O casamento em Berdichev

O casamento em Berdichev

Minha mãe, Thereza Quintella, durante nove anos morou em São Conrado. Quando eu me hospedava com ela, cada vez que saía ou voltava a casa via uma rua vizinha à sua chamada Gabriel Garcia Moreno. Parecia-me estranho que o Rio de Janeiro homenageasse um dos mais autoritários presidentes do Equador, ultraconservador e ultramontano.

Garcia Moreno morreu assassinado em 1875. Chegava ao palácio presidencial, vindo da missa na catedral, situada na mesma praça, quando foi atacado a tiros e punhaladas. Juan Montalvo, escritor então exilado, opositor do presidente, publicara poucos meses antes um panfleto contra ele, A ditadura perpétua. Ao saber do assassinato, exclamou: “Minha pluma o matou”. Conto essa história em meu livro Geografia do tempo (2024), como exemplo do poder que a palavra escrita já possuiu.

Voltaire foi um precursor nesse gênero de visibilidade. Sua celebridade era de alcance europeu. Seu Tratado sobre a intolerância levou à reabilitação do nome de um condenado à morte, executado por um crime que não cometera. O retorno do escritor a Paris pouco antes de morrer, em 1778, após uma ausência de 28 anos, foi uma apoteose, assim como a transferência, em 1791, de seus restos mortais ao Panteão.

Durante todo o século XIX, os escritores mais famosos exerceram algum tipo de poder, não político — embora Chateaubriand e Lamartine tenham sido ministros das Relações Exteriores da França — mas sobre a mente de seus leitores. A fama de Balzac era tão forte que a condessa polonesa Evelina Hanska, nas suas terras situadas no outro lado da Europa, no que é hoje território ucraniano, ficou apaixonada pelos seus livros. Enviou-lhe cartas e, dezoito anos depois, poucos meses antes da morte de Balzac, casou-se com ele.

A cerimônia realizou-se em 1850, na cidadezinha de Berdichev, na Ucrânia. Tudo isso parece tão fantasioso que Tchekhov, na peça As três irmãs (1900), faz um de seus personagens murmurar, enquanto lê o jornal: “Balzac casou-se em Berdichev” e anotar a informação. Se Balzac, o mais famoso romancista francês da sua geração, se casou no que era então o interior do Império russo, então as coisas mais surpreendentes podem acontecer em uma existência humana. Em 1857, Joseph Conrad nasceria em Berdichev.

Nenhum escritor, hoje, poderia almejar um grau de popularidade semelhante ao usufruído, em vida, por Victor Hugo. Raul do Rio Branco, em suas Reminiscências do barão do Rio Branco (1942), conta como ele e seu pai, o Barão, testemunharam em Paris, em 1885, o velório público do escritor. O catafalco estava exposto sob o Arco do Triunfo e “a multidão a pé e de carro enchia os Champs-Elysées até a Étoile”. Opina o diplomata: “não creio que a nenhum outro homem se tenha feito vigília mortuária tão imponente e grandiosa”.

É o caso de se indagar qual é o sentido ainda de escrever, se o impacto causado por Byron, Balzac, Victor Hugo, Dickens, Tolstói, Castro Alves enquanto eram vivos não pode mais ser replicado. Entre os escritores da atualidade, lembro apenas de Salman Rushdie, com a glória e o pesadelo de ter uma fatwa proclamada contra si, como capaz de despertar paixões. As mais demonstrativas dessas paixões, porém, não podem ser categorizadas como de admiração.

Um dia, perguntei a um amigo como estava sua família. A resposta incluiu a frase: “meu filho deixou de ser artista plástico”. Isso me pareceu estranho. Ninguém “está” artista, ninguém “deixa” de ser artista. A pessoa é artista ou não é. Se a arte não é de qualidade, seu praticante, se tiver bom senso, deixará de expô-la, mas se sente o ímpeto de criar, não deixará de fazê-lo. Da mesma forma, o verdadeiro escritor pode escrever apenas para si mesmo, sem preocupação de ter seus textos divulgados, mas não se obriga a escrever contra a sua vontade — escreve porque precisa escrever.

Mais relevante do que a indagação sobre se vale a pena escrever é analisar se é útil publicar. Entendo que alguém escreva e prefira nunca vir a público. Há muitos motivos para essa decisão, inclusive a crença de que tudo já foi dito, tudo já foi escrito, de que nunca mais haverá um talento como o de Machado de Assis. Faz sentido não querer causar o derrubamento de mais uma árvore para lançar um livro que poucos, se tanto, lerão.

Mas justamente, o importante é não esperar ser um novo Machado de Assis. Machado existiu, escreveu uma obra única, seus livros continuarão a viver. Cada um deve buscar a sua voz própria.

Há um ano, muitos desses pensamentos me ocupavam. Em outubro de 2024, em Kuala Lumpur, decidi abruptamente passar um fim de semana na ilha de Langkawi. Não viajei sozinho. Levei comigo a versão final de Geografia do tempo, que eu precisava corrigir, estando sua publicação prevista, no Rio de Janeiro, para algumas semanas depois. Àquela altura, revisar o meu texto, em um exercício que já durava um ano — o livro deveria ter saído no final de 2023; mas eu mudara de editora, e o processo recomeçara — soava como uma atividade infinita e exaustiva.

Rebelei-me. Isolado em uma praia no Mar de Andaman, rejeitei a vaidade envolvida no ato de publicar. Julguei que a desistência seria uma alternativa legítima. Só persisti por causa das pessoas que mais amo. Percebi que, tendo chegado tão perto da reta final, não devia decepcioná-las. Com o Sol na cabeça, peguei o trem azul.

Passado um ano, Geografia do tempo mudou a minha vida, mudou a maneira de eu pensar. Trouxe-me novos amigos. Gerou muitas alegrias, culminadas com a sua seleção, agora em outubro, como finalista do Prêmio Jabuti.

Afinal, Balzac casou-se em Berdichev.

Coluna publicada no Estado de Minas ontem, 8 de novembro

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

As pedras do Louvre , 25 de outubro

O Sudeste Asiático e suas verdades, 11 de outubro

Cem anos na Ásia do Leste, 27 de setembro

O delírio do Chimborazo, 13 de setembro

O diplomata robô, 30 de agosto

Botas diplomáticas, 17 de agosto

O embaixador decapitado, 2 de agosto

O espaço do diplomata, 19 de julho

Cenários do poder, 5 de julho

Memória diplomática, 21 de junho

Batuque na cozinha, 7 de junho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

Retrato de família, 10 de maio

Benção apostólica, 26 de abril

O presente malásio, 12 de abril

Eterna cobiça, 29 de março

Grandes diplomatas, 15 de março

Consternação europeia, 1º de março

Da Pampulha para Kuala Lumpur, 15 de fevereiro

Tempos de incerteza, 1º de fevereiro

O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

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Memória diplomática

Memória diplomática

Transcrevo minha coluna quinzenal publicada no jornal Estado de Minas ontem, 21 de junho:

Minha mãe, Thereza Quintella, cumpriu 87 anos em 27 de maio. Pedi uns dias de férias para viajar de Luanda ao Rio de Janeiro e comemorar a data com ela. Decidi maximizar a ida ao Brasil com uma noite de autógrafos em Brasília.

Fiquei feliz de rever tantos amigos, ao assinar dedicatórias de Geografia do tempo na Livraria da Travessa. Aquela seria minha única oportunidade de estar com eles, já que no dia seguinte eu regressaria ao Rio. A divulgação fora bem-sucedida e havia, na fila, muitas pessoas que eu não conhecia, cuja curiosidade fora despertada pelas entrevistas e matérias na imprensa ou em portais na internet. O primeiro a falar comigo na livraria, na verdade, estava ali por acaso. Entrara para explorar as novidades, vira o aviso da noite de autógrafos e quisera saber mais.

Perguntou-me o sentido do título “Geografia do tempo”. Expliquei que uma das minhas indagações sobre o mundo é a constante variação entre a presença e a ausência de pessoas e lugares em nossas vidas. É um fluxo e refluxo em que podemos nunca mais reencontrar os seres mais queridos, por razões fora do nosso alcance; ou, ao contrário, circunstâncias imprevisíveis podem tornar as pessoas ainda mais presentes, por um período que será longo ou curto, mas jamais eterno.

Da mesma forma, avaliamos que um parque, uma cidade, um país, uma obra de arte ou um autor ficarão conosco para sempre; e no entanto, tantas vezes eles acabam por se perder para nós. A memória, assim, é como um ser independente. O tempo nos faz lembrar de algumas pessoas e de alguns lugares, e esquecer de outros, e torna misteriosa, à medida que nos deslocamos por este mundo, a geografia dos nossos sentimentos.   

Assinei exemplares de Geografia do tempo durante três horas e meia. Ao sair da livraria quando já fechavam as portas, liguei o celular e vi mensagens de minha mãe e de minha irmã avisando que, enquanto eu conversava com leitores e amigos em Brasília, no Rio falecera Marcos Azambuja.

Não é fácil discorrer sobre alguém com quem interagimos durante muitas décadas. As pessoas mudam com o avanço dos anos, e o Marcos Azambuja falecido em 28 de maio de 2025, aos 90 anos, era distinto daquele que primeiro conheci quando ele estava na faixa dos quarenta. Minha própria avaliação a seu respeito não poderia ser a mesma de quando eu tinha quatorze anos. Diante do seu falecimento tanto foi dito sobre ele, e da maneira mais elogiosa, na imprensa, nas redes sociais e nos noticiários de televisão, que parece difícil eu poder acrescentar algo.

Não é usual que a partida de um diplomata aposentado desperte tanto interesse midiático, o que diz muito sobre a celebrada capacidade de Marcos de encantar interlocutores. Sua trajetória diplomática, embora notável, por si só não justificaria tamanha comoção. Marcos não chegou a ser chanceler e sua gestão como secretário-geral das Relações Exteriores deu-se no mandato presidencial curto e conturbado de Fernando Collor de Mello. Sempre houve nele, porém, uma luz própria, uma inteligência vivaz, que não dependiam de funções ou cargos para se fazer visíveis e brilhar.

Quando o vi pela última vez, em julho de 2024, ele me lembrou que a aposentadoria lhe permitira dedicar-se a novas atividades, como palestrante em seminários, analista frequente sobre a situação internacional em telejornais, conselheiro de entidades privadas. Ao se aposentar, vira portas se abrirem. Pareceu considerar sua vida pós-Itamaraty tão estimulante, se não mais, do que a sua exitosa carreira diplomática.   

Conhecido como frasista mordaz, daqueles que, como se diz, perdem o amigo mas não perdem a pilhéria, Marcos Azambuja era, na realidade e antes de mais nada, um hábil analista das situações. Isso valia tanto para a política e as relações internacionais como para os relacionamentos pessoais. Dissecava com lucidez e sem sentimentalismo os problemas do interlocutor e era, assim, objetivo e certeiro em seus conselhos. Para minha irmã, que foi sua nora e é mãe de dois de seus netos, ele se mostrou sempre um sogro afetuoso, atencioso, incentivador de seus projetos. Para minha mãe, um amigo cada vez mais presente com o passar dos anos.

O velório foi realizado, no Rio, no térreo do Palácio Itamaraty. Em 1912, o barão do Rio Branco lá também fora velado. Sem dúvida, Marcos teria apreciado essa homenagem. Andei pelas salas e corredores vazios — era sábado de manhã — daquela ala do Itamaraty. Naquele edifício tão carioca, cujo espaço me faz, no entanto, pensar em palácios romanos, iniciaram-se as carreiras de Marcos e de minha mãe. Ali, durante décadas, de 1899 a 1970, antes de a diplomacia brasileira mudar-se para Brasília, sonhos e ambições pessoais, mas também projetos para o País, foram arquitetados e tocados adiante, ou, ao contrário, desmantelados, de maneira muitas vezes arbitrária. Pensei no hábito comum a alguns diplomatas de, tendo morado em diversos continentes e viajado incessantemente pelo mundo, virem a morrer na sua cidade natal. Impossível decidir se há aí uma vitória do indivíduo sobre a geografia, ou da geografia sobre o indivíduo.

Vivenciar o dia a dia de maneira intensa, vibrante, é que era a forma de ser de Marcos Azambuja. Poucos dias antes de viajar ao Brasil, eu soubera pela minha mãe que ele preparava suas memórias. Se estiverem em estado de ser publicadas, trarão luz, com a efervescência e irreverência que o caracterizavam, sobre o que viu e ouviu em uma vida passada dentro do Itamaraty. No caso de Marcos, poderia haver uma vitória do indivíduo sobre o tempo.

Para ler minhas colunas anteriores no Estado de Minas, clique nos links abaixo:

Batuque na cozinha, 7 de junho

Um Brasil consciente e forte, 24 de maio

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O ponto de inflexão nas relações entre Brasil e Malásia, 18 de janeiro  

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Tiradentes esquartejado

Tiradentes esquartejado

O presidente Lula declarou em Madri, em 26 de abril, durante almoço a ele oferecido pelo rei da Espanha, Felipe VI: “O Brasil condena a invasão da Ucrânia pela Rússia. Defendemos a Carta da ONU e o direito internacional. Mas queremos abrir caminhos para o diálogo e não obstruir as saídas que a diplomacia oferece. Essa guerra no coração da Europa é uma tragédia para a humanidade. O mundo precisa de paz”.

Toda guerra é “uma tragédia para a humanidade”, mas faz sentido o presidente Lula ter focalizado, na Espanha, a guerra que se trava, desde fevereiro de 2022, “no coração da Europa”.

A fala presidencial coincidiu com minha segunda Covid-19. É bem possível que eu tenha sido contaminado, nessa nova ocasião, em um jantar em Kuala Lumpur em homenagem à atriz Michelle Yeoh. A vida é coerentemente incongruente, e faria sentido que o vírus mortífero circulasse, causando estragos, entre convidados em torno à suave e educada estrela malásia de Hollywood, que acabara de receber o Oscar.

Febril, assisti novamente a dois filmes do diretor russo Aleksandr Sokurov, Francofonia (2015) e Arca russa (2002). Rever essas obras-primas, após longo intervalo, durante os quais muita coisa mudou no Brasil, no mundo e no meu universo pessoal, me permitiu uma releitura.

A situação do Louvre durante a Ocupação alemã de Paris, na Segunda Guerra Mundial, é o fio condutor, em Francofonia, para a meditação do diretor sobre como a arte e a história se entrelaçam e como o homem lida com ambas. Os grandes museus, mostra Sokurov, tornam-se os depositários da arte e da história, da civilização, da própria vida. Questiona o diretor, um tanto cruelmente: “Quem precisa da França sem o Louvre, ou da Rússia sem o Hermitage?”.

O Hermitage, outro grandioso palácio-museu, é o cenário de Arca russa, celebrado pela filmagem em uma só tomada de câmera, de cerca de 90 minutos, de diferentes cenas inspiradas pela história da Rússia; mais propriamente, da história do país do início do século XVIII, quando Pedro I fundou São Petersburgo, ao início do século XX, quando o regime tsarista começa a desmoronar. A câmera mostra, sem interrupção, obras de arte — todas europeias, e nenhuma posterior ao começo do século XIX — reações individuais frente a elas e, sem respeitar a ordem cronológica, diversos imperadores russos. Vemos Pedro I, dito o Grande, sendo rude com sua mulher, a futura imperatriz Catarina I, e humilhando um general ou ministro. Nicolau II e sua família fazem uma refeição. Feliz com uma produção operística no teatro do palácio, Catarina II, também chamada a Grande, sai correndo para encontrar um lugar onde urinar. Recria-se imponente cerimônia em que Nicolau I recebeu, em 1829, o neto do xá da Pérsia, que vinha apresentar desculpas oficiais pelo massacre, por uma multidão em Teerã, dentro da embaixada, dos funcionários russos, inclusive o embaixador — o compositor, poeta e dramaturgo Aleksandr Griboiedov, de 34 anos — cujo cadáver, desfigurado, fora decapitado.

Durante o passeio pelo teatro de imersão que é Arca russa, temos dois guias: um é o fantasma de um narrador que vaga pelo palácio sem nunca ser visto por nós, enquanto fala por meio da voz de Aleksandr Sokurov. O outro é um “europeu”, inspirado em Astolphe de Custine, viajante francês à Rússia de Nicolau I. Custine — interpretado no filme pelo ator Sergei Dreiden, que faleceu em São Petersburgo em maio de 2023, enquanto escrevo estas linhas — foi por um tempo diplomata, tendo participado do Congresso de Viena, como lembra o filme, e é autor de um celebrado livro, La Russie en 1839, fruto de sua viagem ao país e bastante crítico da sociedade tsarista.

Há quem considere Arca russa ideologicamente reacionário; o filme pode ser visto como celebratório da monarquia e as cenas históricas escolhidas não envolvem o povo. De fato, uma obra que mostra a grã-duquesa Anastásia, correndo livre e feliz pelos corredores do Palácio de Inverno, com coroa de flores na cabeça, a própria imagem da inocência, poderia ter como um de seus resultados provocar simpatias monárquicas.

Sokurov escolheu destacar Anastásia, não uma de suas três irmãs, menos conhecidas do público. Em análise perspicaz, “Floating on the Borders of Europe: Sokurov’s Russian Ark” a acadêmica Kriss Ravetto-Biagioli aponta que a mãe de Anástasia, a imperatriz Alexandra Feodorovna, aparece conversando não com seu conselheiro Rasputin, nome altamente tóxico, mas com a irmã, a grã-duquesa Elisabete. Esta, ao enviuvar, tornou-se freira e assim aparece vestida no filme. Assim como Nicolau II, Alexandra, os cinco filhos e vários outros membros da família, Elisabete foi executada em 1918 e transformada, no final do século XX, em santa da Igreja Ortodoxa.

A mim parece que a intenção principal de Arca russa, mais do que celebrar a monarquia, é comemorar um período específico da história da Rússia, em que o país, ao fundar São Petersburgo e fazer da nova cidade sua capital, procurou abrir-se à Europa. Essa política, de determinação e lucro oscilantes, corresponde ao período dos 200 últimos anos da dinastia Romanov. Em 1918, a capital voltaria a ser Moscou.

A compreensão do filme de Sokurov é facilitada, se lembramos ser ele um pacifista, que já se manifestou, por exemplo, contra a invasão da Ucrânia. Ao encerrar Arca russa antes da Revolução bolchevique de outubro de 1917, o diretor, de forma subliminar, sugere que tudo o que veio depois representou uma ruptura entre o Ocidente e a União Soviética e, depois, a Rússia e é, portanto, algo negativo. Esse pensamento se aproxima daquele de Hélène Carrère d´Encausse em um livro, La Russie inachevée (2000), contemporâneo de Arca russa, segundo o qual a Rússia é un pays dont l´effort a toujours tendu vers l´Europe et la modernité, et qui, au moment où le but paraît atteint, est rejeté en arrière. Escritora francesa e cineasta russo ambos apontam que a falha é, também, europeia.

Francofonia, filme que nos fala de Paris e do Louvre, mostra como primeira imagem uma foto de Tolstoi, envelhecido, reclinado, olhando para a câmera. Pouco depois, uma imagem de Tchekhov. O diretor pede aos dois orientação. “O que nos espera?”, pergunta. Na sequência, veremos fotos de ambos nos seus leitos de morte. Por que a primeira divagação de Sokurov é sobre os autores russos?

Como tantas vezes na obra do diretor, não há explicação óbvia. Napoleão Bonaparte é um personagem importante de Francofonia. Embora Tolstoi não tenha sido contemporâneo do imperador, pois nasceu em 1828, sete anos após sua morte, graças a Guerra e Paz escritor russo e chefe de estado francês estarão para sempre interligados. Ao escrever seu romance, Tolstoi apropriou-se de Napoleão, contribuindo para formar sua imagem, de maneira negativa, junto à posteridade. Sua antipatia por Bonaparte já se manifestara em 1857, quando visitara Paris pela primeira vez. Quanto a Tchekhov, um de seus contos é parafraseado pouco depois no filme.

Aqui e ali, Sokurov aparece dialogando por Skype com o capitão de um navio que carrega a coleção de um museu e enfrenta uma tempestade em alto-mar. O fato de o barco transportar obras de arte ameaçadas de soçobrar é lamentado pelo diretor-narrador. É uma parábola sobre a fragilidade da civilização: a arte torna o ser humano superior aos outros animais, mas é facilmente perecível; o que torna a vida suportável pode ser destruído com grande facilidade. Ao mesmo tempo, perpassa o filme a sugestão de que os homens são mortais, mas suas obras artísticas perduram, ou ao menos podem ser mais duradouras do que seus criadores.

Vendo na tela do seu computador a agitação das ondas, Sokurov cita Tchekhov. A referência não é especificada, mas trata-se obviamente de uma alusão ao conto Gusev (1890), inspirado por uma experiência vivida pelo escritor no Mar do Sul da China, em viagem de regresso da ilha de Sacalina até Moscou. No trajeto de Hong Kong a Singapura, dois passageiros morreram, e seus corpos foram jogados ao mar. O episódio impressionou Tchekhov, que escreveu Gusev ainda durante a viagem.

No conto, Gusev e Pavel Ivanitch, doentes ambos, voltando do Extremo-Oriente para a Rússia na enfermaria de um navio, morrem em alto-mar, em dias diferentes, após diálogos que revelam as discrepâncias em suas personalidades, mas também um sofrimento comum. Seus corpos são jogados na água. Só há descrição do que acontece com o cadáver de Gusev, imediatamente atacado por um tubarão, enquanto o conto vai terminando com a menção à beleza do céu, que adquire uma coloração “delicadamente lilás” e do oceano, que também mostra cores “suaves, alegres, passionais”.

Em seguida à referência a Gusev, Sokurov focaliza um dos quadros mais célebres do Louvre, A Jangada da Medusa, pintado por Théodore Géricault entre 1818 e 1819, que representa o desespero de sobreviventes de um naufrágio, ocorrido em 1816, no início da Restauração ao trono dos Bourbon. A tragédia chocou os contemporâneos, porque o esforço para sobreviver causou todo tipo de violência na balsa, e levou à prática de canibalismo. Provocou também um escândalo político, uma vez que o comandante da fragata Méduse, abandonada a 60 quilômetros da costa da Mauritânia após encalhar em um arrecife, a caminho do Senegal, era um aristocrata que, tendo vivido no exílio por 25 anos por causa da Revolução e recém-regressado à França, recebera a função por sua fidelidade à causa monárquica.

Como não cabia todo mundo nos botes da fragata, construiu-se uma jangada, sobre a qual subiram 149 pessoas. A balsa foi rapidamente abandonada à própria sorte pelas embarcações que deveriam rebocá-la. Faltavam espaço, água e comida. Em seu Dictionnaire amoureux du Louvre (2007), Pierre Rosenberg, que foi diretor do museu, resume no verbete sobre Géricault a situação na jangada: Le martyre dura treize jours. On s´entretua. On mangea les cadavres. On jeta à la mer les malades. Quando foi encontrada por um navio, duas semanas depois, restavam na balsa apenas 15 sobreviventes, dos quais cinco morreriam após alguns dias.

Julian Barnes inclui um capítulo sobre a tela de Géricault em romance de 1989, A History of the World in 10 ½ Chapters, retomado em 2020 na sua coletânea de ensaios sobre arte, Keeping an Eye Open. É um texto que provoca, como os longas-metragens de Sokurov, numerosas reflexões. Barnes postula que o ser humano, para entender as catástrofes, precisa transformá-las em manifestações artísticas: A nuclear plant explodes? We’ll have a play on the London stage within a year. War? Send in the novelists.

Visão do pintor sobre a frágil embarcação à deriva, palco para fome, motins, mortes, assassinatos, agressões, afogamentos, canibalismo, o quadro de Géricault, para o qual posou outro pintor, seu amigo Eugène Delacroix, despertou, por sua vez, e continua despertando, a imaginação de artistas.

O escritor franco-belga François Weyergans publicou, em 1983, romance intitulado, como o quadro, Le Radeau de la Méduse. No enredo, um parisiense, diretor de documentários para a televisão, é contratado para fazer um programa sobre a obra de Géricault. Ele namora uma moça carioca, Nivea Guerra — esse foi o maior atrativo para mim, quando, muito jovem, li o romance pela primeira vez. Antoine Dufour, o protagonista, procrastina, questiona sua vida, mas entendemos no final do livro que ele conseguirá terminar o trabalho, e que isso representa, emocionalmente, uma superação, uma travessia de jangada.

A tela de Géricault foi uma das inspirações para o curador da XXIV Bienal de São Paulo, em 1998, Paulo Herkenhoff. Em entrevista da época sobre a Bienal, Herkenhoff declara seu interesse por releituras do quadro e diz: “A ‘Jangada’ se relaciona com a história da arte brasileira por meio de ‘Tiradentes Esquartejado’, de Pedro Américo, mais pelo tema político que pela imagem apresentada. Ele se apropria de Géricault de uma maneira complexa”. A XXIV Bienal expôs o quadro de Pedro Américo e esboços de Géricault para A Jangada da Medusa, assim como uma tela do pintor francês, emprestada pelo Museu Nacional em Estocolmo, representando as cabeças cortadas de dois guilhotinados.

Uma reflexão sobre o esquartejamento de Tiradentes aparece na instalação de Adriana Varejão naquela Bienal de 1998. Em livro do ano seguinte sobre sua obra que editou com Adriano Pedrosa — ele será, em 2024, o curador da Bienal de Arte em Veneza, o que é colossal — ela comenta: Além disso, interessou-me a representação da fragmentação do corpo e do corpo em pedaços, algo que está em Géricault”. O artista francês, como lembra Julian Barnes, era the portrayer of madness, corpses and severed heads. Pierre Rosenberg diz dele: peintre de la violence, de l´impitoyable et de la cruauté.

O Louvre teve sorte na Ocupação alemã, nos diz Francofonia, pois o encarregado de examinar as coleções artísticas francesas, o conde Franz von Wolff-Metternich, era um historiador da arte que atuou para preservar o palácio-museu. Ele e um dos diretores do Louvre, Jacques Janjard, são mostrados no filme conversando sobre arte, sobre a importância de preservá-la no meio do drama humano, do sofrimento que a guerra causa.

O museu, de resto, estava em 1940 relativamente vazio, pois muitas das obras, por precaução, tinham sido retiradas e depositadas em castelos fora de Paris. O mesmo aconteceu, também durante a Segunda Guerra Mundial, com o Hermitage. Francofonia nos mostra fotos antigas, azuladas, de salas no palácio-museu em São Petersburgo onde as molduras estão sem telas.

Aleksandr Sokurov contrasta a complacência do marechal Philippe Pétain e de seu governo diante da Ocupação alemã com a tenacidade russa durante o cerco de dois anos e meio a Leningrado, que levou um milhão de habitantes à morte. De forma leve, quase imperceptível, há referência ao fato de que Alemanha e França gradualmente se aproximam depois de 1945 — o que, cabe lembrar, viria com o tempo a permitir a formação da União Europeia, em um processo que teve como propósito buscar conter o instinto fratricida dos países europeus — e fazem da União Soviética o inimigo comum.

Lembra o diretor russo que os grandes museus estão repletos de troféus de guerra — e, podemos completar, de obras pilhadas pelo colonialismo, por invasões, por massacres. Sokurov traz uma visão abrangente sobre essas gigantescas coleções. Admira-as, valoriza seu papel cultural. Mas não deixa de aludir também às espoliações que contribuem para formá-las.

Francofonia detém-se, ainda nos seus primeiros minutos, sobre retratos expostos nas paredes do Louvre. “Quem teria eu sido”, pergunta-se Aleksandr Sokurov, “se nunca tivesse conhecido ou visto os olhos daqueles que viveram antes de mim?”.

Essa é uma sensação comum aos frequentadores de museus — acreditar que, ao observar retratos nas paredes, receberão uma revelação sobre a alma humana. Em um ensaio de 1972, “No More Portraits”, John Berger aponta que costumamos atribuir a retratos pintados a psychological insight which 99 per cent of them totally lack […] it is a myth that the portrait painter was a revealer of souls. Os retratos nos fascinam, afirma Berger, because they show us very vividly how little the human face has changed.

A exclamação de Sokurov, os comentários de John Berger me fazem pensar em uma frase de Roland Barthes em Mythologies (1957), no ensaio “Le visage de Greta Garbo”. Segundo Barthes, “Garbo pertence ainda àquele momento do cinema onde a aparição do rosto humano perturbava fortemente as multidões, onde era possível perder-se literalmente em um rosto humano como em um filtro”.

Pelas salas do Louvre, Sokurov nos dá como guias o fantasma de Napoleão e Marianne, a figura feminina que, desde a Revolução, representa a República Francesa. A pobre Marianne, na maioria de suas cenas, grita Liberté, Égalité, Fraternité, como se esperaria dela, mas há aí uma profunda ironia, pois na Paris ocupada pelos alemães, como em toda guerra, liberdade, igualdade e fraternidade passam a ser valores raros. Napoleão é mostrado vestindo o que era seu traje predileto, o uniforme de coronel de caçadores de cavalaria da guarda imperial, verde escuro, com o qual foi enterrado em Santa Helena. É com esse uniforme que, em 1812, na sua malfadada invasão da Rússia, o Imperador dos Franceses ocupou Moscou — quase deserta, e que em seguida queimaria — e se instalou no Kremlin.

O ator Vincent Nemeth, como Napoleão admirando sua própria coroação

Em Conversações com Goethe (1836), de Johann Peter Eckermann, o polímata alemão menciona o uniforme verde. Goethe narra a Eckermann, em fevereiro de 1830, anedota que lera em um livro sobre o exílio em Santa Helena, segundo a qual o traje, na ilha, ficara desbotado “pelo uso e o sol forte”. Sendo impossível encontrar pano da mesma cor para fazer novo uniforme, Napoleão virara o seu, gasto, ao avesso. A história não me parece muito crível, mas impressionou Goethe. Indaga ele: “Não é trágico? Não é comovente, o amo dos reis terminar sendo obrigado a usar doravante um uniforme revirado? No entanto, se pensarmos que esse foi o fim de um homem que pisoteara a vida e a felicidade de milhões de seres humanos, seu destino parece benigno: Nêmesis levou em consideração a grandeza do herói e não pôde se impedir de se mostrar relativamente generosa”.

No final de Arca russa, vemos um baile imperial, uma das grandes cenas do filme. À frente da orquestra está Valery Gergiev, regente que vi uma única vez, quando fui à ópera no Teatro Mariinsky, em São Petersburgo, poucos anos antes de Arca russa ser filmado. A ópera era Don Carlo, durante muitos anos uma das minhas prediletas, na qual Verdi e seus libretistas, inspirados pela peça de Schiller — que foi também uma fonte para Dostoievski e seu Grande Inquisidor — romantizam a figura do personagem epônimo e nos ensinam que mesmo um príncipe das Astúrias, um herdeiro do trono espanhol, um neto de Carlos V pode ser infeliz.

Como era aniversário de minha mãe, sei que essa viagem a São Petersburgo aconteceu no final de maio e, por isso, quando saímos do teatro, havia luz do dia ainda e voltamos a pé ao hotel. Nunca mais estive na capital dos tsares. Vi São Petersburgo como um lugar onde o peso da história é presente demais. Caminhando pelas suas ruas, pensava no sangue jorrado pela dramática história da Rússia. Seria como alguém ir a Paris pela primeira vez e ficar pensando no período do Terror ou nos massacres nas prisões na Revolução, e na guilhotina, ou na Ocupação alemã. Moscou, onde estive algumas vezes, nunca provocou em mim a mesma reação.

Pela lógica do filme, o baile imperial parece acontecer logo antes da Primeira Guerra Mundial, mas ali vemos Pushkin, que morreu em 1837, e sua mulher, Natália, no salão, e ela dança com o “europeu”. Este, aliás, menospreza o talento do poeta nacional russo, o que, simbolicamente, pode ser visto como um repúdio da Europa à Rússia.

O baile termina, e a multidão começa a sair da sala e a descer a escadaria em direção à saída. É uma visão fantasmagórica. A peça de imersão, onde várias épocas e personagens podem ser mostrados simultaneamente, abandonando o tempo e a cronologia, vai chegando ao fim. Sabemos o que virá depois na história da Rússia, uma sucessão de tragédias com grandes perdas humanas: guerra de 1914, revolução bolchevique, guerra civil, stalinismo, Segunda Guerra. Na sequência, haverá mais guerras, a Fria e outras, até começar a de hoje, “no coração da Europa”.

O narrador parece a essa altura nos dar uma resposta à eterna dúvida sobre se a Rússia é um país europeu, um país asiático, ambas as coisas, ou uma realidade totalmente própria, não pertencendo a nenhum espaço determinado. Convida o marquês de Custine, o “europeu”, a vir com ele, acompanhando em direção ao futuro a multidão que sai do baile. Custine recusa, com ar pesaroso, em extraordinária atuação de Sergei Dreiden, que cria com seu rosto o momento mais triste do filme. Diz que prefere ficar onde está, ou seja, na Rússia dos Romanov, certamente um bom lugar para quem fosse nobre, rico, frequentador da corte e sem veleidades de contestar o status quo. Ouvimos então Sokurov, em sua capacidade de narrador, despedir-se do marquês: “Adeus, Europa”.

Enquanto isso, em Francofonia, o diretor generosamente leva Napoleão a afirmar ter feito a guerra para trazer obras de arte para a França: Pour l´art j´ai fait la guerre; o que é falso, mas quase enternecedor. Mais verdadeira é a frase seguinte: “Eu tinha excelentes conselheiros, para decidir o que trazer e o que deixar para trás”. É uma fórmula edificante para resumir a rapacidade das espoliações francesas durante as guerras napoleônicas.

Em outra cena, o fantasma de Napoleão fica em admiração diante do famosíssimo quadro de David retratando a sua coroação, consagração de uma rápida e surpreendente ascensão, e exclama: Voilà, c´est mon couronnement. La beauté idéale. Mais inacreditável do que presenciar essa coroação, em 1804, seria prever que tudo terminaria com os últimos seis anos passados em uma ilhota no meio do Atlântico Sul, a 4 mil quilômetros do Brasil e a 2 mil quilômetros de Angola, talvez vestindo um velho uniforme virado pelo avesso.

As últimas palavras no conto de Tchekhov são para dizer que as cores do mar, enquanto o corpo de Gusev afunda, são “quase impossíveis de ser descritas em linguagem humana”. Nesse contraste entre a miséria humana e a beleza do mar, Tchekhov talvez nos diga que a razão de ser do artista é revelar aquilo mais precioso que percebe do mundo ao seu redor, superar as limitações da “linguagem humana” e trazer com isso algum consolo.

Sem as guerras napoleônicas, sem a invasão da Rússia, não teríamos Guerra e Paz. Sem o quadro de Géricault, o naufrágio da Méduse seria hoje um incidente ignorado. O sofrimento das 149 pessoas que embarcaram na jangada, a incompetência do capitão aristocrata estariam perfeitamente esquecidos. O quadro está, aliás, informa Julian Barnes, em processo irreversível de escurecimento, por causa de materiais misturados à tinta utilizada por Géricault. Um dia, não se distinguirá nada na enorme tela exposta no Louvre. Mas ela terá durado bem mais do que duram os seres humanos, frágeis e imperfeitos.

Sokurov nos faz ver que a história afeta a arte, mas que a arte preserva, na mente coletiva, as tragédias, e de alguma forma as resgata. Para as vítimas de guerras, bombardeios, torturas, genocídios e naufrágios, contudo, não há consolo algum em saber que talvez, um dia, seu sofrimento venha a inspirar pintores, compositores ou escritores. Pinturas podem eternizar Tiradentes esquartejado, transformar a figura histórica em símbolo, mas para isso terá sido preciso antes haver o enforcamento e o esquartejamento.

Enquanto a multidão desce as escadarias do Palácio de Inverno em Arca russa, Sokurov termina seu filme mostrando, por uma porta aberta no térreo, o rio Neva gelado, do qual emana um vapor, uma neblina, com o comentário: “O mar cerca tudo… estamos destinados a navegar para sempre… a viver para sempre”. Presumivelmente, é do povo russo que o diretor nos fala aqui.

Mas o mesmo vale para todos nós. Estamos sozinhos em nossas jangadas, navegando a esmo pela experiência solitária que é a vida, implorando a Nêmesis para que o nosso mal seja apenas o de ter de revirar as roupas ao avesso, penando até o momento final em que, inevitavelmente, seremos esquartejados, devorados e jogados ao mar.

Tirei a foto principal na Baía de Ha Long, no Vietnã

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Álbum de fotos – Dia das Mães em Kuala Lumpur

Álbum de fotos – Dia das Mães em Kuala Lumpur

No Dia das Mães, nada mais justo do que eu celebrar a minha, Thereza Quintella, que atravessou dois oceanos, onze fusos horários, e mais de um continente para me visitar em Kuala Lumpur, entre fevereiro e abril. Depois de dois anos de pandemia, em que não pudemos ver um ao outro, pareceu algo milagroso que ela, prestes a completar 84 anos, tivesse chegado à Malásia.

Essa viagem merece registro, o que faço por meio das fotos abaixo. Formam um resumo da sua passagem de nove semanas pelo Sudeste Asiático, com o mínimo de explicações. É um registro incompleto, naturalmente. Na XV Carta da Malásia, “Além da aurora e do Ganges”, publicada há duas semanas, falei de um dia específico, 26 de março, em que fomos a uma propriedade rural paradisíaca no interior do país e depois jantamos, de volta à capital, com um amigo colecionador de vestimentas malaias tradicionais.

A visita da minha mãe coincidiu com a retomada de uma vida social normal, pós-Covid, em Kuala Lumpur. Isso me permitiu apresentar a ela muitas das pessoas com quem me dou na Malásia. Duas semanas depois da sua partida, em um almoço de trabalho onde todos os convidados a conheceram, ouvi de um deles, uma amiga malásia com quem minha mãe esteve várias vezes, em Kuala Lumpur e em Penang: “Your mother was a hit“. Isso talvez esteja refletido em uma das fotos, exemplo das matérias de imprensa que cobriram a cerimônia que fiz de condecoração de um cidadão malásio com a Ordem de Rio Branco.

A sua temporada na Malásia correspondeu também à reabertura gradual das fronteiras no Sudeste Asiático, após dois anos de fechamento. Por isso, tirei uns poucos dias de férias, em sua última semana, e fomos a Singapura visitar minha mulher.

Em dois meses, minha mãe provou várias cozinhas asiáticas. Sua primeira saída depois da quarentena foi para ir a um clube de que sou sócio, para uma refeição indiana sobre folha de bananeira. A segunda foi a um restaurante tailandês, a convite de um casal de grandes amigos que ela já conhecia do Brasil, e que logo partiriam da Malásia. Houve a seguir refeições cantonesas, malaias, japonesas, indianas, srilanquesas e peranakanesas — se este último gentílico não existe ainda em português, deveria. Refere-se aos malásios descendentes de chineses; eles criaram uma culinária própria.

Esta semana, minha mãe ofereceu, no apartamento no Rio, um almoço a amigos seus. O cardápio era totalmente do Sudeste da Ásia, com pratos que ela descobriu na Malásia e em Singapura. Maior demonstração de que gostou de vir e de estar conosco não poderia haver.

Nove semanas passam rápido. Minha mãe chegou em plena comemoração do Ano Novo Chinês, e partiu logo antes da Páscoa. Quase quatro semanas depois, voltar do trabalho à noite e não vê-la em casa ainda me causa surpresa. Durante pouco mais de dois meses, todo dia foi Dia das Mães para mim.

Se você quer saber mais sobre nasi lemak, o prato mais famoso da culinária malásia, leia As Cartas em Istana Negara

Se você quer saber mais sobre as fotos de Robert Zhao sobre árvores em Singapura e a relação das pessoas com elas, leia Tchekhov e os tigres

Se você quer saber mais sobre Penang, tema da primeira Carta da Malásia, leia A Ásia em Penang

Se você quer saber mais sobre o Museu de Artes Islâmicas de Kuala Lumpur, leia Os Bois de Mirza Babur

Se você quer saber mais sobre Odissi, leia Sibelius e as Ilusões

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Álbum de fotos — Palácio Itamaraty

Álbum de fotos — Palácio Itamaraty

É “o velho Itamaraty”, o do Rio de Janeiro, que mostro neste álbum. O de Brasília é, certamente, um dos prédios mais fotografados e conhecidos do Brasil. O do Rio, inaugurado em 1854 como residência particular do conde de Itamaraty, viveu momentos ilustres, mas já não é tão presente no imaginário nacional. Nele morreu, em 1912, o barão de Rio Branco. Nas primeiras décadas do século XX, foram construídos anexos, particularmente a biblioteca. É no Itamaraty do Rio que, até 1970, trabalharam pela política externa gerações de diplomatas brasileiros.

Antes de mais nada, sanemos uma dúvida: Palácio Itamaraty ou Palácio do Itamaraty? O do Rio ostenta um dos dois nomes, o de Brasília o outro. Antigamente, eu considerava o assunto digno da corte bizantina. Depois, memorizei qual era qual. Agora, já não me lembro. Pesquisando, vejo páginas oficiais, e mesmo textos assinados por autoridades, usando os dois nomes indistintamente, o que a rigor é um equívoco. Raciocinemos. O prédio do Rio emprestou o nome ao Ministério das Relações Exteriores, que lá esteve sediado de 1898 a 1970. Existia antes de o Ministério instalar-se nele. O de Brasília pegou o nome do Ministério que o ocupa, que chegou do Rio à nova capital habituado já à tradição de ser chamado pelo nome do prédio no Rio. A lógica faria supor, portanto, que o do Rio é o Palácio Itamaraty, enquanto que o de Brasília é o Palácio do Itamaraty, ou seja o prédio que pertence a uma instituição conhecida como Itamaraty. Faz sentido; tem lógica. Se me disserem que o oposto é o correto, espero que possam me dar uma razão igualmente razoável.

Aos 11 ou 12 anos, visitei pela primeira vez o Palácio Itamaraty. Na época, nós morávamos em Montevidéu, mas estávamos de férias no Brasil. Os meses de verão eram passados sobretudo na fazenda do meu avô materno, na Zona da Mata em Minas, que era o paraíso, mas minha avó e meu outro avô materno, Alfredo Curvello, viviam, separados mas amigos, no Rio de Janeiro, e lá íamos por alguns dias.

Naquele ano, minha mãe decidiu mostrar-me o Itamaraty. Para que o dia fosse o mais interessante possível para mim, fomos primeiro à Livraria Leonardo da Vinci, que era então um marco cultural na cidade, pelas seções de livros estrangeiros. Tenho até hoje, manuseado, gasto, o Livre de Poche que comprei nesse dia, uma das biografias escritas por Philippe Erlanger, a do Regente, sobrinho de Luís XIV.

Naquele tempo, eu não pensava em ser diplomata. Meu sonho era ser advogado. Talvez estivesse influenciado pela figura do meu pai, formado em Direito, que nunca advogou mas começava a pensar em preparar com Sobral Pinto, a quem ele admirava muito, o primeiro dos dois livros do jurista com os quais colaborou, Lições de Liberdade. Sobral Pinto era bem mais velho do que meus avós. Lembro dele perfeitamente como um homem educado, afável, vestido de terno escuro, de aparência frágil e espírito firme. Exercia influência sobre meu pai, e por isso eu o via, criança ainda, como uma figura exemplar.

Nessa primeira visita ao Palácio Itamaraty, minha mãe, Thereza Quintella, apontou o anexo do palácio, paralelo ao espelho d´água, onde ela trabalhara nos primeiros anos da carreira. Contou-me de maneira natural, sem mágoa alguma, como uma verdade a ser encarada sem temor, como era difícil, para uma mulher, ascender em uma profissão ainda essencialmente masculina.

A verdade é que sua promoção a embaixadora, que aconteceria em 1987, foi na época celebrada como uma rara vitória das mulheres no Brasil. Hoje, quando é evidente que as mulheres devem ocupar os cargos mais elevados, não temos mais consciência do quanto era escassa, há apenas 30 anos, a presença feminina nos altos escalões, em Brasília. Parece, em 2021, incompreensível que a promoção da minha mãe ao cargo mais alto da carreira diplomática tenha despertado tanta notoriedade, tenha sido vista como algo tão excepcional. É suficiente dizer que, durante seis anos, ela foi a única embaixadora brasileira na ativa, até a promoção seguinte de uma mulher, Vera Pedrosa, sobre quem escrevi em um ensaio evocando meu tempo no Equador, O Vulcão.

O palácio e seus anexos abrigam, além da representação do Itamaraty no Rio de Janeiro, o Museu Histórico e Diplomático. Sua mapoteca é famosa, seu arquivo importante.

Uma palavra sobre a galeria de próceres americanos. Guardei no celular fotos dos bustos de George Washington, James Monroe, Antonio José de Sucre e José Artigas. Este último é, artisticamente falando, excelente. Destaca-se dos demais, e por isso o escolhi para o álbum de fotografias. Os quatro bustos, porém, representam algo mais. Lembram etapas da minha vida, Montevidéu na adolescência, Washington e Quito na idade adulta.

Minha mais recente ida ao Itamaraty do Rio aconteceu em junho de 2018. Fui com a minha mãe. Helen Verraes Alves, gentilmente, nos ciceroneou. As fotos foram todas tiradas nesse dia.

Dedico este álbum ao embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima, com quem trabalhei em meu primeiro posto, a embaixada em Washington, e que se despediu de nós há poucos dias. Sua personalidade se distinguia pela determinação. Nunca o vi bater em retirada diante de dificuldades. Ao mesmo tempo, tinha uma lúcida visão política do mundo, e sabia reconhecer quando um projeto era irrealizável. Liderava com absoluto autocontrole e uma calma segurança.

      

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O Embrulho Vermelho

O Embrulho Vermelho

Em 27 de maio, minha mãe fez 80 anos. Como a data caía no domingo, pude comemorar com ela no Rio de Janeiro, e estar também com minha irmã, que viera de Lisboa, onde mora.

Alguns amigos passaram em casa no final da tarde para cumprimentar a aniversariante. Como a greve dos caminhoneiros, a falta de gasolina nos postos e o desabastecimento nos mercados da cidade estavam no auge, a chegada de um determinado presente de aniversário causou grande impacto:

ChicôGouvea.jpg

Na foto, aparecem minha mãe, minha sobrinha e os dois amigos que trouxeram o presente. Vindo diretamente de Petrópolis para dar os parabéns, Chicô Gouvea e Paulo Reis consideraram que nada seria tão marcante quanto aquilo que não se encontrava no mercado: verduras frescas.

Nesta outra foto, registrei Cora Ronai capturando a mesma cena:

CoraRonai.jpg

Em seu perfil no Instagram (@cronai), Cora Ronai publicou uma das fotos que tirou, acompanhada do texto: “Minha amiga Thereza Quintella fez 80 anos. Ganhou muitos presentes lindos e carinhosos, mas nenhum fez tanto sucesso quanto a cesta de hortaliças que Chicô e Paulo trouxeram direto da roça”. Isso provocou comentários divertidos, como: “Que saudade de uma alface!”, “No momento, tá melhor que ganhar joias”, “Saudade de uma boa saladinha!”.

Acontece, porém, que minha mãe não foi a única a ganhar presente naquele dia. No café da manhã, olhando o mar e filosofando sobre o Infinito enquanto devorava um croissant, recebi da minha irmã um embrulho vermelho, que ela trouxera de Lisboa:

EmbrulhoVermelho.jpg

Titina é a melhor irmã do mundo. Naturalmente, eu nada levara para ela e nem, aliás, para minha mãe. Decidi compensar demonstrando meus talentos mediúnicos. Alisando o embrulho vermelho, declarei: “É um livro”. Isso era pouco para comover Titina. Que mais poderia ser? Prossegui: “O papel não traz a marca de nenhuma livraria, então sei que não é da Bertrand“. Diante de sua resposta de que ela mesma embrulhara o livro, continuei: “Você comprou na livraria da Rua do Século”. Isso sim a impressionou.

De meu conhecimento, a “livraria na Rua do Século” não usa nome algum. É um sebo, forte nas áreas de história, inclusive do Brasil, e de arte. A primeira vez em que Titina lá me levou, julguei haver uma intenção metafísica no nome da rua, até descobrir que tratava-se, na verdade, de homenagem a um jornal republicano, fundado ainda sob a monarquia. Mais corretamente, o nome é “Rua de O Século”.

A entrada do sebo é simples e sem indicação alguma:

sebo.jpg

Dentro, o espaço é congestionado:

Alexandria.jpg

O proprietário é educado e afável e deixa os fregueses à vontade. Consegui retirar um tesouro de uma dessas pilhas, quando lá estive pela última vez, em julho de 2017:

Brandi.jpg

CharlesQuint.jpg

Nem o ano, nem a encadernação nem a edição em si, aos olhos dos meus quatro leitores, justificariam o uso que fiz acima do termo “tesouro”. Tudo o que diga respeito a Carlos V, porém, me interessa desde a infância. Nascido em Gand, o Imperador preserva memória viva na Bélgica, onde morei pela primeira vez criança. Suas disputas com Francisco I de França são objeto de fascínio para mim. Um dos grandes prazeres, quando comecei a ler À la recherche du temps perdu, aos 11 anos, foi descobrir que o Narrador também divaga sobre a rivalidade entre os dois monarcas. Na primeiríssima página do romance de Proust, o Narrador menciona que, às vezes, acordava pouco depois de ter adormecido, não só pensando no livro que lera antes de dormir mas também sentindo-se ser o próprio tema do livro: “une église, un quatuor, la rivalité de Francois Ier et de Charles Quint“. Em geral, presume-se que a fonte para a observação casual de Proust sobre essa rivalidade tenha sido o livro do historiador François-Auguste Mignet (1796-1884), Rivalité de François 1er et Charles-Quint, publicado em 1875, que comprei e li na adolescência:

Mignet.jpgAlguns se perguntarão por que não coloco aqui foto dos dois volumes onde as patinhas do meu gato não apareçam. Pois direi que, pelo visto, há muito tempo eu vinha querendo falar de Carlos V e de Francisco I, ou da presença de Mignet na vida intelectual de Proust, porque esse nosso gato, James, cujas patas são inconfundíveis, morreu em janeiro de 2018, aos 19 anos. Nasceu em Quito, em 1998, em nossa casa, pois sua mãe também nos pertencia — ou nós a ela. Maior do que vários cachorros, de uma beleza altaneira e  personalidade forte (um de seus apelidos era Arquiduque, outro era Señor Presidente), James não era um amigo fácil. Tinha espírito arredio, era propenso a rosnar e marcava preferência pela minha mulher. Por todas essas qualidades, eu o amava (outro apelido que dávamos a ele era Jaimito de mi corazón). Foi uma boa surpresa para mim, ao procurar a foto no celular para inseri-la neste texto, ver que James nela aparece.

Admito que esta outra foto, tirada pela minha mulher, é de qualidade superior:

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Uma característica importante, para mim, de Mignet é que ele nasceu em Aix-en-Provence; um dos principais colégios da cidade, no coração do bairro de Aix com arquitetura do século XVII, chama-se Collège Mignet:

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Vejamos o que dizem as placas de cada lado da porta:

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Esse liceu, assim, resume um pouco da História da França. Insere-se no Quartier Mazarin, construído no século XVII pelo Arcebispo de Aix, o Cardeal Michel Mazarin, irmão de outro Cardeal bem mais célebre, Jules — ou Giulio, pois nascera na Itália — Primeiro-Ministro da minoridade e da juventude de Luís XIV. No colégio estudaram, juntos, Paul Cézanne e Émile Zola e, mais tarde, Darius Mihaud. Marcel Pagnol lá deu aulas. E o liceu hoje carrega o nome de um historiador famoso em seu tempo, a cuja obra alude Proust. Nunca passo na rue Cardinale sem meditar sobre todas essas associações.

Voltemos porém ao presente que me deu Titina no dia 27 de maio. Abro o embrulho vermelho e vejo este livro:

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Um livro sobre o Barão do Rio-Branco, editado pela José Olympio, só poderia me deixar feliz. A palmeira, característica da Coleção Documentos Brasileiros da editora, também me trouxe boas lembranças, pois na biblioteca de meu pai e de minha mãe existem numerosos volumes dessa coleção, com a inesquecível lombada:

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A palmeira da Coleção Documentos Brasileiros, cujos volumes eram tão presentes lá em casa e são parte da minha infância e juventude, traz recordações felizes de leituras e, portanto, da vida.

Em 2008, a editora Sextante — fundada por Geraldo Jordão Pereira e seus filhos Marcos e Tomás, respectivamente filho e netos do editor José Olympio Pereira — publicou um livro exemplar sobre a editora José Olympio, escrito e organizado pelo também editor José Mario Pereira (o sobrenome é coincidência), dono da Topbooks:

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Geraldo Jordão Pereira morreu em 2008, mesmo ano em que o livro foi editado. Devemos ver José Olympio: O Editor e sua Casa como demonstração de amor filial, dirigida à memória do pai e do avô de Marcos e Tomás da Veiga Pereira. “Este livro”, diz Marcos da Veiga Pereira, “projetado como justa homenagem a meu avô e à editora que criou, agora é também para louvar a memória do grande profissional e companheiro de trabalho que foi Geraldo Jordão Pereira, meu pai”.

O volume é de uma impressionante riqueza factual e iconográfica e ganhou, em 2009, o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, da Academia Brasileira de Letras. As páginas eletrônicas da Topbooks e da ABL replicam artigos onde é saudada a publicação do livro. Ao elogiar a “magistral pesquisa de José Mario Pereira”, Wilson Martins, em matéria no Jornal do Brasil, classifica o livro como “obra-prima de arte tipográfica, documentação historiográfica e preciosa iconografia”.

Quem diria o contrário, ao ver, por exemplo, estas duas páginas:

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O título do elogio de José Nêumanne, publicado em O Estado de São Paulo, já diz tudo: A vida do homem que pôs o Brasil para ler, remetendo ao título do primeiro capítulo do livro, “José Olympio, o civilizador do Brasil”. Dois artigos de membros da Academia Brasileira de Letras chamaram minha atenção. O texto de Ivan Junqueira, no Jornal do Commercio, menciona o “beneditino trabalho de pesquisa literária e editorial” de José Mario Pereira. O texto de Marcos Vilaça, publicado no Diário de Pernambuco, diz: “Na obra publicada pela Sextante a gente encontra do Brasil a política, a história literária, a indústria editorial, a evolução gráfica, a memória fotográfica, um pedaço da trajetória do país no século XX”.

De forma poética, proustiana, Marcos Vilaça diz como foi a experiência de folhear o livro: “Nesse passar e repassar de páginas, minha vida foi se reativando”. A mesma impressão tive eu. Abro José Olympio: O Editor e sua Casa, e ecos da infância e da juventude passam diante de meus olhos. Dinah Silveira de Queiroz, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Herberto Sales e muitos outros, todos amigos de meu pai ou de minha mãe, e que conheci pessoalmente, criança ou adolescente, em graus variados, circulam pelas páginas. Vejo um bilhete de José Guilherme Merquior, temível polemista na visão de alguns mas, no trato comigo, na minha juventude, homem educado, carismático, gentil e atencioso:

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Outros autores que surgem em José Olympio: O Editor e sua Casa, da geração anterior, foram amigos de meu avô materno — o baiano, pois como expliquei em De carro pela Provença, tive dois avós maternos, um baiano e outro mineiro. Muitas das edições ilustradas no livro são as que li, pois eu as encontrava nas bibliotecas de meu pai e de minha mãe. Onde terá ido parar, por exemplo, nosso exemplar de Oito Décadas, o livro de memórias de Carolina Nabuco, que li e reli quando criança, na mesma edição mostrada abaixo? Recentemente, minha filha pediu para lê-lo e não o encontrei nem aqui em casa, nem nas estantes da minha mãe. Estará com Titina em Lisboa? Ou no depósito, no Rio, onde são guardadas caixas de alguns dos  livros que pertenceram ao  meu pai?

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As capas dos livros de Carolina Nabuco e de Rachel Jardim são ambas de autoria de Eugenio Hirsch, nascido na Áustria em 1923, emigrado primeiro para a Argentina, fugindo do nazismo, e depois para o Brasil. Hirsch morreu no Rio de Janeiro em 2001.

Dois dos livros de meu pai — Retrospectiva e Combati o Bom Combate — foram editados pela José Olympio e Eugenio Hirsch foi o responsável pelas capas de ambos:

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A capa de Combati o Bom Combate parece-me particularmente exitosa. O romance — e eu não me lembrava disto, pois tinha 10 anos de idade e morava na Bélgica — é dedicado a mim, sem sentimentalismos, de forma característica do meu pai: “Para Ary Norton de Murat Quintella”. Esta é a sua foto, beirando os 40 anos, usada na edição:

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Ivan Cavalcanti Proença faz uma introdução ao romance onde a questão da passagem do tempo é evocada: “uma libertação e uma transcendência ao que se chama o amargor da irreversibilidade do tempo”. Outra frase sua remete claramente a Proust: “recuperação do tempo perdido”. Isso faz sentido, pois Combati o Bom Combate é uma ficção semi-autobiográfica; reflete a infância, a adolescência e a juventude de meu pai, e vários personagens aparecem com o prenome ou o apelido das pessoas reais que os inspiraram. A ideia do tempo é retomada por Nélida Piñon, na contracapa: “um panorama profundamente nostálgico de uma geração que já não se ilude com ‘o bom combate’ “.

Quanto a Retrospectiva, sua edição seguinte deu-se em outra editora, mas a capa continuou sendo de Eugenio Hirsch. Se, na edição da José Olympio, vemos Ary Quintella bebendo um copo de uísque, na segunda ele fuma — eram quatro maços por dia e ele morreria de câncer aos 66 anos:

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Meu pai trabalhou, por creio um curto tempo, com José Olympio na editora. Penso não ter jamais visto o mítico editor. Conheci porém, criança, na Bélgica, durante viagem que por lá fizeram, Geraldo Jordão Pereira e sua mulher, Regina. A primeira edição de Retrospectiva, na José Olympio, traz duas dedicatórias, a mais longa delas com ecos de Baudelaire e Lautréamont:

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Vejo que o exemplar que tenho em casa pertenceu a meu irmão, pois nele meu pai colou o seguinte bilhete:

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Alfredo morreu aos 16 anos, então não saberei nunca se chegou a ler o livro, que recebeu aos 8 anos.

Como mencionei em  Edla van Steen, estória sobre a amizade, a correspondência recebida por meu pai, inclusive a enviada por mim, foi em grande parte doada por ele, ainda em vida, à Fundação Casa de Rui Barbosa. No entanto, mexendo recentemente em velhos papéis, minha mãe encontrou o seguinte bilhete de Geraldo Jordão Pereira para meu pai, de pêsames pela morte do meu irmão:

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O texto foi escrito três dias depois da morte de Alfredo, em uma hora em que muitos terão preferido se omitir. Não creio ser indiscreto ao publicá-lo aqui, e sim estar homenageando o sentido de humanidade de Geraldo Jordão Pereira.

O leitor que chegou até aqui talvez tenha notado, acima, no topo da página em que está a dedicatória a Regina Pereira, menção a “Eugen Alois Hirsch: que já trabalhava com meu pai, mui grato”. Essa frase de meu pai me surpreendeu. Olhei alguns exemplares que tenho em casa de livros do pai dele, meu avô, o matemático, também Ary Quintella, que eram publicados pela Companhia Editora Nacional. Algumas capas aparecem como sendo de “Hugo Ribeiro (arquiteto)”, por exemplo estas, minhas prediletas:

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Em algum momento, porém, as capas dos livros de meu avô começaram, de fato, a ser desenhadas por Eugenio Hirsch. Os exemplares que tenho em casa estão já desbotados, perderam as cores e, possivelmente, não fazem justiça à aparência original:

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Eugenio Hirsch parece ter sido um designer revolucionário. Encontrei na Internet, sem grande esforço, além de vários textos que tratam especificamente de seu trabalho, três ou quatro teses e dissertações, relativas a diversos temas — a matemática, a prática editorial em livros didáticos, a história do design no Brasil etc… —  onde são estudadas suas capas para os livros de meu avô.

Situado, em termos geracionais, entre meu avô e meu pai, e tendo sobrevivido a ambos, Eugenio Hirsch associou seu talento a dois Ary Quintella, que publicaram com o mesmo nome, em décadas diferentes, em editoras diferentes, obras de finalidades diferentes — uma, de matemática, outra, de literatura.

E foi assim que um gesto simples, o de abrir o embrulho vermelho, me fez simultaneamente abolir e recuperar o tempo. O presente de minha irmã trouxe de volta, com a encantadora palmeira da José Olympio, os melhores momentos da minha juventude. Proust teria aprovado.

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A Morte de Luís XIV

A Morte de Luís XIV

Este é ele, Luís XIV. Aquele a quem um de seus biógrafos, Philippe Erlanger, classificou como le pharaon de Versailles, pelo egoísmo, a vaidade, o poder absoluto e a mística quase divina que o cercava.

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O seu retrato por Hyacinthe Rigaud, um dos mais famosos jamais pintados de qualquer monarca, pode ser visto no Louvre, onde já o fotografei, sempre sem grande êxito, várias vezes ao longo dos anos. A data é 1701, o Rei está com 63 anos, quase já não tem dentes e o ocaso de seu reino está começando, por causa da Guerra de Sucessão da Espanha, iniciada pela ascensão ao trono espanhol de seu neto, Felipe V, o que a Inglaterra e a Áustria não podiam aceitar. A guerra durará até 1713 e arruinará a França. Entrementes, morrerão o filho de Luís XIV, o Grande Delfim, em 1711, e seu herdeiro seguinte, o neto, o duque de Borgonha, em 1712, junto com a mulher, Maria Adelaide de Sabóia, que o rei idolatrava. Em seguida, morrerá o filho mais velho dos duques de Borgonha, aos 5 anos de idade. Em 1714, morrerá outro neto do rei, o duque de Berry. Em 1715, com o desaparecimento de Luís XIV, herdará o trono, aos 5 anos, outro bisneto, filho caçula dos duques de Borgonha, a quem conhecemos como Luís XV.

Nada disso podia ser previsto em 1701. Apesar de problemas de saúde e da falta de dentes, Luís XIV nos é apresentado no retrato como aquilo que então ainda era: o soberano mais poderoso, famoso, celebrado e imitado da Europa. Ele possui um filho adulto, três netos, um dos quais acaba de assumir o trono da Espanha, e a sucessão parece assegurada. O rei pode olhar com firmeza em direção ao futuro.

O quadro de Hyacinthe Rigaud era uma encomenda do novo rei da Espanha, que queria ter em Madri um retrato de seu avô. O que Rigaud retratou não é só a imagem de Luís XIV, mas a ilustração ideal de como um rei devia ser visto pelos súditos, do que significava uma monarquia absolutista, de que o reinado de Luís XIV era já em sua época, e continuaria a ser para a posteridade, o maior exemplo.

O próprio Luís XIV gostou tanto do retrato que o guardou para si; o ateliê de Rigaud providenciou várias cópias. Esse passou a ser, por várias décadas, o modelo por excelência da emanação do poder.

Quanto a Felipe V, é hoje mais conhecido como o rei depressivo e neurastênico que fazia o castrato Farinelli cantar para ele, toda noite, as mesmas quatro ou cinco árias — há divergências nas fontes quanto ao número — para poder enfrentar o dia seguinte.

Meu interesse por Luís XIV começou na infância. Quando visitei Versalhes pela primeira vez, aos 8 anos de idade, foi por insistentes pedidos meus. Tive de prometer tirar notas elevadas na escola para receber a viagem como prêmio. Cumpri minha parte e fui a Versalhes. Morávamos na Bélgica na época, então não foi tão difícil ou oneroso eu receber minha recompensa. Nas estantes de casa, há duas prateleiras de livros sobre Luís XIV, o que não é tanto, já que esse rei é certamente, junto com Napoleão e De Gaulle, e talvez Charlemagne, o governante que mais marcou o imaginário francês. A bibliografia sobre Luís XIV é infindável. Não consigo imaginar um aspecto de sua vida ou de seu reinado que já não tenha sido explorado por livros acadêmicos, biografias populares ou filmes.

A corte de Luís XIV era considerada pelos contemporâneos como algo tão privilegiado, tão magnífico, viver nela era uma experiência sentida como algo tão extraordinário, que vários de seus cortesãos deixaram livros de memórias. Tudo o que acontecia em Versalhes era, de forma natural, visto como excepcional e merecedor de registro. Voltaire, em Le Siècle de Louis XIV, publicado em 1751 e que apresenta o rei como “um grande homem”, menciona esse fato, ao escrever: “Luís XIV colocou em sua corte, como em seu reinado, tanto brilho e tanta magnificência, que os mínimos detalhes de sua vida parecem interessar à posteridade, como já eram objeto da curiosidade de todas as cortes europeias e de todos os contemporâneos”.

A fonte principal sobre a corte de Luís XIV são as Memórias do duque de Saint-Simon, exímio escritor, a quem já aludi em O julgamento de Julien Sorel, pois eu o leio desde a adolescência. As Memórias mereceram já duas edições na Bibliothèque de la Pléiade, a segunda em oito volumes, com vasto aparato crítico. Tenho completa a segunda edição, e alguns volumes da primeira. Inserido no panteão dos grandes escritores franceses, Saint-Simon também é objeto de uma bibliografia importante, da qual alguns exemplos encontram-se nas minhas prateleiras:

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O que teria pensado Luís XIV, se tivesse sabido que, um dia, sua personalidade, seus hábitos, seu cotidiano seriam conhecidos sobretudo pela visão — não imparcial — deles transmitida por Saint-Simon, com quem o rei antipatizava? O raivoso duque era visto por Luís XIV como um criador de caso, de mente independente, não suficientemente submisso. Em uma das poucas ocasiões em que o soberano concedeu a Saint-Simon uma audiência particular, em janeiro de 1710, ele lhe disse a seguinte frase, explicando a sua frieza com o duque: “Mais aussi, monsieur, c’est que vous parlez et que vous blâmez” (“mas também, é que você fala demais e você condena”). Se, em ambientes áulicos, emitir opinião própria e parecer crítico jamais seria uma boa prática, na corte de Luís XIV — monarca que mantinha uma unidade responsável por abrir a correspondência de seus súditos, inclusive e sobretudo de seus parentes próximos — isso era verdadeiramente um crime.

Na coleção dirigida por Pierre Nora, Les Lieux de Mémoire, a qual formaliza o que, ao longo da História, “fez” a França ser o que é, Versalhes mereceu três artigos e a corte, um, particularmente arguto, escrito pelo historiador Jacques Revel. Afirma Revel: “A corte de referência é a do Rei-Sol […] Ela constitui um modelo e é colocada como exemplo absoluto […] Saint-Simon é, sem dúvida alguma, o autor que mais contribuiu para erigir a corte de Luís XIV em ideal-tipo, ainda que ao custo de algumas nítidas deformações […] Mas ele não é um caso isolado”.

Saint-Simon inspirou Proust e também Norbert Elias na redação de seu livro A Sociedade de Corte. Foi uma das fontes principais utilizadas por Albert Serra em seu filme sobre Luís XIV. As palavras ditas no filme pelo rei ao futuro Luís XV, seu bisneto, foram extraídas verbatim das memórias do duque.

O filme, porém, não pretende ser a reconstituição fiel dos últimos dias de Luís XIV. Albert Serra nos oferece, com A Morte de Luís XIV, uma visão particular sobre o que é o poder e o seu fim. A única cena de exterior é logo no começo e dura poucos segundos. Luís XIV admira seus jardins, em uma cadeira de rodas, cercado por dois ou três cortesãos. Todo o resto do filme é claustrofóbico. Vemos o rei gradualmente definhar e morrer, em seu quarto. A seu lado nas sucessivas cenas aparecem apenas sua esposa morganática, Madame de Maintenon, seu confessor, o Père Le Tellier, e vários médicos, entre os quais o principal, Fagon. Ocasionalmente, aparecem outros personagens, como o futuro Luís XV, o Cardeal de Rohan — que, na vida real, talvez tenha sido filho ilegítimo de Luís XIV, ou ao menos isso insinua Saint-Simon — e alguns membros da corte, alguns dos quais fictícios. Realidade e ficção são misturadas no filme.

A Morte de Luís XIV não foi filmado em Versalhes mas no castelo de Hautefort, na Dordogne. O quarto de Hautefort que temos de imaginar como sendo o do rei em Versalhes estava desocupado há décadas, por causa de um incêndio. A equipe de Albert Serra fez um belo trabalho, reconstituindo o aposento, que está como seria o de um nobre francês da era de Luís XIV. Ao mesmo tempo, não é a reprodução exata do luxo e da grandiosidade do quarto do rei em Versalhes. Não há tanto tempo, tirei esta foto de um canto do quarto:

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Passada a rápida cena inicial, nos jardins, Albert Serra não nos deixa mais sair do quarto. Em alguns momentos, ouvimos levemente, vindo do exterior, o canto de pássaros. Inevitavelmente, sentimos inveja deles, alheios que são às misérias, às ambições, às frustrações da vida humana. Uma hora, vemos pela janela, inacessível, o que seria o parque de Versalhes. Isso nos dá a dimensão da prisão a que doravante está condenado aquele soberano tão poderoso: tanta beleza lá fora, e a doença dentro. Os créditos agradecem aos “Parques de Sintra”. Terão as duas cenas de exterior sido lá filmadas?

Em janeiro de 2017, estive em Sintra, para revisitar o Palácio Nacional, castelo medieval e renascentista dos reis de Portugal. Nunca fui a Sintra sem me comover com o quarto do rei deposto Afonso VI, que foi contemporâneo de Luís XIV, pois viveu de 1643 a 1683. Afonso VI, acusado pelo irmão, o futuro Pedro II, de ser incapaz de reinar, passou os nove últimos anos de vida trancado em seu quarto em Sintra, de onde saía apenas para ir assistir à missa na capela. Perdeu para o irmão não só o poder, mas também a mulher, Maria Francisca de Sabóia, prima próxima de Luís XIV.

Este é o quarto-prisão de Afonso VI em Sintra:

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É fácil imaginar Afonso VI, notório irrequieto, andando sem parar, sem rumo e sem objetivo, nesse aposento, durante nove anos. Triste destino. O quarto é bem diferente, pela simplicidade, do de Luís XIV. Ao tirar a foto, reparei na luz caindo sobre a cama e o chão.

Albert Serra utiliza com grande parcimônia, no filme, a luz do dia. As cenas, em sua maioria, transcorrem de noite, à luz de velas, o que aumenta a sensação de aprisionamento e claustrofobia. Em alguns momentos, porém, o dia entra, a luz ilumina parte de um móvel, parte de um personagem. Isso nos traz alívio.

Em uma das primeiras cenas no quarto, Luís XIV recebe a visita de dois de seus cachorros. Seu rosto se ilumina. Somos informados de que o médico, Fagon — tratado no filme como um incompetente e que possivelmente o era na vida real — raramente deixa que eles entrem no quarto do rei doente, por razões presumivelmente de higiene. Pela porta aberta, vemos no aposento seguinte alguns cortesãos, que acabam de cumprimentar o rei e de aplaudi-lo, porque conseguiu comer alguma coisa no jantar, em público, como era de praxe no cerimonial de Versalhes. A amizade entre o soberano e os dois animais é explicitada. Madame de Maintenon declara que eles, de fato, reconhecem e adoram o seu amo (“leur maître“). O momento é sutil, porque no Ancien Régime, e na França particularmente, os soberanos se consideravam os amos de seus súditos. A esposa morganática do rei está falando apenas dos cachorros ou dando a ele a certeza de que sua doença não afeta o respeito — e como, acabamos de ver, os aplausos — que lhe dão os cortesãos?

Na cena seguinte, vemos Luís XIV de perfil, com uma peruca acinzentada. Embora o rei nos seja apresentado, recostado na cama, com o perfil esquerdo, a imagem é claramente inspirada neste famoso retrato em cera, de perfil direito, feito pelo artista Antoine Benoist em, aproximadamente, 1705:

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E de repente, o rei se vira um pouco para o espectador, em semi-perfil, sem porém estabelecer contato visual. Seu olhar está meditativo e fiquei pensando o que estaria relembrando, na visão de Albert Serra. A infância e a adolescência difíceis, quando, rei desde os cinco anos de idade, tivera de enfrentar a Fronde, séria ameaça à sua posição como monarca absoluto? A sua mãe, Ana d´Áustria, e o cardeal Mazarino, graças aos quais essa posição havia sido preservada? As mortes recentes na sua família? Alguma melancólica reflexão sobre a vacuidade do poder, quando a morte parece próxima? Pouco antes, o diretor nos mostrara o rei e Fagon conversando sobre duas mulheres da corte, que não existiram na vida real. Luís XIV, notório admirador do corpo feminino, quer saber como ambas são, quando nuas. O meio sorriso de prazer do rei quando Fagon faz comparações entre as duas, por si só, merece a entrada de cinema. Homem de muitas amantes no passado, resta ao monarca, aos 77 anos, apenas o deleite de ouvir seu médico comparar a nudez de duas beldades da corte.

Há também uma cena em que Luís XIV acorda de noite, com sede. Clama por água. Quando finalmente alguém aparece, é um incompetente apalermado, que erra tudo, não o valet de chambre habitual. Lembramos de Ricardo III gritando por um cavalo, para não ser morto no campo de batalha, e disposto a ceder a coroa em troca.

Para representar Luís XIV, Albert Serra escolheu um dos atores paradigmáticos da Nouvelle Vague, Jean-Pierre Léaud. Ator-fetiche de François Truffaut, para quem começou a trabalhar na adolescência, como o personagem Antoine Doinel, alter ego do diretor em vários de seus filmes, Jean-Pierre Léaud foi também requisitado por Godard. O fascínio do filme não é tanto ver a imagem passada por Albert Serra da morte de Luís XIV, mas ver Jean-Pierre Léaud, envelhecido, representar o rei. Luís XIV tinha 77 anos ao morrer, em 1715. Léaud tinha 71 anos durante as filmagens, no final de 2015.

Na foto abaixo, Léaud et seu mentor, François Truffaut, aparecem em Cannes, em 1959, para apresentar no Festival o filme Les Quatre Cents Coups, primeiro dos cinco da série em que o personagem Antoine Doinel aparece. Léaud tem 15 anos.

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Abaixo, Léaud adulto, aos 29 anos, no filme La Maman et la Putain, de Jean Eustache, de 1973, onde faltam apenas um cigarro e um cinzeiro para que esta seja uma perfeita ilustração da época:

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E agora, em maio de 2016, Serra e Léaud em Cannes, para a projeção de A Morte de Luís XIV no Festival:

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De 1959 a 2016, 57 anos se passaram, Léaud está com um diretor diferente de Truffaut, que morreu em 1984, e vai receber a Palme d’or d’honneur no Festival, pelo conjunto do seu trabalho.

Em A Morte de Luís XIV, vemos Léaud, cena após cena, dizer muito com o mínimo de expressão. Trata-se de um ator excepcional. O momento mais impactante do filme é provavelmente uma longa cena em que Luís XIV, deitado, comendo um biscoito, nos olha diretamente. Não há como fugir, o olhar dele está cravado em nós. A cena dura vários minutos. Jean-Pierre Léaud não diz nada, praticamente não mexe o rosto. Apenas, leva o biscoito à boca, morde, mastiga, e segue nos olhando. A própria impassibilidade do rosto é altamente perturbadora. Sabe-se que Luís XIV possuía em alto grau o poder de não manifestar emoções em público, o que era uma forma de manifestar sua preponderância sobre os outros. Isso costumava deixar inquietas as pessoas ao seu redor, mesmo seus filhos, o legítimo e os ilegítimos. Fica a critério de cada um o que está sendo dito por aquele olhar de Léaud, na pele do rei. Vi sobretudo a mensagem irônica de que eu não preciso me preocupar, minha hora chegará, eu também morrerei, pois a vida é assim. Supus também no rei uma calma surpresa de que exista um mundo, o contemporâneo, onde as pessoas não mais se extasiam ao vê-lo andar, ao vê-lo jantar, ao vê-lo governar, mas estejam ali, como espectadores, para vê-lo como um personagem doravante inofensivo. Um mundo onde suas ações e decisões já não determinam os destinos humanos.

O filme foi, de forma geral, elogiado pelos críticos, embora alguns tenham lastimado que Albert Serra não tenha feito uma reflexão sobre o que representava a morte no século XVII. De fato, lembrei, durante a projeção, de Amour, de Michael Haneke — cuja estrela, Emmanuelle Riva, falecera poucos dias antes — pois a ideia é a mesma nos dois filmes: de que todos morreremos sofrendo, de forma triste, a não ser que tenhamos um acidente ou um ataque cardio-vascular repentino e fatal.

A Morte de Luís XIV é talvez um belo exemplo do cinema de arte europeu. Muitos ficarão entediados. O romancista francês Éric Neuhoff, que adora os filmes de Truffaut, diretor sobre o qual escreveu um livro, mas detestou o de Albert Serra, opinou, sarcasticamente: “Se quisermos ser gentis, podemos encará-lo como um documentário sobre o envelhecimento de Jean-Pierre Léaud”. 

Assisti ao filme com duas pessoas inteligentes e instruídas, dois embaixadores aposentados: minha mãe, Thereza Quintella, e Ivan Cannabrava. Ele, ao final, exclamou: “Aryzinho, que filme insuportável!”. Ela comentou: “Precisava duas horas para nos dizer que a morte é solitária?”. Pessoalmente, gostei muitíssimo. Em A Tomada de Poder por Luís XIV, de Roberto Rossellini, de 1966, com roteiro de Philippe Erlanger, vemos o rei de 23 anos decidindo doravante governar, com a morte de Mazarino, em 1661, sem primeiro-ministro. Cinquenta anos depois, Albert Serra nos mostra como terminou a vida daquele monarca absoluto iniciante retratado por Rossellini. O rei, outrora jovem, atraente e determinado, é agora exposto na cama, moribundo, vulnerável. No primeiro filme, vimos a agonia de Mazarino, que abriu caminho para o governo pessoal de Luís XIV. No segundo, é a vez da agonia do rei.

Poucas horas depois de sair do cinema, fui a uma festa grande de família. O que vira na tela não me saía da cabeça e, talvez, eu não tenha conseguido ser tão presente na festa quanto gostaria. Conseguia pensar apenas na efemeridade de tudo, mesmo dos reis mais poderosos.

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