O Casamento Secreto

O Casamento Secreto

Stendhal, é sabido, escreveu ele próprio seu epitáfio. Quem visita o túmulo do escritor no cemitério de Montmartre — e eu sou, ocasionalmente, um desses peregrinos — vê sobre a lápide, mais ou menos, a inscrição determinada por ele. Digo “mais ou menos” porque, como contei em O Dia em que vi o Crânio de meu Avô, seu primo e executor testamentário, Romain Colomb, inverteu a ordem dos três verbos escolhidos, e por isso lemos, em italiano: “escreveu, amou, viveu”, em vez do pretendido pelo romancista, que era “viveu, escreveu, amou”.

Outro desejo não respeitado de Stendhal é que o túmulo informasse o seguinte: Quest´anima/Adorava/Cimarosa, Mozart e Shakspeare [sic]. A vontade de que a declaração de amor aos três artistas fosse incluída no epitáfio aparece em Souvenirs d´égotisme, volume autobiográfico escrito em 1832, onde Stendhal declara que imaginara seu túmulo e o que nele deveria ser escrito. Mais tarde, em 1837, em um resumo de cinco páginas de sua vida, o autor acrescenta Correggio aos amados Cimarosa, Mozart e “Shakspeare” — e constatamos, então, que de fato faltava um pintor na lista anterior — mas já não parece querer incluir os artistas na inscrição na lápide.

O compositor Domenico Cimarosa (1749-1801), “essa bela planta napolitana”, como diz dele Stendhal em seu Diário, foi um dos objetos constantes da admiração do escritor. De Cimarosa, ouve-se hoje sobretudo uma ópera-bufa, Il matrimonio segreto (1792), a que assisti uma vez em Munique. Aos 25 anos, minha devoção ao escritor e a seus personagens tornava-se menos exclusiva do que fora até pouco tempo antes, mas perdurava então e perdura ainda. Stendhal já não dominava tanto meus pensamentos, mas foi o interesse por ele que me fez ouvir a ópera de Cimarosa. Sabia que conhecer o músico era uma forma de manter a proximidade com o escritor.

Conservo o programa. Nada nele escrevi, ao contrário do que frequentemente fazia naquela época, com comentários decididos em que destruía ou elevava aos céus uma obra, uma produção, uma atuação. Quatro anos antes, por exemplo, eu assistira em Londres a uma montagem da comédia inglesa em que Il matrimonio segreto é inspirada, The Clandestine Marriage (1766), de George Colman e do célebre ator David Garrick. Neste caso, escrevi em várias páginas do programa, elogiando os atores e julgando fraca a peça. Embora o programa da obra de Cimarosa nada contenha da minha mão, lembro bem que gostei da ópera e da produção, e saí feliz do teatro em Munique.

Sabemos, pela autobiografia de Stendhal escrita de 1835 a 1836 e denominada por ele Vie de Henry Brulard, que o escritor assistiu pela primeira vez a uma representação da ópera de Cimarosa em maio de 1800, em Ivrea. Ele tinha 17 anos, e estava na Itália acompanhando o exército francês. Era a segunda campanha da Itália, Napoleão Bonaparte tornara-se primeiro cônsul no ano anterior e o pintor David o retrataria atravessando o passo do Grande São Bernardo, casaco esvoaçante, jovem e heroico sobre seu cavalo empinado.

Sobre essa tela, diz o historiador americano David Bell, em seu livro de 2020, Men on Horseback: the Power of Charisma in the Age of Revolution, que ela se tornou “uma das imagens mais conhecidas da glória militar”, ao mostrar Bonaparte parecendo “se fundir na paisagem sublime que o quadro retrata, e comandar ao próprio vento”. A batalha de Marengo, em junho de 1800, se tornaria uma das etapas gloriosas da epopeia napoleônica, e a República Francesa triunfava das monarquias.

Em um dos prefácios em que pensou para a sua biografia de Napoleão, Stendhal escreveu: “Vi o general Bonaparte pela primeira vez dois dias após a sua passagem pelo São Bernardo, ao pé do forte de Bard [maio de 1800]; oito ou dez dias após a batalha de Marengo, fui admitido no seu camarote no La Scala”, portanto, em junho de 1800. Em Vie de Henry Brulard, ele não parece tão certo de ter visto Napoleão durante o assédio francês ao forte. Em todo caso, devemos supor que o general Bonaparte terá causado nele a mesma impressão que nos causa o quadro de David.

Mas estamos ainda em Ivrea onde, informa a Vie de Henry Brulard: “À noite, tive uma sensação que nunca esquecerei. Fui ao espetáculo”.

A ópera causou, afirma ele retrospectivamente, 35 anos depois, uma emoção mais forte do que ter atravessado os Alpes pelo Grande São Bernardo e passado por uma descarga de canhões perto do forte de Bard. Comparadas à ópera de Cimarosa, a guerra e a perigosa, por estreita, passagem pelos Alpes — Napoleão, na verdade, tivera de cruzar as montanhas em lombo de mula, e o cavalo empinado é parte da propaganda — pareceram-lhe algo “grosseiro e baixo”. No entanto, percebemos que as sensações causadas pela travessia das montanhas e os tiros de canhão lembram as experimentadas por Fabrice del Dongo na batalha de Waterloo, em La Chartreuse de Parme.

Em todo caso, assegura-nos Stendhal, ouvir Il matrimonio segreto aos 17 anos determinou-o a vivre en Italie et entendre de cette musique, e isso tornou-se para ele “a base de todos os meus raciocínios”. Aparentemente, apenas uma vez antes ele assistira a uma representação operística, em Paris, aos 15 anos, mas essa fora uma obra francesa contemporânea medíocre, Le Traité nul — ”un fio de vinagre” diz ele: ce filet de vinaigre continu et saccadé — de um compositor hoje esquecido, Pierre Gaveaux.

Com a descoberta de Cimarosa, ir à ópera torna-se uma de suas razões de viver e ele nos fala a respeito inúmeras vezes nas obras autobiográficas. Gosto desta frase, que está em Vie de Henry Brulard: “Eu andaria dez léguas a pé, pisando sobre excrementos, coisa que mais detesto no mundo, para assistir a uma representação de Don Giovanni bem interpretada”.

Textos autobiográficos de Stendhal, contudo, não são necessariamente confiáveis, e não é seguro que ele tenha ouvido Cimarosa pela primeira vez em Ivrea. Em 1808, em uma carta a sua irmã Pauline, ele diz: “Gostei de música pela primeira vez em Novara, alguns dias antes da batalha de Marengo. Fui ao teatro; davam Il matrimonio segreto”. Que a representação tenha sido em Novara ou Ivrea, o leitor percebe que nem tudo foi perfeito nessa iniciação musical. O escritor comenta: “Faltava um dos dentes da frente à atriz que cantava Carolina”. Esse detalhe ficou na sua memória como sendo “o que sobrou daquela felicidade divina”.

W. G. Sebald, em Vertigem (1990), no capítulo, não muito satisfatório, em que ficcionaliza a relação de Stendhal com o amor e a Itália, decide que o dente ausente é “o canino superior direito”. Pessoalmente, imagino que seria algum dos incisivos laterais; a falha ficaria mais visível, e a observação de Stendhal mais natural.

E, de repente, penso que talvez houvesse aí o tema de um conto, certamente não muito alegre, nessa história de uma soprano que, em 1800, era obrigada a cantar, para sobreviver, ostentando a falta de um dente, em uma pequena cidade no Norte da Itália, talvez deambulando de um teatro provinciano a outro. O autor não nos dá seu nome, mas afirma que, no dia seguinte, estava apaixonado por ela enquanto partia a cavalo de Ivrea. Obviamente, não é pela intérprete de Carolina que Stendhal se apaixonara, mas pela Itália, a sua própria juventude, a libertação do jugo familiar, a aventura e a música. É possível que Cimarosa tenha marcado de forma duradoura sua imaginação porque passou a cristalizar todos esses sentimentos.

Outro músico sobre quem Stendhal fala frequentemente é Rossini. Se a adoração por Cimarosa foi constante, o apreço pelo compositor de Il barbiere di Siviglia e La Cenerentola revela-se oscilante. Em Rome, Naples et Florence — uso a edição de 1826 — o romancista nos conta que, em 1817, viajando a Nápoles, em um albergue em Terracina, no Lácio, notou “um homem louro bonito, um pouco careca”, de cerca de 25 anos. Stendhal perguntou-lhe se podia ainda ter esperança de assistir, em Nápoles, de onde chegava o viajante, ao Otello de Rossini, e passa a elogiar o talento do compositor.

O interlocutor fica levemente embaraçado, seus companheiros de viagem sorriem: enfin, c´est Rossini lui-même. A frase seguinte resume bem a forma como Stendhal escreve sobre Rossini em seus textos autobiográficos: “Felizmente, e por um grande acaso, eu não falara nem da preguiça desse gênio admirável e nem dos seus numerosos plágios”. Rossini, como se sabe, frequentemente reutilizava suas próprias melodias em diferentes composições, mas Stendhal gosta de dizer que ele também tomava empréstimos de outros compositores. Ao ouvir O Barbeiro de Sevilha pela primeira vez, opina: “isso me pareceu um pouco pilhado de Cimarosa”, o que não o impede de escrever, uma página depois: J’admire de plus en plus le Barbier.

Henri Martineau, um dos especialistas clássicos de Stendhal, em seu estudo L´Oeuvre de Stendhal: histoire de ses livres et de sa pensée (1945) opina que o escritor apreciava o artista em Rossini, mas que “o homem, em troca, sempre despertou antipatia nele: o seu cinismo o chocava assim como o enorme apetite e a desenvoltura grosseira em relação às mulheres”.

Em 1823, Stendhal publicaria a primeira biografia do compositor em francês. Abro a Vie de Rossini ao acaso e leio o seguinte trecho: Vif, léger, piquant, jamais ennuyeux, rarement sublime, Rossini semble fait exprès pour donner des extases aux gens médiocres. Hagiográfico isso não é. Em todo caso, o primeiro encontro, em Terracina, transcorreu de forma idílica. O francês e o italiano ficaram “tomando chá até depois da meia-noite”. Escreve Stendhal: c´est la plus aimable de mes soirées d´Italie. E comenta: “despedi-me desse grande compositor com um sentimento de melancolia”.

Alguns estudiosos, porém, colocam em dúvida se Rossini e Stendhal realmente interagiram na Itália, como Rome, Naples et Florence e a correspondência do escritor afirmam. Em um ensaio intitulado Stendhal et Rossini: Une étude documentaire, de 1999, Stéphane Dado e Philippe Vendrix debruçam-se sobre essa questão. Apontam que mesmo o encontro em Terracina talvez nunca tenha acontecido e que Stendhal, em Milão, possivelmente só viu Rossini de longe, na qualidade de maestro, regendo suas óperas no La Scala. O ensaio dos dois pesquisadores belgas é bastante útil. Lista todas as vezes em que o compositor é citado na obra do escritor, e calcula que Stendhal terá assistido a 23, talvez 25, das 39 óperas de Rossini.

Enquanto eu escrevia o parágrafo acima, amigos vieram de Roma me visitar em Kuala Lumpur. Trouxeram-me de presente uma tradução para o italiano, por Donata Feroldi, publicada em 2019, de Promenades dans Rome, que conta com uma excelente apresentação do escritor e ensaísta Emanuele Trevi.

Logo na primeira frase, Trevi nos diz: L´Italia di Stendhal è una gigantesca soperchieria, un castello di carte truccate, una sistematica impudenza. Ao contrário do que poderia parecer, o ensaio é elogioso a Stendhal, ajudando a confirmar junto ao leitor que o amor do francês pela Itália é reciprocado pelos italianos. Mais adiante, Emanuel Trevi opina “não haver nada mais verdadeiro do que a Itália de Stendhal”, ou seja: a Itália descrita pelo francês é condizente com sua “reação subjetiva, alterada constantemente pela força dos seus mutáveis estados de ânimo”. Avalia Trevi ser Stendhal o primeiro entre os modernos a transformar a literatura em um punto di vista personale, necessariamente eccentrico perché generato dall´individuo e dal suo egotismo.

De maneira divertida, o ensaísta italiano comenta que os estudiosos de Stendhal se dedicam, paradoxalmente, a descobrir as inverdades nas obras de seu scrittore prediletto, e que cada um tem a sua mentira stendhaliana preferida. Para Trevi, justamente, il non plus ultra è l´incontro fortuito com Gioacchino Rossini em Terracina, onde o diálogo descrito por Stendhal é, na sua avaliação, una bellissima intervista immaginaria.

Vie de Rossini foi, em termos de vendas, a obra mais bem-sucedida de Stendhal, durante a existência do escritor. A publicação, provavelmente em novembro de 1823, coincidiu com a chegada do compositor a Paris, para uma temporada de um mês. Posteriormente, Rossini moraria na capital francesa mais de uma vez e lá morreria em 1868.

Frequentemente associo o compositor italiano, símbolo mesmo do bel canto, à França, e particularmente a Stendhal. O músico, aliás, entrou na minha vida antes mesmo do romancista, por causa de um dos meus álbuns prediletos de Tintin, Les Bijoux de la Castafiore, que terei lido pela primeira vez aos 7 ou 8 anos. Na história em quadrinhos, a cantora lírica Bianca Castafiore vem visitar Tintin e o Capitão Haddock no castelo de Moulinsart. Uma ópera de Rossini, La gazza ladra, ajuda a resolver o roubo de uma esmeralda. O enredo lembra o de uma ópera-bufa. Na capa, o gesto de Tintin revela que vamos adentrar um mistério e também nos convida a manter silêncio enquanto canta uma ária para a televisão aquela que é conhecida, no universo de Hergé, como “o rouxinol milanês”.

Rossini é tão associado a Paris para mim que suas óperas me fazem pensar na Restauração e na Monarquia de Julho e, portanto, em Stendhal e Balzac, cujas obras sintetizam, a meu ver, a vida durante esses sucessivos períodos da história francesa.

Julien Sorel, uma noite, vai à ópera assistir Le Comte Ory, penúltima ópera rossiniana, cuja estreia se deu em Paris em 1828. Durante a pandemia de Covid-19, quando a Metropolitan Opera passava gratuitamente, no que parece hoje o distante ano de 2020, gravações de algumas de suas produções, Le Comte Ory foi mostrada ao menos duas vezes, em uma montagem de 2011, com Juan Diego Flórez, Joyce DiDonato e Diana Damrau.

Essa nunca será minha obra predileta do compositor. Mas foram bons momentos, na solidão dos confinamentos na Malásia, ver Juan Diego Flórez, como o Conde Ory, e Diana Damrau, no papel de Condessa Agnès, cantando “Ce téméraire”. Ele tenta seduzi-la fantasiado, histrionicamente, de freira. Essa cena, que dura apenas três minutos, aparece na Internet, mas com outra soprano, Pretty Yende, fazendo o papel de Agnès. Vale a pena assistir. Levanta a alma.

Reli agora os parágrafos em Le Rouge et le Noir sobre a ida de Julien à ópera. Dá um certo reconforto saber que, na sua curta e penosa vida, ele pelo menos ouviu Rossini.

Um sábado de março, enquanto eu estava no teatro em Kuala Lumpur, Stendhal, seus personagens, suas obras reapareceram na minha imaginação, logo no início de um concerto. Naquele momento, eu estava imerso na realidade do Sudeste Asiático. Acabara, em duas semanas sucessivas, de ir a trabalho a Bornéu. Pela primeira vez viajara a Bandar Seri Begawan, capital de Brunei, e, poucos dias depois, a Kota Kinabalu, capital do estado malásio de Sabá. Preparando-me para as duas viagens, lera livros sobre a história de Bornéu e, ao chegar, visitara museus e mercados. Mergulhara na realidade local. As reuniões de trabalho que eu lá mantivera haviam revelado muito a mim sobre a economia, as relações diplomáticas, os interesses estratégicos dos países do Sudeste Asiático.

Sentado em Kuala Lumpur no Istana Budaya, ou Palácio da Cultura, a literatura francesa, a música italiana estavam bem longe da minha mente quando, de repente, iniciou-se o concerto. E no entanto, eu sabia o que me esperava, o programa era claro: abertura de Semiramide, de Rossini, e, de Respighi, o Concerto Gregoriano para violino e Os Pinheiros de Roma. Entre as duas obras de Respighi, uma composição do músico malásio contemporâneo Yeo Chow Shern.

Aberturas de óperas de Rossini representam uma forma hábil de iniciar um concerto. Sua energia motiva a plateia. A de Semiramide é particularmente rica, brilhante e tonitruante. Stendhal, em um artigo de imprensa que escreveu em 1825, logo após assistir a uma récita da ópera em Paris, opinou sobre a abertura: elle est jolie, mais a semblé un peu longue. Em gravações, ela dura cerca de 12 minutos. A mim, esse tempo pareceu curto. À medida que a orquestra tocava, Bornéu, a Associação de Nações do Sudeste Asiático, o Mar do Sul da China, a história da Malásia e de Brunei iam se fundindo, como em um casamento inesperado, improvável, secreto, com Henri Beyle, Julien Sorel, Mme. de Rênal, Fabrice del Dongo e a duquesa Sanseverina. Como tem acontecido com frequência, pensei que não nos ensinam, na escola, o suficiente sobre a história da Ásia.

Em 1830, ano em que Le Rouge et le Noir foi publicado e Julien Sorel guilhotinado, houve revoluções na Europa. Carlos X perdeu o trono, e Luís Filipe de Orléans tornou-se rei dos Franceses. Na Bélgica, durante uma representação de ópera no Teatro La Monnaie inicia-se a revolta que levaria à revolução e à independência. No Brasil, D. Pedro I estava a meses de sua abdicação, e pessoas escravizadas continuavam sofrendo e sofreriam ainda por muito tempo. Mas o que estaria acontecendo na China? A quantas andava a progressão do imperialismo britânico na Índia? Como se vivia em Java sob o colonialismo holandês? Como via o Sultanato de Aceh, em 1830, a crescente presença holandesa em Sumatra? Qual dos reis da dinastia Chakri reinava no Sião? Seriam felizes os seus súditos?

Após conhecer — ou não — Rossini em Terracina, Stendhal, em 1817, continuou rumo a Nápoles. Lá, maravilhou-se com o Teatro San Carlo, que estava sendo reinaugurado depois de ter pegado fogo no ano anterior. Em Rome, Naples et Florence, ele declara: je me suis cru transporté dans le palais de quelque empereur d’Orient. Mes yeux sont éblouis, mon âme ravie.

Nápoles significou, para Stendhal, ir à ópera. É sobretudo do Teatro San Carlo que ele fala nas muitas páginas sobre a cidade, descrevendo-o exaustivamente. E o Rio de Janeiro paga a conta. Segundo ele, somente em Nápoles há “uma tal mistura de mar, montanhas e civilização. Está-se no meio dos mais belos aspectos da natureza; e 35 minutos depois, pode-se ouvir cantar o Matrimonio segreto. Em Constantinopla e no Rio de Janeiro nunca se verá isso, ainda que fossem tão belas como Nápoles”.

Stendhal é injusto. Em D. João VI no Brasil (1908), Oliveira Lima nos fala da vida musical no Rio de Janeiro durante a estada entre nós daquele rei. Parece ter sido rica, embora o historiador e diplomata diga a respeito do Real Teatro de São João, inaugurado em 1813 no logradouro hoje conhecido como praça Tiradentes, e onde se davam apresentações operísticas: “a orquestra deixava um tanto a desejar, exceção feita de um flautista francês e de um excelente violinista”. A essa ideia opõe-se Vasco Mariz. Em artigo de 2008, “A música no Rio de Janeiro no tempo de D. Joao VI”, o musicólogo, e também diplomata, escreve sobre o São João: “Viajantes de passagem pelo Rio louvaram a qualidade da execução e consideraram a orquestra como uma das melhores do mundo de então”. O teatro, porém, queimou em 1824, e seu substituto não se lhe podia comparar. Admite Vasco Mariz: “Aquele grande fausto musical dos anos anteriores acabara. Não havia mais meios financeiros para manter o mesmo nível dos espetáculos”.

O Padre Perereca, ardente bajulador da monarquia, ao descrever o Teatro de São João, em Memórias para servir à História do Reino do Brasil (1825), parece tão maravilhado como Stendhal com o San Carlo, embora demonstre menos competência literária: “Este Real Teatro, traçado com gosto e construído com magnificência, a ponto de emular os melhores teatros da Europa, tanto pelo aparato de formosas decorações, pompa do cenário, e riqueza do vestuário, quanto pela grandeza e suntuosidade do real camarim…”. No mesmo local onde se erguia o São João hoje está, após vários sucessores, o Teatro João Caetano.

As fontes sobre a vida musical no Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX são numerosas. Um ensaio de 2005 do musicólogo Rogério Budasz, intitulado “New sources for the study of early opera and musical theatre in Brazil”, menciona que uma ópera de Cimarosa, L´Italiana in Londra, já havia sido apresentada antes mesmo da chegada da família real. Não encontrei registro, nos diversos textos que consultei, de alguma apresentação de Il matrimonio segreto. No caso de Rossini, entre 1820 e 1826 — ano de publicação da edição revista de Rome, Naples et Florence — oito de suas óperas foram apresentadas no Rio, informa Budasz citando outro musicólogo, Ayres de Andrade. Segundo Oliveira Lima, antes disso, em 1819, Tancredi já havia sido montada no São João. Essa era uma das óperas de Rossini que Stendhal preferia.

Oliveira Lima lembra que, em fevereiro de 1821, tendo D. João VI jurado a contragosto, sob a pressão popular, fidelidade à futura Constituição portuguesa, na noite do mesmo dia, depois de ter cedido “ao pavor, desfazendo-se em pranto e quase desmaiando”, foi ao Teatro São João, para assistir à Cenerentola. Como no caso de Julien Sorel, esperemos que ouvir Rossini tenha trazido alguma alegria ao contrariado monarca.

Enquanto isso, em um teatro em Kuala Lumpur, estou ainda escutando a abertura de Semiramide, com os pensamentos vagando de Stendhal para o estado malásio de Sarawak, onde ainda não estive. Lia por aqueles dias a biografia do “Rajá Branco”, o inglês James Brooke, que fizera daquele pedaço da ilha de Bornéu um território independente em 1841. A história de Sarawak é inusual, rica, cheia de reviravoltas. E é tão violenta quanto a história do Brasil ou de qualquer outro lugar na Terra. Onde há seres humanos há ambições, vinganças, crueldades, assassinatos, guerras; e há também o teatro, a literatura e a música. É uma combinação paradoxal, um consternante casamento.

Terminara a abertura da ópera de Rossini. Aplausos. Aparece no palco o violinista italiano Domenico Nordio, estrela da noite, prestes a tocar o Concerto Gregoriano de Respighi, que eu não conhecia e viria a considerar, possivelmente de forma errônea, um pouco maçante. Sentado na segunda fila na plateia, ouço com clareza Nordio queixar-se com os músicos ao seu redor da temperatura do ar condicionado no teatro, de fato excessivamente fria.

No dia seguinte, domingo, acordei gripado. Não pude sair de casa.

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Um lugar encantado

Um lugar encantado

Quando viajo, costumo organizar rapidamente no quarto de hotel uma pequena biblioteca. Ando pelas ruas, entro nas livrarias que vejo ao acaso e raramente saio de mãos vazias. Mencionei, em postagem anterior, Seis livrarias, que estas surgem frente a mim como num passe de mágica. Pisco os olhos e lá está uma. É como em um conto das Mil e Uma Noites, e o tesouro que aparece do nada é uma livraria.

Em Paris, em julho de 2018, comprei um guia das livrarias de Paris, lançado no final de 2016 por François Busnel.

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Se você assistiu ao último filme de Roman Polanski, Baseado em Fatos Reais (D’après une histoire vraie), você sabe quem é François Busnel. O filme é inspirado de um romance de Delphine de Vigan publicado em 2015, com elementos autobiográficos. No romance, como no filme, o personagem principal, que também se chama Delphine, é uma escritora que namora um jornalista, apresentador de um programa literário na televisão, chamado François, inspirado em Busnel.

Delphine de Vigan é a companheira de François Busnel. Ele apresenta, no canal France 5, desde 2008, um excelente programa sobre livros, La Grande Librairie. No formato usual, Busnel convida uns poucos escritores para falarem de seus livros mais recentes, todos sentados em poltronas dispostas em volta de uma mesa de centro. Os móveis são contemporâneos. O cenário é colorido e visualmente atraente. São convidados a participar romancistas, às vezes historiadores, filósofos ou poetas. Ocasionalmente, o apresentador viaja ao exterior e entrevista escritores do país visitado. Busnel é particularmente fascinado com a literatura americana. La Grande Librairie costuma também focalizar, em cada edição, em poucos minutos, uma livraria específica, em Paris ou na província, entrevistando o proprietário. Recomendo fortemente o programa — acessível pela Internet — conduzido pelo apresentador com entusiasmo contagiante.

Comprei Mon Paris littéraire em uma das livrarias descritas pelo autor, Les Cahiers de Colette, na rue Rambuteau, perto do Beaubourg. Essa é, no meio literário parisiense, uma livraria mítica. A proprietária, Colette Kerber, sentada no caixa, disse-me, com simplicidade e modéstia, quando fui pagar o livro de Busnel: “Ele fala na minha livraria, nesse guia”.  Achei encantador o tom casual com que o comentário foi feito.

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Busnel nos informa que o painel de fotografias, “parte já da história parisiense”, mostra escritores admirados por Colette Kerber. Olhando rapidamente, reconheço Kafka, Beckett, abaixo dele Jean Genet e Cortázar com seu gato. Abaixo dos dois, à direita, na foto grande, Jacques Roubaud, escritor infelizmente pouco conhecido fora da França e membro do grupo literário OuLiPo. O segundo à direita de Beckett é Walter Benjamin. Entre os dois, parece estar Lacan. Proust está no topo, na foto mais à direita, que infelizmente cortei pela metade. Na foto pouco nítida logo abaixo da de Proust, sabemos que no grupo de quatro homens aparecem Paul Éluard e André Breton, porque seus nomes estão escritos. À esquerda de Kafka, Freud sobe a bordo de um avião, em uma foto meio tenebrosa. Acima de Beckett, ao lado de Freud, está o poeta René Char. O homem na foto grande acima de Char, com ar profundamente inteligente, me pareceu primeiro ser Italo Calvino, que era também membro do OuLiPo. Olhando atentamente, vejo tratar-se na verdade do sociólogo Pierre Bourdieu. Minha imaginação me fez ver Italo Calvino porque, desde a infância, penso nele com frequência. Como no caso das livrarias, fotos e edições de livros de Calvino costumam aparecer magicamente diante dos meus olhos.

O manual de François Busnel é dedicado “a D., minha parisiense”, em clara homenagem a Delphine de Vigan. Divide-se por arrondissements. Além de falar das livrarias, o autor indica, nas redondezas, locais de predileção ou residências de escritores célebres, jardins onde ler, bares e restaurantes onde descansar da busca por livros e, em uma página que abri ao acaso, até mesmo o endereço de um barbeiro —Desfossé, na avenue Matignon, número 19 — porque lá há uma biblioteca para os clientes.

Trata-se, em resumo, do roteiro do dia-a-dia de François Busnel, cujo trabalho — oh, pessoa feliz! — é justamente frequentar livrarias, conhecer autores, ler livros, preparar seu programa semanal na televisão. Como ele mesmo diz no prefácio, sem livrarias “Paris não seria exatamente Paris”. Segundo ele, há na França — país que é, pela dimensão territorial, metade de todo o estado do Pará — 3.260 livrarias independentes, o que considera “indispensável para o reforço dos laços sociais. Não há democracia sem excelentes livrarias”.

A rue de Richelieu é uma das mais citadas por Busnel. Isso é normal, porque a rua, situada no 1er e no 2ème arrondissements, situa-se no coração da cidade. Desemboca na praça onde estão o Palais-Royal e seu jardim, a Comédie-Française e sua loja, a livraria Delamain — que pertence à editora Gallimard — vários cafés, o excelente restaurante do Hôtel du Louvre e, um quarteirão depois, o próprio Museu do Louvre e o jardim das Tulherias. Denominada place Colette — pois a escritora morava ali, em um apartamento no Palais-Royal — e prolongada pela place André Malraux, a praça, a meu ver, é o centro nevrálgico da cidade, e dela já falei na postagem Keira Knightley e os escândalos de Colette. Seria possível passar dias inteiros naquela vizinhança, sem precisar aventurar-se além, e a bem da verdade eu já fiz isso em diferentes férias passadas na cidade.

Sempre que ando por ali — e é lá que fica, aliás, meu hotel predileto — paro e revejo as placas homenageando Molière e Diderot, pois ambos morreram em casas situadas na rue de Richelieu.

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Molière, morto em 1673, ocupa lugar especial no coração dos franceses, ao menos entre os que lêem. O teatro nacional por excelência, a Comédie-Française, é conhecido também como la Maison de Molière e preserva, em suas coleções, a poltrona onde o autor passou mal no palco, enquanto atuava em uma de suas peças, intitulada, ironicamente, Le Malade Imaginaire, logo antes de morrer. O idioma francês é denominado la langue de Molière. O prêmio teatral anual é o Molière. Diz-se “ganhei um Molière”, como quem diria “ganhei um Oscar” ou “ganhei um Emmy”. No saguão de entrada da Comédie-Française há uma escultura do teatrólogo.

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Mais ou menos na altura do lugar onde ficava a casa em que Molière morreu — o prédio atual é posterior à sua morte — há uma fonte dedicada a ele.

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FonteMolière.jpgA foto abaixo mostra a perspectiva da rua, passando pela fonte com a escultura em bronze representando Molière e terminando no Louvre. A rua que se inicia à direita do monumento chama-se, justamente, rue Molière:

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Pensava eu já conhecer perfeitamente a rue de Richelieu, ajudado inclusive por este livro:

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Por mais que pensemos conhecer um lugar, contudo, isso é apenas uma fantasia. Sempre sobram mistérios a ser desvendados. Jacques Hillairet nos diz que a rue de Richelieu, aberta em 1634 por iniciativa do célebre Cardeal e Primeiro-Ministro em homenagem a quem é nomeada, é a rua de Paris que mais abrigou celebridades em sua história. Hillairet lista uma quantidade impressionante de moradores, que inclui chefes de Estado, ministros, políticos, cortesãs, príncipes, artistas. Como o autor disseca a estória de cada casa da rua, e de seus moradores famosos, o volume de informação pode ser desnorteador.

O guia de Busnel, preocupado apenas com livrarias, escritores e os lugares que eles frequentam ou frequentaram, apresenta de forma mais sucinta as informações sobre os autores que moraram na rua. Folheando o guia, vejo que Stendhal passou um tempo no número 45 da rua, onde terminou de escrever De l’Amour. Esse livro, de 1822, é um dos mais curiosos de Stendhal. Nele, o escritor descreve o surgimento e a consolidação da paixão amorosa de forma aparentemente científica, embora esse seja o sentimento menos racional de todos. Stendhal insere porém dezenas de anedotas. Podemos assim pensar em  De l’Amour como uma obra de ficção fantasiada de não-ficção. É nesse livro que Stendhal cria o famoso conceito, importante para entender seus romances, de “cristalização”, etapa no desenvolvimento do amor durante a qual o ser amado adquire, para nós, todas as perfeições. É o ápice do amor. É o momento em que os eventos, as ocasiões, os lugares mais diversos nos lembram a pessoa que amamos. Quando li De l’Amour, aos vinte anos, fiquei muito impressionado.

Vejo no guia de François Busnel, no livro de Jacques Hillairet e nas obras autobiográficas de Stendhal que o escritor morou em vários endereços na rua, em diferentes épocas de sua vida, e que lá escreveu Le Rouge et le Noir. Aparentemente, morou um tempo no mesmíssimo hotel onde costumo ficar, o que descubro apenas agora. Balzac também morou na rua.  Em um restaurante que já não existe, George Sand e Alfred de Musset se conheceram, dando início a uma das mais atormentadas relações amorosas das letras francesas.

Busnel detém-se sobre uma livraria na rue de Rivoli, a Galignani, uma de minhas prediletas, que passei a frequentar por influência de meu amigo Antonio, a quem já mencionei em Vida e Morte no Musée Guimet. Busnel nos informa que a Galignani lá está desde 1856. Segundo ele, “por lá passaram Hemingway, Malraux, Yourcenar, Colette, e também Marlene Dietrich, Orson Welles e Julien Green”. A lista já faz sonhar. Busnel avalia que “a atmosfera é aconchegante, o atendimento discreto, os conselhos esclarecidos. Guarida para curiosos, estetas e dândis”. De fato, a atmosfera na Galignani possui aquele elemento indefinível, mas palpável, que nos faz perceber termos ingressado em um ambiente altamente elegante, mostruário de uma civilização. Duas outras livrarias que provocam em mim a mesma reação são a Hatchards, em Londres, e a Ferin, em Lisboa.

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Em Se una notte d’inverno un viaggiatore, Italo Calvino lista várias razões — distribuídas em categorias criadas por ele —  pelas quais, afinal, livros não são comprados ou, se comprados, não são lidos. Por exemplo: “Livros que Você Poderia Por De Lado Para Talvez Ler Neste Verão”. Há uma categoria bastante metafísica — alguns pensarão cínica: “Livros Já Lidos Sem Que Você Sequer Tenha Precisado Abri-Los Já Que Eles Pertencem À Categoria Dos Livros Lidos Antes Mesmo De Terem Sido Escritos”.

A classificação que mais me marca é: “Livros Que Se Você Tivesse Mais De Uma Vida Para Viver Você Certamente Leria Também De Bom Grado Mas Infelizmente Os Dias Que Você Tem Para Viver Estão Contados”. É uma frase engraçadíssima. Como lê-la sem rir? Ao mesmo tempo, ela remete a um fato triste. Por mais disciplinado que seja um leitor, ele nunca conseguirá ler todos os livros que tem ou que deseja ler.

O guia de Busnel mostra uma forma superior de vida, toda orientada pelo amor aos livros, aos parques onde podemos lê-los, aos restaurantes onde podemos conversar sobre eles. Assim como lamento não ter tempo para ler tudo o que gostaria, já que não terei mais de uma vida, Mon Paris littéraire me faz pensar, com nostalgia, em todas as livrarias fantásticas, mundo afora, que não terei tempo de conhecer.

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O Dia em que vi o Crânio de meu Avô

O Dia em que vi o Crânio de meu Avô

Let’s talk of graves, of worms, and epitaphs
Richard II, Shakespeare

No final da minha adolescência, no começo da vida adulta, eu costumava, quando  estava em Paris, fazer peregrinação aos túmulos de escritores e compositores objeto de minha admiração. Os cemitérios da cidade são frequentados pelos turistas, que caminham entre os monumentos funerários, com um mapa nas mãos, tentando encontrar o jazigo de celebridades.

A tumba de Stendhal era para mim destino obrigatório, por ser ele então meu escritor predileto. Estudante em Londres, eu ficava acordado até de madrugada lendo seus livros, e ia à aula no dia seguinte acompanhado de seus personagens. Pensava nas intrigas amorosas, nas tramas políticas da existência de Julien Sorel e de Fabrice del Dongo, nas suas ambições, nas renomadas habilidades de estadista do Conde Mosca; tentava prever se eu me apaixonaria por uma Mathilde de La Mole, uma Gina Sanseverina ou uma Clélia Conti; lamentava o terrível destino de Beatrice Cenci. As peripécias, os diálogos, as cenas encontradas nos livros de Stendhal despertavam muito mais meu interesse do que as aulas de estatística ou os experimentos no laboratório.

Quando eu viajava a Paris, enfrentava frio, chuva, neve para andar pelo cemitério de Montmartre até o túmulo de Stendhal. Ficava parado frente a ele, refletindo com ar compenetrado, tentando talvez incorporar algo do talento do escritor, ou da intensidade que ele concedeu, em seus romances, a Julien e a Fabrice. Havia provavelmente, nisso tudo, uma forte inspiração da cena do cemitério em Hamlet. De resto, seria apropriado que assim fosse, pois Stendhal idolatrava Shakespeare e chegou a tentar, em 1802, aos 19 anos, escrever sua própria versão da tragédia do príncipe dinamarquês, transportando a ação para a Polônia.

Adulto, perdi o interesse pelo turismo funerário. Há muitos e muitos anos eu já não prestava homenagem a sepulturas de músicos ou escritores. Em julho, passando poucos dias de férias em Paris, resolvi porém revisitar o cemitério de Montmartre. Na postagem Em Seul, sem Chateaubriand contei que, procurando mais uma vez a tumba de Stendhal, esbarrei na de Madame Récamier, amiga, amante e musa de Chateaubriand. Entre os turistas que estavam no cemitério, naquele dia de verão, um grupo de três mulheres perguntou-me, em um francês com forte sotaque balcânico, se eu conhecia a localização do túmulo de Jeanne Moreau, morta em 2017, e que eu nem sabia estar ali enterrada.

Naquela tarde, a residência final de Stendhal reapresentou-se a mim desta maneira:

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A inscrição na lápide merece ser vista em detalhe, inclusive porque é fruto da vontade do próprio autor, manifestada em ao menos duas obras auto-biográficas — Souvenirs d’égotisme, escrita em 1832, e um texto curto, avulso, de 1837:

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Stendhal chamava-se, na verdade, Henri Beyle — por isso o “Arrigo” na lápide — e era notoriamente admirador da Itália, que não fora ainda unificada e era então uma península e um conceito, mas não um país. Alguns dos momentos mais felizes do escritor foram passados em Milão, que visitou pela primeira vez em 1800, aos 17 anos, e onde morou de 1814 a 1821, o que explica o “Milanese”. Stendhal desejava também que constasse de sua lápide que ele “adorara Cimarosa, Mozart e Shakespeare” — costumava aliás escrever “Shakspeare”, sem o primeiro “e”. No texto de 1837, acrescentou à lista o pintor Correggio, “le Corrège” para os franceses. Nosso escritor, como se sabe, era grande admirador das artes plásticas. No século XX, surgiu mesmo a noção de “síndrome de Stendhal” para designar a reação exacerbada, alguns dirão ridícula — tonturas, palpitações, desmaios — diante da beleza de uma obra de arte. Um de seus primeiros livros, redigido em grande parte parafraseando outros autores, intitula-se Histoire de la peinture en Italie,

O escritor deu origem também ao termo “beylisme”, que ele próprio criou em 1812, e que ficou consagrado desde pelo menos a publicação, em 1914, do livro de Léon Blum, Stendhal et le beylisme. A expressão remete aos ingredientes habituais da personalidade dos protagonistas de seus romances — e ao seu próprio ideal — de energia, individualismo, liberdade, capacidade de viver grandes paixões e busca da felicidade.

Tanto em 1832 como em 1837, Stendhal determinara que constassem em seu epitáfio os três verbos “viveu, escreveu, amou”, em italiano. Por alguma razão, seu primo, amigo, biógrafo e executor testamentário Romain Colomb inverteu a ordem, colocando “escreveu” em primeiro lugar. É por isso que lemos “scrisse, amò, visse”. Para qualquer espírito cartesiano, a presença do “viveu” no final da tríade parece ilógica. Para os fanáticos de Stendhal, soa como traição. Em 1891, o escritor nacionalista Maurice Barrès declarou, em um artigo no Figaro intitulado “Le Génie au Cimetière“, que a decisão de Colomb fora uma “manobra chocante”. “O verdadeiro beylista”, escreveu Barrès, “deve antes de mais nada respeitar as manias de Beyle”.

Em 1888, com a inauguração de um viaduto de metal que passa exatamente sobre aquele canto do cemitério, com veículos rodando por cima das tumbas, o túmulo de Stendhal ficara ensombrecido e escondido. Na primeira vez em que visitei o cemitério de Montmartre, aos 20 anos, fiquei suficientemente impressionado com a presença do viaduto — conhecido como pont Caulaincourt — sobre as sepulturas para mencionar o fato em um caderno de anotações. Em 1892, admiradores de Stendhal cotizaram-se para restaurar a sepultura, o que explica a data na lápide. A inversão na ordem dos verbos, porém, permaneceu. Em 1962, passados 120 anos da morte de Stendhal, um dos maiores especialistas de sua obra, Vittorio (ou Victor) del Litto, francês nascido na Itália, promoveu uma mudança de 150 metros na localização do túmulo, para retirá-lo do espaço sob a estrutura metálica do pont Caulaincourt. A cerimônia deu-se em 23 de março, aniversário da morte do escritor. Victor del Litto deixou-nos do acontecimento um relato. Participaram do traslado do túmulo apenas quatro pessoas: o diretor do cemitério, um comissário de polícia, del Litto e sua mulher. Foi necessário abrir a sepultura. Do cadáver de Stendhal, além de “uma poeira impalpável”, sobravam o crânio, a mandíbula e uma tíbia

Durante o enterro do meu pai, no cemitério do Caju, em 1999, um primo chamou-me de lado para “ver algo importante”. Levou-me a uma tumba vizinha ao jazigo da família. Sobre esse túmulo vizinho, haviam colocado uma caixa de metal contendo o que sobrava de meu avô, o matemático. A caixa, retirada do jazigo familiar apenas para que pudéssemos sepultar meu pai, estava aberta. Dentro, naquele dia de sol carioca, vi o crânio de meu avô, uma tíbia e as dragonas de seu uniforme militar. Era tudo o que restava do General Ary Norton de Murat Quintella.

Não terminaremos nessa nota fúnebre. Afinal, como nos ensina o poeta Jacques Prévert, em Chanson des escargots qui vont à l’enterrement,
“Les histoires de cercueils
C’est triste et pas joli”

A caminho do enterro de uma folha morta, os dois caracóis enlutados partem no outono, mas só chegam na primavera, e a essa altura as folhas “sont toutes ressuscitées“. Os pobres caracóis “sont très désappointés“.

O leitor atento — ou com boa visão — terá notado em uma das fotos acima que, no dia de minha visita, havia sobre a sepultura de Stendhal um pedacinho de papel, segurado por uma pedra. Em várias das ocasiões em que vi esse túmulo, ao longo dos anos, algum admirador havia deixado um recado escrito, frequentemente em italiano.

Dessa vez, era este o bilhete:

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“Para Stendhal, obrigada pelo Vermelho e o Negro, Elena”.

Tive o cuidado de não tocar no papel ou na pedrinha. Fiquei pensando na glória póstuma desse homem morto em 1842, aos 59 anos, praticamente desconhecido como escritor enquanto vivo, a não ser por uns poucos amigos literatos. Pensei na beleza de uma vida que pudera ser resumida de forma simples, com três verbos apenas, “escreveu, amou, viveu”.

Como nas vezes anteriores, apreciei a admiração que a ele devotam seus leitores italianos, justíssima, considerando o quanto ele amara a Itália e a maneira como a descrevera. Comovi-me com a simplicidade do papel, claramente arrancado de algum pequeno caderno. Tivera Elena desde o início a intenção, ao dirigir-se ao cemitério, de deixar o bilhete, ou fora esse um gesto impulsivo, inspirado por uma emoção causada pela visão do próprio túmulo? Por que Le Rouge et le Noir e não La Chartreuse de Parme? O que a leitura de Le Rouge et le Noir trouxera a Elena?

E aí, percebi que para essa última pergunta eu tinha a resposta. Os heróis stendhalianos, homens e mulheres, trazem-nos um sopro de energia, de coragem diante da adversidade e das circunstâncias, a sensação de que são seres à parte, com uma personalidade própria e atraente e a capacidade de viver intensamente. Dessa forma, Stendhal cumpre, de uma maneira que só pertence a ele, o papel de todo grande escritor: tornar a vida mais suportável, mais rica, mais empolgante para os seus leitores.

O sol estava forte. Saí do cemitério, perambulei por Montmartre, sentei-me ao ar livre em um café numa praça, tomei uma garrafa inteira de água mineral e um macchiato, fiquei vendo a vida passar. Pensei na amizade que os personagens de Stendhal têm me oferecido, ao longo dos anos, desde a adolescência. Teria bastado que ele morresse em 1812, na calamitosa campanha da Rússia de Napoleão, de que participou, para ficarmos sem suas obras e o reconforto que oferecem.

O sol começava a baixar. Mais tarde, eu iria ao teatro com amigos. Queria antes passar em uma livraria de que gosto, Les Cahiers de Colette. O tempo estava ficando curto. Paguei a água e o café, peguei um táxi e fui à livraria.

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Papai Noel e a amizade: Camus, Machado de Assis, Proust, Stendhal, Julien Sorel, Germânico…

Dos 6 aos 11 anos de idade, morei em Rhode-St.-Genèse. Nosso bairro era exclusivamente residencial, só com casas, sem edifícios; a rua era curta e uma das pontas desembocava em uma fazenda onde, no verão, vacas pastavam. Os invernos eram passados debaixo de neve, em um silêncio absoluto, quebrado pela madeira queimando na lareira e pela alegria com que meus irmãos e eu descíamos uma ladeira de trenó. Éramos livres e felizes. Nessas condições, como não acreditar em Papai Noel? E assim foi, até os meus 7 anos. Isso faz de mim um retardatário, segundo artigo publicado ontem em O Estado de São Paulo por Sérgio Augusto, onde ele supõe que a maioria das crianças perde essa ilusão até os 6 anos de idade.

Foi uma amiga residente em Paris, um ano mais velha, que, ao nos visitar na Bélgica, me fez a revelação. Fiquei incrédulo. Perguntei: “Mas, e os presentes? Como aparecem na árvore?” E veio a resposta, implacável: “São teus pais que colocam lá”. No Natal seguinte, meus irmãos e eu fizemos o teste: esperamos acordados e escondidos na sala e pegamos nossos pais em flagrante. Terá sido um choque? Em todo caso, sobrevivi para contar a estória.

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Acima, meus irmãos e eu saindo do Museu de Cera no campo de batalha de Waterloo. Tenho 7 anos, meu irmão 6, minha irmã fará 4 em dois meses. Atrás de mim, a amiga que logo me revelará a verdade sobre Papai Noel. Nós nos damos até hoje, as duas famílias são próximas. Possuo inúmeros amigos ainda dessa época.

O diálogo voltou à minha memória há poucos dias quando, por coincidência, abri pela primeira vez um livro de Paul Veyne pelo qual sempre tivera curiosidade, Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes? (traduzido no Brasil pela Editora UNESP com o título Os gregos acreditavam em seus mitos?). A primeiríssima frase é a seguinte indagação (a tradução é minha): “Como podemos acreditar pela metade ou acreditar em coisas contraditórias? As crianças acreditam ao mesmo tempo que Papai Noel traz os presentes pela chaminé e que esses mesmos presentes são colocados pelos seus pais; e então, será que acreditam realmente em Papai Noel? Sim”. 

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Papai Noel, a meu ver, é uma parábola da amizade perfeita. Na visão infantil, uma vez por ano, no momento mais mágico, que é o Natal e a celebração do fim de um ciclo de doze meses, aparece um velhinho boníssimo, que vem apenas para trazer presentes e nada nos pede, a não ser que nos comportemos bem. Como resquício da fantasia da infância, dezembro é o mês da amizade. É quando mais jantamos, almoçamos e confraternizamos com amigos e colegas. É quando mais estamos em paz com o mundo e procuramos eliminar rusgas surgidas durante o ano. É quando a vida parece mais cheia de promessa e quando se sente alegria no ar. Como nasci em janeiro, para mim o sentimento natalino se prolonga por várias semanas além do Ano Novo.

Em 1982, François Mitterrand discorreu sobre o tema da amizade em uma entrevista à revista Autrement intitulada “Les paroles et le silence”. Declara o Presidente que seus principais amigos são os antigos companheiros prisioneiros de guerra, o que faz sentido; perguntado sobre se a vida política não seria “un lieu maudit” para toda forma de amizade, Mitterrand declara – o que tomo com ceticismo – nunca ter sido traído ou abandonado por colegas ou companheiros, que nunca alguém próximo se afastou dele. Em francês: “Il n’y a personne dont je puisse dire :’Comment a-t-il pu me faire cela et se séparer de moi ?'”.

Ao mesmo tempo, Mitterrand afirma ser impossível formar, criar amizades verdadeiras na vida pública, onde haveria apenas alguns bons colegas: “Dans la vie politique, on ne se fait pas, on ne crée pas de véritables amitiés. On a quelques bons compagnons”. Nisso, a “esfinge” do Palais de l’Elysée lembra Cícero, que em seu Diálogo sobre a Amizade, declara: “Muito dificilmente encontraremos amigos verdadeiros entre os homens que se ocupam dos negócios públicos ou que procuram honras. Onde está o homem que prefere, à sua, a elevação de um amigo?”. Ainda que muito pertinente, a pergunta revela uma das contradições do texto de Cícero, no qual a argumentação é feita por Lélio, que usa como exemplo de amizade perfeita sua ligação com Cipião; ambos, porém, haviam sido homens públicos.

Esse não é o trecho que me interessa mais na entrevista de Mitterrand, que li anos após sua publicação, quando eu era muito jovem. Então como agora, parto do princípio, que considero salutar, de que todo mundo é meu amigo, até prova em contrário – algum cínico dirá que essa é uma maneira de seguir acreditando em Papai Noel.

A parte para mim mais estimulante das declarações de Mitterrand aparece no final, quando os entrevistadores perguntam ao Presidente se a amizade com figuras de ficção é possível. Descobre-se aí que ele – como eu – se identificava com personagens de Stendhal e com os de Guerra e Paz.

Stendhal foi um grande amigo da minha juventude. Ficava eu até de madrugada lendo seus livros, na mesma época, em Londres, em que idolatrava Beethoven. Quando ia a Paris, visitava seu túmulo no cemitério de Montmartre e nunca deixava de me impressionar com o epitáfio, escolhido por ele próprio: “Arrigo Beyle Milanese Scrisse Amò Visse”, Henri Beyle tendo sido o verdadeiro nome do escritor. O “Milanese” é uma declaração de amor à Itália, já que Stendhal nasceu em Grenoble. Quanto à frase: “escreveu, amou, viveu”, que mais belo resumo poderia haver de uma vida humana?

Quando viajei à Itália pela primeira vez, aos 20 anos, para passar dois meses em Florença estudando italiano, levei comigo para me preparar, além do Guide Michelin, três livros: o Dictionary of Subjects & Symbols in Art, de James Hall, a que já me referi ao escrever sobre o Museu de Arte Islâmica de Doha; o Viagem Italiana de Goethe, em uma tradução para o inglês; e o livro de contos e novelas de Stendhal extraídos ou inspirados de velhos manuscritos italianos, Chroniques italiennes, de que gosto mais hoje do que da primeira vez em que o li, em viagens de trem, nos fins de semana, por todo canto da Itália. Embora, na época, esse não fosse um livro de predileção para mim, parecia-me natural que Stendhal, o mais fervoroso admirador da Itália que já existiu, me servisse de guia sobre como entender os italianos. Até hoje, quando vou a Roma, gosto de andar pelo bairro onde moraram os Cenci, porque o drama vivido por essa família, e particularmente pela bela Beatrice, é o tema de uma das novelas na coletânea de Stendhal.

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Acima, os mesmíssimos três amigos que me acompanharam em minha primeira viagem à Itália, há tantos anos. A capa do livro de James Hall representa um quadro de Rubens, O Rapto das Filhas de Leucipo, que pode ser visto na Antiga Pinacoteca em Munique. O famoso quadro retratando Goethe na Campanha romana é de Johann Tischbein e fica pendurado no Städel Museum em Frankfurt. Existe uma cópia no Museu Goethe, na casa do escritor na mesma cidade, um dos lugares mais comoventes que conheço. A capa do livro de Stendhal, sensual mas não muito bonita artisticamente, é uma ilustração referente a uma das novelas, L’Abbesse de Castro. Poderia servir para representar uma das aventuras mais célebres nas Memórias de Casanova, seu romance com a freira M.M., personagem até hoje não identificada de forma definitiva. Na verdade, o erotismo ou a capacidade de amar de religiosas já fora tratado desde pelo menos o século XIV, com Boccaccio, e passara pelas Lettres de la religieuse portugaise, aparentemente uma ficção escrita por Guilleragues e publicada em 1669 e que Stendhal conhecia.

Na adolescência, meu romance predileto de Stendhal era La Chartreuse de Parme. Hoje, é Le Rouge et le Noir. Considero Julien Sorel um herói bem mais satisfatório para os nossos tempos do que Fabrice del Dongo. Ou talvez seja uma questão de idade. Um adolescente pode se sentir próximo de Fabrice, marquês nascido em berço de ouro mas que se permite ser idealista na juventude, gradualmente vai se tornando ambicioso e vive seu grande amor na prisão, supra-sumo do espírito romântico. Em minha mais recente releitura de La Chartreuse, Fabrice me pareceu insuportável de vacuidade e arrogância. Já Julien, de origem humilde e desde sempre movido pela ambição, vive dois grandes amores, é razoavelmente inescrupuloso mas, ao mesmo tempo, mostra-se romanesco, sedutor, capaz de afeição e curioso pela vida e põe tudo a perder quando parece prestes a chegar ao ápice do sucesso. A prisão o redime, tal qual um Raskolnikov avant la lettre, e terminamos a leitura do romance, quando adultos, admirando o personagem. Os contemporâneos de Stendhal foram severos com Julien, considerando-o o cúmulo da hipocrisia. Com a distância, vemos que seu arrivismo, intolerável para a sociedade burguesa do século XIX, explica a rejeição de que foi vítima naquela época, pelos críticos e pelo próprio universo do romance.

O julgamento e a execução de Julien Sorel antecipam os de Meursault em L’Étranger. O personagem de Albert Camus é tão vítima do preconceito despertado pela sua personalidade quanto o de Stendhal. Os dois aceitam o fim calmamente.

O célebre ator francês Gérard Philipe, morto em novembro de 1959 aos 37 anos, interpretou no cinema Fabrice em 1947 e Julien em 1954. Em 1945, ele se destacara criando o papel principal na peça Caligula, de Camus. Em 1954, tinha 32 anos e podia ser visto como um pouco velho para o papel de Julien, mas sua interpretação o consagrou, e na minha lembrança – tenho os dois filmes em casa – está mais convincente como o herói de Le Rouge et le Noir do que como Fabrice sete anos antes. Suponho que, para muitos franceses, até hoje, a percepção sobre os dois personagens de Stendhal seja transmitida pela atuação e pelo rosto de Gérard Philipe:

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Acima, o ator intermediando nossa apreensão sobre Julien Sorel, na companhia de Danielle Darrieux como madame de Rênal. Julien está aprendendo que, se dormir com a mulher de seu empregador pode ser uma boa forma de subir na vida, a atividade não é sem riscos. Eles se amam e ela será, por isso, no final do romance, depois de muitas e muitas aventuras, o meio para sua perda mas, também, para sua redenção. A caminho da guilhotina, Julien se comporta bem, nos informa Stendhal por meio de uma das mais belas frases da literatura, em qualquer idioma: “Tout se passa simplement, convenablement, et de sa part sans aucune affectation” (“Tudo transcorreu de forma simples e decorosa e, de sua parte, sem afetação alguma”). Nunca leio essa frase sem parar para meditar a respeito.

Se Stendhal foi um grande amigo na minha adolescência e juventude, outros escritores me acompanham em diferentes momentos. Tolstói tem sido um amigo na idade adulta e penso nele frequentemente. Henry James, em torno aos meus vinte e poucos anos, esteve sempre a meu lado. Hoje, raramente recorro a ele. Casanova é uma leitura frequente, desde que eu era adolescente; por seu intermédio, aprendi muito sobre o século XVIII. Racine, na primeira edição da Pléiade de suas peças, ficou anos sobre a minha mesa de cabeceira e eu nunca o abandonaria. O mesmo posso dizer de Saint-Simon – o memorialista, não o filósofo; ou melhor, o filósofo de Versalhes, e não o socialista. Shakespeare e outros dramaturgos elisabetanos e jacobitas estão sempre presentes.

Machado de Assis é um amigo caprichoso: some e reaparece. Anda sumido do meu cotidiano, mas começo a sentir saudades e é possível que uma nova fase de adoração machadiana esteja prestes a ter início. Machado e seu cunhado foram amigos de meu trisavô, Francisco José Corrêa Quintella, um homem aparentemente de bem com a vida, a quem o escritor dedicou um pequeno, leve e elegante poema:

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Por outro lado, o sobrinho predileto desse meu trisavô, o poeta e acadêmico Luís Murat, antagonizava o escritor e nessa qualidade aparece no livro de Josué Montello, Os Inimigos de Machado de Assis, nos capítulos “A agressão dentro da própria Academia” e “Luís Murat contra Machado de Assis”. Josué Montello – grande amigo de meu pai, que conheci pessoalmente e com quem eu teria gostado de discutir hoje estes assuntos – é severo com Luís Murat, atribuindo a um virulento artigo seu o suicídio de Raul Pompeia. Montello fala pouco sobre a oposição de Murat a Floriano Peixoto e seu papel, corajoso, na Revolta da Armada.

Tempos distantes, em que textos de um adversário podiam levar ao suicídio, refletindo o elevado poder da escrita. Conheço outro exemplo em que um autor se vangloriou de ter promovido uma morte, no caso a de Gabriel García Moreno, Presidente conservador e ultramontano do Equador, assassinado em 1875 ao sair de missa na Catedral. O escritor e polemista liberal Juan Montalvo, que vituperava contra García Moreno, proclamou, com orgulho: “Mi pluma lo mató”. Em termos estéticos, a frase é sublime. García Moreno dá nome a uma rua em São Conrado, em frente da qual passo cotidianamente, quando estou no Rio, e me surpreendo sempre de que um dos Presidentes mais controvertidos do Equador tenha recebido essa homenagem dos cariocas. Inversamente, textos de Cícero, que se julgava especialista em amizade, causaram sua própria morte, a mando de Marco Antônio, que se sentira por eles ofendido, e com a conivência daquele que logo se faria chamar de Augusto.

Para os leitores sedentos por bastidores de brigas entre escritores, recomendo este livro, que focaliza o meio literário francês, do século XIX ao início do século XX:

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A originalidade dos livros de Josué Montello e de Anne Boquel e Étienne Kern está no fato de que, em geral, é mais fácil encontrarmos publicações reveladoras de amizade – e não inimizade – entre escritores. Apesar das rivalidades entre artistas, é bem mais prazeroso ler sobre o bom entendimento entre eles. São inúmeras as coletâneas de cartas entre literatos. Acaba de chegar às minhas mãos, por exemplo, a correspondência entre Albert Camus e o poeta René Char, publicada em 2007:

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A primeira frase do prefácio, assinado por Franck Planeille, indaga se artistas podem ser amigos fraternais: “La fraternité est-elle possible entre les créateurs?” Lendo as cartas de Camus e Char, vemos que a resposta é afirmativa. A amizade entre os dois terminou com a morte de Camus aos 46 anos, em 4 de janeiro de 1960, dois anos depois de receber o Prêmio Nobel de Literatura. Eles haviam se visto poucos dias antes, pois a casa de campo de Camus na Provence, de onde ele voltava de carro ao morrer, era relativamente perto da de Char. O livro não é espesso, porque os dois se viam constantemente e, inclusive, moraram no mesmo prédio em Paris. Não havia necessidade de uma troca epistolar constante. As primeiras cartas mútuas, em março de 1946, começam com o formal “Cher monsieur”. Em 1947, elas são iniciadas com “Cher Albert Camus” e “Cher René Char”. Em 1948, chegamos ao “Mon cher ami” mútuo. Em 1949, temos “Mon cher Albert” e “Mon cher René”, fórmula mantida até o final. Muito rapidamente, as cartas passam a terminar com “fraternellement”, “affectueusement” e mesmo “À vous, de tout coeur” (carta de Camus de 1954). A última de Char, em dezembro de 1959, portanto poucos dias antes da morte de seu interlocutor, termina com “De tout coeur à vous toujours”, o que é um pouco triste, à luz do que aconteceria poucos dias depois.

Esse “vous” é justamente o lado mais intrigante da correspondência entre os dois. Apesar da intimidade, nunca passaram, ao menos por escrito, ao mais familiar “tu”. Cada um apoiava a atividade intelectual do outro e prestava apoio emocional. Em janeiro de 1954, Camus estava retraído, cuidando da mulher, vítima de depressão. Escreve a Char (as traduções são minhas): “Que sorte tê-lo conhecido há já tantos anos e que a amizade tenha entre nós tomado esta força que transpõe a ausência”. Char responde: “Você deve saber que sou seu amigo, seu parceiro, que você pode recorrer a mim a qualquer momento, que deve fazê-lo. Estar ligados no invisível não é suficiente” (“être liés dans l’invisible n’est pas suffisant”).

René Char parece ter tido o dom da amizade. Li cartas suas a outros correspondentes onde o tom era igualmente afetuoso. Com eles, utilizava o “tu”. A opção pela manutenção do pronome formal terá sido de Camus? A correspondência entre os dois lembra a de Flaubert e Turgueniev, onde a afeição e a admiração profissional também são fortes, ao contrário da relação conturbada entre Turgueniev e Dostoiévski.

Meu amigo literário mais constante é Proust. Como já tive ocasião de mencionar neste blog, comecei a lê-lo aos 11 anos de idade e nunca mais parei. Proust, nesse sentido, é o meu amigo, no campo das letras, mais antigo e a quem mais sou fiel. Ler a seu respeito é outro prazer constante. A bibliografia sobre Proust é tão extensa que virou uma indústria por si. Possuo uma prateleira inteira de livros sobre sua vida e sua obra, inclusive um intitulado Proust et ses amis, editado por Jean-Yves Tadié, seu biógrafo:

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Qual dos volumes de À la recherche du temps perdu e que personagens eu prefiro? Depende do momento ou das circunstâncias. Para os leitores mais jovens, Un amour de Swann e os volumes onde os Guermantes têm presença marcante são irresistíveis. Para os leitores mais maduros, os últimos tomos surpreendem ao trazer novas percepções sobre a psicologia dos personagens, que já pensávamos conhecer bem. A amizade – e as alegrias ou decepções que pode causar – é aliás um dos temas do romance.  Basta citar como exemplo a interação do Narrador com Saint-Loup, às vezes descrita pelo primeiro como verdadeira amizade (uma noite em que jantam juntos é classificada pelo Narrador como “le soir de l’amitié”), às vezes mencionada por ele como uma relação superficial (“…embora eu não acreditasse na amizade e nem que tivesse jamais sentido amizade verdadeira por Robert…”). Ao leitor de Proust, não resta dúvida sobre a afeição entre os dois personagens. A oscilação do Narrador sobre como julgar a amizade parece ter sido característica do próprio Proust, que podia ser um excelente amigo mas para quem, de maneira geral, a interação social era um impedimento para que o artista trabalhasse, criasse. Segundo Tadié, “seu livro é seu único amigo, do qual, de nosso lado, nós nos tornamos, no mundo inteiro, os amigos”.

Proust parece ainda mais nosso íntimo, pelo fato de que até a reconstituição de seu quarto podemos visitar, no Musée Carnavalet em Paris, assim como podemos visitar a casa de Tolstói em Moscou:

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Ou pelo menos, podíamos até recentemente, pois o Museu Carnavalet está fechado para obras e voltará a abrir somente no final de 2019. Tirei a foto acima em 2014.

Resumamos os vários círculos possíveis de amizades literárias descartando, neste comentário, a proximidade sempre possível, nos planos real ou virtual, com autores vivos.

Primeiro, escritores mortos, pelo grau de identificação que sentimos com sua vida ou sua obra ou sua personalidade, podem ser nossos amigos. Alguns serão amigos passageiros, outro durarão para sempre. Podemos ler seus textos e formar bibliotecas de análises sobre sua obra. Podemos conhecê-los melhor, talvez, do que nossos amigos do dia-a-dia.

Segundo, formamos amizade com livros específicos. Há aqui dois graus possíveis: de um lado a obra em si, o texto inserido dentro da capa e da contracapa; de outro, o exemplar específico que possuímos e que passa a fazer parte de nossa vida. Hoje, gosto da obra de Stendhal intitulada Chroniques italiennes, mas gosto também do volume que circulou comigo pela Itália. É reconfortante, pensar que ele me acompanhou em minhas viagens de trem e conheceu meus quartos de hotel em Roma, Veneza, Florença, Perugia, Milão e tantos outros lugares, voltou para Londres e, depois, me seguiu a outros países e continua aqui, na minha estante; posso segurá-lo e meditar sobre o tempo, sobre o passado, sobre o presente. As páginas ficaram amareladas mas o volume está em bom estado. Estamos envelhecendo juntos e não há dúvida de que ele durará mais do que eu.

Em terceiro lugar, há a amizade com personagens de ficção. Fui muito amigo de Fabrice del Dongo até os 30 anos. Hoje, descartei essa amizade. Cresci e Fabrice tem agora pouco a me dizer. Já sua tia e admiradora, a duquesa Sanseverina, é hoje uma cúmplice, um caso amoroso em potencial, e justifica minhas releituras de La Chartreuse de Parme. Andrei Bolkonsky e Pierre Bezukov – os quais, como expliquei em meus comentários sobre a versão da BBC para Guerra e Paz, podem ser vistos como duas facetas do mesmo homem – são indubitavelmente meus amigos e continuarão a sê-lo. Os personagens de Dostoiévski às vezes nos parecem estranhamente familiares, mas posso pensar em apenas um de quem eu gostaria de ser amigo. Quando li O Idiota estive certo de que o Príncipe Míchkin – outro papel de Gérard Philipe no cinema, em versão que nunca vi – precisava de alguém como eu como confidente.

Em La Orgia Perpetua, seu estudo sobre Flaubert e Madame Bovary, Mario Vargas Llosa  escreve: “Un puñado de personajes literarios han marcado mi vida de manera más durable  que buena parte de los seres de carne y hueso que he conocido”. Cita como exemplos de amigos literários seus, entre outros, David Copperfield – e Dickens possui o talento, de fato, de compor caracterizações inesquecíveis; David Copperfield é, de muitas formas, o amigo ideal e tenho a sorte de conhecer alguém como ele na vida real – D’Artagnan, outro amigo da minha juventude e… Fabrice del Dongo.

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Em quarto lugar, figuras históricas, com o tempo, se tornam acessíveis a nós de forma subjetiva, como se fossem personagens de ficção. Já tive ocasião de mencionar neste blog meu interesse constante, desde a infância, por Napoleão, despertado pelo fato de que Rhode-St.-Genèse é uma localidade perto de Waterloo e de que visitei inúmeras vezes, ao longo da vida, o campo de batalha, seu panorama, o museu de cera e a livraria cobrindo todo tipo de tema ligado à era napoleônica e subi os 226 degraus do morro do famoso Leão. Seria demais dizer que me considero amigo de Napoleão, inclusive porque não há dúvida sobre seu caráter autoritário e egoísta. Quem quereria ser seu amigo? O fato, porém, é que de tanto ler sobre ele chego a conhecê-lo melhor, em suas várias facetas, do que a muitas pessoas do meu entorno. Uma das minhas aquisições na Livraria Berinjela, este ano, como visto anteriormente, é um exemplar da biografia de Napoleão pelo historiador Jacques Bainville. Esse livro, em geral, é considerado crítico do biografado; pessoalmente, achei-o elogioso. De toda forma, o que li não é uma narrativa imparcial sobre Napoleão, mas sua história e sua personalidade como vistas por Bainville. Fabrice del Dongo, Julien Sorel e o próprio Stendhal eram todos admiradores do Imperador e estão, também, entre os intermediários possíveis para nossa percepção desse homem.

Um exemplo gritante do quanto só podemos ter uma visão “gerenciada”, quase ficcional de personagens históricos são os membros da dinastia julio-claudiana. O que sabemos deles nos chegou, sobretudo, por intermédio de Tácito e Suetônio. Um de meus heróis é Germânico, em quem penso com frequência. Será o pai de Calígula e Agripina e avô de Nero, contudo, o príncipe perfeito, digno de adoração descrito por Tácito? Não seria intenção do historiador romano que seus leitores se afeiçoassem a Germânico, transformado, assim, em personagem de ficção? Há debates entre os estudiosos sobre as motivações de Tácito, mas eu não tenho dúvida de que seu texto foi construído de forma a manipular o leitor favoravelmente. Germânico certamente ganha, na forma como o historiador o apresenta, na comparação com os demais membros da dinastia. Ao morrer antes de reinar, foi-se sem que sua real capacidade tenha sido colocada à prova. Em 2014, fotografei no Louvre – e os museus, a propósito, também podem fazer parte da nossa vida, como ilustra Alexander Sokurov em  Francofonia – o busto do príncipe-herói, para sempre destinado a ter amigos, mesmo 2.000 anos após sua morte, pois assim pretendeu Tácito, que o transformou em um personagem da literatura de mais relevância do que ele tem, hoje, como figura histórica:

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Em quinto lugar, livros e amigos literários podem contribuir a desenvolver relações com pessoas no mundo “real”. Em minha crítica a O Plano de Maggie, mencionei que esse era um filme para “o público que acredita serem os livros objetos – seres? – lúdicos e que avalia terem eles o poder de criar vínculo entre as pessoas”. Os nomes que atribuo a alguns personagens deste blog, como: o amigo leitor de Prousto amigo leitor de Morgenthau, o casal que me deu de presente a edição fac-similar do Alguma Poesia do Drummond mostram que livros e referências bibliográficas são uma boa forma – embora longe de ser a única – de estabelecer diálogo comigo. Postagens surgem porque amigos me deram livros de presente, como foi o caso do Gitanjali de Tagore. Gosto quando alguém me pede livros emprestados, pois essa é uma forma de compartilhar uma visão de mundo.

É possível que a amizade com obras literárias, personagens, escritores já mortos seja uma forma avançada da crença em Papai Noel. Assim como o bom velhinho vinha, eu estava certo, depositar presentes debaixo da árvore, salvarei com meus conselhos Julien Sorel da guilhotina, aprenderei com Gina Sanseverina a sobreviver a intrigas políticas, impedirei Swann de se casar com Odette de Crécy, assimilarei o carisma de Germânico, explicarei ao príncipe Andrei que ele deve perdoar Natasha – algo que nem Pierre Bezukov conseguiu – e direi a Camus que ele não deve entrar no carro de Michel Gallimard e encontrar a morte na estrada; bem melhor voltar a Paris de trem, como planejado, com René Char.

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