uma tentativa de permanecer, ficar para trás, fundir-se com a cidade”, sendo Veneza vista como “a maior obra-prima produzida pela nossa espécie”.

Joseph Brodsky era um grande ensaísta, entre outras razões, porque sabia colocar, em sua prosa, muito de sua personalidade e de suas crenças. “After a Journey” e Watermark não fogem à regra e podem mesmo ser vistos como ensaios particularmente reveladores de diferentes facetas de sua personalidade.

Infelizmente, Brodsky é Brodsky, e nem tudo é nobre daquilo que revela sobre si mesmo. Também em Watermark há trechos desagradáveis, particularmente quando ele fala na amiga veneziana que vai buscá-lo de noite, em 1972, na estação de trem, em sua primeira viagem depois da chegada aos Estados Unidos, paga com o salário de professor universitário. Brodsky conhecera a veneziana alguns anos antes, na Rússia; ela é belíssima, e naturalmente ele fantasia a seu respeito. O marido é arquiteto, constrói edifícios modernos, o que o poeta detesta, como vimos em seus comentários sobre o Rio. Só isso, julga Brodsky, já faz com que ele “merecesse ser corneado”.

Anteriormente, na Rússia, a bela veneziana se apaixonara, nos círculos literários frequentados por Brodsky, por um homem de origem armênia. Brodsky, que era judeu, e que em um dos melhores ensaios de Less Than One, “In a Room and a Half”, fala sobre como seus pais foram prejudicados pelo antissemitismo soviético, é capaz de chegar à seguinte conclusão sobre a paixão da veneziana pelo armênio: “come to think of it, one shouldn’t get angry over a piece of fine lace soiled by some strong ethnic juices”. Em outra página, o leitor se depara com a observação de que o véu muçulmano é “um grande instrumento de planejamento social, pois garante que toda fêmea terá um homem, independentemente de sua aparência”.

Outro trecho é mais engraçado. Joseph Brodsky e Susan Sontag, que eram amigos, estão simultaneamente em Veneza, em 1977, e vão juntos visitar a companheira de Ezra Pound, Olga Rudge. Assim que o chá é servido, e Brodsky e Sontag tomam o primeiro gole, a anfitriã, de forma teatral, levanta um dedo e, então, “out of her pursed lips came an aria the score of which has been in the public domain at least since 1945”. A “ária” em questão é o discurso de Olga Rudge no qual, como viúva leal, ela afirma que Ezra Pound não fora nem fascista nem antissemita.

Li Watermark às vésperas de almoçar, em Kuala Lumpur, com um amigo italiano. Isso aconteceu na última semana de maio, logo antes da decretação do mais recente isolamento social absoluto na Malásia. Poucas horas antes do almoço, eu enviara a ele a foto de uma página de Watermark, assinalando a seguinte frase: “’Italy’, Anna Akhmatova used to say, ‘is a dream that keeps returning for the rest of your life’“. Já durante o primeiro prato, comendo o meu nhoque, comentando as palavras de Akhmatova, perguntei qual era, na avaliação do meu anfitrião, a razão do amor que as pessoas devotam à Itália. A resposta foi: “Há, antes de mais nada, razões históricas. Estão ainda de pé, na Itália, monumentos construídos há dois mil anos, quando outros povos europeus não tinham cidades. Há dois mil anos, todo mundo, na Europa, no Mediterrâneo, já queria ir a Roma, sede do império. Há também razões literárias. Cada geração de escritores escreve sobre suas experiências de Itália, e perpetua a imagem do país. Isso é particularmente verdadeiro no caso de Veneza. Pensa só, Dante já a menciona”.

Brodsky, em Watermark, comenta o fato de o Arsenal de Veneza, hoje um dos locais onde se realiza a Bienal, ter sido “imortalizado por Dante”. Admirar Veneza, tê-la como fonte de inspiração literária, escrever sobre ela significa inserir-se em uma tradição, uma linha contínua, que vai de Dante a Brodsky, passando por dezenas, centenas de outros, incluindo, além de escritores nativos como Goldoni e Casanova, Shakespeare, que nunca lá esteve, Goethe, Byron, Chateaubriand, Musset, Henry James, Proust, Thomas Mann.

A lista não tem fim e é a cada ano acrescida de novos romances, poemas, ensaios, contos. No ano passado, ganhei de presente, do mesmo amigo italiano e de sua mulher, um romance de 2009 de Geoff Dyer, Jeff in Venice, Death in Varanasi. O personagem principal visita a ilha de San Michele, “onde Diaghilev está enterrado. E Stravinsky”. Constata que o túmulo de Brodsky é próximo do de Ezra Pound, e que há sobre ele cartões-postais, deixados com mensagens para o poeta, e canetas à disposição de seus admiradores, para novas mensagens. Assim, Joseph Brodsky não só é um dos autores que falam de Veneza, mas passou a fazer, ele próprio, parte de novos textos literários que têm a cidade por cenário.

Alguns lugares possuem essa capacidade de afetar as letras. Em “A Guide to a Renamed City”, Brodsky reflete sobre o fato de que o desenvolvimento da literatura russa acompanha, não por acaso, a criação de São Petersburgo. A nova capital, ele explica, transforma-se mesmo no tema principal da literatura do país. ”Technically speaking”, diz ele, “Russian literature was born here, on the shores of the Neva”. É preciso lembrar que a cidade fundada por Pedro, o Grande em 1703 possuía para os russos um caráter exógeno, por sua arquitetura europeia e atmosfera ocidentalizante. Isso explica outra observação de Brodsky: “If it´s true that every writer has to estrange himself from his experience to be able to comment upon it, then the city, by rendering this alienating service, saved them a trip.”

Brodsky nos conta, em Watermark, o processo pelo qual, antes mesmo de ser expulso da União Soviética, Veneza firmara-se como um conceito firme em sua imaginação. No “cômodo e meio” onde vivia com os pais, no apartamento comunal que dividiam com mais três famílias em Leningrado, um dos objetos de decoração era uma pequena gôndola de cobre. Fico fascinado ao ler isso, pois em Viagem à Itália Goethe também nos conta que na casa dos seus pais em Frankfurt, quando ele era criança, havia o modelo de uma gôndola, com a qual deixavam que ele brincasse.

No apartamento comunal em Leningrado, um pedaço de tapeçaria que cobre o divã representa o Palácio dos Doges. Um exemplar antigo da revista Life que Brodsky ganha de presente — isso era provavelmente um tesouro, na União Soviética — contém uma foto da Praça de São Marcos coberta de neve. Uma garota com quem ele flerta lhe dá de presente de aniversário uma coleção de cartões-postais antigos, em tom sépia, fruto da lua de mel da avó dela em Veneza, antes de 1917. Um amigo empresta a ele o romance de um escritor e poeta francês já meio esquecido, Henri de Régnier, morto em 1936, cuja ação se passa na Sereníssima.

Em resumo, o que vemos, sem que Joseph Brodsky chegue a essa conclusão ou use este termo, é o onipresente soft-power de Veneza, que martela o imaginário do garoto crescendo longe, à beira do rio Neva, vivendo as agruras e as restrições impostas pelo invasor nazista e pelo regime soviético. Veneza possui uma marca, que se perpetua ao longo dos séculos, baseada em suas características peculiares: a instalação na Laguna e seus canais, a surpreende beleza arquitetônica, o passado grandioso como república poderosa, os tesouros artísticos, sua celebração nas artes, os artistas que lá nasceram ou viveram ou que a celebraram, e, hoje, adicionalmente, sua fama como meca do cinema e da arte contemporânea.

O Rio de Janeiro também possui uma marca e capacidade para soft power. Há inclusive um poema do próprio Brodsky, de 1970, quando ele ainda estava na União Soviética, que indica isso. Desde 2020, os versos ganharam novo fôlego, por causa do refrão “Não saia do quarto”, que soa aplicável ao isolamento social criado pela Covid-19. Um verso diz: “Não saia do quarto. Dance a bossa nova”. Atualmente, pode ser difícil para um brasileiro entender que, para os estrangeiros, a bossa nova representa, há sessenta anos, a essência do Rio de Janeiro e, por extensão, do Brasil.

É bem possível que Brodsky tenha vindo ao Rio com noções de samba, praia, alegria e bossa nova na imaginação. Em vez disso, viu ou quis ver apenas pobreza, prédios “feios”, a falta de História e uma imaginária presença alemã. Assim como eu, em minha primeira ida a Veneza, só vi sujeira, decadência e multidões. A diferença é que eu me dei a chance de rever minha opinião, indo à Sereníssima outras vezes, embora não tantas quanto Brodsky.

A bem da verdade, eu gosto do texto de Brodsky sobre o Rio. Em uma primeira leitura, senti revolta. Decidi, no entanto, relê-lo várias vezes, ao longo de poucos dias, enquanto escrevia este ensaio. E, então, mudei de opinião e mudei o sentido do meu texto. Joseph Brodsky faz observações sobre o quanto ele se impressionou com a natureza, com o aspecto inigualável do Rio. Do alto do Corcovado, julga que: “Em um dia claro, você sente que tudo o que seu olhar já viu antes são apenas as sobras miseráveis e sem brio de uma imaginação interrompida”. Considera que a vegetação do Rio, que não remete a nada com que um europeu possa se identificar, cria a “sensação de uma fuga total da realidade conhecida”. Em “After a Journey”, vemos que, sem entender o Rio de Janeiro, por causa da pobreza, a falta de referência histórica, os prédios “feios”, ele no entanto sentiu que havia ali algo de espetacular.

Em uma entrevista que concedeu em 2003 a Valentina Polukhina, especialista da obra de Brodsky, Susan Sontag, apesar da amizade que tinha por ele, lamenta: “havia algo em seu caráter de que eu não gostava, eu não gostava do quanto ele podia ser cruel às vezes com as pessoas. Ele podia ser bem cruel […] Ninguém, muito menos Joseph, podia pretender que ele tivesse bom caráter”.

Os comentários desagradáveis de “After a Journey” mostram esse aspecto da personalidade do poeta. A viagem ao Rio de Janeiro, porém, despertou também um lado melhor seu, que é a transparência com que expõe suas vulnerabilidades e aflições. Em 1979, ele tem 39 anos apenas, mas tem já graves problemas cardíacos e está consciente de sua mortalidade. Comenta que nunca mais verá o apartamento em Leningrado. Na verdade, ele nunca mais veria seus pais e nem a Rússia. Voltando do Rio, Brodsky especula se cada viagem sua não é feita apenas para poder voltar ao apartamento em Nova York, pois a cada regresso aquele é o lugar sentido um pouco mais como o novo lar.

Na última página do ensaio, o poeta conta que um iugoslavo — existia essa nacionalidade, na época — residente no Rio o convidou a uma churrascaria no Leblon. Era um admirador de sua obra; lera tudo o que ele havia publicado.

Brodsky julga ser seu anfitrião uma dessas pessoas, aparentemente ao contrário dele próprio, para as quais a vida não é só “desespero, neurose e o medo de partir como fumaça a qualquer momento”. Admite que às vezes se sente um impostor, quando os outros veem nele algo que não existe. O que há, na realidade, ele nos revela, é “um lunático atormentado, que se esforça para não ferir ninguém”. Porque, afinal, a coisa principal da vida, nos diz ele, não é a literatura, mas a capacidade de não causar dor aos outros.

Este ensaio foi primeiro publicado, em 19 de junho, na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte.

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Álbum de fotos – Lisboa

Álbum de fotos – Lisboa

Aos 19 anos, fui a Portugal pela primeira vez. Durante uns quinze dias, viajei bastante pelo país. Além de Lisboa, fui ao Porto, a Nazaré, Fátima, ao Mosteiro da Batalha, a Alcobaça, Tomar, Coimbra, Mafra, Sintra e Queluz. Por razões familiares, estive em uma pequena cidade — menos de 11 mil habitantes em 2011 — no Norte, Couto de Cucujães. O nome oficial hoje é Vila de Cucujães, mas para mim o “Vila” nunca substituirá o “Couto”. Localiza-se no município de Oliveira de Azeméis, outro nome poético. Anos depois, quando li A Ilustre Casa de Ramires na biblioteca na casa de praia dos meus futuros sogros, pude visualizar o cenário imaginado por Eça de Queirós.

Embora eu tenha voltado muitas vezes depois a Portugal, a alguns desses lugares nunca mais pude ir — a Alcobaça, por exemplo; já ao Couto de Cucujães e a Oliveira de Azeméis, voltei. Em compensação, conheci outros desde então, particularmente no Alentejo e no Algarve. Todos ocupam um lugar especial para mim. Nunca passei um dia triste ou decepcionante em Portugal. Isso seria impossível. Há poucos países tão acolhedores e encantadores.

Minha curiosidade por Lisboa, aos 19 anos, era grande porque, na adolescência, eu sentira forte impressão ao ler em Candide a descrição feita por Voltaire do terremoto de 1755. Queria conhecer a cidade celebremente reconstruída pelo marquês de Pombal. Em sua biografia do marquês, publicada em 1981, Agustina Bessa-Luís escreveu: “Sem esse cataclismo enorme que destruiu Lisboa em 1755, Sebastião José nunca passaria dum arrivista contratado para conceder alvarás […] Foi preciso que um homem sem vocação filosófica se debruçasse sobre o acontecimento e, armado de coragem, chamasse o seu bem a essa atroz ruína”.

Eu não podia prever, aos 19 anos, que minha irmã, ao se casar, iria morar e trabalhar em Portugal, que meus dois sobrinhos nasceriam em Lisboa, e que eu teria sempre um motivo para voltar. Por causa da pandemia, não vejo Titina desde setembro de 2019, quando passei um dia em Lisboa para vê-la.

Ela sempre morou no Chiado, em dois apartamentos sucessivos, até que, em 2020, mudou-se para a Lapa. O fato de eu não conhecer sua nova casa, sua rua, de eu não poder visualizar sua vizinhança é uma prova a mais das aberrações causadas pela pandemia. Na minha imaginação, ela está ainda no Chiado, e eu estou caminhando por ali.

Dos lugares onde nunca morei, Lisboa é, com Paris, aquele onde já estive mais vezes. Paradoxalmente, isso dificultou a seleção de fotos, que me tomou dois fins de semana inteiros e várias noites. Notei que, no meu celular, Lisboa aparece muitas centenas de vezes, mas faltam na galeria abaixo alguns dos lugares que eu mais teria gostado de ilustrar. Não tenho fotos boas do Castelo de São Jorge, da fachada da Livraria Bertrand, da Rua Garrett, do Teatro de São Carlos. Ando pelo Bairro Alto, pelo Chiado, pela Baixa, pela Alfama e pela Mouraria e só pareço me interessar por portas e janelas. As mesmíssimas janelas, em fachadas de azulejos, aparecem nas minhas fotos, ano após ano.

Para cada um de nós existe uma Lisboa própria, individual, que pertence apenas a nós mesmos. Minha mãe, ao saber que eu selecionava fotos para este texto, me perguntou: “Você vai mostrar os jacarandás da Avenida Dom Carlos I? O Mercado da Ribeira renovado? O cedro do Príncipe Real? Os prédios lisboetas ao cair da tarde, quando o pôr do sol os deixa dourados? A minha rua predileta, a de O Século?” Respondi: “Vou mostrar a minha Lisboa, não a tua”. Na verdade, a seleção que fiz dependeu, também, da qualidade das fotos disponíveis. Notei haver, nas perguntas de minha mãe, uma alusão a dois amigos que ela adora, Chicô Gouvêa e Paulo Reis, mas não senti ciúmes.

Menciono a Rua de O Século em Um dia em Lisboa, onde descrevo meu roteiro habitual pelas livrarias lisboetas. Inseri ali uma ou outra apreciação sobre pontos da cidade. Mesmo 24 horas em Lisboa, a passeio, são suficientes para dar o gosto de viver. O viajante comerá bem, só verá beleza ao seu redor, não passará muito frio ainda que seja inverno, visitará algum excelente museu — o Gulbenkian é espetacular, e de dimensões humanamente factíveis — e será tratado com afabilidade em todo canto.

Muitas vezes, pensei em escrever sobre o Museu Calouste Gulbenkian. Já me aconteceu de ir lá especificamente para tirar fotos das obras de arte ou dos objetos de minha predileção na coleção, de forma a estar documentado quando me decidisse a descrever a experiência de visitá-lo. Ainda não o fiz.

Há alguns anos, visitei com minha filha o Museu da Farmácia. Foi nessa mesma temporada que a levei ao extraordinário Oceanário. Há o Museu dos Coches, o do Oriente, o do Chiado, o de Arte Antiga, conhecido como das Janelas Verdes, a Casa Fernando Pessoa, o Castelo de São Jorge, o Mosteiro dos Jerônimos, as ruínas do Convento do Carmo, com seu museu arqueológico, e, brilhante novidade inaugurada em 2016, o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), onde já vi excelentes exposições. Cito apenas aqueles onde estive nos últimos anos.

Em um ensaio de 1998 sobre o afeto entre Portugal e Brasil, intitulado “Portugal, de minha varanda”, Alberto da Costa e Silva narra que o contista Samuel Rawet — e isto é tocante para mim, pois Rawet era amigo de meu pai — emigrou com a família da Polônia para o Rio de Janeiro com dois anos de idade. Só adulto ele esteve novamente na Europa. No caminho de volta para o Brasil, parou em Lisboa, pela primeira vez. Diz Alberto da Costa e Silva: “E teve a sensação de um reencontro feérico. Deixou-se ficar na cidade, em ócio — estava em casa —, por alguns meses. E não perdeu um só dia sem emocionar-se, diante de uma janela, de uma escadaria, de um beco, de uma nesga do Tejo, com o que sabia ser parte da biografia de sua alma”.

Lisboa parece imutável, mas é na verdade uma dessas cidades onde, se ficarmos algum tempo sem visitá-las, haverá muitas boas novidades quando regressarmos. Novos restaurantes, novos museus, novos cafés, novas lojas. Em 2016, foi uma surpresa descobrir que o Consulado do Brasil havia se mudado e que, nas suas instalações em um prédio pombalino na praça Luís de Camões, havia agora um hotel chamado Le Consulat. Uma noite, fomos ao bar do hotel, e lembrei que, uma vez, eu fora àquele mesmo recinto fazer uma procuração.

Por causa da pandemia, imagino que alguns lugares de que gosto terão fechado, nestes dois anos.

Apesar de parecer tão longa esta fase, a Covid, porém, é apenas um momento transitório da humanidade. Voltará o dia em que eu poderei caminhar pelo Terreiro do Paço, almoçar à beira do Tejo, ir às livrarias, tomar um café acompanhado de um pastel de nata, sentar no Jardim do Príncipe Real, passear pela Alfama e a Mouraria, rever os Painéis de São Vicente nas Janelas Verdes, jantar em uma marisqueira, passar uma manhã ou uma tarde em Sintra, e lá comer um cabrito assado com batatas — eu, que nem gosto de carne vermelha — ir à ópera no Teatro de São Carlos e, em algum momento, provar de novo o bacalhau com “azeitonas explosivas” em um dos restaurantes do José Avillez. Leitora, leitor, não me perguntem como, mas as azeitonas realmente estouram na boca.

Voltarei a ver aquela de quem Camões dizia:

E tu, nobre Lisboa, que no mundo
Fàcilmente das outras és princesa

Os programas serão sempre maravilhosos, já que feitos com a minha adorável Titina, que transforma a vida em uma aventura incansável de charme, glamour e sedução.

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A Laranjeira

A Laranjeira

A laranjeira ocupa meus pensamentos. Nunca a vi, a não ser em fotografia e nos meus sonhos. Nas horas menos ensolaradas, fico na dúvida se jamais poderei conhecê-la.

Essa árvore porém existe. Ela vive e respira. Cresceu, desabrochou. Neste momento, ostenta centenas de folhas de um forte tom de verde e dezenas de frutas de cor intensa. É perfeitamente saudável, imune às frustrações dos homens, aos males da pandemia. De longe, acompanhei sua luta para sobreviver no vaso em que está plantada, opinei sobre o lugar mais seguro para ela na varanda, quando é verão, e na sala, quando neva. Ela não me pertence, não sabe que eu existo, mas seu bem-estar é uma preocupação em minha mente.

Desde criança, as árvores cítricas me interessam. Durante muito tempo, perguntei-me sobre o motivo. No jardim belga onde passei a infância, na fazenda mineira do meu avô aonde ia, adolescente, nas férias, elas não existiam.

Talvez a beleza das palavras “laranjeira” e “limoeiro” seja uma razão suficiente. Em uma crônica de 1876, Machado de Assis, que morava na época na rua das Laranjeiras, observou isso, ainda que de forma irônica, ao escrever que os moradores “estão a bradar que a mandem calçar, como se não bastasse morar em rua de nome tão poético […] que bonito nome! Laranjeiras! Faz lembrar Nápoles; tem uns ares de idílio […] não se pode ter tudo, — nome bonito e calçamento; dois proveitos não cabem num saco. Contentem-se os moradores com o que têm, e não peçam mais, que é ambição”.  

Na idade adulta, plantei na nossa casa em Brasília quatro laranjeiras em potes grandes de argila. Coloquei-as, em intervalos regulares, sobre uma plataforma ao longo dos quartos, na fachada traseira. Ali, o sol cai a tarde inteira. Parecia um lugar ideal. Eu esperava poder observar o crescimento dos arbustos, estava certo de que eles se tornariam magníficos. Regá-los, adubá-los era um momento de isolamento interior. Nenhuma outra das árvores que já plantei ocupou da mesma forma meu tempo ou minha imaginação. No entanto, nos vasos as laranjeiras não prosperaram. Davam flor, às vezes surgia uma ou outra fruta, mas os galhos não se encorpavam, e não se povoavam de folhas. Depois de algum tempo, tive de aceitar que elas se recusavam a se firmar em sua prisão. Pedi ao jardineiro que as transplantasse para o solo. Juntaram-se à amoreira, à pitangueira, ao pé de acerola, às jabuticabeiras, às mangueiras. Três das laranjeiras cresceram, seus galhos se entrelaçaram. Elas existem ainda e dão uma fruta dura, pouco apetecível. As pequenas laranjas ficam nas árvores, decorando-as, até caírem.

Dos quatro vasos de argila, um existe ainda; perdura, apesar de ausências prolongadas nossas e dos diferentes inquilinos que alugaram a casa. Nos últimos anos, quando voltamos, ele ficava em um canto da varanda. Ao vê-lo, eu lembrava da minha ilusão de que podia ambicionar ter quatro vasos plantados com laranjeiras carregadas de frutas. Neste momento em que a casa, mais uma vez, está alugada, e nós trabalhamos na Ásia, suponho que ele continue lá, abandonado e solitário na varanda.    

Em Lisboa, uma vez, saí do meu caminho para fotografar laranjeiras ao longo do muro da Sé. Em Sevilha, nas duas vezes em que lá estive, fiquei assombrado com a profusão da árvore frutífera nas ruas e, na segunda vez, com sua presença também nos pátios e jardins do Palacio de las Dueñas, casa dos duques de Alba. Da nossa única viagem ao sul da Itália, a abundância de cítricos em Sorrento é uma das lembranças mais claras. Na minha última ida a Roma, as laranjeiras do Palazzo Spada, por entre as quais passeavam gatos, chamaram minha atenção tanto quanto as obras de arte.

Em Versalhes, mais do que os próprios cítricos, são as caixas de madeira, pintadas de verde, que sempre me impressionaram. No verão, as árvores são retiradas da estufa em que moram — a famosa Orangerie, admirada pela sua elegante simplicidade — e colocadas no jardim em frente, conhecido como parterre de l´Orangerie. Em 2018, passei longos momentos, no final da tarde, admirando a simetria criada pelos arbustos em suas caixas, que se somavam à geometria do próprio jardim.

Em sua biografia de 2019 de Luis XIV, Philip Mansel dedica um parágrafo longo à Orangerie. Comenta que os enviados do rei do Sião, em 1686, chegando a Versalhes depois de dois anos de viagem, trazendo presentes orientais e uma carta de seu soberano em papel de ouro, colocada em um estojo de ouro e transportada em uma liteira de ouro, declaram ser a Orangerie bonita o suficiente para servir de morada a um rei, e não às suas plantas. Embaixadores podem ser tão bajuladores quanto qualquer cortesão.

Na França do século XVII, os cítricos eram um objeto de luxo e recebiam infinitos cuidados. Sabemos que Luís XIV colocava laranjeiras em caixas de prata na galerie des Glaces. Elas terão, suponho, sido derretidas junto com outros duzentos móveis de prata, em 1689, quando o rei precisou de dinheiro para financiar a Guerra da Liga de Augsburgo, em que a França fez frente a uma coalizão.

No dicionário sobre Versalhes editado por Mathieu da Vinha e Raphaël Masson em 2015, para a editora Robert Laffont, lemos sobre uma ilustre laranjeira, que recebera até nome próprio, Condestável — le Connétable — a qual, plantada originalmente em Pamplona, em 1421, pela rainha de Navarra da época, e tendo passado no século XVI a ser propriedade dos reis da França, viria a falecer de velhice em Versalhes, em 1894.

Em trecho conhecido de uma de suas cartas à filha, Madame de Sévigné relata, em agosto de 1675, uma visita que fizera ao palácio de Clagny, que já não existe e estava então sendo construído, perto de Versalhes, para a favorita de Luís XIV, Madame de Montespan. Conta a marquesa à sua filha haver em Clagny “um bosque inteiro de laranjeiras dentro de grandes caixas. Dá para passear por ele; são caminhos onde se fica na sombra. Para esconder as caixas, há dos dois lados paliçadas altas até à cintura, todas floridas de tuberosas, de rosas, de jasmins, de cravos. É certamente a novidade mais bela, mais surpreendente e mais encantadora que se possa imaginar”.

Quando tento descobrir a razão da minha fascinação por árvores cítricas, lembro da minha professora de espanhol, na adolescência, no Liceu Francês de Montevidéu. Ela frequentemente nos dava poemas de Antonio Machado para estudar. O poeta nasceu em Sevilha, em uma casa no recinto do Palacio de las Dueñas. Vários poemas de Soledades. Galerías, obra de 1907, fazem referência, direta ou oblíqua, a limoeiros e laranjeiras. As árvores evocam a saudade da infância feliz e a cidade natal, onde o poeta nunca mais morou.

Um poema, o III, inicia-se com estes versos recordatórios:

La plaza y los naranjos encendidos
con sus frutas redondas y risueñas

Outro, o VI, descreve a laranja no galho como “la fruta bermeja”, detentora “del rubio color de la llama”.

O poema VII nos diz:

El limonero lánguido suspende
una pálida rama polvorienta,
sobre el encanto de la fuente limpia,
y allá en el fondo sueñan
los frutos de oro…

O poema LIII merece ser citado integralmente. Seu título é uma dedicatória, A un naranjo y a un limonero, com a explicação de que os dois arbustos foram “Vistos en una tienda de plantas y flores”, depreende-se que em Castela, longe da Sevilha natal:

Naranjo en maceta, ¡qué triste es tu suerte!
medrosas tiritan tus hojas menguadas.
Naranjo en la corte, ¡qué pena da verte
con tus naranjitas secas y arrugadas.

Pobre limonero de fruto amarillo
cual pomo pulido de pálida cera,
¡qué pena mirarte, mísero arbolillo
criado en mezquino tonel de madera!

De los claros bosques de la Andalucía,
¿quién os trajo a esta castellana tierra
que barren los vientos de la adusta sierra,
hijos de los campos de la tierra mía?

¡Gloria de los huertos, árbol limonero,
que enciendes los frutos de pálido oro
y alumbras del negro cipresal austero
las quietas plegarias erguidas en coro;

y fresco naranjo del patio querido,
del campo risueño y el huerto soñado,
siempre en mi recuerdo maduro o florido
de frondas y aromas y frutos cargado!

Antonio Machado descreve as laranjeiras, os limoeiros e suas frutas de forma altamente atraente e sensorial. Podemos visualizar essas árvores e essas frutas, saber como são, sentir seu cheiro e sua textura. São versos que nos dão vontade de ir à Andaluzia. Tendo lido esses poemas, já não veremos da mesma maneira as coisas mais simples, nosso olhar já não poderá ser o mesmo. O mundo torna-se mais intenso, as cores mais vivas, as árvores já não são meras árvores, mas seres admiráveis e gostáveis.

Outro poeta que foi feliz em Sevilha e a celebrou em versos, João Cabral de Melo Neto, compôs um poema, “Cidade cítrica”, onde a terra das laranjas se torna, ela própria, uma fruta dourada. Os versos de João Cabral complementam os de Antonio Machado, de alguma maneira iluminando-os:

Sevilha é um grande fruto cítrico,
quanto mais ácido, mais vivo.

Em geral, as ruas e pátios
arborizam limões amargos.

Mas vem de cal de cores ácidas,
dos palácios como das taipas,

O sentir-se como na entranha
de luminosa, acesa laranja.

Na mesma época em que na sala de aula eu estudava poemas de Antonio Machado, em casa, à noite, lia La Chartreuse de Parme, que foi, na adolescência, meu livro predileto. Stendhal insere, em seu romance, várias menções a laranjeiras, em geral plantadas em vasos, embora ao menos uma vez diretamente na terra. A árvore representa, dependendo da circunstância, luxo, paz interior ou prova de amor. Mesmo na prisão, elas aparecem na vida do herói, Fabrice del Dongo, e fazem parte do seu idílio com a filha do governador da cidadela, Clélia, nome aliás de minha avó materna.

O romance entre os dois limita-se, necessariamente, a olhares intercambiados das janelas do herói às da filha do governador, e a mensagens e cestas de comida que Clélia passa a Fabrice, sub-repticiamente, graças às laranjeiras em vasos que mandou instalar sob as janelas da cela. Mais tarde, após o casamento de Clélia, tendo Fabrice recuperado a liberdade, é na orangerie do palácio de seu marido que ela e o herói manterão seus encontros amorosos, o que não terá sido muito confortável.

Meu amor pelas árvores frutíferas deve ser conhecido dos meus familiares. Em 2018, Paulo, meu cunhado, mandou-me da Califórnia, onde mora, um livro intitulado Golden Fruit: A Cultural History of Oranges in Italy, por Cristina Mazzoni. O livro hoje mora em Singapura, aonde não consigo ir desde março de 2020, por causa do fechamento das fronteiras causado pela pandemia. Pedi porém à minha mulher que me mandasse foto da página que trata de uma obra de arte bem específica, onde um laranjal aparece de maneira um tanto surpreendente.

As frutas cítricas são, claro, onipresentes na arte ocidental. A primeira pintura que minha mulher e eu compramos juntos foi uma tela grande, retangular, de Glênio Bianchetti. O quadro mostra, de forma estilizada, cerca de cinquenta laranjas sobre um quadrado vermelho e sobrevoadas por um segundo quadrado, em outro tom de vermelho. É para ser uma natureza-morta quase abstrata. Decidimos aumentar o grau de abstração e, em vez de pendurar a tela na vertical, como fora pintada, sempre a colocamos na horizontal, e as laranjas passaram a ser círculos imprensados entre dois tons de vermelho. Um dia, alguém comentou com o pintor que não havíamos respeitado a sua intenção. Glênio Bianchetti provou ser um verdadeiro artista. Mandou-nos recado de que aprovava nossa decisão de dar à sua pintura sentido diferente do planejado por ele.   

A obra de arte que eu tinha em mente, em Golden Fruit, não mostra laranjas colhidas ou oferecidas em um prato, mas ainda penduradas nas copas escuras de laranjeiras. Trata-se de A Batalha de San Romano, de Paolo Uccello, São na verdade três painéis, hoje separados; um está na National Gallery em Londres, onde eu frequentemente ia visitá-lo quando lá estudava, outro no Louvre e o terceiro nos Uffizi. Em dois dos painéis, o de Londres e o de Florença, podem ser vistas nitidamente, atrás dos soldados, laranjeiras carregadas de frutas perfeitamente redondas, de uma tonalidade forte. A sensualidade das laranjas parece incongruente em cenas de batalha, e um laranjal, que eu associo a beleza e serenidade, é estranho lugar para a violência. É fascinante ver aqueles círculos alaranjados, nas árvores cobertas de folhas, por trás dos soldados matando-se uns aos outros.   

Cristina Mazzoni na verdade tem pouco a dizer sobre a obra de Uccello, a não ser mencionar que era comum, em quadros pintados para patronos florentinos no século XV, incluir laranjas — A Primavera, de Botticelli, é outro exemplo lembrado pela autora — para adular os Médicis, governantes de facto da cidade. A autora supõe que os círculos vermelhos no brasão dos Médicis sejam laranjas, e não, como eu sempre imaginei, moedas ou pílulas estilizadas, em alusão, no primeiro caso, às origens da família como banqueiros ou, no segundo, ao seu nome de médicos e boticários.  

Não é necessário, porém, que eu associe laranjas a Londres, Florença, Paris, Sevilha, Lisboa ou Versalhes. Naquele que é talvez seu livro mais original, Retrospectiva, de 1972, composto de elementos diversos, e que ele próprio classifica na página de rosto como “contos, ensaios, crônicas?”, meu pai publicou um conto curto, intitulado “A laranja rosada”. É importante saber que ele era amigo do pintor Carlos Scliar, conhecido sobretudo pelas suas naturezas-mortas. O texto todo do conto de Ary Quintella cabe em seis linhas:

“A peça de Scliar, linda. Contemplou-a deliciado: a laranja rosada em cima do pano acastanhado e retorcido, o esgarçar-se do branco — no fundo — abrindo-se oniricamente. A laranja rosada. A agitação da festa chegava-se amortecida, à saleta de entrada. Passou o copo de uísque para a mão esquerda e, esticando a direita, arrancou a laranja do quadro e guardou-a no bolso, amorosamente. A laranja rosada”.   

Eu vinha trabalhando há dias nestas páginas, pensando sobre meu amor pelas árvores cítricas, indagando-me sobre sua origem, quando, ontem, algo aconteceu. Atravessando a sala no apartamento em Kuala Lumpur onde, na parede do fundo, chamam a atenção as laranjas do Bianchetti, transformadas por nós em meros círculos, passei por um banco estofado de preto. Notei sobre ele um livro que eu lá deixara há muitos meses, por não saber onde colocá-lo nas estantes. Intitulado Premier livre de poésie, o volume foi um presente dos meus pais, na Bélgica, quando eu tinha sete anos. É uma antologia de poesia francófona, com uma seleção pensada especificamente para crianças e adolescentes, e ilustrada com pinturas ou desenhos de artistas célebres. Esse livro foi um dos primeiros bens materiais que tive na vida. Sobreviveu a todas as mudanças, fossem elas geográficas ou emocionais. Perdeu no entanto a sobrecapa, que era um detalhe de A Primavera de Botticelli, o rosto de duas das três Graças do quadro.

Ao ver o livro sobre o banco, tive o impulso de pegá-lo, enquanto pensava: “Não é possível. Será?”. A ideia era absurda, pois há meses eu o via todos os dias, jogado ali. Abri-o mesmo assim, ao acaso, e meu olhar caiu, imediatamente, sobre a página onde há um poema de Francis Jammes, “La Salle à Manger”, sendo esse um dos dois únicos poemas dele que jamais li. São versos simples apenas à primeira vista. Falam que o poeta — seu sobrenome fecha o último verso — nunca se sente só, pois os móveis da sala de jantar guardam as vozes, a lembrança dos parentes mortos que por ali passaram.

Mais importante, porém, é a ilustração que acompanha o poema, e que ocupa toda a metade superior da página. Trata-se de uma reprodução, excepcionalmente em preto e branco, pois no livro elas são quase todas a cores, de uma natureza-morta de Zurbarán. É um quadro muito famoso, mas eu não podia saber disso aos sete anos de idade. No centro, em uma cesta de vime, estão laranjas, sobre as quais pousa um galho florido de laranjeira. À esquerda, em um prato de metal, há limões. À direita, sobre outro prato, um copo de água e, ao lado, uma rosa pálida. Há poucos anos, minha mãe me fez conhecer em Pasadena, na Califórnia, no museu Norton Simon, a tela de Zurbarán. De maneira significativa, dos muitos tesouros contidos no museu, só esse mantém-se vivo na minha memória, porque na verdade o quadro era meu amigo desde os sete anos.

Longe de Bruxelas pelo tempo e a geografia, sentado na sala em Kuala Lumpur, de costas para as laranjas do Bianchetti, segurando nas mãos um dos meus primeiros livros, revendo a reprodução em preto e branco do Zurbarán, soube mais sobre mim mesmo. Obtive a minha resposta. Entendi que, como para Antonio Machado, as árvores cítricas me fazem pensar, pela associação com uma infância idealizada, em reconforto e segurança.           

A laranjeira que ocupa meus pensamentos mora em Bruxelas. Pertence à minha filha. Desde o ano passado, quando foi comprada e levada para o apartamento de Ixelles, essa planta entrou na minha vida. Sem a pandemia, eu já a teria conhecido. Mas, por causa da pandemia, minha filha e eu não nos vemos há um ano e meio. São de solidão todos os dias passados sem poder planejar uma data para revê-la. Isso, como a prisão de Fabrice, é uma punição. Como a batalha de San Romano, é uma violência. Conhecer a laranjeira no vaso em Ixelles é o objetivo, a única ambição. É o sonho que torna suportáveis as restrições e a solidão da pandemia.

Para Antonio Machado, as árvores cítricas traziam, com alguma melancolia, lembranças do passado feliz em Sevilha. Para mim, a árvore cítrica em Ixelles é a esperança, a promessa de um futuro feliz, em que a vida voltará a ser perfeitamente bela.    

Este texto foi publicado, em 30 de junho, no jornal literário Rascunho

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Monet em Kuala Lumpur

Monet em Kuala Lumpur

Existe no Rio de Janeiro, em Ipanema, na rua Francisco Otaviano, um edifício chamado “Monet Manet”. Junta-se a numerosos irmãos seus que, por todo o Brasil, homenageiam pintores, acredito que sobretudo franceses. Tomemos como exemplo Henri Matisse, a quem devoto grande admiração. Se eu decidir que só posso ser feliz se morar em um prédio com seu nome, terei escolhas disponíveis em numerosas cidades brasileiras, como mostra esta lista não exaustiva: São Luís, Guarapari, Passo Fundo, Fortaleza, Maringá, Ribeirão Preto, Taguatinga, João Pessoa, Mogi das Cruzes, Araguaína, Cuiabá, Belo Horizonte. Em São Paulo, encontrei ao menos dois: no Itaim Bibi e em Indianápolis. No Rio de Janeiro, três: no Méier, no Leblon e no Recreio dos Bandeirantes.

O patriotismo, contudo, está salvo. Os “Portinari” e os “Di Cavalcanti” estão presentes em toda parte no Brasil.

No campo da literatura, noto alguns “Stendhal”.  Quanto a “Marcel Proust”, somente em Ipanema há dois, um na rua onde hoje mora minha mãe, a avenida Rainha Elizabeth, e o outro ali perto, na rua Alberto de Campos. O nome de Proust é considerado enobrecedor, é um conceito de sofisticação intelectual, e não devemos pensar que aqueles que batizaram os dois prédios necessariamente leram o autor. Queriam, é de se imaginar, transmitir alguma ideia de elegância. Felizmente, a bandeira nacional é salva uma vez mais, e constato que “Machado de Assis” é corriqueiro em prédios por todo o Brasil, por exemplo na Avenida Atlântica.

Muito poderia ser escrito sobre os nomes de edifícios residenciais do Rio. O assunto mereceria um tratado de sociologia. É impressionante a quantidade de títulos nobiliárquicos em fachadas. Quem é, por exemplo, a “Princesa Myriam” em um prédio na Lagoa, frente ao qual passo sempre quando estou no Rio? A filha do construtor, talvez? Ou a personagem de algum filme da década de 1970, hoje obscuro? Não é, em si, um nome feio. Possui sabor exótico, com sua referência incompreensível. Por que existe, em São Paulo, um edifício chamado “Conde Versalhes”? Não “Conde de Versalhes” — e nunca viveu ninguém que detivesse esse título — mas “Conde Versalhes”. Já no Leblon, como se o bairro já não fosse percebido como chique e caro o suficiente, pode-se morar no “Conde de Versailles”. Por que essa obsessão em inventar um título de nobreza francês inexistente? Como se não tivéssemos tido marqueses e barões suficientes no Brasil. Mas Versalhes é um conceito que fala por si, e tudo o que diga respeito ao palácio só pode ser imaginado como elegante e cobiçável.

Prefiro quando os nomes atribuídos são de origem indígena. Pelo menos, fazem algum sentido. Meu pai, quando morreu, morava há muitos anos no “Marapendi”, na rua Bulhões de Carvalho. Vejo que, em tupi, isso significa “rio do mar raso”. É bonito; é brasileiro.

“Monet Manet”, decididamente, não é brasileiro. É, pelo menos, artístico, e possui um valor universal. Quando vejo o prédio, porém, sempre me pergunto: “por que os dois?”. Teria bastado um. Fico com a sensação de que houve hesitação da parte de quem escolheu o nome. Não terá sabido definir qual dos dois pintores preferia, ou qual deles é mais acertado preferir. “Monet Manet”, embora estranho, é eufônico. Há nele uma simetria, algo a que nunca resisto. Dois artistas franceses, mais ou menos contemporâneos, ambos com sobrenome de cinco letras, onde apenas uma vogal é diferente. Eu teria preferido que Manet viesse na frente porque, ao seguir a ordem alfabética, o nome “Manet Monet” teria demonstrado um certo rigor mental.

Pesquisando, descubro que tanto Édouard Manet quanto Claude Monet são razoavelmente populares no Brasil. Em várias cidades, há prédios com seus nomes, em diferentes combinações. A denominação “Jardins de Monet” é relativamente comum, ao menos em cidades paulistas. É poética, mas me entristece. Joga no meu rosto que eu nunca fui a Giverny. Várias vezes planejei conhecer o… jardim de Monet, mas o temor de encontrar lá multidões sempre me fez desistir.

O edifício da Francisco Otaviano não é o único a misturar nomes de pintores. Se você é belo-horizontino, pode morar no “Van Gogh e Manet”, no bairro São José. Se for de Niterói, há a opção do “Monet e Renoir”, em Icaraí. Pode-se inverter os nomes também, e se você quiser dar primazia a Renoir, contei três “Renoir e Monet” na cidade de São Paulo. Renoir parece ser extremamente popular. Em todo o Brasil, de Norte a Sul, de Oeste a Leste, são inúmeras as homenagens a ele. Quem decidir, por alguma razão insana, conhecer todos os prédios brasileiros ostentando seu nome passará a vida nisso.

É porém o “Monet Manet” em Ipanema que me interessa mais, porque a Francisco Otaviano é rua de passagem e são já muitos anos vendo esse nome, quando passo por ali. Manet, desde o final da adolescência, exerce forte poder de atração sobre mim. Nos museus, procuro insistentemente por suas telas. Meu interesse por Monet começou alguns anos mais tarde e cresceu gradualmente. Em 2018, fui ao Musée de l´Orangerie visitar uma exposição sobre como os seus quadros de nenúfares, os Nymphéas, influenciaram o abstracionismo americano. Em parte, quis ir à exposição porque um dos artistas expostos era Joan Mitchell, morta em 1992, sobre cuja obra um amigo, o pintor americano Jeff Kowatch, me falara em Bruxelas poucos dias antes.

Há muitos anos eu não visitava o museu. Mais do que os quadros dos artistas americanos, o que me impressionou na exposição foram as grandes telas de Monet, parte da coleção permanente, que residem nas duas salas ovais. Fiquei frente a elas até a Orangerie fechar.

Desde minha chegada a Kuala Lumpur, em janeiro de 2020, entendi melhor outra série do pintor, as representações da catedral de Rouen. De 1892 a 1894, Monet retratou a fachada da catedral cerca de 30 vezes, estudando como o horário, o clima, a época do ano modificavam a luz que caía sobre ela e as diferenças que isso criava para sua representação. Até eu viver na Malásia, a série da catedral não me interessava particularmente. Via aquilo como um exercício repetitivo. Há muitos anos, estive em Rouen, e lá mal pensei no artista. Minha curiosidade principal era ver a praça onde, em 1431, Jeanne d´Arc foi queimada viva aos 19 anos. Ela é para mim, desde sempre, uma das figuras históricas mais misteriosas e intrigantes, e ao mesmo tempo admiráveis.

Para entender a razão pela qual passei, em Kuala Lumpur, a apreciar a relação de Monet com a catedral de Rouen, é preciso saber as circunstâncias em que a pandemia me faz viver na Malásia.

Às vezes, amigos no Brasil me perguntam se eu tenho podido viajar. A resposta é negativa.  As fronteiras da Malásia estão fechadas desde março de 2020. Obviamente, não é uma prisão. Eu poderia ir ao exterior. Teria porém de fazer quarentena ao voltar, e provavelmente no meu local de destino também. Em Singapura, que seria minha prioridade, eu teria de cumprir a quarentena sozinho em um hotel, não na casa da minha mulher; para quem vem da Malásia, a quarentena exigida lá é, no momento, de duas semanas.

Seriam várias as providências burocráticas para conseguir sair e entrar de volta, aonde quer que eu fosse. Os testes de Covid necessários, para partir e regressar, teriam de ser feitos dentro de uma janela precisa de dois ou três dias, e o resultado teria de estar já disponível antes do embarque. Viajar ao exterior é hoje, portanto, se não uma impossibilidade absoluta, ao menos uma gigantesca amolação. Por isso, há quase um ano e meio não atravesso as fronteiras terrestres, marítimas ou aéreas da Malásia.

Para a circulação dentro do país, as regras variam de acordo com a situação sanitária vigente. Sair da capital é proibido desde janeiro, a não ser por razões imprescindíveis de saúde ou trabalho. Não durmo fora de Kuala Lumpur desde setembro do ano passado, quando passei uns poucos dias de férias na praia em Terengganu, experiência que narrei em minha IV Carta da Malásia, A Viagem a Balbec.

Duas vezes, estive em Malaca desde então, apenas para passar o dia. Na primeira, fiz uma visita oficial ao governador, em que ele me narrou a perda econômica sofrida por seu estado com a ausência dos turistas estrangeiros e a redução do turismo interno. Na segunda, no começo de janeiro, antes de entrar em vigor a proibição de viagens para quem mora em Kuala Lumpur, mostrei Malaca à minha mulher, quando ela veio passar a virada do ano.

Há três meses, a capital está em confinamento total. É a segunda vez desde o ano passado. Minha última ida a um restaurante foi em maio. Não entro em um cinema desde fevereiro de 2020. Vigoram severas restrições à vida social, e desde maio não posso visitar amigos ou recebê-los em casa.

Para mim, nada disso é problemático. É o resultado da pandemia. É a vida de hoje. Aceito-a bem; e procuro sobreviver para poder, no futuro talvez próximo, presenciar dias de mais aventuras. Evito pensar no fato de que não vejo a minha filha desde o final de 2019 e que, no último ano e meio, vi a minha mulher apenas uma vez.

Meu cotidiano é limitado ao escritório e ao supermercado. Desde 1º de junho, nenhum outro estabelecimento comercial pode abrir. Nem mesmo as livrarias; nem mesmo a barbearia. Meu lazer, portanto, tem sido necessariamente passado em casa.

Moro no vigésimo andar de um edifício que olha para o parque desenhado por Roberto Burle Marx. Na diagonal, do outro lado do parque, estão as Torres Petronas, símbolo de Kuala Lumpur. Como Monet com a catedral de Rouen, admiro as torres gêmeas sob diferentes condições de meteorologia, em momentos diversos do dia e da noite. Com sol. Com chuva. Com vento. Com muita luz. Na penumbra. Só não posso examiná-las com neve e frio, porque em Kuala Lumpur todo dia é um dia de verão.

Em 2020, publiquei um texto, Proust e as Petronas, evocando como, uma vez, voltando a Kuala Lumpur, de dentro do táxi na autoestrada vi, de longe, isoladas, as duas torres. As Petronas, então, me fizeram pensar em Proust e na sua descrição do campanário da igreja de Combray em Du côté de chez Swann, quando o narrador o vê do trem. Essa imagem é associada à minha primeira visão, criança, da catedral de Chartres, percebida da estrada, à distância.

Percebi nesse dia como as Petronas haviam crescido dentro de mim. Antes de chegar à Malásia, eu não compreendia a fama das torres. Em fotografia, elas parecem menos impactantes do que ao vivo. Agora que elas se tornaram parte da minha paisagem cotidiana, eu não me canso de olhar para elas. Dependendo da luz, determinados detalhes de sua arquitetura se destacam ou ficam imperceptíveis. É raro eu passar mais do que três ou quatro dias sem fotografá-las.

Em julho, publiquei um álbum de fotografias, As torres mágicas, apenas para poder compartilhar imagens das Petronas. Selecionando 16 representações diferentes, notei como as torres gêmeas mudam de aparência, dependendo do momento, do clima e da luz.

Em um sábado à tarde, em maio, contornando a pé o parque para ir ao supermercado, fui surpreendido por uma chuva fortíssima, acompanhada de trovoadas. O céu escureceu. Abriguei-me sob um toldo. As Petronas estavam frente a mim, no final do caminho para pedestres que me restava fazer até o centro comercial embaixo delas, onde fica o supermercado. Forneciam, por trás da chuva, iluminadas, uma visão impressionante de imponência, fantasmagoria e beleza. Eu nunca as vira assim. Entendi então a motivação de Monet diante da fachada sempre em mutação da catedral de Rouen.

Sozinho sob aquele toldo, sem nenhuma outra pessoa à vista, eu estava recebendo uma experiência que seria para sempre apenas minha. Ninguém mais veria as torres, naquele momento, com aquela chuva forte, e aquela iluminação. Outras tardes viriam, outro aguaceiro; outras pessoas passariam por ali e veriam as Petronas filtradas por uma parede de água. Nunca mais, porém, o céu encoberto revelaria as torres daquela mesma maneira, com aquela mesma tonalidade, com a chuva caindo naquele ângulo, com o parque e o caminho tão vazios como naquela hora.

Dentro de mim, começava a surgir o sentimento de gratidão e felicidade.  As torres se transformavam, de segundo em segundo, em uma visão cada vez mais bela. Era algo magnífico que aquele cenário fosse montado apenas para um espectador.

A solidão natural ao ser humano, colocada em evidência pelo isolamento social da pandemia, pareceu-me, ali, não mais motivo de tristeza, mas de contentamento. O belíssimo espetáculo a que eu assistia era exclusivamente para mim. Não haveria replicação para outro indivíduo. O teatro diante de meus olhos ilustrava, de uma forma aceitável, prazerosa, a realidade — que em outras circunstâncias pode ser desagradável — da incomunicabilidade de cada vida.

Passados alguns minutos, minha percepção mudou. Decidi que não era necessário receber sozinho aquela sensação. A solidão e o isolamento não precisavam ser absolutos.

Tirei o celular do bolso. Focalizei as torres. Bati a foto. Meio-minuto depois, ela estava nas minhas redes sociais.

Abandonando o toldo, caminhei em direção às Petronas, sob a chuva talvez já não tão forte. Enquanto eu andava, lembrei de Monet e de suas dezenas de representações da catedral de Rouen. Comecei a idealizar o que viria a ser uma simples postagem na minha página pessoal, As torres mágicas.

Pois mágicas é o que elas verdadeiramente são. Ano passado, elas me revelaram o quanto a obra de Proust faz parte, desde sempre, da minha vida. No recente sábado de temporal, elas incrementaram o poder de sua magia.  Permitiram-me entender Monet. Aproximaram-me espiritualmente do pintor.

Sem que eu tenha talento algum para as artes plásticas, sem que eu saiba sequer desenhar, as Petronas conseguiram fazer de mim o Monet de Kuala Lumpur.

Esta Carta da Malásia, a XI, foi publicada primeiro na revista de ideias Estado da Arte, em 17 de julho

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Sibelius e as Ilusões

Sibelius e as Ilusões

Em abril, houve uma boa notícia. A sala de concertos da Orquestra Filarmônica da Malásia reabrira. Desde março do ano anterior, estivera fechada por causa da pandemia.

Nas poucas semanas transcorridas entre a minha chegada a Kuala Lumpur, em janeiro de 2020, e o lockdown provocado pela Covid-19 seis semanas depois, vários domingos à tarde atravessei o parque desenhado por Roberto Burle Marx para ir assistir a concertos. A orquestra costumava então se apresentar nas noites de sábado e, com o mesmo programa, no dia seguinte, em matinê. Ocasionalmente, havia também concertos de câmara na terça, ao final do dia.

Com a pandemia, tudo mudou. Frequentemente, neste terrível último ano, eu pensei nos músicos, muitos deles estrangeiros. Presumi — corretamente, parece — que a empresa estatal Petronas, que financia a Filarmônica, continuava pagando seus salários, mas em Cleópatra no Escritório, em maio do ano passado, comentei que, para um artista, a sobrevivência financeira não é tudo. O apreço, os aplausos, a admiração do público, o contato direto com ele, são igualmente importantes. No último ano, a orquestra pôde apenas gravar, ocasionalmente, concertos para seu canal no YouTube.

A Petronas é uma das maiores empresas do mundo. O “nas” vem de “nasional”, grafia da palavra em malásio. Quanto a “Petro”, refere-se àquilo mesmo que vem à mente. Em sua página na Internet, a estatal declara ser “the custodian of Malaysia’s national oil and gas resources”. Ela opera também no Brasil, desde que, em 2019, adquiriu em leilão o direito de exploração de três blocos na Bacia de Campos, dois deles individualmente, e o terceiro em associação com a empresa francesa Total e a estatal Qatar Petroleum. A Petronas também comprou da Petrobras, no mesmo ano, o direito de exploração e produção de 50% de dois blocos adicionais. É por isso que, em fevereiro de 2020, as revistas especializadas já consideravam a estatal malásia a quinta maior produtora de petróleo e gás natural no Brasil.

A empresa tem os recursos, como se vê, para financiar a fundo perdido a Filarmônica. De fato, em todos os concertos a que assisti, notei que a sala nunca ficava lotada. Algumas empresas privadas — a Mitsubishi me foi dada como exemplo — mantêm assinatura de camarotes.

A sala de concertos, instalada nas Torres Petronas, sede da estatal, e desenhada pelo mesmo arquiteto das torres, o argentino Cesar Pelli, foi inaugurada em 1998. A acústica é excelente, e a beleza da sala, que utiliza madeiras exclusivamente malásias, impressiona. O fundo do palco é ocupado por um gigantesco órgão alemão.

Parte do prazer de ir à sala de concertos é pensar no seu nome em malaio, Dewan Filharmonik Petronas. A palavra “dewan”, assim como suas variações, é oriunda do persa; tem origens antigas e ilustres. Em malaio, significa “sala”, “hall”. Por isso, a Câmara Baixa do Parlamento se chama Dewan Rakyat — a Casa do Povo, ou a Casa das Pessoas. Na Índia, durante o Império Mogol, o termo designava um alto funcionário, um ministro. Nossa palavra “divã” tem a mesma origem. Originalmente, era o assento na sala onde despachavam os que detinham o título de dewan. Há também o conceito de diwan para uma coleção de poemas de um mesmo autor. Assistir a um concerto, sentar-me na Dewan Filharmonik Petronas é, portanto, como ser lembrado de um conto de As Mil e Uma Noites.

Com a flexibilização das regras de isolamento físico na Malásia, a orquestra pôde enfim voltar a se apresentar em abril, com um concerto por semana, nas tardes de sábado, com duração de uma hora. Comprei entrada para 1º de maio. Por causa da pandemia, permitia-se então, e há vários meses, acesso ao parque por apenas um lugar, e exclusivamente para quem quisesse correr; precisei então contorná-lo para chegar às Torres. Esse já é, em si, um passeio bucólico, porque o caminho, um círculo imperfeito, é de lajotas, apenas para pedestres, pouco frequentado, e fica rodeado de um lado pelo prédio, baixo e longo, do centro de convenções, do outro pelo parque.

A Orquestra Filarmônica é de alta qualidade. Seu regente principal foi, de 2014 a 2015, um maestro brasileiro, Fabio Mechetti. No concerto do dia 1º de maio ela foi regida por um dos dois maestros residentes, o japonês Naohisa Furusawa.

Além do uso de máscara, registro de entrada por um aplicativo e medição de temperatura ­ — todas essas, medidas obrigatórias em qualquer local público na Malásia — a direção da orquestra decidira criar espaçamento de duas ou três poltronas vazias entre cada lugar ocupado.

O programa era exclusivamente Sibelius: “Valsa Triste”, “Andante Festivo”, “Suíte Karelia”, “O Cisne de Tuonela” e “Finlândia”. Isso, para mim, não era uma perspectiva entusiasmante. Quando eu era estudante em Londres, e podia assistir a concertos assiduamente, costumava evitar a música de Jean Sibelius, que me parecia lúgubre e enfadonha. Guardo uma lembrança particularmente triste de “O Cisne de Tuonela”, embora não consiga achar em minha coleção de antigos programas de teatro em que circunstância ouvi o poema sinfônico. Minha vontade de retomar em Kuala Lumpur uma vida com parâmetros normais, em vez de ditada pela pandemia, me fez porém querer enfrentar as tristezas de Sibelius, para poder voltar a ouvir a Filarmônica.

Pela primeira vez, não havia programa impresso. Era preciso baixá-lo pelo celular por meio de uma barra de códigos. Isso significa que jamais conseguirei encontrá-lo novamente no meu telefone. Sentado em uma das poltronas vermelhas da sala de concertos, isolado, pelo espaçamento, de qualquer outro membro da plateia, vi os músicos pouco a pouco entrando no palco.

O spalla, o eslovaco Peter Daniš, aparece, a orquestra afina os instrumentos e, então, surge o regente. O público, faminto há um ano por música ao vivo, aplaude com convicção. Já nas primeiras notas, em vez da tristeza que a música de Sibelius no passado provocava em mim, sinto apenas felicidade. Mesmo “O Cisne de Tuonela” injeta-me ânimo. Percebo que havia sido uma perda eu descartar Sibelius durante tantos anos.

Mais tarde, eu procuraria pela minha biblioteca toda referência ao compositor. Sobretudo, olharia com atenção as fotos de sua casa em Maisons de musiciens, um livro publicado em 1997 pelas Éditions du Chêne, com textos de Gérard Gefen e fotografias de Christine Bastin e Jacques Evrard. Na Introdução, Gérard Gefen alerta contra o ímpeto de, ao visitarmos a casa de um compositor apreciado, cairmos na armadilha de uma “manifestação de adoração extática”. No entanto, como ele menciona, “as casas dos grandes criadores, simplesmente porque foram mais bem preservadas do que as de seus contemporâneos anônimos” nos mostram “as formas de vida e os gostos de uma época”. De 1904 a 1957, quando morreu, Jean Sibelius morou no campo, a quarenta quilômetros de Helsinque. É possível que ver as fotos de sua casa não nos ajude a entender melhor a sua música, mas sem dúvida captamos algo de sua personalidade e seu estilo de vida. A fotografia da cozinha é particularmente sedutora. O espaço é todo em tons de branco e bege pálido, ensolarado, olhando para a floresta.

Mas minha sede pela vida de Sibelius aconteceria em casa. Durante o concerto, e logo depois, a sua música é que me interessou. Terminada a hora mágica, tendo a orquestra já abandonado o palco, saí da sala quase que por último. Parecia inacreditável que eu pudesse ter voltado ali, depois de mais de um ano. Semanas mais tarde, em uma videoconferência com o diretor-executivo da Filarmônica, Sareen Risham, comentei o quanto a apresentação de 1º de maio mudara minha percepção de Sibelius. Ele concordou que a orquestra e o regente estavam, de fato, “jubilantes” naquela tarde, pela alegria de poder tocar e reger em público depois de tanto tempo.

Três semanas antes do concerto de Sibelius, eu fora a um espetáculo de odissi, dança indiana clássica, por uma famosa companhia malásia, Sutra. Vira lá um embaixador europeu, contente porque, por causa da pandemia, não pudera ir ao teatro por um ano. Ri e respondi: “no meu caso, faz um ano e meio”. Depois do espetáculo, ele e eu, junto com alguns convidados malásios, fomos levados a uma sala reservada, para cumprimentarmos o fundador da Sutra, Ramli Ibrahim, que dançara em uma das coreografias.

Figura mítica das artes cênicas na Malásia, Ramli Ibrahim recebeu há alguns anos o título malásio de Datuk e também uma das grandes distinções civis da Índia, a medalha Padma Shri. Conversamos. Comentei que meu número preferido havia sido o inspirado em Surya, o deus do sol no hinduísmo. Conduzindo sua carruagem com sete cavalos, Surya levanta-se do mar ao amanhecer, atravessa o céu e traz luz ao mundo. A coreografia mostrava esse momento, incluindo os movimentos dos sete cavalos, de forma altamente eficaz.

Ramli Ibrahim estava feliz e exultante. No último ano, o espetáculo a que acabáramos de assistir tivera de ser adiado mais de uma vez, por causa das repetidas medidas de isolamento social. Pensei novamente nas agruras de ser um artista durante a pandemia.

Eu tinha já entrada para o concerto seguinte da Filarmônica, na tarde do sábado 8 de maio. Na noite desse mesmo dia, iria também à apresentação de uma ópera de Francis Poulenc por uma companhia de ópera local. Os sinais eram claramente de uma volta à normalidade.

Saindo da Dewan, atravessei o amplo corredor que leva da sala de concertos ao centro comercial — que aliás se chama Suria — aos pés das Petronas. Fui à livraria; fui ao supermercado. Voltando para casa pelo parque de Roberto Burle Marx, carregando minhas sacolas, escutei o koel asiático, que canta apenas no final da tarde e de manhã cedo. Fui caminhando, pensando que as fronteiras logo seriam abertas, e eu tiraria férias e poderia ver minha mulher em Singapura, minha filha em Bruxelas, sem ter de me preocupar com quarentenas ou providências burocráticas.

Não saio da Malásia desde o início de 2020 e de Kuala Lumpur desde janeiro de 2021, por causa das restrições até mesmo a viagens dentro do país. Pensei que meus projetos de viagem significariam encontrar antes um hotel em Kuala Lumpur onde deixar Kiki, a gata persa dourada.

O otimismo de que costumo dar demonstrações, e que impressionava meu pai, pareceu-me, enquanto eu caminhava pelo parque ouvindo o koel, cantarolando trechos de Sibelius e pensando na possibilidade de viajar, um raciocínio realista. Minha única preocupação era a provável reação de Kiki. Eu a magoaria, ao deixá-la sozinha por duas ou três semanas.

Poucos dias depois, o aumento nos casos de Covid-19 obrigou o governo malásio a determinar novas restrições na capital. O concerto do dia 8 de maio da Filarmônica foi cancelado, assim como a ópera de Poulenc. Em 1º de junho, novo confinamento completo foi decretado para todo o país. Até mesmo o único acesso ao parque ainda permitido foi fechado.

Não seria ainda agora que Kiki sentiria a minha falta.

Esta Carta da Malásia, a X, foi primeiro publicada, em 3 de julho, na revista de ideias Estado da Arte

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Álbum de fotos – Taj Mahal

Álbum de fotos – Taj Mahal

Em outubro de 2016, fui à Índia pela primeira vez, a trabalho. A reunião principal era em Goa, mas eu precisava depois ir a Nova Delhi, para um compromisso com a chancelaria indiana. Terminado o encontro, sobravam pouco mais de 24 horas antes do voo que daria início à minha longa volta para o Brasil.

Estar na Índia era fascinante. Ficar no quarto descansando, portanto, não era uma opção. Decidi que havia duas possibilidades: conhecer Nova Delhi ou ir a Agra visitar o Taj Mahal. Optei por Agra.

Escrevi sobre Goa em Os Bragança de Chandor, Goa, India. Em retrospecto, é surpreendente que eu até hoje não tenha narrado a ida ao monumento mais famoso da Índia, e certamente um dos mais celebrados do mundo. Devo supor que temi cair no lugar comum. Como dizer algo original sobre um monumento tão célebre, do qual todo mundo já viu fotos, sobre o qual todos têm uma opinião? No Brasil, é o Cristo Redentor; nos Estados Unidos, a Estátua da Liberdade; na França, a Torre Eiffel; na Itália, o Coliseu; na Inglaterra, o Big Ben; na Rússia, a Catedral de São Basílio. Na Índia, é o Taj Mahal. Poucos países têm a sorte de possuir um monumento que os represente visualmente, reconhecido em toda parte como seu símbolo.

Convidei Laura, uma prima de Juiz de Fora que na época morava em Nova Delhi, para ir a Agra comigo. Ela tudo organizou. Contratou um motorista, em meu nome, por intermédio de uma agência de turismo; ele nos apanhou de madrugada em seu carro. Veio conosco, também, um hóspede de Laura, que por acaso fora meu aluno no Instituto Rio Branco.

Eu tinha uma preocupação. Sonolento, vitimado ainda pelo jet lag da viagem que eu fizera poucos dias antes de Brasília a Goa em classe econômica, fui especulando, durante o trajeto de pouco mais de 200 quilômetros de autoestrada, se eu não ficaria decepcionado. Parecia inevitável. Tendo crescido vendo fotos do Taj Mahal, eu só poderia sentir desilusão ao conhecê-lo ao vivo.

Laura planejara um café da manhã indiano em um hotel perto do monumento. Do terraço, tem-se uma vista espetacular sobre o Taj Mahal. Depois da refeição pegamos, na porta do hotel, um trenzinho à disposição dos hóspedes que leva até o portão de acesso ao complexo do mausoléu.

A expectativa de que eu me decepcionaria foi frustrada; raras vezes senti um impacto tão grande. O Taj Mahal é muito mais impressionante ao vivo.

Cecília Meireles, que visitou o país em 1953, incluiu em Poemas Escritos na Índia, publicado no mesmo ano, o poema Taj Mahal, sem medo de narrar sua reação ao monumento. Há nos versos muitas imagens difíceis de esquecer, mas talvez minha predileta seja: “Vêm morrer castamente os bogaris sobre os túmulos”, com seu vago eco de Racine. Na galeria de fotos, cito alguns outros de seus versos.

Como o mundo inteiro sabe, o mausoléu em mármore branco, construído entre 1632 e 1653, à beira do sagrado rio Yamuna, por ordem do quinto soberano do Império Mogol, Xá Jahan, abriga a tumba de sua mulher predileta, Mumtaz Mahal. Em Vislumbres de la India, Octavio Paz apenas menciona o mausoléu. Fala muito mais de seu hotel em Mumbai, chamado Taj Mahal, sobre o qual, entre outras coisas, diz: “Es real y es quimérico, es ostentoso y es cómodo, es cursi y es sublime“. Terá o poeta, ao contrário de Cecília Meireles, sentido a mesmo inibição que eu, evitado descrever um monumento conhecido universalmente? Sobre o reinado de Xá Jahan, Octavio Paz menciona que “Fue un período de esplendor artístico. Sus últimos años fueron de pena y desolación”, em grande parte por causa da perda de Mumtaz Mahal.

A origem do monumento lhe confere uma aura romântica. Noivos se fazem fotografar frente a ele. Em fevereiro de 1992, os príncipes de Gales, ainda casados, visitaram a Índia. Somente Diana foi a Agra, enquanto Charles cumpria compromisso em outra cidade. A foto da princesa sentada sozinha frente ao que é visto como uma celebração do amor pareceu confirmar uma irremediável crise conjugal. Em dezembro do mesmo ano, o casal anunciaria sua separação.

Xá Jahan foi deposto em 1658 por um dos filhos que tivera com Mumtaz Mahal, Aurangzeb. A partir daí viveu prisioneiro no Forte de Agra, onde morreu em 1666. Foi enterrado no Taj Mahal, junto a Mumtaz Mahal. O forte, que é na verdade, por trás de suas muralhas, uma sucessão de palácios, fornece vistas belíssimas sobre o Taj Mahal.

“Mahal” significa “palácio”. Muntaz Mahal quer dizer “a glória — ou a jóia ou a primeira — do palácio”. O sentido de Taj é “coroa”.

Com exceção de Octavio Paz, todos os livros da biblioteca familiar sobre a Índia estão em Singapura. Muitos foram comprados em Agra. Após a visita ao mausoléu e ao forte, voltamos ao hotel, para um lanche antes do regresso de carro a Nova Delhi. Havia ali uma pequena e elegante livraria. Descobri assim haver na Índia editoras que reproduzem clássicos, e não apenas indianos, em fac-símile, com encadernação de couro. Foi uma festa para mim. Comprei livros de autores contemporâneos sobre a Índia e, nas edições em couro, obras de Nehru e Gandhi.

Este ano, em Kuala Lumpur, consegui encomendar da Índia um volume português de 1907, intitulado Memórias Literárias, de um autor chamado Sanches de Frias. Eu sabia que, no capítulo sobre o cunhado de Machado de Assis, o poeta Faustino Xavier de Novaes, ele falava em meu trisavô, Francisco José Corrêa Quintella, o qual, por meio de cartas enviadas do Rio, foi sua fonte principal. Há anos eu vinha procurando algum exemplar junto aos alfarrabistas lisboetas. Pelos meandros habituais à vida, a ida ao Taj Mahal, por causa da descoberta que eu fizera dessas edições na livraria do hotel, permitiu-me, quatro anos depois, entender um pouco mais a personalidade do meu trisavô.

Ao voltar a Nova Delhi, já de noite, pude apenas, antes de ir para o aeroporto, tomar banho, mudar de roupa e fazer a mala. Não sentia cansaço algum.

No primeiro dos três voos que me levariam a Brasília, fui pensando na imensidão do que acabara de me acontecer. Eu estivera no Taj Mahal. Tocara o seu mármore. Entrara no mausoléu. Andara pelos prédios secundários. Vira o Yamuna correndo entre os campos e as árvores. Passeara pelos jardins. Comprara livros.

Sonhara.

Este ensaio é um presente de aniversário para Cora Rónai, afilhada de Cecília Meireles

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George Steiner e o Quarto Trancado

George Steiner e o Quarto Trancado

Em Lessons of the Masters, publicado em 2003, George Steiner estuda a relação entre mestres e discípulos com a autoridade de quem, como ele diz, já era há meio século professor em diferentes países e sistemas de educação superior. O livro é a compilação das “Charles Eliot Norton Lectures” que o grande crítico franco-americano proferiu em Harvard, universidade onde obtivera seu mestrado em 1950, como o convidado do período letivo 2001-2002.

“Mestres” e “discípulos” são conceitos que certamente já soavam antiquados nos primeiros anos do século XXI. O próprio Steiner nos diz que somente na cultura francesa a palavra “mestre” — que ele usa com maiúscula — existe sem conotações irônicas. Nas letras anglo-americanas, apenas Henry James recebeu o epíteto com “more or less sincere esteem”, embora originalmente ele lhe tivesse sido atribuído com a intenção de ridicularizar “seus ares patrícios”.

O título escolhido por George Steiner faz referência a uma novela do mesmo Henry James, The Lesson of the Master, de 1888. No enredo de James, um escritor celebrado, admirado por um autor iniciante, recomenda a este que não se case, para poder se dedicar integralmente à sua arte. Depois de enviuvar, o homem mais velho fica no entanto noivo da mulher amada pelo mais jovem. O mestre ainda diz ao discípulo excessivamente obediente que, em parte, decidiu casar-se de novo para impedir o mais jovem de cometer esse erro, que prejudicaria o desenvolvimento de seu talento literário.  

Na visão de Steiner, a relação entre mestres e discípulos, que se dá, ele lembra, em todas as áreas, inclusive a esportiva, a militar, a científica, pode se basear em três tipos de dinâmica. Há aquela em que mestres destroem seus discípulos psicologicamente e até mesmo, “in rarer cases”, fisicamente. Há também a relação em que o discípulo “subverte, trai e arruína” o mestre. Na terceira categoria, há um intercâmbio que promove confiança mútua e verdadeira amizade, em que o professor aprende do aluno, enquanto ensina a ele. A confiança e a amizade podem mesmo gerar amor, e Steiner menciona “Alcibíades e Sócrates, Heloísa e Abelardo, Arendt e Heidegger”.

Com sua postura habitual de guardião do pensamento cultural ocidental, Steiner recorre a numerosos exemplos. São tantos os filósofos, escritores, poetas, artistas citados que passa a ser um exercício divertido notar a falta de alguns nomes. Penso por exemplo em Sêneca e Nero, ausentes ilustres que o autor poderia ter usado como um belo caso em que é o discípulo quem destrói o mestre “fisicamente”, e não o contrário. Notei também que o autor não fala da sua experiência como discípulo na juventude, apresentando-se exclusivamente na condição de mestre: “a família constituída por aqueles que foram nossos alunos é como a ramificação, os galhos verdes de um tronco que envelhece (tenho alunos em cinco continentes)”. 

Uma presença importante no livro é Fernando Pessoa. Steiner aponta como Ricardo Reis e Álvaro de Campos, embora “antipathetic to each other”, eram ambos discípulos de Alberto Caeiro, como aliás era também o próprio Pessoa, criando-se nessa interdependência entre o poeta e seus heterônimos “uma alquimia única na literatura”.Steiner sugere haver em Fernando Pessoa um paradoxo doloroso, pois o poeta é um “magician of solitude”, mas sente uma “sede por diálogo”: “a thirst for dialogue, for shared risks of sensibility and intellect along Socratic lines”.

Lessons of the Masters não é o meu livro predileto de George Steiner. É uma leitura árida, apesar das digressões, e pouco a pouco os exemplos começam a cansar, pois as relações humanas tendem a ser repetitivas. Toda interação entre duas pessoas, mesmo a mais amistosa, pode sofrer o impacto da inveja, da competição, do ciúme, da ingratidão, da cobrança excessiva. Vejo como sendo a sina do mestre decepcionar-se com o discípulo, ou sentir ciúmes de seu sucesso, assim como é a sina do pupilo, em algum momento, querer libertar-se e, nesse processo, talvez ser ou parecer egoísta e ingrato. Há algo edipiano nisso tudo, e Steiner aliás menciona a “tragicomédia das relações de Freud com seus discípulos”, o que terá “entristecido mas não surpreendido” o pai da psicanálise, para quem “civilization had arisen from the murder of the father”. Acredito que, para os indivíduos mais equilibrados, se houver desprendimento mútuo, a relação prosperará e perdurará. Não sei se quase duzentas páginas eram necessárias para explicar isso.

O livro apresenta porém, além de análises literárias úteis, certas ideias que merecem reflexão. Aponta o autor o erro de equipararmos artistas de diferentes épocas e gêneros, sem critério para diferenciar seus méritos relativos: “É, ou deveria ser, evidente que Bach e Beethoven concretizam uma esfera de esforço humano superior a rap ou heavy metal, que Keats provoca percepções das quais a lírica de Bob Dylan é inocente”. Steiner comenta que pode existir “a recusa em ensinar, a negação da transmissão”, quando “o Mestre não encontra discípulos, destinatários merecedores de sua mensagem, da sua herança”. Há também os casos em que o discípulo, de maneira consciente ou não, distorce os ensinamentos que recebe. Ao ler isto, pensei no filme Rope, de Alfred Hitchcock, no qual dois amigos matam um terceiro como exercício de diletantismo intelectual inspirado em conversas com um antigo professor. O filme é baseado em uma peça retirada, por sua vez, de uma história real.

Subjacente ao texto como um todo há a sugestão de que mesmo o mais leal dos discípulos precisa se tornar independente do mestre. O bom professor “desperta dúvidas no pupilo, treina-o para a discordância”. Já o discípulo pode precisar “fugir ou trair” para “salvar sua identidade de uma autoridade insuportavelmente carismática”.

Steiner dá um único exemplo de mestre do sexo feminino, Nadia Boulanger. Nascida em 1887 e morta em 1979, aluna de Gabriel Fauré, Boulanger teve como alunos vários dos compositores e músicos mais importantes ou famosos do século XX, por exemplo Aaron Copland e Leonard Bernstein. Alguns deles, como Daniel Barenboin, continuam ativos. Steiner dedica-lhe mais de quatro páginas, em tom relativamente afetuoso: “she gave her students the confidence to become what they were”, diz ele. Esta última qualidade, ele avalia, seria “o dom maior de um mestre”. Nem todos se entenderam bem com Nadia Boulanger — “after extended study, Philip Glass breaks away” — mas Ned Rorem é citado dizendo: “ela foi o maior dos professores, desde Sócrates”.

A referência à capacidade de atribuir aos alunos “a confiança de se tornarem o que eram” fez-me pensar em meu avô, o matemático, de quem sou homônimo. Embora ele tenha morrido relativamente jovem, em 1968, não é incomum eu receber ainda hoje, de maneira imprevista, nas redes sociais, mensagens de pessoas que não conheço mas que estudaram com ele no Pedro II, no Colégio Militar do Rio de Janeiro ou no Instituto de Educação e que o descrevem como carismático, atento aos alunos e, frequentemente, como o melhor professor que tiveram. 

Quando eu estudava em Londres, as maiores influências intelectuais sobre mim não foram os professores da London School of Economics, mas, além de meus pais, alguns amigos brasileiros mais velhos, que também moravam lá. Um deles, justamente, estudara em Paris, quando muito jovem — a primeira vez, aos sete anos — com Nadia Boulanger e muitas vezes me falou nela. Por isso, toda menção a seu nome desperta minha atenção.

Assisti, estes dias, a uma versão, talvez truncada, disponível na Internet, de um documentário de Bruno Monsaingeon, editado em 1977, mas filmado ao longo de vários anos, intitulado Mademoiselle. O documentário mostra Nadia Boulanger, já anciã, ainda lecionando. Um de seus ex-alunos, o regente e compositor Igor Markevitch, aparece dizendo que um condiscípulo, Sviatoslav Stravinsky, filho do compositor, definia da seguinte maneira a impressão que podiam causar suas aulas: “temos a impressão, de repente, de que uma obra se tornou tão profunda quanto o mar”.

Perguntada sobre como faz para estabelecer uma “hierarquia” entre compositores, recebendo como exemplos Beethoven e Max Bruch — deste último eu até então jamais ouvira falar — ela exclama: “É difícil comparar os Himalaias com a Butte Montmartre”. E completa: “Nunca penso em Max Bruch, mas é muito raro o dia em que eu não pense em Beethoven”. Parte significativa do filme é passada mostrando uma das famosas “quartas-feiras” em que Nadia Boulanger, sentada perto do piano, dava aula na pequena sala de seu apartamento parisiense. Os alunos estão instalados à sua frente, em três ou quatro curtas fileiras de cadeiras. Há claramente no grupo um elemento de adoração e de compenetração — a mestre deixa claro a Bruno Monsaingeon, em outro trecho, que a falta de concentração é um defeito que ela não tolera. Em determinado momento, a câmera focaliza um dos alunos mais atentos e o que parece mais feliz de estar assistindo àquela aula. Não fiquei surpreso ao reconhecer o meu amigo. Trocamos mensagens a respeito. Ele me disse: “Penso nela todos os dias”.      

Os livros de Steiner exerceram grande influência sobre mim, durante alguns anos. Ainda hoje, gosto de ler suas palavras sobre Goethe, Racine, Corneille, Tolstoi e Dostoievski. Ao menos uma vez, porém, cometi o erro de acreditar nele sem ressalvas.

Por sua causa sou, por princípio, cético quanto à atual literatura de língua inglesa. Em um ensaio de 1982 sobre o poder e as artimanhas da tradução, intitulado “An Exact Art”, ele nos diz que o inglês já era então “the sole genuine Esperanto”, talvez por causa das características sintáticas do idioma, que o tornam de aprendizado mais fácil e rápido do que outros. Steiner sugere também, e sobretudo, que, no caso dos autores contemporâneos de língua inglesa, sua posição central nas letras se deve, antes de mais nada, ao poderio político-econômico dos Estados Unidos. Ele não quer dizer que não haja bons autores escrevendo em inglês, apenas que o peso econômico e cultural americano lhes confere um prestígio desmerecidamente superior ao dos que escrevem em outras línguas. 

Em O Vulcão, mencionei que um amigo americano, John Hay, de quem éramos vizinhos em Quito, e com quem deixei de conviver em 2001, quando fomos embora do Equador, tinha em Paul Auster um de seus autores prediletos e sempre falava na sua obra. Durante vinte anos, pensei comigo mesmo que eu devia lê-la, se um amigo mais velho, que eu respeitava, a recomendava.

No entanto, era difícil vencer minha resistência, causada em grande parte por George Steiner e minha vontade de acreditar nele de forma absoluta. Havia também outras razões. Li recentemente, no New York Times, uma entrevista com Margaret Jull Costa, a tradutora inglesa de, entre outros autores, Machado de Assis, José Saramago e Fernando Pessoa. Em resposta a uma pergunta, ela diz algo que ecoou em mim: “I’m not sure I have any guilty reading pleasures except avoiding contemporary fiction — and I do feel slightly guilty about that, but it does simplify my reading life”.

Em 2009, Paul Auster voltou à minha atenção quando assisti, em Bruxelas, a uma retrospectiva do trabalho de Sophie Calle. A partir desse momento, por alguns anos, a artista francesa foi um de meus principais interesses culturais. O que me fascina não é só sua capacidade para transformar em arte a sua vida cotidiana, mas o fato de que ela cria eventos em sua vida cotidiana para poder transformá-los em atividade artística. Comecei naquele ano a escrever um conto inspirado em um de seus projetos, L´Hôtel, no qual ela trabalhou como camareira em um hotel veneziano para poder estudar a vida dos hóspedes com base em seus pertences pessoais.

Descobri, porém, que Paul Auster já havia feito algo semelhante ao que eu planejava. Em seu romance Leviathan, de 1992, um dos personagens é uma artista calcada em Sophie Calle. Esse livro, por sua vez, gerou um novo projeto da própria artista. Em 1994, em atenção a um pedido dela, Paul Auster redigiu instruções, que ela obedeceu, sobre “como tornar a vida melhor em Nova York”. Esse trabalho conjunto do escritor e da artista, que pode ser visto como um tipo anárquico e temporário de relação entre mestre e discípulo, forma o projeto Gotham Handbook.

O tom de Auster para a artista lembra, estranhamente, o de algum filósofo estoico romano dirigindo-se a um discípulo: “Há tantas coisas que separam os homens, há tanto ódio, tanta discórdia na atmosfera, que é bom lembrar das coisas que nos unem. Quanto mais pensarmos nelas na nossa interação com desconhecidos, melhor será o moral na cidade”. Uma das instruções era escolher um ponto de Nova York – uma esquina qualquer, uma entrada de metrô – e passar a considerar-se responsável por esse lugar, limpando-o, cuidando-o, dirigindo-se às pessoas que passavam por ali. Sophie Calle optou por uma cabine telefônica, na esquina das ruas Greenwich e Harrison. Decorou-a com flores, um espelho, cartões postais. Dialogava com os usuários do telefone, escutava suas conversas.

Anos mais se passaram. Em 2017, ao fazer escala em Heathrow a caminho do Cazaquistão, comprei alguns livros, entre eles uma edição da obra mais famosa de Paul Auster, The New York Trilogy. Na volta ao Brasil, o volume ficou intocado em uma estante. 

Em 2020, na Malásia, associei a pandemia à experiência de viver à sombra de um vulcão em atividade no Equador. Isso tornou mais vivas, na minha memória, as conversas com John Hay, que morrera em 2018. Lembrei do volume de Paul Auster na estante. Decidi abri-lo.

São três romances curtos, City of Glass, Ghosts e The Locked Room, inicialmente publicados de forma isolada, entre 1985 e 1986, que muitos consideram histórias pós-modernas de detetives. Embora haja investigadores particulares e casos a serem resolvidos, estes são na verdade pretextos para uma reflexão sobre a arte de escrever, a solidão que ela provoca e a credulidade do leitor. Vários dos poucos personagens estão sempre redigindo alguma coisa: livros, relatórios, anotações, cartas, panfletos religiosos, bilhetes de suicídio.

Um tema recorrente é o da identidade, inclusive a do próprio Paul Auster — que aparece como autor, personagem e talvez, no terceiro romance, como narrador na primeira pessoa, mas também como amigo do narrador no primeiro romance — e a de Miguel de Cervantes, ou melhor, a do autor de Don Quixote. Há numerosas homenagens a autores americanos do século XIX – Poe, Hawthorne, Melville, Emerson, Thoreau, Whitman. Essas referências podem servir para explicar a narrativa de Auster ou, ao contrário, podem representar falsas pistas; ou nada significar. Embora seja um livro cerebral sobre o ofício do escritor, The New York Trilogy é uma leitura deliciosa. Há o tempo inteiro a sensação de que o autor quer nos revelar algo, e fica a nosso critério decidir o que isso seria.

O primeiro dos três romances, City of Glass, me deu em alguns momentos a impressão de estar assistindo a um film noir. Há ecos de Samuel Beckett, pois uma lata de lixo tem um papel importante na vida do personagem principal. No segundo, Ghosts, o autor nos mostra como contar uma história complexa com o mínimo de personagens, ambientes e temas. No último romance, The Locked Room, reaparecem personagens, ou seus homônimos, que havíamos encontrado em City of Glass. Sobretudo, recebemos aí a informação de que o narrador de The Locked Room escreveu também City of Glass e Ghosts. “The three stories are finally the same story”, explica ele, talvez desnecessariamente, “but each one represents a different stage of my awareness of what it is about.  

The Locked Room é construído de forma mais tradicional do que os outros dois, e mesmo seu título é o mais obviamente inspirado de um estilo específico de histórias de mistério, em que alguém é assassinado ou algo é roubado em um quarto trancado por dentro. Um dos precursores dessa modalidade foi Edgar Allan Poe, em The Murders of the Rue Morgue. No romance de Paul Auster, nada físico é subtraído e ninguém chega a ser assassinado. No final, há um quarto em Boston onde o narrador deseja entrar porque acredita que, ao conversar com o amigo, Fanshawe, que lá está trancado, entenderá a verdade sobre como e por que esse amigo manipulara sua vida, de longe, nos últimos anos.

Embora Nathaniel Hawthorne seja uma inspiração mais óbvia, por causa do nome e de algumas características de Fanshawe, há uma leve lembrança, proposital ou não, da novela de Henry James que também inspiraria Steiner quinze anos depois, The Lesson of the Master. Fanshawe é um escritor que não publica. Desaparece, dando instruções à sua mulher para procurar um amigo de infância, o narrador, que não vê há dez anos, e mostrar a ele seus manuscritos. Estes, descobre o narrador, são excelentes. Fanshawe, acredita-se, está morto. Seus romances e suas peças de teatro, publicados “postumamente”, são um sucesso de crítica e de público. O narrador, romancista frustrado, que só consegue escrever resenhas, casa com a “viúva” de Fanshawe e cria seu filho. Começa então a levar uma vida literária ainda menos produtiva do que antes, e atribui isso à situação de homem casado e pai de família.

Um dado importante é que Fanshawe, embora da mesma idade do narrador, exercera sobre ele, na infância e na adolescência de ambos, uma forte influência. O que Fanshawe fazia, o narrador fazia; o que Fanshawe lia, o narrador lia: “I was not the only one who behaved like this, but I was perhaps the most devoted”.

O resultado é previsível e típico do comportamento de qualquer pupilo: “I see now that I also held back from Fanshawe, that a part of me always resisted him”. Um colega de universidade de Fanshawe, que aliás estudara em Harvard, diz ao narrador, que o procura: “I learned more from him than from any of my classes”. Isso tudo poderia fazer parte das palestras de George Steiner em Harvard sobre a relação mestre/discípulo.“He was the one who taught me to think for myself”, diz o colega.

O narrador vive a existência do amigo “morto”. É casado com sua “viúva”, cria seu filho, vive dos direitos autorais das obras dele, e há mesmo o rumor no meio literário de que, na verdade, Fanshawe nunca existiu e é ele, o narrador, o autor dos livros. Fanshawe na realidade não morreu e, no final do romance, convoca o amigo para uma conversa na casa onde está morando em Boston. Não se deixa ver, não destranca o quarto para o diálogo que mantém com ele, separados os dois pela porta, e não explica satisfatoriamente os motivos de seu desaparecimento. 

Terminada a leitura, pensei no erro que havia sido pautar-me por George Steiner. Teria sido melhor ouvir meu amigo John Hay. Steiner aliás publicara “An Exact Art” quando Auster apenas começava a escrever romances. O ditame steineriano sobre a literatura contemporânea americana não poderia se aplicar a ele. Eu me privara, durante anos, de uma leitura altamente instigante. Minha visão de mundo e minha opinião sobre a literatura americana seriam talvez diferentes, se eu tivesse lido The New York Trilogy há vinte anos.

Havia outro aspecto a lamentar. Livros ocupam um espaço importante na minha sociabilidade. São emprestados, presenteados, recebidos, discutidos, comentados. Ao atrasar em vinte anos meu contato com Paul Auster, eu abrira mão de um assunto para dialogar com um amigo. 

Supus então o que seria o verdadeiro “quarto trancado” do título do romance de Auster. Trata-se da nossa mente, que tenta de todas as formas nos aprisionar em ideias ditadas por outros, criando zonas de conforto intelectual. Em vez de aprender com um “mestre” a pensar por conta própria, deixamos que ele determine em que devemos acreditar.

Em um sentido amplo do termo, o “mestre” nem sempre é um professor. Pode ser um escritor, um jornalista, um comentarista de televisão, um ator, um tuiteiro, um amigo. Valorizamos a liberdade física, no entanto deixamos que outros pensem por nós. As palestras de George Steiner em Harvard deram-se antes da proliferação de redes sociais que hoje preenchem o cotidiano. Ele aborda porém, ao concluir, a questão de como a vida ditada pela celebridade midiática opõe-se ao intelecto: “somos viciados em inveja, em depreciação, em nivelamento por baixo”. Em uma imagem impactante, ele diz: “nossos cérebros estão cobertos de grafites”.

Em fevereiro morreu, aos 95 anos, o poeta suíço francófono Philippe Jaccottet, de cujos poemas Paul Auster foi no passado tradutor. Tendo Jaccottet partido, eu já não precisava considerá-lo como “contemporâneo” e decidi ler seu único romance, L’Obscurité, publicado em 1961.

O livro, sombrio como faz prever o título, transmite a visão do narrador sobre um filósofo que ele admira e considera seu mestre. Eles não se veem há anos, pois o mentor, em um belo exemplo de desprendimento de mestre para com discípulo, exigira esse afastamento, pensando que o mais jovem corria o risco, se continuasse convivendo com ele, de “perder toda existência pessoal”. Tendo assimilado as lições do mestre, de quem aprendera “a amar a vida”, a “agir, falar e viver somente para comunicar a luz de que nós nos sentíamos rodeados” e a adotar, “com convicção, o partido da claridade”, o narrador regressa, depois de três anos, ao país natal. Deseja mostrar a seu mentor que incorporou seus ensinamentos.

O mais velho vive agora na obscuridade, e é com dificuldade que o mais jovem consegue retomar contato. Marcam um encontro. O mestre mudou-se para um bairro pobre da cidade. Recebe-o no escuro, pedindo que não olhe para ele, o que nos lembra a situação no final de The Locked Room; Paul Auster não traduziu L’Obscurité, mas talvez o tenha lido. Segue-se um solilóquio em que o mestre, deprimido, aterrorizado com a ideia da morte, prematuramente envelhecido, lamenta “só ter vivo em si o sentimento da nulidade da vida”. Esse discurso pessimista afeta de forma negativa, por um bom tempo, a psicologia do discípulo.

O romance de Philippe Jaccottet subverte a categorização postulada por George Steiner sobre os três tipos de relação possível entre um mestre e um discípulo. É uma demonstração literária de como a terceira forma de relação, a positiva, amistosa, pode evoluir para o primeiro tipo, em que o mestre destrói psicologicamente o pupilo, embora neste caso esse efeito pareça involuntário e o mestre tenha sobretudo destruído a si próprio. O erro do narrador de Philippe Jaccottet é o de se deixar influenciar, positiva e depois negativamente, pelo amigo mais velho, confirmando a utilidade da parábola de Paul Auster.

Destrancar o quarto, abrir a porta, significa descobrir nossas convicções, nossas ideias próprias, aceitá-las e vivê-las. A luz deve ser trazida pela nossa inteligência, não pela doutrinação de outro. Esta é a mensagem central de George Steiner em Lessons of the Masters: não devemos nos deixar aprisionar nos grafites alheios, que criam zonas de conforto, mas ter a coragem da verdadeira liberdade intelectual.   

Este ensaio foi publicado, em 20 de março, na revista de cultura, artes e ideias Estado da Arte

A foto principal representa a instalação em Nova York de Charlie Hewitt, Urban Rattle

Todas as fotos são do autor

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Álbum de fotos — Palácio Itamaraty

Álbum de fotos — Palácio Itamaraty

É “o velho Itamaraty”, o do Rio de Janeiro, que mostro neste álbum. O de Brasília é, certamente, um dos prédios mais fotografados e conhecidos do Brasil. O do Rio, inaugurado em 1854 como residência particular do conde de Itamaraty, viveu momentos ilustres, mas já não é tão presente no imaginário nacional. Nele morreu, em 1912, o barão de Rio Branco. Nas primeiras décadas do século XX, foram construídos anexos, particularmente a biblioteca. É no Itamaraty do Rio que, até 1970, trabalharam pela política externa gerações de diplomatas brasileiros.

Antes de mais nada, sanemos uma dúvida: Palácio Itamaraty ou Palácio do Itamaraty? O do Rio ostenta um dos dois nomes, o de Brasília o outro. Antigamente, eu considerava o assunto digno da corte bizantina. Depois, memorizei qual era qual. Agora, já não me lembro. Pesquisando, vejo páginas oficiais, e mesmo textos assinados por autoridades, usando os dois nomes indistintamente, o que a rigor é um equívoco. Raciocinemos. O prédio do Rio emprestou o nome ao Ministério das Relações Exteriores, que lá esteve sediado de 1898 a 1970. Existia antes de o Ministério instalar-se nele. O de Brasília pegou o nome do Ministério que o ocupa, que chegou do Rio à nova capital habituado já à tradição de ser chamado pelo nome do prédio no Rio. A lógica faria supor, portanto, que o do Rio é o Palácio Itamaraty, enquanto que o de Brasília é o Palácio do Itamaraty, ou seja o prédio que pertence a uma instituição conhecida como Itamaraty. Faz sentido; tem lógica. Se me disserem que o oposto é o correto, espero que possam me dar uma razão igualmente razoável.

Aos 11 ou 12 anos, visitei pela primeira vez o Palácio Itamaraty. Na época, nós morávamos em Montevidéu, mas estávamos de férias no Brasil. Os meses de verão eram passados sobretudo na fazenda do meu avô materno, na Zona da Mata em Minas, que era o paraíso, mas minha avó e meu outro avô materno, Alfredo Curvello, viviam, separados mas amigos, no Rio de Janeiro, e lá íamos por alguns dias.

Naquele ano, minha mãe decidiu mostrar-me o Itamaraty. Para que o dia fosse o mais interessante possível para mim, fomos primeiro à Livraria Leonardo da Vinci, que era então um marco cultural na cidade, pelas seções de livros estrangeiros. Tenho até hoje, manuseado, gasto, o Livre de Poche que comprei nesse dia, uma das biografias escritas por Philippe Erlanger, a do Regente, sobrinho de Luís XIV.

Naquele tempo, eu não pensava em ser diplomata. Meu sonho era ser advogado. Talvez estivesse influenciado pela figura do meu pai, formado em Direito, que nunca advogou mas começava a pensar em preparar com Sobral Pinto, a quem ele admirava muito, o primeiro dos dois livros do jurista com os quais colaborou, Lições de Liberdade. Sobral Pinto era bem mais velho do que meus avós. Lembro dele perfeitamente como um homem educado, afável, vestido de terno escuro, de aparência frágil e espírito firme. Exercia influência sobre meu pai, e por isso eu o via, criança ainda, como uma figura exemplar.

Nessa primeira visita ao Palácio Itamaraty, minha mãe, Thereza Quintella, apontou o anexo do palácio, paralelo ao espelho d´água, onde ela trabalhara nos primeiros anos da carreira. Contou-me de maneira natural, sem mágoa alguma, como uma verdade a ser encarada sem temor, como era difícil, para uma mulher, ascender em uma profissão ainda essencialmente masculina.

A verdade é que sua promoção a embaixadora, que aconteceria em 1987, foi na época celebrada como uma rara vitória das mulheres no Brasil. Hoje, quando é evidente que as mulheres devem ocupar os cargos mais elevados, não temos mais consciência do quanto era escassa, há apenas 30 anos, a presença feminina nos altos escalões, em Brasília. Parece, em 2021, incompreensível que a promoção da minha mãe ao cargo mais alto da carreira diplomática tenha despertado tanta notoriedade, tenha sido vista como algo tão excepcional. É suficiente dizer que, durante seis anos, ela foi a única embaixadora brasileira na ativa, até a promoção seguinte de uma mulher, Vera Pedrosa, sobre quem escrevi em um ensaio evocando meu tempo no Equador, O Vulcão.

O palácio e seus anexos abrigam, além da representação do Itamaraty no Rio de Janeiro, o Museu Histórico e Diplomático. Sua mapoteca é famosa, seu arquivo importante.

Uma palavra sobre a galeria de próceres americanos. Guardei no celular fotos dos bustos de George Washington, James Monroe, Antonio José de Sucre e José Artigas. Este último é, artisticamente falando, excelente. Destaca-se dos demais, e por isso o escolhi para o álbum de fotografias. Os quatro bustos, porém, representam algo mais. Lembram etapas da minha vida, Montevidéu na adolescência, Washington e Quito na idade adulta.

Minha mais recente ida ao Itamaraty do Rio aconteceu em junho de 2018. Fui com a minha mãe. Helen Verraes Alves, gentilmente, nos ciceroneou. As fotos foram todas tiradas nesse dia.

Dedico este álbum ao embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, com quem trabalhei em meu primeiro posto, a embaixada em Washington, e que se despediu de nós há poucos dias. Sua personalidade se distinguia pela determinação. Nunca o vi bater em retirada diante de dificuldades. Ao mesmo tempo, tinha uma lúcida visão política do mundo, e sabia reconhecer quando um projeto era irrealizável. Liderava com absoluto autocontrole e uma calma segurança.

      

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