Monet em Kuala Lumpur

Monet em Kuala Lumpur

Existe no Rio de Janeiro, em Ipanema, na rua Francisco Otaviano, um edifício chamado “Monet Manet”. Junta-se a numerosos irmãos seus que, por todo o Brasil, homenageiam pintores, acredito que sobretudo franceses. Tomemos como exemplo Henri Matisse, a quem devoto grande admiração. Se eu decidir que só posso ser feliz se morar em um prédio com seu nome, terei escolhas disponíveis em numerosas cidades brasileiras, como mostra esta lista não exaustiva: São Luís, Guarapari, Passo Fundo, Fortaleza, Maringá, Ribeirão Preto, Taguatinga, João Pessoa, Mogi das Cruzes, Araguaína, Cuiabá, Belo Horizonte. Em São Paulo, encontrei ao menos dois: no Itaim Bibi e em Indianápolis. No Rio de Janeiro, três: no Méier, no Leblon e no Recreio dos Bandeirantes.

O patriotismo, contudo, está salvo. Os “Portinari” e os “Di Cavalcanti” estão presentes em toda parte no Brasil.

No campo da literatura, noto alguns “Stendhal”.  Quanto a “Marcel Proust”, somente em Ipanema há dois, um na rua onde hoje mora minha mãe, a avenida Rainha Elizabeth, e o outro ali perto, na rua Alberto de Campos. O nome de Proust é considerado enobrecedor, é um conceito de sofisticação intelectual, e não devemos pensar que aqueles que batizaram os dois prédios necessariamente leram o autor. Queriam, é de se imaginar, transmitir alguma ideia de elegância. Felizmente, a bandeira nacional é salva uma vez mais, e constato que “Machado de Assis” é corriqueiro em prédios por todo o Brasil, por exemplo na Avenida Atlântica.

Muito poderia ser escrito sobre os nomes de edifícios residenciais do Rio. O assunto mereceria um tratado de sociologia. É impressionante a quantidade de títulos nobiliárquicos em fachadas. Quem é, por exemplo, a “Princesa Myriam” em um prédio na Lagoa, frente ao qual passo sempre quando estou no Rio? A filha do construtor, talvez? Ou a personagem de algum filme da década de 1970, hoje obscuro? Não é, em si, um nome feio. Possui sabor exótico, com sua referência incompreensível. Por que existe, em São Paulo, um edifício chamado “Conde Versalhes”? Não “Conde de Versalhes” — e nunca viveu ninguém que detivesse esse título — mas “Conde Versalhes”. Já no Leblon, como se o bairro já não fosse percebido como chique e caro o suficiente, pode-se morar no “Conde de Versailles”. Por que essa obsessão em inventar um título de nobreza francês inexistente? Como se não tivéssemos tido marqueses e barões suficientes no Brasil. Mas Versalhes é um conceito que fala por si, e tudo o que diga respeito ao palácio só pode ser imaginado como elegante e cobiçável.

Prefiro quando os nomes atribuídos são de origem indígena. Pelo menos, fazem algum sentido. Meu pai, quando morreu, morava há muitos anos no “Marapendi”, na rua Bulhões de Carvalho. Vejo que, em tupi, isso significa “rio do mar raso”. É bonito; é brasileiro.

“Monet Manet”, decididamente, não é brasileiro. É, pelo menos, artístico, e possui um valor universal. Quando vejo o prédio, porém, sempre me pergunto: “por que os dois?”. Teria bastado um. Fico com a sensação de que houve hesitação da parte de quem escolheu o nome. Não terá sabido definir qual dos dois pintores preferia, ou qual deles é mais acertado preferir. “Monet Manet”, embora estranho, é eufônico. Há nele uma simetria, algo a que nunca resisto. Dois artistas franceses, mais ou menos contemporâneos, ambos com sobrenome de cinco letras, onde apenas uma vogal é diferente. Eu teria preferido que Manet viesse na frente porque, ao seguir a ordem alfabética, o nome “Manet Monet” teria demonstrado um certo rigor mental.

Pesquisando, descubro que tanto Édouard Manet quanto Claude Monet são razoavelmente populares no Brasil. Em várias cidades, há prédios com seus nomes, em diferentes combinações. A denominação “Jardins de Monet” é relativamente comum, ao menos em cidades paulistas. É poética, mas me entristece. Joga no meu rosto que eu nunca fui a Giverny. Várias vezes planejei conhecer o… jardim de Monet, mas o temor de encontrar lá multidões sempre me fez desistir.

O edifício da Francisco Otaviano não é o único a misturar nomes de pintores. Se você é belo-horizontino, pode morar no “Van Gogh e Manet”, no bairro São José. Se for de Niterói, há a opção do “Monet e Renoir”, em Icaraí. Pode-se inverter os nomes também, e se você quiser dar primazia a Renoir, contei três “Renoir e Monet” na cidade de São Paulo. Renoir parece ser extremamente popular. Em todo o Brasil, de Norte a Sul, de Oeste a Leste, são inúmeras as homenagens a ele. Quem decidir, por alguma razão insana, conhecer todos os prédios brasileiros ostentando seu nome passará a vida nisso.

É porém o “Monet Manet” em Ipanema que me interessa mais, porque a Francisco Otaviano é rua de passagem e são já muitos anos vendo esse nome, quando passo por ali. Manet, desde o final da adolescência, exerce forte poder de atração sobre mim. Nos museus, procuro insistentemente por suas telas. Meu interesse por Monet começou alguns anos mais tarde e cresceu gradualmente. Em 2018, fui ao Musée de l´Orangerie visitar uma exposição sobre como os seus quadros de nenúfares, os Nymphéas, influenciaram o abstracionismo americano. Em parte, quis ir à exposição porque um dos artistas expostos era Joan Mitchell, morta em 1992, sobre cuja obra um amigo, o pintor americano Jeff Kowatch, me falara em Bruxelas poucos dias antes.

Há muitos anos eu não visitava o museu. Mais do que os quadros dos artistas americanos, o que me impressionou na exposição foram as grandes telas de Monet, parte da coleção permanente, que residem nas duas salas ovais. Fiquei frente a elas até a Orangerie fechar.

Desde minha chegada a Kuala Lumpur, em janeiro de 2020, entendi melhor outra série do pintor, as representações da catedral de Rouen. De 1892 a 1894, Monet retratou a fachada da catedral cerca de 30 vezes, estudando como o horário, o clima, a época do ano modificavam a luz que caía sobre ela e as diferenças que isso criava para sua representação. Até eu viver na Malásia, a série da catedral não me interessava particularmente. Via aquilo como um exercício repetitivo. Há muitos anos, estive em Rouen, e lá mal pensei no artista. Minha curiosidade principal era ver a praça onde, em 1431, Jeanne d´Arc foi queimada viva aos 19 anos. Ela é para mim, desde sempre, uma das figuras históricas mais misteriosas e intrigantes, e ao mesmo tempo admiráveis.

Para entender a razão pela qual passei, em Kuala Lumpur, a apreciar a relação de Monet com a catedral de Rouen, é preciso saber as circunstâncias em que a pandemia me faz viver na Malásia.

Às vezes, amigos no Brasil me perguntam se eu tenho podido viajar. A resposta é negativa.  As fronteiras da Malásia estão fechadas desde março de 2020. Obviamente, não é uma prisão. Eu poderia ir ao exterior. Teria porém de fazer quarentena ao voltar, e provavelmente no meu local de destino também. Em Singapura, que seria minha prioridade, eu teria de cumprir a quarentena sozinho em um hotel, não na casa da minha mulher; para quem vem da Malásia, a quarentena exigida lá é, no momento, de duas semanas.

Seriam várias as providências burocráticas para conseguir sair e entrar de volta, aonde quer que eu fosse. Os testes de Covid necessários, para partir e regressar, teriam de ser feitos dentro de uma janela precisa de dois ou três dias, e o resultado teria de estar já disponível antes do embarque. Viajar ao exterior é hoje, portanto, se não uma impossibilidade absoluta, ao menos uma gigantesca amolação. Por isso, há quase um ano e meio não atravesso as fronteiras terrestres, marítimas ou aéreas da Malásia.

Para a circulação dentro do país, as regras variam de acordo com a situação sanitária vigente. Sair da capital é proibido desde janeiro, a não ser por razões imprescindíveis de saúde ou trabalho. Não durmo fora de Kuala Lumpur desde setembro do ano passado, quando passei uns poucos dias de férias na praia em Terengganu, experiência que narrei em minha IV Carta da Malásia, A Viagem a Balbec.

Duas vezes, estive em Malaca desde então, apenas para passar o dia. Na primeira, fiz uma visita oficial ao governador, em que ele me narrou a perda econômica sofrida por seu estado com a ausência dos turistas estrangeiros e a redução do turismo interno. Na segunda, no começo de janeiro, antes de entrar em vigor a proibição de viagens para quem mora em Kuala Lumpur, mostrei Malaca à minha mulher, quando ela veio passar a virada do ano.

Há três meses, a capital está em confinamento total. É a segunda vez desde o ano passado. Minha última ida a um restaurante foi em maio. Não entro em um cinema desde fevereiro de 2020. Vigoram severas restrições à vida social, e desde maio não posso visitar amigos ou recebê-los em casa.

Para mim, nada disso é problemático. É o resultado da pandemia. É a vida de hoje. Aceito-a bem; e procuro sobreviver para poder, no futuro talvez próximo, presenciar dias de mais aventuras. Evito pensar no fato de que não vejo a minha filha desde o final de 2019 e que, no último ano e meio, vi a minha mulher apenas uma vez.

Meu cotidiano é limitado ao escritório e ao supermercado. Desde 1º de junho, nenhum outro estabelecimento comercial pode abrir. Nem mesmo as livrarias; nem mesmo a barbearia. Meu lazer, portanto, tem sido necessariamente passado em casa.

Moro no vigésimo andar de um edifício que olha para o parque desenhado por Roberto Burle Marx. Na diagonal, do outro lado do parque, estão as Torres Petronas, símbolo de Kuala Lumpur. Como Monet com a catedral de Rouen, admiro as torres gêmeas sob diferentes condições de meteorologia, em momentos diversos do dia e da noite. Com sol. Com chuva. Com vento. Com muita luz. Na penumbra. Só não posso examiná-las com neve e frio, porque em Kuala Lumpur todo dia é um dia de verão.

Em 2020, publiquei um texto, Proust e as Petronas, evocando como, uma vez, voltando a Kuala Lumpur, de dentro do táxi na autoestrada vi, de longe, isoladas, as duas torres. As Petronas, então, me fizeram pensar em Proust e na sua descrição do campanário da igreja de Combray em Du côté de chez Swann, quando o narrador o vê do trem. Essa imagem é associada à minha primeira visão, criança, da catedral de Chartres, percebida da estrada, à distância.

Percebi nesse dia como as Petronas haviam crescido dentro de mim. Antes de chegar à Malásia, eu não compreendia a fama das torres. Em fotografia, elas parecem menos impactantes do que ao vivo. Agora que elas se tornaram parte da minha paisagem cotidiana, eu não me canso de olhar para elas. Dependendo da luz, determinados detalhes de sua arquitetura se destacam ou ficam imperceptíveis. É raro eu passar mais do que três ou quatro dias sem fotografá-las.

Em julho, publiquei um álbum de fotografias, As torres mágicas, apenas para poder compartilhar imagens das Petronas. Selecionando 16 representações diferentes, notei como as torres gêmeas mudam de aparência, dependendo do momento, do clima e da luz.

Em um sábado à tarde, em maio, contornando a pé o parque para ir ao supermercado, fui surpreendido por uma chuva fortíssima, acompanhada de trovoadas. O céu escureceu. Abriguei-me sob um toldo. As Petronas estavam frente a mim, no final do caminho para pedestres que me restava fazer até o centro comercial embaixo delas, onde fica o supermercado. Forneciam, por trás da chuva, iluminadas, uma visão impressionante de imponência, fantasmagoria e beleza. Eu nunca as vira assim. Entendi então a motivação de Monet diante da fachada sempre em mutação da catedral de Rouen.

Sozinho sob aquele toldo, sem nenhuma outra pessoa à vista, eu estava recebendo uma experiência que seria para sempre apenas minha. Ninguém mais veria as torres, naquele momento, com aquela chuva forte, e aquela iluminação. Outras tardes viriam, outro aguaceiro; outras pessoas passariam por ali e veriam as Petronas filtradas por uma parede de água. Nunca mais, porém, o céu encoberto revelaria as torres daquela mesma maneira, com aquela mesma tonalidade, com a chuva caindo naquele ângulo, com o parque e o caminho tão vazios como naquela hora.

Dentro de mim, começava a surgir o sentimento de gratidão e felicidade.  As torres se transformavam, de segundo em segundo, em uma visão cada vez mais bela. Era algo magnífico que aquele cenário fosse montado apenas para um espectador.

A solidão natural ao ser humano, colocada em evidência pelo isolamento social da pandemia, pareceu-me, ali, não mais motivo de tristeza, mas de contentamento. O belíssimo espetáculo a que eu assistia era exclusivamente para mim. Não haveria replicação para outro indivíduo. O teatro diante de meus olhos ilustrava, de uma forma aceitável, prazerosa, a realidade — que em outras circunstâncias pode ser desagradável — da incomunicabilidade de cada vida.

Passados alguns minutos, minha percepção mudou. Decidi que não era necessário receber sozinho aquela sensação. A solidão e o isolamento não precisavam ser absolutos.

Tirei o celular do bolso. Focalizei as torres. Bati a foto. Meio-minuto depois, ela estava nas minhas redes sociais.

Abandonando o toldo, caminhei em direção às Petronas, sob a chuva talvez já não tão forte. Enquanto eu andava, lembrei de Monet e de suas dezenas de representações da catedral de Rouen. Comecei a idealizar o que viria a ser uma simples postagem na minha página pessoal, As torres mágicas.

Pois mágicas é o que elas verdadeiramente são. Ano passado, elas me revelaram o quanto a obra de Proust faz parte, desde sempre, da minha vida. No recente sábado de temporal, elas incrementaram o poder de sua magia.  Permitiram-me entender Monet. Aproximaram-me espiritualmente do pintor.

Sem que eu tenha talento algum para as artes plásticas, sem que eu saiba sequer desenhar, as Petronas conseguiram fazer de mim o Monet de Kuala Lumpur.

Esta Carta da Malásia, a XI, foi publicada primeiro na revista de ideias Estado da Arte, em 17 de julho

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Joël Dicker e seu Enigma

Joël Dicker e seu Enigma

Poucas leituras me ajudaram tanto a enfrentar a pandemia como o romance mais recente de Joël Dicker, L’Énigme de la chambre 622, agora disponível no Brasil graças à editora Intrínseca, em tradução de Carolina Selvatici e Dorothée de Bruchard. O livro veio na hora certa, em 2020, para distanciar meus pensamentos do novo coronavírus.  

Tenho dificuldade em entender algumas críticas que foram dirigidas ao romance de Dicker, segundo as quais a história é inverossímil e a leitura excessivamente fácil. De fato, eu mesmo devorei com avidez as 574 páginas da edição francesa. Sem dúvida, O Enigma do Quarto 622 é considerado mais leve do que o livro que lançou a carreira internacional de Dicker, La Vérité sur l´affaire Harry Quebert. No entanto, do livro de 2012 não guardo lembrança alguma. É como se eu não o tivesse lido. O livro de 2020, que me deu talvez os únicos momentos de escapismo diante da realidade criada pelo novo coronavírus, permanecerá na minha imaginação por muito tempo.     

A cronologia não é linear, e há mais de uma história no enredo. Há primeiro o momento atual, 2018, em que o narrador, um escritor chamado Joël Dicker, que devemos considerar um personagem fictício inspirado no autor real, está enlutado pela morte, poucos meses antes, aos 91 anos, de seu amigo e editor, Bernard de Fallois, a quem o livro é dedicado.

Personalidade de peso no mundo das letras na França, Fallois em 1987 criou sua própria editora, após trabalhar na Gallimard, na Hachette e na Presses de la Cité, de que foi diretor-geral. Era um estudioso de Proust, sobre cuja obra escreveu e de quem possuía páginas manuscritas inéditas. Ao se tornar editor de Joël Dicker em 2012, modificou a vida do escritor suíço, então com 27 anos. Já na primeira página do capítulo I de L’Énigme de la chambre 622, Dicker nos diz (as traduções são minhas): “Bernard de Fallois era o homem a quem eu tudo devia. Meu sucesso e minha notoriedade vieram graças a ele. Chamavam-me escritor, graças a ele. Liam-me, graças a ele”. “Editor, amigo e mestre”, como diz a dedicatória do novo romance de Dicker, Bernard de Fallois aparece como figura tutelar do texto, pois somos informados de que tudo o que vamos ler decorre da tentativa do autor de escrever um livro sobre ele.

Sentindo-se pouco valorizada, porque o narrador se dedica em tempo integral ao livro, sua namorada e vizinha o abandona. Como reação, Joël Dicker, o personagem do romance do escritor suíço de mesmo nome, decide sair de Genebra e espairecer em um hotel de luxo na aldeia e estação de esqui de Verbier.

Lá, ele conhece uma inglesa, Scarlett Leonas. Como tantos elementos do livro, o nome é uma homenagem adicional a Bernard de Fallois, pois mais adiante somos informados de que Gone with the Wind era “le roman préféré de Bernard”. Escolher Margaret Mitchell como autor predileto é uma opção curiosa para um editor francês especialista em Proust e amigo, entre outros escritores do século XX, de Marguerite Yourcenar.

Provavelmente, há exagero na frase de Dicker, e seu livro de qualquer forma não é uma biografia de Bernard de Fallois, mas uma homenagem. O apreço por Gone with the Wind parece ter tido início quando, fugindo de automóvel com a família durante a Segunda Guerra Mundial, o futuro editor, então adolescente, isolara-se emocionalmente do perigo de um iminente bombardeio aéreo mergulhando na leitura do livro no banco traseiro do carro. Preocupava-o mais o destino de Scarlett O´Hara do que o seu próprio. Queria terminar E o Vento Levou, pois não desejava morrer sem saber o final.

O jovem Fallois pode ter se refugiado nas aventuras de Scarlett O’Hara, mas o nome do editor é ligado ao de Marcel Proust. Foi Fallois quem descobriu e editou pela primeira vez, na década de 1950, os manuscritos de Jean Santeuil e de Contre Sainte-Beuve. Após sua morte, em 2018, descobriu-se que ele guardara, durante décadas, outros manuscritos proustianos. Alguns foram publicados em 2019, pela sua editora, com o título de Le Mystérieux Correspondant et autres nouvelles inédites. Agora em março, a Gallimard publicará Les Soixante-quinze feuillets, páginas escritas por Proust aparentemente em 1908, precursoras de À la recherche du temps perdu.

Só se sabia da existência desse texto por uma breve referência, antiga, do próprio Bernard de Fallois. Pensava-se que estivesse extraviado: “dessas folhas, atualmente desaparecidas, Fallois publicou dois trechos”, dizia Jean-Yves Tadié, em 1996, em sua biografia de Proust. A descoberta do texto nos arquivos deixados pelo editor é, nos diz a Gallimard em sua página eletrônica, “un coup de tonnerre”. A edição ficou a cargo de Nathalie Mauriac Dyer, acadêmica, sobrinha-bisneta de Proust — e neta de François Mauriac; pode haver dinastias literárias, como há as da realeza — com prefácio de Jean-Yves Tadié. No aparecimento repentino desses manuscritos nos arquivos deixados por Bernard de Fallois, sem que ele os tivesse publicado, há um mistério digno do enigma no livro de Joël Dicker, ainda que menos sanguinolento.

Em Verbier, Joël, o escritor-narrador, e Scarlett logo descobrem que, alguns anos antes, um assassinato fora cometido no hotel onde se hospedam. Decidem investigá-lo.

A partir daí, há ao menos três enredos que se desenvolvem simultaneamente, mas em momentos diferentes. Há a história da amizade entre o verdadeiro Joël Dicker e Bernard de Fallois; há a relação, fictícia, entre o personagem Joël Dicker e Scarlett Leonas e a busca dos dois por mais detalhes sobre o crime ocorrido anos antes; e há o romance propriamente dito, objeto do volume que temos nas mãos, O Enigma do Quarto 622, que relata os eventos em torno do crime. A cronologia vai e vem, em diferentes tempos, pois mesmo a narrativa sobre o assassinato, que já aconteceu há alguns anos, requer frequentes voltas a um passado anterior a ele, para explicar o histórico e as motivações dos personagens envolvidos nessa trama.

As cenas entre Dicker e Fallois, devemos supor, aconteceram de fato e possuem valor documental. Servem como testemunho sobre como era e como trabalhava um editor francês importante. São tocantes. Ninguém pode acusar Joël Dicker de ser ingrato. L´Énigme de la chambre 622 é, em grande parte, uma celebração dessa amizade. Vejam esta frase sobre o falecido editor: “Na floresta dos seres humanos, ele era uma árvore mais bela, mais forte, maior. Uma essência única, que não crescerá novamente”. Dicker nos conta como Bernard de Fallois sentiu o potencial de La Vérité sur l´Affaire Harry Quebert, que se tornou sucesso mundial e vendeu “milhões de exemplares em quarenta idiomas”.

Já a relação entre o personagem Joël Dicker e Scarlett Leonas serve a dois propósitos: permitir diálogos onde é descrita a amizade do escritor com seu editor, e introduzir o enredo principal, ligado ao assassinato no hotel em Verbier. Em sua investigação como detetives amadores, Joël e Scarlett interagem com os próprios personagens ligados ao crime.  

Só no final descobrimos quem é o assassino e, na verdade, quem foi assassinado. Alguns críticos e muitos leitores consideraram a história excessivamente rocambolesca. Esse não foi meu caso. Ou melhor, achei que o poder de atração do livro reside precisamente nos seus aspectos rocambolescos.

São muitos os personagens. Os principais são um herdeiro de banco em Genebra, Macaire, sua mulher, Anastasia, e o amante dela, Lev, brilhante jovem banqueiro, diretor na empresa familiar de Macaire. Mesmo para herói de romance, Lev é irreal de tão cintilante. Fala dez línguas, possui “une beauté insolente”, cativa todas as mulheres, tem uma personalidade segura e bem-humorada, é bom filho, gênio das finanças e conselheiro do presidente da França e de organismos multilaterais em Genebra. O próprio texto admite que ele é irritante de tão perfeito (“agaçant de perfection”). Alguns leitores, de fato, poderão antipatizar com ele. Para mim, ele se tornou um amigo, como podem ser nossos amigos os personagens de quem gostamos. Suas aventuras — e elas são muitas e variadas; Dicker não coibiu a imaginação enquanto escrevia — me prenderam em casa, durante um fim de semana prolongado. Lamentei chegar às últimas páginas e ter de abandonar os personagens, mesmo os menos agradáveis.  

São muitos os acenos prestados por Dicker a outros escritores. Basta dizer que o motorista de Lev se chama Alfred Agostinelli, o que, para um admirador de Proust, soa francamente ridículo, de tão transparente. A escolha do nome terá sido mais uma homenagem a Bernard de Fallois, por meio de seu apego a Proust.

O novo romance de Dicker é uma mistura, a meu ver bem-sucedida, de vários subgêneros literários: livro policial, livro de aventuras, livro de espionagem, comédia picaresca e também uma história de amor intenso e incontrolável. Lembra, em alguns trechos, folhetins do século XIX de ação frenética e revelações surpreendentes. Pensei bastante, enquanto o lia, em Le Bossu, famoso romance de capa e espada de Paul Féval, serializado primeiro, em 1857, em um jornal, e que eu adorava quando criança. 

Sobretudo, o livro é uma homenagem a outro escritor suíço de língua francesa, Albert Cohen, e a sua obra-prima, Belle du Seigneur, publicada em 1968 e cuja ação se passa na década de 1930. O triângulo amoroso formado por Lev, Anastasia e Macaire é claramente inspirado em Solal, Ariane e Adrien, personagens principais de Albert Cohen. As semelhanças de situações e personalidades entre L´Énigme de la chambre 622 e Belle du Seigneur são numerosas. Se o romance de Albert Cohen nunca tivesse sido escrito, o de Joël Dicker teria sido diferente.

Por coincidência, fui ler pela primeira vez a obra de Albert Cohen em janeiro, cinco meses depois de terminar L´Énigme de la chambre 622. Fica contudo a dúvida se terá sido mesmo uma coincidência. Talvez o livro de Dicker tenha trazido à minha consciência tudo o que eu sabia do enredo do romance de Cohen e tenha me dado vontade de lê-lo, algo que eu sempre protelara fazer.

A leitura de Belle du Seigneur fez com que eu gostasse ainda mais, em retrospecto, de L´Énigme de la chambre 622. Por um paradoxo, o livro mais forte, o clássico, aumentou meu apreço pelo mais leve. Não há nisso enigma algum. Valorizei a maneira como Dicker adapta a história de Albert Cohen aos nossos tempos, suavizando-a, apesar do assassinato. Percebi o trabalho necessário por trás da leveza. A complexidade da cronologia, que irritou alguns, fascinou-me. Entendi que os personagens de Joël Dicker e suas aventuras mirabolantes viverão muito tempo em mim, como vivem, ainda que por razões diferentes em cada caso, os de Paul Féval, de Albert Cohen e de Marcel Proust.

Bernard de Fallois dizia que um grande romance é como um quadro: “Um mundo que se oferece ao leitor, o qual se deixa prender por essa imensa ilusão feita de pinceladas”. Foi assim que, em um fim de semana de agosto, no meio da pandemia, eu me senti grato de conseguir ficar preso ao mundo de um livro, à sua imensa ilusão.  

Este texto foi primeiro publicado, em 22 de fevereiro, na revista literária São Paulo Review

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As frutas de Perak

As frutas de Perak

Foi do Sultão de Perak que recebi, neste Natal, o meu primeiro presente. Na verdade, fui eu quem, ao recebê-lo no final de novembro, decidi considerá-lo assim. Fiquei bem contente de poder antecipar a época natalina, pois esse é, para mim, o momento mais esperado e desejado do ano.

Certamente, isso é um resquício da infância. Durante anos, na Bélgica, descer as escadas com meus irmãos, na manhã do dia 25 de dezembro, ainda de pijama, para ver os presentes sob a árvore decorada na sala, com a neve cobrindo o quintal e o ambiente rural ao redor da casa, era a experiência mais mágica do ano inteiro. Abro neste minuto um livro de 2019 de Jean-Yves Tadié de artigos ou ensaios curtos seus sobre Proust, um dos presentes de Natal que, complacentemente, em dezembro dei a mim mesmo. Caio em uma citação de La Recherche a respeito de adultos rememorando a infância: “eles se perguntam se, naqueles anos felizes, o inverno não era a mais bonita das estações”.

Há outras razões, pessoais e filosóficas, para minha continuada veneração pelo Natal. Minha mulher e eu fazemos aniversário na mesma data, em meados de janeiro, e assim o Natal é um conceito abrangente, que engloba pelo menos todo o mês de dezembro e vai até a terceira semana de janeiro. Essa é a época das comemorações, da sensação de leveza, do sentimento de que pode haver harmonia entre os seres humanos. É a época da felicidade. Todo ano, prolongo ao máximo esse estado de espírito. Duvido que alguém queira me criticar por isso.

Quanto ao aspecto filosófico da questão, direi que o Natal, independentemente da importância religiosa da data, de que nesse dia se celebra um nascimento, parece ser como um resumo, uma explicação do sentido da vida. É algo que espero o ano inteiro, na expectativa de alegrias sem fim; mas depois que ele chega, termina rápido demais. Mal me preparei para festejá-lo, e ele acabou. Acredito que a data ainda está por vir, e ela já é passado.

O Sultão de Perak, Nazrin Shah, com graduação em Oxford e mestrado e doutorado em Harvard, deve ser o único soberano e a única alteza real no mundo com competência para escrever obras de história econômica. Seus livros, publicados pela Oxford University Press, têm títulos como Charting the Economy: Early 20th Century and Contemporary Malaysian Contrasts (2017) e Striving for Inclusive Development: From Pangkor to a Modern Malaysian State (2019). Pangkor é uma ilha em Perak, e é também o nome do tratado pelo qual, em 1874, o Reino Unido assinou com o Sultão de Perak de então o acordo que iniciou o processo pelo qual, em poucas décadas, toda a Península Malaia passou a estar sob controle britânico. Até 1874, o Reino Unido estava presente apenas em Penang, Malaca e Singapura, que juntas formavam a colônia conhecida como Straits Settlements.

Na capa de Charting the Economy, os dois “o” do título são representados por uma semente de seringueira e grânulos de estanho. Como toda criança brasileira aprende na escola, a exitosa inserção na Península Malaia de sementes de hevea brasiliensis roubadas da Amazônia pelos britânicos, nos anos 1870, pôs fim ao ciclo da borracha no Brasil. Uma ironia é que, hoje, importamos borracha da Malásia.

Nos dois livros, vemos como os seringais e as minas de estanho sustentaram, durante décadas, a economia da Malaia britânica. Após a independência, em 1957, o novo país começou a diversificar sua produção. Explica o Sultão de Perak: “dependence on a limited number of primary commodities with highly volatile prices had been recognised as being an unsustainable economic strategy”. O estanho é um produto não-renovável, e a borracha natural é substituível. A Malásia se transformou. Passou a exportar produtos elétricos e eletrônicos e maquinaria. Desde 1971, a política econômica, voltada para a eliminação da pobreza, inclusive por meio de ações afirmativas, de ampliação do acesso à educação e de políticas de transferências diretas à população menos favorecida, pode ser sintetizada com a frase “growth with equity”. É surpreendente ver uma alteza real — que, pelo sistema rotativo entre os sultões para a ascensão ao trono malásio, deverá se tornar em janeiro de 2029 o XVIII Rei da Malásia — citar Thomas Piketty como fonte para seu pensamento sobre a questão da distribuição de renda.   

Do Sultão Nazrin Shah, eu já havia recebido seus dois volumes sobre a história econômica da Malásia. Fiquei então intrigado com o novo presente, de que foi portador um amigo comum, Timor, que, de partida para a Califórnia, onde passaria longos meses com sua família, veio, exemplarmente, se despedir de mim. O presente real é um livro, com texto e fotografias de Omar Ariff Kamarul Ariffin, intitulado The Incredible Fruits of Perak. Nazrin Shah e sua mulher, a princesa Zara Salim, contribuíram para a publicação da obra. Como outros bonitos livros promovidos por eles, o volume ajuda a divulgar Perak, conferindo-lhe uma personalidade própria frente aos outros estados malásios.

Lançada em 2019, a obra descreve as características de cem frutas, a maioria nativas de Perak, mas algumas também exóticas. Dezenas de outras são mencionadas. Há no estado de Perak, segundo explica a princesa Zara Salim no prefácio, ao menos cinquenta cidades ou vilarejos cujos nomes celebram frutas nativas.

Em minha primeira Carta da Malásia — as cinco cartas publicadas anteriormente estão coletadas em Ilhas Misteriosas — relatei viagem que fiz à ilha de Penang e contei que a paisagem de Perak, vista do trem, lembrou-me a da Mata Atlântica. Folheando o livro sobre as frutas do estado, constatei sem surpresa que algumas existem no Brasil. Quem poderia imaginar que a pitangueira, originária da América do Sul e de que temos um exemplar no quintal em Brasília, adaptou-se na Malásia com o nome de cermai belanda? O autor nos dá a informação de que a fruta também é conhecida como “pitanga” ou Brazil cherry. A brasileiríssima e corriqueira carambola aparece logo no início do livro, com o nome de belimbing manis, e aprendo que ela é na verdade originária do Sudeste asiático e do subcontinente indiano. A carambola é conhecida na Malásia também como kembola e, sim, “carambola”.

A maioria das frutas descritas no livro é, porém, desconhecida para mim. Há muitos anos, em Belém, na praça do Theatro da Paz, tomei pela primeira vez um suco de cacau. Das lembranças mais fortes que guardo da cidade está a surpresa que tive então diante da variedade de frutas de que eu nunca ouvira falar. The Incredible Fruits of Perak causa em mim a mesma sensação. Pensar que vivi até hoje sem provar melinjau, rawa e tampoi, entre muitas outras. A melinjau parece particularmente apetecível.

Uma das anedotas itamaratianas de que mais gosto é a história, acontecida não faz tantos anos, em que um estadista indiano visita Brasília. Como é costume, é homenageado com um jantar. Como sempre acontece, na hora da sobremesa trazem à mesa não só o doce, como também uma bandeja de frutas, onde há inclusive mangas fatiadas. O visitante exclama, acredito que de boa-fé e sem ironia: “Que ótima surpresa! Vocês foram atenciosos a ponto de mandar me servir uma fruta indiana”. Ele tinha razão, a manga é originalmente da Índia. É tão adaptada à realidade brasileira, porém, que cresce sozinha por todo canto em Brasília, e eu mesmo durante muito tempo acreditei ser ela originalmente brasileira. No nosso quintal no Lago Sul, ao lado da pitangueira, há duas enormes mangueiras. No final de dezembro, elas atingem o auge da produção. Seus galhos, no Natal, devem ter ficado pesados, carregados de mangas rosadas, de diferentes tonalidades avermelhadas, que me fazem sempre pensar, quando as vejo de longe, nas maçãs estilizadas que, criança, eu colocava em toda árvore que desenhava.  

Graças assim à visita de despedida que me fez Timor, trazendo em um único volume, como presente real, uma centena de frutas de Perak, entrei cedo no clima natalino.

Menos de quatro semanas depois, tive de lidar com preocupações mais transcendentais do que a economia malásia ou as semelhanças entre a flora brasileira e a da Península Malaia. No domingo antes do Natal, vi-me caminhando, à noite, pelo gigantesco aeroporto internacional de Kuala Lumpur, vazio e abandonado. Eu lá não pisava desde abril, quando fora me despedir dos brasileiros sendo repatriados por causa da COVID-19. Naquela ocasião, já havia menos voos, mas os que se mantinham estavam lotados, por causa do novo coronavírus, de malásios voltando ao seu país ou de estrangeiros regressando aos seus. A própria alegria dos meus compatriotas de poder voltar para casa e enfrentar a pandemia com seus familiares tornava o ambiente, para mim, eletrizante. No domingo logo antes do Natal, pareceu-me o aeroporto, que eu conhecera tão movimentado, lúgubre no seu abandono.

Como eu sabia, os problemas filosóficos que passavam pela minha cabeça, enquanto eu circulava pelo aeroporto entristecido, logo receberiam resposta: “Ela vai me achar bem ou envelhecido? Magro ainda? Aprovará esta camisa?”. Pois se eu lá estava, era para esperar minha mulher, que chegava de Singapura. Recebera ela autorização da Malásia, apesar das fronteiras fechadas nos dois países, para vir passar uns dias de férias. Teríamos de fazer quarentena, mas, felizmente, em casa.

Após uma separação forçada de dez meses, por causa da pandemia e o consequente fechamento das fronteiras, era um verdadeiro milagre natalino que eu estivesse ali, esperando por ela. Pensei ser personagem de algum filme ingênuo, típico da estação, It´s a Wonderful Life talvez, ou Love Actually

Não direi que a ceia de Natal foi a melhor que já tivemos, porque faltou nossa filha, que mora em Bruxelas, e para quem as fronteiras malásias e singapurenses permanecem fechadas. Mas foi deliciosa. Após as incertezas de todo o ano, compartilhadas com a humanidade inteira, e uma prolongada separação, era possível pensar que, afinal, a nossa era uma história que terminava bem. Como devem terminar os contos natalinos.

Esta minha VI Carta da Malásia foi primeiro publicada, como as cinco anteriores, em Estado da Arte, em 7 de janeiro de 2021

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Proust e as Petronas

Proust e as Petronas

Era uma noite de março, poucos dias antes de ser adotado na Malásia o confinamento por causa da pandemia. Eu voltava, de táxi, de um compromisso fora de Kuala Lumpur. Entrando na capital pela autoestrada, vi de longe, iluminadas, as duas grandes torres gêmeas. Daquele ângulo, elas pareciam isoladas na planície da cidade, majestáticas a uma altura de mais de quatrocentos metros. Desde sua inauguração em 1998, as torres Petronas, com sua estética retrofuturista, foram pouco a pouco sendo rodeadas por outros prédios, invisíveis para mim daquele ponto e naquele momento.

Moro em frente às torres; somos separados por um parque, desenhado por Roberto Burle Marx. Das minhas janelas, tenho delas visão completa, desimpedida. Vê-las de longe, iluminadas, brilhando, tocando o céu significou, naquela noite, a certeza de que eu estava no caminho de casa, de que dali a minutos estaria alimentando Kiki, a gata persa dourada, antes de ir dormir.

A visão das Petronas à distância fez-me pensar em Proust.

Uma das imagens mais presentes para mim, em À la recherche du temps perdu, é a da torre da igreja de Saint-Hilaire aparecendo ao longe, quando o narrador e sua família chegam de trem a Combray. Mário Quintana assim traduziu esse trecho de Du côté de chez Swann: “Desde muito longe já se reconhecia a torre de Santo Hilário, que imprimia seu vulto inesquecível no horizonte onde ainda não assomava Combray; na semana de Páscoa, quando meu pai avistava, do trem que nos trazia de Paris, aquela torre que deslizava por todos os campos do céu, fazendo correr em todos os sentidos seu pequeno galo de ferro, logo ia nos dizendo: ‘Andem, recolham as capas, que já chegamos’ “. No táxi, entrando em Kuala Lumpur, eu não tinha capa — Proust usa a palavra “couvertures”; Mário Quintana poderia ter preferido “mantas” ou “cobertores” — mas, ao avistar as torres no céu, instintivamente juntei minhas tralhas esparramadas no banco traseiro: estojo de óculos, celular, pasta, papéis, caneta.

A imagem que o narrador proustiano nos oferece da torre da igreja de Saint-Hilaire confunde-se, na minha memória, com uma lembrança da infância. Quando eu tinha sete ou oito anos, viajei de carro com meus irmãos, de Bruxelas até Chartres. Era primavera ou verão, pois lembro que estávamos sem mantas, cobertores ou capas, o sol brilhava, fazia calor e não havia nuvem no céu azul. De repente, nós as vimos, as duas torres dizigóticas da catedral, nítidas no horizonte, aparecendo por cima dos campos dourados da região da Beauce. Quando penso no trecho em que o narrador de Proust descreve a visão da torre de Saint-Hilaire, viajo sempre para essa primeira impressão das torres de Chartres, experiência que eu voltaria a ter décadas mais tarde, já adulto, com minha mulher e minha filha, dessa vez eu mesmo ao volante.

Costumo confundir a minha experiência com a do narrador de Proust. Meu primeiro pensamento é sempre acreditar que, nesse trecho de Du côté de chez Swann, o que é visto do trem são as torres da catedral de Chartres. Pego o primeiro dos quatro volumes da Recherche na edição da Pléiade, e sou uma vez mais surpreendido — é como um ritual — com o fato de que o autor fala, na verdade, da torre fictícia de Saint-Hilaire.

Na infância como na idade adulta, a catedral de Chartres não era meu único destino, na travessia dos campos da Beauce. Um pouco além está a pequena cidade de Illiers-Combray, com sua igreja de Saint-Jacques, que inspirou a de Saint-Hilaire, e onde pode ser visitada a casa da tia de Proust. Criança, durante alguns anos o escritor lá passou férias. Hoje é um museu conhecido como Maison de tante Léonie, nome da personagem de Proust em cuja casa em Combray o narrador e seus pais se hospedam.

Ao visitar museus associados a escritores, temos a impressão de que o autor está ali, como uma presença forte que nem a morte pode apagar. No caso de Proust, além da casa em Illiers-Combray há a recriação de seu quarto no Musée Carnavalet, a meu ver um dos pontos altos de qualquer visita a Paris. Ali vemos inclusive sua cama, onde ele gostava de escrever e na qual morreria em 1922. A França é pródiga na celebração de residências de escritores. Um dos mistérios da vida é por que nunca entrei, na Place des Vosges, na casa de Victor Hugo. Outra de minhas ambições é um dia ir a Bougival, visitar a datcha construída por Turgueniev, onde ele escreveu e morreu. A quinze quilômetros de Paris, Bougival parece perto fisicamente e, ao mesmo tempo, psicologicamente distante. Entrar em um museu dedicado à memória de um escritor significa ingressar na realidade de sua vida e de sua obra. Não é algo a ser feito levianamente. Requer disposição para passar por uma experiência emocional e intelectual exaustiva.

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A Rússia é outro país habituado a transformar em museu a casa de grandes escritores.  Lembro de já ter visitado, em Moscou, o apartamento em estilo neoclássico de Pushkin e a casa art nouveau de Maksim Gorki. Estive na datcha de Boris Pasternak em Peredelkino, perto da capital. Na minha lista de residências de escritores a serem conhecidas antes da morte estão a de Dostoievski em São Petersburgo e a de Tchekhov em Moscou, à qual cheguei a ir uma vez, para descobrir que já havia fechado.

Sobretudo, há a propriedade rural de Tolstoi, a 200 quilômetros de Moscou. Frequentemente, penso em Yasnaya Polyana, sonhando visitá-la. A distância, que parece intransponível, concede-lhe uma aura mágica, misteriosa, transforma-a em objeto de cobiça inalcançável. Em setembro de 2019, viajei de férias à Europa com a intenção específica de ir a Yasnaya Polyana. Contratempos se interpuseram, e não cheguei sequer até Moscou. Cultivo na mente imagens poéticas. Vejo-me caminhando, pela floresta, da casa até ao túmulo de Tolstoi, para recolher-me frente a ele, ouvindo o vento e os pássaros, rodeado apenas pelas árvores. Vejo-me dentro da casa, sentindo, ao ir de cômodo em cômodo, a presença do escritor.

Em Moscou, no bairro de Khamovniki, existe a casa onde Tolstoi passava os invernos. Se me perguntassem qual meu lugar predileto na cidade, eu diria haver dois: o Museu Pushkin de artes plásticas — por causa dos Matisse — e a casa de Tolstoi. A verdade é que seriam três, porque eu teria de incluir o Bolshoi. Aumentemos logo para quatro, porque haveria também o Café Pushkin, restaurante de atmosfera sedutora, decorado com livros antigos.

Guardo o impacto, das três ou quatro vezes em que estive em Khamovniki, da escrivaninha do escritor, das botas feitas por ele, de sua bicicleta, e do piano em uma das salas. Trata-se de uma excelente evocação do que seria, nos últimos anos do século XIX, a vida de uma família moscovita aristocrática, próspera, literária e artística.

Os ambientes, felizmente, nem sempre revelam seus segredos; entrei e saí da casa, todas as vezes, sem pensar nas crises ali vividas.

Em 1881, com os mais velhos de seus filhos prestes a iniciar a vida adulta, Tolstoi e a mulher, Sofia, decidem que a família deve começar a passar os invernos em Moscou. Assim farão quase todo ano, até 1901. Desde o casamento, em 1862, eles haviam vivido ininterruptamente em Yasnaya Polyana. A casa de Moscou foi comprada em 1882. Em suas memórias, Minha Vida, Sofia Tolstoi diz: “Ele encontrou uma casa com um jardim grande […] A imensidão dessa propriedade, que mais parece um sítio no campo, deixou-o encantado”. Segundo a condessa Tolstoi, a decisão de passar os invernos em Moscou foi tomada de comum acordo. Logo, porém, o escritor começa a manifestar insatisfação em seus Diários.

Esse é o período em que, escreveu seu filho Liev em A Verdade sobre meu Pai, Tolstoi “se transformava de romancista em profeta”. À medida que o conde-escritor vai dando primazia à sua espiritualidade, às suas inquietações de ordem moral, aquilo que considera a artificialidade, a futilidade da vida urbana e mundana faz aumentar o fosso entre ele e a mulher, respingando às vezes sobre o relacionamento com os filhos.

Choca-o o contraste, na cidade, entre o luxo e a miséria. Condena a mulher — ocupada criando os filhos, gerindo os bens do casal, administrando funcionários, babás, governantas e tutores, recopiando e corrigindo infinitas vezes os manuscritos do marido — por não o acompanhar em seu percurso espiritual. Já no primeiro inverno, em 1881, antes mesmo da compra da propriedade de Khamovniki, ele escreve, em 5 de outubro: “Um mês se passou — o mais torturante da minha vida. Instalação em Moscou. — Eles não param de se instalar. Quando começarão a viver? Tudo não para viver, mas porque é o que se deve fazer. Os infelizes! E sem vida.—”. O agravamento da crise matrimonial, que culminaria na fuga de Yasnaya Polyana no meio da noite em novembro de 1910, e na morte de Tolstoi na estação de trem de Astapovo, não foi uma linha contínua. Ao longo dos anos, às vezes a relação melhorava, para depois piorar.

Aos 13 ou 14 anos, li meu primeiro livro de Tolstoi, A Sonata a Kreutzer, que encontrei em francês na biblioteca de meus pais. Foi uma iniciação infeliz. Na novela, publicada em 1889, o narrador condena o sexo, inclusive no casamento. George Steiner considerava A Sonata a Kreutzer uma obra-prima, mesmo ciente de suas limitações. Quanto a mim, ler a novela na adolescência fez-me rejeitar Tolstoi por muitos anos. Postergou a entrada de Guerra e Paz, de Anna Karenina, de A Morte de Ivan Ilitch e de Padre Sérgio na minha vida. É cabível ver, nas ideias negativas do narrador sobre sexo, casamento e a relação entre homem e mulher, a tensão em que se encontrava o próprio autor. “Esse livro me rebaixava aos olhos do mundo inteiro e destruía definitivamente o nosso amor”, diz Sofia em Minha Vida.

“Quanto ao Tolstoi, basta ser russo para eu ter dificuldade em dar por ele”. Assim escreveu Fernando Pessoa em carta a João Gaspar Simões, em dezembro de 1931. De fato, ao consultar os títulos em sua biblioteca, preservada em grande parte na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, constato não haver um livro sequer do profeta de Yasnaya Polyana. De Proust, havia na sua estante um volume de Du côté de chez Swann, mais especificamente Un amour de Swann.

A proposta na Casa Fernando Pessoa, instalada no edifício onde o poeta morou de 1920 até morrer em 1935, não é recriar o ambiente original, que devia estar já descaracterizado quando o museu abriu em 1993. Todo o interior do prédio — eu o visitei em 2017; está sendo remodelado — é uma celebração do poeta e de sua obra, sem pretender mostrar com rigor o cenário em que ele vivia. Lá estão, no entanto, parte de sua mobília, inclusive a máquina de escrever, a estante e a cômoda.

Possivelmente, a escrivaninha de um escritor é o que mais nos fascina quando visitamos a casa onde morou. É lá, no tampo do móvel, que as ideias são colocadas no papel ou, hoje, no computador. É lá que a imaginação se transforma em criação, em obra. Na casa de Fernando Pessoa, falta a escrivaninha, mas a cômoda a substitui. Ela remete à criação dos heterônimos. Em carta a Adolfo Casais Monteiro, de 1935, Pessoa escreveu, sobre o dia 8 de março de 1914:  “acerquei-me de uma cômoda alta e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé”. Nesse dia, no topo da cômoda, apareceu um de meus poetas prediletos, Alberto Caeiro, e surgiram “trinta e tantos” poemas de seu O Guardador de Rebanhos. Tolstoi teria aprovado o verso “Nas cidades a vida é mais pequena”.

Quarto Fernando Pessoa

Rubens Figueiredo, ficcionista premiado e celebrado tradutor de Tolstoi e de outros russos com os quais Pessoa tinha “dificuldade”, é um dos 36 autores brasileiros entrevistados e fotografados em casa por Eder Chiodetto em seu livro O lugar do escritor, publicado em 2002. O propósito, segundo Chiodetto, era descobrir “que ressonâncias desse mundo inventado eu encontraria no escritório, local, pelo menos em tese, onde irrompe a ficção?”. Dois deles, Ariano Suassuna e Cristovão Tezza, preferiram ser fotografados lendo, deitados, mas em sua maioria os escritores são apresentados no escritório, em fotos estupendas em preto e branco, muitos, previsivelmente, sentados frente à escrivaninha. Das casas mostradas, só estive, uma vez, há muitos anos, quando fui conhecê-lo para discutir sua obra, na de Bernardo Carvalho. Dos curtos depoimentos de escritores que acompanham as fotos, o mais contundente é o de João Cabral de Melo Neto: “Você quer me fotografar no meu escritório? Aqui não tem escritório. Não escrevo mais”.

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Uns dizem precisar de silêncio para escrever, outros não se incomodam com barulho. Uns são organizados e disciplinados, outros escrevem sem rotina. Muitos transformam qualquer aposento em escritório, outros escrevem em qualquer lugar. Uns usam caneta, outros computador; Lygia Fagundes Telles comenta usar máquina de escrever, e conta que o computador recebido de seu editor está ainda na embalagem, dentro do armário.

Cama de Proust, escrivaninha de Tolstoi, cômoda de Pessoa. A verdade é que se escreve onde se pode. Em todo lugar podem ser escritas as palavras que dão origem a um mundo próprio. E às vezes, basta a visão noturna das torres Petronas para nos trazer de volta à memória o universo peculiar de um criador.

Magicamente, o táxi que nos transporta por uma autoestrada malásia, perto da meia-noite, é o trem que leva a Combray. Com o tempo, os livros lidos se fundiram. Formaram na mente uma obra pessoal. Um segundo mais, e as espetaculares Petronas se transformarão na singela, provinciana torre de Saint-Hilaire.

 

Petronas

Este texto foi publicado na revista literária Pessoa em 28 de junho

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A Vingança

A Vingança

Às vésperas de partir do Brasil para morar e trabalhar em Kuala Lumpur, publiquei um texto, A Partida, em que mencionava os livros que viajariam comigo na mala. A mudança foi fechada em Brasília em 17 de janeiro de 2020. Recebi-a apenas na última semana de maio, por causa do primeiro confinamento na Malásia, decretado em 18 de março de 2020. Ela ficou dez semanas abandonada no cais de Port Klang.

De janeiro a maio, montei uma pequena biblioteca no apartamento vazio em Kuala Lumpur. Trouxe cinco livros do Brasil. Recebi da França, umas duas semanas antes de o isolamento social começar, uma encomenda com outros cinco. Houve as visitas, aos domingos, à minha livraria local predileta, Kinokuniya, filial de uma cadeia japonesa. Outros foram presentes de amigos. Um dia antes do início do confinamento, fiz uma última visita à Kinokuniya e comprei sete volumes, para mitigar o desconforto de saber que durante semanas livrarias ficariam inacessíveis.

No apartamento, até final de maio de 2020, havia apenas minha cama, a mesa de cabeceira, a escrivaninha no quarto. Uma mesa redonda na sala, algumas cadeiras. As roupas que vieram na mala, 33 livros e Kiki, a gata persa dourada. Foi bom viver de forma tão ascética, por tantos meses, sem um objeto sequer.

Pouco a pouco, comecei porém a sentir falta da biblioteca. Vieram saudades de livros que eu gostaria de ler, reler, folhear, segurar. Não podia fazê-lo; eles estavam inalcançáveis. Proust sobretudo foi uma ausência forte. Uma edição de À la recherche du temps perdu publicada entre 1946 e 1947 está disponível na página eletrônica Open Culture, que aliás não considero agradável de usar. O Projeto Gutenberg também oferece os sucessivos volumes, mas não vi lá o último, Le temps retrouvé. Durante vários dias, entrei em um dos dois serviços, para reler algumas páginas específicas. Livros porém são entidades personalizadas. Havia a falta de Proust, mas havia também a falta da minha edição de Proust, a segunda da Pléiade, em quatro volumes, coordenada entre 1987 e 1989 pelo biógrafo do escritor, Jean-Yves Tadié. E havia a falta dos meus exemplares dessa edição, muitas vezes manuseados, já surrados, um deles, o quarto, estragado pela areia, o vento e o mar da praia da Ferradura em Búzios.

No Projeto Gutenberg, encontrei também Guerra e Paz, na primeira tradução para o francês, de 1879. É anônima, “por uma russa“, mas a Internet não preserva segredos e, pesquisando, descobri, apesar da ausência de meus livros, que essa tradutora foi a condessa Irina Ivanovna Paskevitch. Parece-me significativo que a primeira versão para o francês tenha sido por uma russa morando na Rússia, em claro esforço para tornar uma obra-prima da literatura de seu país acessível a leitores estrangeiros. Deu certo. A primeira tradução para o inglês, em 1886, foi baseada na versão francesa de Irina Paskevitch. O Projeto Gutenberg oferece a tradução de Louise e Aylmer Maude, de 1922-1923, famosos por terem sido amigos — e ele também seu biógrafo — de Tolstoi. Essas porém não são a tradução de que gosto, a de Henri Mongault, publicada na coleção da Pléiade em 1944. Um dia, no começo do maio, acordei pensando em Anatole Kuraguin e em sua irmã, a bela Hélène Bezukhova, as duas principais encarnações do Mal no romance. Reli no Projeto Gutenberg alguns trechos em que eles falam, atuam, seduzem, traem, interagem um com o outro, planejam suas maldades, morrem. Não era porém o meu Tolstoi.

Nunca há como saber de que livros vamos sentir falta. A necessidade de abrir um volume específico vem de repente. Na página eletrônica da National Gallery de Londres vi uma referência que me fez ter vontade de reler algumas páginas de Viagem à Itália de Goethe. Informa o museu que um quadro em sua coleção de que gosto particularmente, A família de Dario diante de Alexandre, de Veronese, pintado entre 1565 e 1567, e que revi em setembro de 2019, é descrito pelo escritor. É a única pintura mencionada por ele na relação de sua visita a Veneza, em 1786. Novamente, o Projeto Gutenberg me socorreu. Pude ler — ou reler — o que Goethe tem a dizer sobre o quadro, que naquela época encontrava-se ainda, e desde que fora pintado duzentos anos antes, em mãos da família Pisani, que o venderia à National Gallery em 1857. A obra, opina Goethe, possui “encantadora harmonia” e “está em excelente estado de conservação e se apresenta a nós com o frescor de ontem”.

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É perturbador, provoca humildade pensar que o olhar do escritor, em 1786, pousou-se, no palácio Pisani Moretta, em Veneza, sobre o mesmíssimo quadro de Veronese que descobri aos 20 anos em Londres, dois séculos depois. Nós todos decairemos e partiremos. Outras gerações virão, e a tela de Veronese seguirá viva, protegida, conservada, restaurada, perpetuando o nome do pintor e ajudando a propalar a fama de Alexandre, o Grande e a derrota de Dario III. Em 2019, disse-me um iraniano: “Os americanos têm de lembrar que nós, os persas, nunca fomos derrotados”. Supus imediatamente que ele nunca havia ido à National Gallery e visto a família do rei dos reis ajoelhada frente ao conquistador macedônio, solicitando sua clemência.

Foi um reconforto poder acessar no Projeto Gutenberg o texto de Goethe elogiando o quadro. Teria eu, porém, preferido ler suas palavras no meu exemplar do livro, aquele que é empacotado e desempacotado a cada mudança, que já morou em vários países e descobriu a Itália junto comigo. Exemplar de uma edição barata e fácil de achar, mas onde as páginas estão amareladas, foram abertas muitas e muitas vezes e têm a marca dos meus dedos, da poeira de trens italianos e manchas de chocolate criadas por mim. Senti falta do livro como objeto, como algo que eu reconhecesse como sendo parte da minha história.

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Em dezembro, cometi um grave erro. Reli Quincas Borba. A questão com Machado de Assis é que, quando caímos em seu universo, não podemos mais sair por um bom tempo. O carinho que ele dedica a seus personagens — cujas preocupações compartilhamos — e o humor delicado tornam a leitura viciante. Em maio, pensei muito em Quincas Borba. Senti saudades da evocação da praia de Botafogo, que Machado transforma em um lugar mágico. Sua obra está disponível na Internet, gratuitamente, em mais de uma página. Entrei em Quincas Borba. Li: “A lua estava então brilhante; a enseada, vista pelas janelas, apresentava aquele aspecto sedutor que nenhum carioca pode crer que exista em outra parte do mundo.” Uma frase, em si, tão simples. No entanto, era todo o Rio de Janeiro e uma certa ideia de Brasil que ela trazia ao meu apartamento vazio em Kuala Lumpur. Meu olhar cai sobre um conto intitulado Antes que cases… A primeira frase já me gruda na tela do computador: “Era um dia um rapaz de vinte e cinco anos, bonito e celibatário, não rico, mas vantajosamente empregado.” Parece o início de um conto de fadas. Depois de algumas linhas, porém, começo a ficar incomodado com a luminosidade da tela e a sentir falta dos três volumes da edição da Nova Aguilar, imperfeita como é, ou da antologia de contos por John Gledson, em dois volumes, publicada pela Companhia das Letras, esta sim perfeita.

Dos livros que comprei na Kinokuniya até o começo do confinamento, o mais lúdico é The Man in the Red Coat, obra de não-ficção de Julian Barnes, lançada em 2019. O escritor inspirou-se de um quadro de John Singer Sargent de 1881, Dr. Pozzi em Casa, que retrata um célebre médico francês da época. O retratado está em pé, aos 35 anos de idade, vestindo um roupão vermelho frente a uma cortina também vermelha. Do corpo, vemos apenas as mãos, magras e elegantes, de dedos finos, e o rosto — que a princesa de Mônaco daquele tempo, segundo Julian Barnes, considerava “irritantemente bonito” — com barba curta e bigode. A narrativa de Barnes mistura biografia de Samuel Pozzi, divagações sobre a Belle Époque e comentários sobre literatura e vida artística na França e na Inglaterra nas últimas décadas do século XIX e sobre a mania dos duelos entre escritores e rivalidades literárias.

Fazem aparições Proust, Oscar Wilde, Flaubert, Maupassant, Huysmans, Edmond de Goncourt, Henry James, Baudelaire, o então famoso conde Robert de Montesquiou — lembrado hoje por ter sido um dos modelos para o barão de Charlus — Sarah Bernhardt, Whistler, Degas, Gustave Moreau e Jean Lorrain, jornalista e escritor só conhecido hoje por causa de seu duelo a bala com Proust. Todo o volume pode ser tomado como a transcrição das ideias surgidas em Julian Barnes ao ver o retrato de Pozzi em Londres, em uma exposição na National Portrait Gallery dedicada a Sargent. A melhor anedota relatada envolve um jornalista, Robert Caze, que, ferido de morte em um duelo aos 33 anos, agonizante, recebe a visita, em seu último dia de vida, de Huysmans e Edmond de Goncourt. Ao morrer, Caze, que acabara de publicar um romance, ia deixar uma viúva e dois filhos pequenos, que ficariam desamparados. Sua preocupação porém foi indagar de Huysmans: “Você leu meu livro?”.

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Até certo ponto, The Man in the Red Coat satisfez meu constante apetite por Proust, que conheceu bem Samuel Pozzi, amigo de sua família e um dos modelos para o desagradável Dr. Cottard, personagem de La Recherche. O que Julian Barnes não consegue é transformar o homem, médico próspero, famoso, bem-sucedido, bem-relacionado, em algo tão interessante quanto o retrato pintado por Sargent. Seu êxito profissional e seus problemas matrimoniais parecem irrelevantes e tediosos. Do poder de encantamento que ele exercia sobre seus contemporâneos, nada sobrou. O pintor criou uma obra fascinante. Da pessoa em si, resta um eco dificilmente apreensível. A frase mais recorrente no livro, quando Barnes tenta explicar aspectos da vida ou da personalidade de Pozzi, é: “we cannot know“.

Um homem inspira um pintor. Por meio do quadro resultante, o mesmo homem motiva um escritor. O modelo porém é bem menos marcante do que as obras de arte — quadro e livro — que a existência dele provocou. Da mesma forma, as pessoas que inspiraram Proust na criação de seus personagens, como o próprio Pozzi, morreram e são lembradas apenas pela presença na vida e no romance do escritor. É a vingança do artista sobre a morte. É a vingança da arte sobre a vida.

(Este texto, em versão diferente e com outro título, foi primeiro publicado, em 14 de maio, em O Estado da Arte)

Nota de outubro de 2021: o livro de Julian Barnes foi publicado pela Editora Rocco em agosto de 2021, em tradução de Léa Viveiros de Castro, com o título O Homem do Casaco Vermelho.

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O Delacroix de Chelsea

O Delacroix de Chelsea

Em setembro, em Londres, almocei com um escritor cuja obra admiro, em sua casa em Chelsea. Enviei um e-mail avisando que eu passaria menos de três dias na cidade e perguntando se podíamos tomar um café. A resposta foi um convite para que almoçássemos em sua casa. Nós já tínhamos nos correspondido antes, e ele lera um ensaio elogioso que, no passado, eu havia escrito sobre sua obra.

O encontro poderia ter dado muito errado. Calculei mal o tempo, e cheguei atrasado. O livro que levei de presente, King of the World, uma nova biografia de Luís XIV lançada poucos dias antes pelo historiador Philip Mansel, revelou-se inútil para minimizar a falha do atraso. Meu anfitrião fora à noite de autógrafos e tinha já seu exemplar. Ofereceu-me de volta o meu presente, e não me fiz de rogado, porque não resisto a livros sobre Luís XIV.

Fui recebido primeiro na biblioteca. Olhei, fascinado, à minha volta. A aura era boêmia, e meu interlocutor informal, mas via-se em pequenos detalhes ser aquele um ambiente privilegiado, o que aliás o próprio endereço indicava. Enquanto tomávamos uma taça de champanhe, ele comentou que sua mulher estava almoçando com amigas, mas chegaria a tempo de me conhecer. Manifestou interesse pela minha vida, a profissional e a pessoal. Avesso a compromissos sociais, o que tornava o convite para almoçar ainda mais generoso, ele lamentou que minha dedicação ao trabalho e minha “evidente sociabilidade” limitassem o tempo disponível para eu escrever.

Da poltrona onde eu me sentara, notei na parede frente a mim um quadro pequeno. Coloquei o copo no chão. Levantei-me. Aproximei-me. Era um Delacroix, que sua mulher herdara dos pais. Representava duas figuras humanas perto de uma janela aberta. A personagem feminina, jovem, de perfil, olhava, de pé, para fora. Pelas roupas que ela e seu companheiro trajavam, a pintura retratava claramente uma cena medieval.

Delacroix caiu ligeiramente na minha apreciação depois que visitei, em 2018, no Louvre, uma grande mostra do artista, incensada pelos críticos, mas cuja curadoria julguei ser pouco criativa. Tudo pareceu-me repetitivo. Havia, além dos quadros históricos, magníficos, mas muitos dos quais eu já havia visto várias vezes no museu, numerosas pinturas religiosas e de flores, a meu ver desinteressantes. A bem da verdade, eu estava naquela época com uma tosse renitente, e no mesmo dia em que visitei a exposição eu começara a tomar um xarope sem ter lido a bula e não sabia, por isso, que ele provocava sonolência. Andei pelas salas do museu bocejando, olhando entediado para os quadros. Coloquei Delacroix, naquela tarde no Louvre, na categoria dos artistas que, ao serem vistos em excesso, perdem muito de sua mística.

Meu anfitrião e eu logo descemos para almoçar. À mesa, ele revelou forte erudição literária — de resto, já sugerida em sua obra — e descobrimos que um ponto em comum entre nós é o amor por Racine, de quem ficamos ambos recitando versos de memória. Referiu-se à decepção do narrador de Proust quando, pela primeira vez, na adolescência, vai ao teatro ver uma célebre atriz, a Berma, interpretar dois atos de Phèdre. Mais tarde, o narrador passa a admirar o talento da Berma, mas sente-se desiludido no primeiro contato – “Hélas! cette première matinée fut une grande déception”. A ida do narrador ao teatro para assistir a Phèdre é um dos trechos do livro em que Proust nos fornece reflexões sobre a arte. O que o narrador espera da matinê da Berma é a revelação de verdades mais reais do que as do seu mundo cotidiano. As artes visuais, a literatura, a música podem nos mostrar a vida com mais intensidade, dar a ela mais sentido. O narrador de Proust percebe que uma representação teatral pode equivaler aos “chefs-d’oeuvre de musée“. Se ele se decepciona com a Berma, é porque esta atua sem histrionismos, com uma dicção natural e não exagerada. Ele entende depois que uma obra-prima artística pode ser acompanhada de simplicidade, de um efeito natural.

Lembrou meu anfitrião a descrição, por Proust, do gesto feito no palco pela Berma, com o braço. Mencionou o quanto os movimentos dos atores podem determinar o impacto que a produção teatral causará junto à plateia. O narrador de À la recherche du temps perdu, de fato, nos diz que, durante a representação da Berma, “la salle éclata en applaudissements” quando a atriz ficou imóvel um instante, “le bras levé à la hauteur du visage“. Justamente, na véspera eu fora a Covent Garden assistir a Don Giovanni, e dois cantores — o baixo-barítono uruguaio Erwin Schrott no papel-título e a soprano sueca Malin Byström como Donna Anna — haviam dominado a representação por causa, além de seu talento lírico, de sua forte presença, suas expressões faciais, seus movimentos. Um gesto recorrente da soprano com o braço direito havia chamado minha atenção; ela ficava mais imponente a cada vez que o fazia. A própria efemeridade de representações teatrais dá-lhes a meu ver uma grandiosidade muito particular. Aquilo acontece apenas uma vez, durante duas, três horas, para os espectadores presentes e ninguém mais. A mesma representação, na noite seguinte, já não será exatamente igual.

Íamos começar a sobremesa quando sua mulher entrou. Isso trouxe novo ímpeto à conversa, pois ela possui um raro encanto. Tendo chegado atrasado, dei nova prova de má educação prolongando a minha estada. Declarei estar feliz ali, e disse que a opção teria sido revisitar a casa de Keats em Hampstead, aonde não vou há muitos anos. Ao ouvir sobre minha admiração por John Keats, ela mencionou ser descendente de Joseph Severn, o amigo que estava com ele em Roma, na hora em que o poeta morreu de tuberculose, aos 25 anos.

Pensei engasgar no tiramisù. A noção de que eu estava sentado a poucos centímetros de uma descendente de Severn, que amparava em seus braços o poeta romântico quando ele por último suspirou, grudou-me à cadeira. Nada mais me interessou. Isto é, até eu mencionar a ela a inutilidade do meu presente, a biografia de Luís XIV por Philip Mansel. Tendo eu lembrado a seguir o estudo de Nancy Mitford sobre o Rei-Sol, ficamos os três discutindo os livros da escritora, particularmente o melhor de seus romances, Love in a Cold Climate. Dissecamos as personalidades dos dois personagens mais marcantes, Cedric Hampton e Lady Montdore. Em um certo momento, a dona da casa mencionou, suavemente: “Você sabe, eu conheci a Nancy Mitford. Ela era madrinha da minha irmã. Fui com minha mãe algumas vezes visitá-la em sua casa em Versalhes, no final da vida dela”. Como o tiramisù tinha acabado há muito tempo, a possibilidade de eu engasgar não se colocou uma segunda vez.

Em março, no final do Carnaval, à beira da praia, como contei em O Mar por toda parte, retirei da biblioteca de meus sogros um volume de cartas do Padre Antonio Vieira. O que não mencionei ali é que peguei também a correspondência entre as famosas irmãs Mitford, editada pela neta de uma delas, Charlotte Mosley. A mais velha das aristocráticas irmãs, Nancy, nasceu em 1904 e morreu em 1973; a caçula, Deborah, nasceu em 1920 e morreu em 2014.

Temos de visualizar as seis filhas de Lord Redesdale, no começo do século XX, crescendo em uma casa de campo, rodeadas de cavalos e cachorros, escolarizadas pela mãe e por governantas. Havia apenas um irmão, Tom, de predileções nazistas, que morreu aos 36 anos. Ele não integra a lenda em torno ao nome da família. Suas irmãs, ao contrário, parecem fadadas a seguir sendo, para a eternidade, objeto de fascínio no Reno Unido. Criadas juntas, tiveram destinos desencontrados e demonstram a possibilidade aberta a cada ser humano de construir — ou destruir — sua própria biografia. Nancy, que passou boa parte da vida adulta na França, deixou-nos, além de alguns estudos históricos, romances cáusticos, inteligentes sobre a elite social inglesa de meados do século XX. Unity era nazista. Diana foi presa na Segunda Guerra Mundial por causa de suas atividades fascistas. Deborah, que ganharia fama como criadora de galinhas, casou-se com o 11º duque de Devonshire, herdeiro de uma casa de campo palaciana, Chatsworth, e contra-parente de John Kennedy; Pamela, a menos conhecida das seis irmãs, e também especialista em galinhas, levou uma vida discreta no campo. Jessica era socialista, considerou-se comunista por um tempo e, talvez de forma paradoxal, foi morar nos Estados Unidos. Entre outras obras de não-ficção, escreveu um livro de memórias em que narra sua infância e juventude ao lado das irmãs e do irmão, Hons and Rebels. A obra descreve de forma livre as excentricidades de sua família. Abro-o ao acaso e leio que a mãe, Lady Redesdale, odiava os bolcheviques porque estes, em 1918, haviam matado em Ecaterimburgo também os cachorros dos Romanov, além de seus donos. A sina da família imperial “didn’t seem quite so sad as that of the poor innocent dogs“.

A hora de partir já passara há muito tempo. Eu ia novamente à ópera, a uma récita de Agrippina, de Handel, que começava cedo. A interpretação de Joyce DiDonato, que cantava o papel-título, era considerada pela crítica a melhor atuação nos palcos londrinos naquele momento.

Notei que a biografia de Luís XIV ficara na biblioteca. Subimos para apanhá-la. Aproximei-me novamente da parede onde se destacavam a tela de Delacroix e, pendurado acima dela, um desenho de Gainsborough retratando o Príncipe Regente, futuro George IV, a cavalo. A proprietária das obras explicou-me ser o Delacroix a representação de uma cena de Ivanhoe, único romance de Walter Scott que jamais li. No começo da adolescência, em Montevidéu, devorei com intenso deleite esse livro onde os bons vencem, depois de muito sofrimento, e os maus são derrotados. A figura feminina na tela era Rebecca, a heroína. Suponho que a figura masculina fosse o próprio Ivanhoe, mas eu o ignorei. Interessou-me apenas Rebecca. Vê-la ali, em um quadro pendurado em Chelsea, reconciliou-me com Delacroix. Pensei na minha infância estudiosa; pensei no rio da Prata — que eu via da janela do meu quarto — enviando o vento rondar o nosso apartamento no décimo andar; pensei nos meus pais e nos meus irmãos.

Por alguns longos segundos, criou-se um silêncio ao meu redor na biblioteca da casa em Chelsea, enquanto eu examinava fixamente o Delacroix. Revivi aqueles dias — infinitamente distantes e, no entanto, tornados palpáveis graças à tela — da leitura de Ivanhoe em Montevidéu. Revi-me deitado, de noite, com o volume nas mãos, ouvindo o vento, preso às aventuras de Rebecca e por ela vagamente apaixonado.

Era preciso partir. Duas personalidades bem menos admiráveis do que Ivanhoe e Rebecca, Nero e Agripina, esperavam-me em Covent Garden. Rompi o silêncio. Despedi-me. No umbral da porta, avisei aos meus anfitriões que eu talvez viesse a escrever sobre aquele encontro.

Demorei a conseguir táxi. No trajeto, peguei o pior horário de trânsito. Sem dúvida, o atraso para Agrippina era inevitável. Havia aí uma ironia, pois a vontade de ouvir novamente Joyce DiDonato cantar era o que provocara minha ida a Londres. Quando o carro ia desembocar em Trafalgar Square, parou em um sinal vermelho. Enxerguei a coluna de onde Lord Nelson inspira, mesmo morto, os valores de coragem e estoicismo. Na esquina da rua onde o motorista e eu esperávamos o sinal abrir, reparei no prédio imediatamente à minha esquerda. Se eu abrisse o vidro, quase poderia tocá-lo. Era a representação diplomática da Malásia. Aquilo pareceu-me extraordinário; sabia que, a partir de janeiro, eu estaria morando e trabalhando em Kuala Lumpur. Assim, na mesma tarde, o convite para almoçar em Chelsea fizera-me viver, em poucas horas, o passado, o presente e o futuro.

Cheguei atrasado à Ópera. Comprei o programa. Deixaram-me entrar no auditório. Sentei-me. Encarei o palco. Mergulhei nas artimanhas de Agripina. Haviam já terminado a sinfonia de abertura, a primeira ária de Nero e alguns recitativos. A produção era estupenda, a música irresistível, as vozes e a orquestra excepcionais e Joyce DiDonato, como uma Berma moderna, efetivamente oferecia a melhor interpretação nos palcos de Londres naquela semana.

No entanto, em momento algum arrependi-me pelo atraso ou pensei ter perdido algo.

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(Este texto foi publicado primeiro, em 8 de janeiro, no jornal literário Rascunho)

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O leitor irresponsável

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Ocasionalmente, reaparece nas redes sociais um ensaio do escritor britânico Geoff Dyer sobre as suas dificuldades para ler ou terminar de ler livros.

Intitulado “Reader’s Block”, publicado originalmente em 2000, quando o escritor tinha 41 anos, o texto descreve o desânimo de Dyer ao olhar para as suas estantes e perceber que não deseja ler nenhum dos livros ainda intocados. E assim, compra outros, por não querer ler os que já possui. E continuará pensando, olhando para as estantes: “There’s nothing left to read“.

Dyer narra como, para passar o tempo em um vôo transatlântico, compra dois livros, cujos títulos aliás parecem paradigmáticos: O Leitor, de Bernhard Schlink, e A History of Reading, de Albert Manguel. O vôo termina, e nenhum dos dois foi lido. Justamente, tenho ambos os livros em casa, e não os li. O segundo foi presente de uma amiga querida, há muitos anos, e ele serve ao menos para me fazer pensar nela, quando vejo a lombada.

Geoff Dyer é um escritor que sempre leio com prazer e considero o primeiro livro que dele comprei, Out of Sheer Rage: Wrestling with D.H. Lawrence, publicado em 1997, um marco na literatura contemporânea. Nele, Dyer narra sua tentativa de escrever um estudo sobre D.H. Lawrence, o qual, por procrastinação, nunca consegue concluir ou mesmo começar na forma como planejara. A própria liberdade de tempo para escrever torna-se um empecilho: “I had nothing to keep me from writing my study of Lawrence, and so I never buckled down to it”. Lawrence é aliás um autor que nunca li, embora tenha em casa, desde o final da adolescência, Sons and Lovers e Lady Chatterley’s Lover, ambos esperando pacientemente que eu me dedique a eles.

Dyer procrastina também a releitura dos romances de Lawrence, o que poderia ser necessário para elaborar o estudo sobre o autor: “I thought, why should I? Why should I re-read this book [Women in Love] that I not only had no desire to re-read but which I actively wanted not to re-read“. Parece manifestar preferência pela correspondência e os poemas de Lawrence, mas na hora de viajar para uma temporada de seis semanas em uma ilha grega — onde, naturalmente, não conseguirá escrever nada —  indaga-se se deveria ou não levar uma edição dos poemas completos, que afinal será deixada para trás em Roma. Out of Sheer Rage, porém, consegue ser um comentário bem-sucedido sobre D.H. Lawrence e sua obra, uma reflexão sobre a literatura em geral e também uma autobiografia de Dyer. Alguns dos livros do autor foram traduzidos no Brasil, mas creio que não este, o meu predileto. Dyer expõe, em tom feroz e cômico, seus defeitos, suas antipatias e a intensidade de suas reações às coisas e às pessoas. Em um momento, ganha de presente um livro de ensaios acadêmicos sobre Lawrence, com títulos e temas pretensiosos, como “Alternatives to Logocentrism in D.H. Lawrence”, e queima o livro “in self-defence. It was the book or me because writing like that kills everything it touches“.

O texto de Dyer sobre seu bloqueio como leitor, sendo do ano 2000, pertence já à era digital, mas é anterior ao surgimento e à multiplicação das redes sociais. Estas, com seu oferecimento capcioso e constante de notícias, na maior parte do tempo sem interesse ou utilidade, atrapalham a imersão na leitura. Somos também tentados a aceitar oferta profusa de filmes e séries em nossos computadores. Dyer cita um ensaio do pensador George Steiner, que tenho — e li — intitulado “The Uncommon Reader”, o qual, embora publicado em 1978, portanto antes da era digital, critica “the near-dyslexia of current reading habits“. Steiner indica que já não lemos como nossos antepassados, inclusive pela falta de silêncio e solidão. O silêncio, segundo ele, e nisso concordo plenamente, tornou-se um luxo.

Em “Reader’s Block”, Geoff Dyer conta como, nascido em um ambiente de poucos recursos em uma cidade provinciana, único da família a gostar de ler e não tendo ainda viajado, para ele a leitura era, na juventude, a única forma de acesso a outros mundos. Aos 41 anos, escritor de sucesso, constata: “Reading, which gave me a life, is now just part of that life“.

Há períodos em que sofro de um bloqueio e leio menos do que gostaria. Isso notei, pela primeira vez, aos 15 ou 16 anos, quando lamentei com um amigo estar atravessando uma fase em que, a meu juízo, eu estava lendo pouco. Acabara então de escrever meu primeiro — e até hoje único — romance. Tratava-se de uma história de amor passada entre o Rio de Janeiro e uma fazenda em Minas Gerais, na Zona da Mata, na época do Império. Era, vejo hoje, uma autobiografia, fora o fato de que eu não existia ainda no século XIX. Desencorajado pelo meu pai — ele mesmo escritor — que, com o objetivo de me incentivar foi, para minha sensibilidade adolescente, excessivamente crítico, procrastinei e nunca revisei o romance. “I blame my father”, informa Geoff Dyer, de repente, na página 143 de Out of Sheer Rage, quando não consegue montar um quadro de avisos de cortiça para a cozinha, comprado na IKEA.

Houve, desde a adolescência, outros períodos em que acusei a mim mesmo por não estar lendo o suficiente. Olho para as minhas estantes, suspiro e penso comigo mesmo: “Não tenho interesse por nenhum desses livros. Nenhum deles é o livro que quero ler”. O bloqueio de leitor é algo insuportável. Falta algo na vida, e não sei como preencher o vazio.

Naturalmente, coloca-se a questão do que seria “ler o suficiente”. Estou ciente de que não poderei nunca ler tudo o que espero. Sei também que nem sequer os 6.000 volumes na biblioteca de casa eu poderei ler. Segundo Steiner, não é um verdadeiro leitor aquele que “has not experienced the reproachful  fascination of the great shelves of unread books, of the libraries at night of which Borges is the fabulist“. A menção ao escritor argentino não poderia ser mais apropriada, já que boa parte da obra de Jorge Luis Borges, grande leitor, é um comentário sobre livros, bibliotecas e outros autores.

Romances curtos às vezes me causam um bloqueio, enquanto que posso ler relativamente rápido livros longuíssimos, totalmente imerso no texto. Guerra e Paz — 1.620 páginas na tradução que prefiro, em francês, por Henri Mongault, editada pela Gallimard na Pléiade — é a leitura mais deliciosa que jamais fiz. Sonho com uma vida em que eu pudesse ininterruptamente ler o romance de Tolstoi e recomeçá-lo em seguida, em um ciclo constante. À la recherche du temps perdu é uma leitura e releitura de toda a vida. Abri o primeiro tomo aos 11 anos, fiquei fascinado, e nunca mais parei. Releio sempre os quatro primeiros tomos. Lembro de frases de cor, cito falas dos personagens, que eu pareço conhecer como figuras do meu cotidiano. Sei onde encontrar meus trechos prediletos, e esses eu releio sem parar. Durante muito tempo, porém, senti não estar maduro para os três últimos tomos. Há alguns anos, eu os li pela primeira vez, e a obra toda ganhou nova dimensão, e a minha vida junto.

Após a morte do romancista canadense Robertson Davies, em 1995, lançou-se uma coletânea de palestras suas sobre literatura e leitura. Nem que fosse apenas pelo seu título — The Merry Heart — seria impossível não ficar indiferente ao livro. Davies dá um conselho simples: se não está gostando do livro, pare de lê-lo; a vida é muito curta para passá-la lendo algo que não desperta seu interesse. Montaigne, em seus Essais, diz o mesmo, no capítulo sobre livros. Afirma querer passar “doucement, et non laborieusement, ce qui me reste de vie“. Por isso, busca na leitura “prazer, por meio de uma diversão honesta”. Se a leitura apresenta alguma dificuldade, ou é tediosa, ele evita angustiar-se a respeito (“je n’en ronge pas mes ongles“) e deixa o volume de lado, ao menos temporariamente.

Robertson Davies considera-se “um leitor irresponsável” (“a rake at reading”). Diz ele: “I have read those things which I ought not to have read, and I have not read those things which I ought to have read“. Como suas leituras deveram muito ao acaso e ao seu faro, Robertson Davies estima que, se vivesse de novo, não leria necessariamente os mesmos livros, pois outros apareceriam frente a ele.

Davies formula percepções que todo leitor contumaz, dentro de si,  sente com relação à leitura. Segundo ele, “books choose us” e “we find, and are found by, the books we need to enlarge and complete us“. Acredita que, mesmo quando nos deixamos guiar pelo acaso em nossas leituras, “The inward spirit, I am convinced,  knew very well what it was doing“. Essa frase lembra um comentário de Borges: “Un libro es una cosa entre las cosas, un volumen perdido entre los volúmenes que pueblan el indiferente universo, hasta que da con su lector, con el hombre destinado a sus símbolos. Ocurre entonces la emoción singular llamada belleza”.

Pesquisando na minha biblioteca, vejo que muitos escritores se detiveram sobre o que significa ler. Parece ser um tema recorrente. Talvez isso seja natural, já que um autor superlativo foi, em algum momento ao menos, também um leitor atento.

Italo Calvino publicou em uma revista italiana de notícias, em 1981, artigo incentivando os italianos a ler os clássicos — texto hoje conhecido como Perché leggere i classici — mas é no “romance” Se una notte d’inverno un viaggiatore que ele analisa em detalhe o que é ler e escrever um livro. O personagem principal, Leitor, começa a ler dez romances, que nunca chega a acabar, porque as cópias são todas defeituosas ou incompletas. No início da obra, Calvino dá as várias razões — pouco menos de vinte — pelas quais livros não são comprados ou lidos. No final, Leitor conversa em uma biblioteca pública com outros leitores sobre como encaram a leitura. O “quarto leitor” diz exatamente o que eu mesmo penso: “cada novo livro que leio passa a ser parte do livro global e unitário que é a soma de todas as minhas leituras”.

Em 1905, Proust publicou, com o título de “Sur la lecture, um texto encantador. Redigido para servir de prefácio à sua tradução de um livro de John Ruskin, “Sur la lecture (conhecido depois como “Journées de lecture) inicia-se com a descrição de Proust, criança, em sua atividade como leitor durante o verão na casa dos tios, que podemos ainda hoje visitar em Illiers-Combray. A primeira frase diz que os dias da infância passados com um livro predileto são os que foram vividos mais intensamente. Isso já dá o tom. As atividades que o obrigam a parar de ler — almoço, jantar, passeios com a família — parecem longas. Em algum momento, porém, a leitura do livro termina. Proust descreve a saudade dos personagens que aí surge. “Então, é isso? […] Esses seres aos quais tínhamos dado mais de nossa atenção e de nosso carinho do que às pessoas da vida real […] nunca mais as veríamos, nunca mais saberíamos nada delas”.

Várias páginas depois, Proust afirma ser a leitura “uma amizade sincera”, da qual não fazem parte as “mentiras” necessárias nas relações com as outras pessoas. O texto termina com a observação de que escritores frequentemente preferem ler os clássicos, e não seus contemporâneos. Como leitor, tenho a mesma predileção e, se não li alguns dos livros nas minhas prateleiras, às vezes é simplesmente porque eles são ainda muito recentes. Os clássicos, nos diz Proust, “contêm todas as belas formas de linguagem abolidas, que guardam a lembrança de usos ou formas de sentir que já não existem”. E aqui, Borges pode nos ajudar a completar o pensamento proustiano. Em palestra que deu na Universidade de Belgrano em 1978, ele declarou: “Cada vez que leemos un libro, el libro ha cambiado, la connotación de las palabras es otra. Además, los libros están cargados de pasado […] Hamlet no es exactamente el Hamlet que Shakespeare concibió a principios del siglo XVII […] Hamlet ha sido renacido […] Los lectores han ido enriqueciendo el libro […] Si leemos un libro antiguo es como si leyéramos todo el tiempo que ha transcurrido desde el día en que fue escrito y nosotros“.

Em Les Rêveries du promeneur solitaire, redigidas em seus dois últimos anos de vida, Rousseau inicia o “quarto passeio” dizendo: “Dentre os poucos Livros que ainda leio às vezes, Plutarco é aquele que me prende e me traz mais benefícios. Foi a primeira leitura da minha infância, será a última da minha velhice”. Rousseau sofria de misantropia e mania persecutória. Cabe lembrar que o “primeiro passeio” inicia-se com a célebre frase: “Estou, assim, sozinho na Terra, não tendo outro irmão, próximo, amigo, sociedade além de mim mesmo. O mais sociável e mais amoroso dos homens dela foi proscrito por uma decisão unânime”. É fascinante, por isso, ver o filósofo, na velhice, voltar à leitura predileta dos seus primeiros anos como leitor, como se estivesse preservando uma amizade.

Tolstoi fugiu de casa abruptamente, em estado de agitação mental, aos 82 anos, na madrugada do dia 28 de outubro de 1910. Na noite do mesmo dia, escreve carta, de uma estação de trem, à sua filha Alexandra, pedindo que lhe enviasse, ou se viesse vê-lo trouxesse com ela, os seguintes livros, que estivera lendo antes de fugir: os Essais de Montaigne, Os Irmãos Karamazov, o romance Une Vie, de Maupassant, e o livro espiritual de um autor russo, P.P. Nikolayev. Tolstoi morreria em 7 de novembro, em outra estação de trem, Astapovo. É comovente a necessidade que sentiu, na reta final, de ter consigo os livros que estava lendo.

Tanto no seu ensaio “Reader’s Block” como em Out of Sheer Rage, Geoff Dyer parece apontar para o fato de que, à medida que envelhecemos, lemos menos, inclusive pela razão que ele dá, de que a leitura deixa de ser a vida, e passa a fazer parte da vida. Outro escritor britânico, Alan Bennett, em um romance cômico de 2007 e intitulado, como o ensaio de George Steiner, The Uncommon Reader, apresenta o oposto: um personagem que nunca leu e, de repente, na idade madura, vira um leitor obstinado e maníaco. Esse personagem é, nada mais, nada menos, do que Elizabeth II. Sim, ela própria. Bennett, em um dos livros mais engraçados que já li, imagina que a Rainha da Inglaterra, pouco a pouco, vira uma ávida leitora e passa a ler tudo, romances, poesia, biografias, peças de teatro. Em um jantar de gala que oferece ao Presidente da França no castelo de Windsor, a rainha decide conversar sobre Jean Genet, para constrangimento de seu hóspede, que nunca leu o autor. Ao passar a ser uma grande leitora, única entre seus conhecidos, a rainha causa problemas. Como comenta seu secretário particular, ler é uma atividade excludente, pois embora todos saibam ler, ninguém na verdade lê.

Pouco a pouco, Elizabeth II volta a ler menos. A leitura já não é uma necessidade. Agora, sente que precisa escrever. De início, o primeiro-ministro se anima: um livro popular, indolor sobre a juventude da rainha, a Segunda Guerra Mundial, seu casamento, um bestseller. Logo vem o temor, ao perceber que não é isso. A rainha tem em mente “something more radical. More… challenging“. Na verdade, inspira-se em Proust e deseja emular o Narrador de La Recherche, que “looks back on a life that hasn’t really amounted to much and resolves to redeem it by writing the novel, which we have just in fact read“.

Esta, afinal, é a mensagem de todo escritor: a de que escrever é a verdadeira vida, é o que permite processar, por em ordem as experiências atravessadas, que incluem, também, as leituras feitas. O bloqueio do leitor, assim, pode ser sintoma de que é chegado o momento de escrever.

(Este ensaio foi primeiro publicado na edição de junho do jornal literário Rascunho)

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O Embrulho Vermelho

O Embrulho Vermelho

Em 27 de maio, minha mãe fez 80 anos. Como a data caía no domingo, pude comemorar com ela no Rio de Janeiro, e estar também com minha irmã, que viera de Lisboa, onde mora.

Alguns amigos passaram em casa no final da tarde para cumprimentar a aniversariante. Como a greve dos caminhoneiros, a falta de gasolina nos postos e o desabastecimento nos mercados da cidade estavam no auge, a chegada de um determinado presente de aniversário causou grande impacto:

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Na foto, aparecem minha mãe, minha sobrinha e os dois amigos que trouxeram o presente. Vindo diretamente de Petrópolis para dar os parabéns, Chicô Gouvea e Paulo Reis consideraram que nada seria tão marcante quanto aquilo que não se encontrava no mercado: verduras frescas.

Nesta outra foto, registrei Cora Ronai capturando a mesma cena:

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Em seu perfil no Instagram (@cronai), Cora Ronai publicou uma das fotos que tirou, acompanhada do texto: “Minha amiga Thereza Quintella fez 80 anos. Ganhou muitos presentes lindos e carinhosos, mas nenhum fez tanto sucesso quanto a cesta de hortaliças que Chicô e Paulo trouxeram direto da roça”. Isso provocou comentários divertidos, como: “Que saudade de uma alface!”, “No momento, tá melhor que ganhar joias”, “Saudade de uma boa saladinha!”.

Acontece, porém, que minha mãe não foi a única a ganhar presente naquele dia. No café da manhã, olhando o mar e filosofando sobre o Infinito enquanto devorava um croissant, recebi da minha irmã um embrulho vermelho, que ela trouxera de Lisboa:

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Titina é a melhor irmã do mundo. Naturalmente, eu nada levara para ela e nem, aliás, para minha mãe. Decidi compensar demonstrando meus talentos mediúnicos. Alisando o embrulho vermelho, declarei: “É um livro”. Isso era pouco para comover Titina. Que mais poderia ser? Prossegui: “O papel não traz a marca de nenhuma livraria, então sei que não é da Bertrand“. Diante de sua resposta de que ela mesma embrulhara o livro, continuei: “Você comprou na livraria da Rua do Século”. Isso sim a impressionou.

De meu conhecimento, a “livraria na Rua do Século” não usa nome algum. É um sebo, forte nas áreas de história, inclusive do Brasil, e de arte. A primeira vez em que Titina lá me levou, julguei haver uma intenção metafísica no nome da rua, até descobrir que tratava-se, na verdade, de homenagem a um jornal republicano, fundado ainda sob a monarquia. Mais corretamente, o nome é “Rua de O Século”.

A entrada do sebo é simples e sem indicação alguma:

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Dentro, o espaço é congestionado:

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O proprietário é educado e afável e deixa os fregueses à vontade. Consegui retirar um tesouro de uma dessas pilhas, quando lá estive pela última vez, em julho de 2017:

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Nem o ano, nem a encadernação nem a edição em si, aos olhos dos meus quatro leitores, justificariam o uso que fiz acima do termo “tesouro”. Tudo o que diga respeito a Carlos V, porém, me interessa desde a infância. Nascido em Gand, o Imperador preserva memória viva na Bélgica, onde morei pela primeira vez criança. Suas disputas com Francisco I de França são objeto de fascínio para mim. Um dos grandes prazeres, quando comecei a ler À la recherche du temps perdu, aos 11 anos, foi descobrir que o Narrador também divaga sobre a rivalidade entre os dois monarcas. Na primeiríssima página do romance de Proust, o Narrador menciona que, às vezes, acordava pouco depois de ter adormecido, não só pensando no livro que lera antes de dormir mas também sentindo-se ser o próprio tema do livro: “une église, un quatuor, la rivalité de Francois Ier et de Charles Quint“. Em geral, presume-se que a fonte para a observação casual de Proust sobre essa rivalidade tenha sido o livro do historiador François-Auguste Mignet (1796-1884), Rivalité de François 1er et Charles-Quint, publicado em 1875, que comprei e li na adolescência:

Mignet.jpgAlguns se perguntarão por que não coloco aqui foto dos dois volumes onde as patinhas do meu gato não apareçam. Pois direi que, pelo visto, há muito tempo eu vinha querendo falar de Carlos V e de Francisco I, ou da presença de Mignet na vida intelectual de Proust, porque esse nosso gato, James, cujas patas são inconfundíveis, morreu em janeiro de 2018, aos 19 anos. Nasceu em Quito, em 1998, em nossa casa, pois sua mãe também nos pertencia — ou nós a ela. Maior do que vários cachorros, de uma beleza altaneira e  personalidade forte (um de seus apelidos era Arquiduque, outro era Señor Presidente), James não era um amigo fácil. Tinha espírito arredio, era propenso a rosnar e marcava preferência pela minha mulher. Por todas essas qualidades, eu o amava (outro apelido que dávamos a ele era Jaimito de mi corazón). Foi uma boa surpresa para mim, ao procurar a foto no celular para inseri-la neste texto, ver que James nela aparece.

Admito que esta outra foto, tirada pela minha mulher, é de qualidade superior:

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Uma característica importante, para mim, de Mignet é que ele nasceu em Aix-en-Provence; um dos principais colégios da cidade, no coração do bairro de Aix com arquitetura do século XVII, chama-se Collège Mignet:

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Vejamos o que dizem as placas de cada lado da porta:

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Esse liceu, assim, resume um pouco da História da França. Insere-se no Quartier Mazarin, construído no século XVII pelo Arcebispo de Aix, o Cardeal Michel Mazarin, irmão de outro Cardeal bem mais célebre, Jules — ou Giulio, pois nascera na Itália — Primeiro-Ministro da minoridade e da juventude de Luís XIV. No colégio estudaram, juntos, Paul Cézanne e Émile Zola e, mais tarde, Darius Mihaud. Marcel Pagnol lá deu aulas. E o liceu hoje carrega o nome de um historiador famoso em seu tempo, a cuja obra alude Proust. Nunca passo na rue Cardinale sem meditar sobre todas essas associações.

Voltemos porém ao presente que me deu Titina no dia 27 de maio. Abro o embrulho vermelho e vejo este livro:

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Um livro sobre o Barão do Rio-Branco, editado pela José Olympio, só poderia me deixar feliz. A palmeira, característica da Coleção Documentos Brasileiros da editora, também me trouxe boas lembranças, pois na biblioteca de meu pai e de minha mãe existem numerosos volumes dessa coleção, com a inesquecível lombada:

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A palmeira da Coleção Documentos Brasileiros, cujos volumes eram tão presentes lá em casa e são parte da minha infância e juventude, traz recordações felizes de leituras e, portanto, da vida.

Em 2008, a editora Sextante — fundada por Geraldo Jordão Pereira e seus filhos Marcos e Tomás, respectivamente filho e netos do editor José Olympio Pereira — publicou um livro exemplar sobre a editora José Olympio, escrito e organizado pelo também editor José Mario Pereira (o sobrenome é coincidência), dono da Topbooks:

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Geraldo Jordão Pereira morreu em 2008, mesmo ano em que o livro foi editado. Devemos ver José Olympio: O Editor e sua Casa como demonstração de amor filial, dirigida à memória do pai e do avô de Marcos e Tomás da Veiga Pereira. “Este livro”, diz Marcos da Veiga Pereira, “projetado como justa homenagem a meu avô e à editora que criou, agora é também para louvar a memória do grande profissional e companheiro de trabalho que foi Geraldo Jordão Pereira, meu pai”.

O volume é de uma impressionante riqueza factual e iconográfica e ganhou, em 2009, o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, da Academia Brasileira de Letras. As páginas eletrônicas da Topbooks e da ABL replicam artigos onde é saudada a publicação do livro. Ao elogiar a “magistral pesquisa de José Mario Pereira”, Wilson Martins, em matéria no Jornal do Brasil, classifica o livro como “obra-prima de arte tipográfica, documentação historiográfica e preciosa iconografia”.

Quem diria o contrário, ao ver, por exemplo, estas duas páginas:

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O título do elogio de José Nêumanne, publicado em O Estado de São Paulo, já diz tudo: A vida do homem que pôs o Brasil para ler, remetendo ao título do primeiro capítulo do livro, “José Olympio, o civilizador do Brasil”. Dois artigos de membros da Academia Brasileira de Letras chamaram minha atenção. O texto de Ivan Junqueira, no Jornal do Commercio, menciona o “beneditino trabalho de pesquisa literária e editorial” de José Mario Pereira. O texto de Marcos Vilaça, publicado no Diário de Pernambuco, diz: “Na obra publicada pela Sextante a gente encontra do Brasil a política, a história literária, a indústria editorial, a evolução gráfica, a memória fotográfica, um pedaço da trajetória do país no século XX”.

De forma poética, proustiana, Marcos Vilaça diz como foi a experiência de folhear o livro: “Nesse passar e repassar de páginas, minha vida foi se reativando”. A mesma impressão tive eu. Abro José Olympio: O Editor e sua Casa, e ecos da infância e da juventude passam diante de meus olhos. Dinah Silveira de Queiroz, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Herberto Sales e muitos outros, todos amigos de meu pai ou de minha mãe, e que conheci pessoalmente, criança ou adolescente, em graus variados, circulam pelas páginas. Vejo um bilhete de José Guilherme Merquior, temível polemista na visão de alguns mas, no trato comigo, na minha juventude, homem educado, carismático, gentil e atencioso:

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Outros autores que surgem em José Olympio: O Editor e sua Casa, da geração anterior, foram amigos de meu avô materno — o baiano, pois como expliquei em De carro pela Provença, tive dois avós maternos, um baiano e outro mineiro. Muitas das edições ilustradas no livro são as que li, pois eu as encontrava nas bibliotecas de meu pai e de minha mãe. Onde terá ido parar, por exemplo, nosso exemplar de Oito Décadas, o livro de memórias de Carolina Nabuco, que li e reli quando criança, na mesma edição mostrada abaixo? Recentemente, minha filha pediu para lê-lo e não o encontrei nem aqui em casa, nem nas estantes da minha mãe. Estará com Titina em Lisboa? Ou no depósito, no Rio, onde são guardadas caixas de alguns dos  livros que pertenceram ao  meu pai?

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As capas dos livros de Carolina Nabuco e de Rachel Jardim são ambas de autoria de Eugenio Hirsch, nascido na Áustria em 1923, emigrado primeiro para a Argentina, fugindo do nazismo, e depois para o Brasil. Hirsch morreu no Rio de Janeiro em 2001.

Dois dos livros de meu pai — Retrospectiva e Combati o Bom Combate — foram editados pela José Olympio e Eugenio Hirsch foi o responsável pelas capas de ambos:

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A capa de Combati o Bom Combate parece-me particularmente exitosa. O romance — e eu não me lembrava disto, pois tinha 10 anos de idade e morava na Bélgica — é dedicado a mim, sem sentimentalismos, de forma característica do meu pai: “Para Ary Norton de Murat Quintella”. Esta é a sua foto, beirando os 40 anos, usada na edição:

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Ivan Cavalcanti Proença faz uma introdução ao romance onde a questão da passagem do tempo é evocada: “uma libertação e uma transcendência ao que se chama o amargor da irreversibilidade do tempo”. Outra frase sua remete claramente a Proust: “recuperação do tempo perdido”. Isso faz sentido, pois Combati o Bom Combate é uma ficção semi-autobiográfica; reflete a infância, a adolescência e a juventude de meu pai, e vários personagens aparecem com o prenome ou o apelido das pessoas reais que os inspiraram. A ideia do tempo é retomada por Nélida Piñon, na contracapa: “um panorama profundamente nostálgico de uma geração que já não se ilude com ‘o bom combate’ “.

Quanto a Retrospectiva, sua edição seguinte deu-se em outra editora, mas a capa continuou sendo de Eugenio Hirsch. Se, na edição da José Olympio, vemos Ary Quintella bebendo um copo de uísque, na segunda ele fuma — eram quatro maços por dia e ele morreria de câncer aos 66 anos:

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Meu pai trabalhou, por creio um curto tempo, com José Olympio na editora. Penso não ter jamais visto o mítico editor. Conheci porém, criança, na Bélgica, durante viagem que por lá fizeram, Geraldo Jordão Pereira e sua mulher, Regina. A primeira edição de Retrospectiva, na José Olympio, traz duas dedicatórias, a mais longa delas com ecos de Baudelaire e Lautréamont:

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Vejo que o exemplar que tenho em casa pertenceu a meu irmão, pois nele meu pai colou o seguinte bilhete:

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Alfredo morreu aos 16 anos, então não saberei nunca se chegou a ler o livro, que recebeu aos 8 anos.

Como mencionei em  Edla van Steen, estória sobre a amizade, a correspondência recebida por meu pai, inclusive a enviada por mim, foi em grande parte doada por ele, ainda em vida, à Fundação Casa de Rui Barbosa. No entanto, mexendo recentemente em velhos papéis, minha mãe encontrou o seguinte bilhete de Geraldo Jordão Pereira para meu pai, de pêsames pela morte do meu irmão:

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O texto foi escrito três dias depois da morte de Alfredo, em uma hora em que muitos terão preferido se omitir. Não creio ser indiscreto ao publicá-lo aqui, e sim estar homenageando o sentido de humanidade de Geraldo Jordão Pereira.

O leitor que chegou até aqui talvez tenha notado, acima, no topo da página em que está a dedicatória a Regina Pereira, menção a “Eugen Alois Hirsch: que já trabalhava com meu pai, mui grato”. Essa frase de meu pai me surpreendeu. Olhei alguns exemplares que tenho em casa de livros do pai dele, meu avô, o matemático, também Ary Quintella, que eram publicados pela Companhia Editora Nacional. Algumas capas aparecem como sendo de “Hugo Ribeiro (arquiteto)”, por exemplo estas, minhas prediletas:

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Em algum momento, porém, as capas dos livros de meu avô começaram, de fato, a ser desenhadas por Eugenio Hirsch. Os exemplares que tenho em casa estão já desbotados, perderam as cores e, possivelmente, não fazem justiça à aparência original:

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Eugenio Hirsch parece ter sido um designer revolucionário. Encontrei na Internet, sem grande esforço, além de vários textos que tratam especificamente de seu trabalho, três ou quatro teses e dissertações, relativas a diversos temas — a matemática, a prática editorial em livros didáticos, a história do design no Brasil etc… —  onde são estudadas suas capas para os livros de meu avô.

Situado, em termos geracionais, entre meu avô e meu pai, e tendo sobrevivido a ambos, Eugenio Hirsch associou seu talento a dois Ary Quintella, que publicaram com o mesmo nome, em décadas diferentes, em editoras diferentes, obras de finalidades diferentes — uma, de matemática, outra, de literatura.

E foi assim que um gesto simples, o de abrir o embrulho vermelho, me fez simultaneamente abolir e recuperar o tempo. O presente de minha irmã trouxe de volta, com a encantadora palmeira da José Olympio, os melhores momentos da minha juventude. Proust teria aprovado.

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O julgamento de Julien Sorel

Dos 6 aos 11 anos de idade, morei em Rhode-St.-Genèse. Nosso bairro era exclusivamente residencial, só com casas, sem edifícios; a rua era curta e uma das pontas desembocava em uma fazenda onde, no verão, vacas pastavam. Os invernos eram passados debaixo de neve, em um silêncio absoluto, quebrado pela madeira queimando na lareira e pela alegria com que meus irmãos e eu descíamos uma ladeira de trenó. Éramos livres e felizes. Nessas condições, como não acreditar em Papai Noel? E assim foi, até os meus 7 anos. Isso faz de mim um retardatário, segundo artigo publicado por Sérgio Augusto, onde ele supõe que a maioria das crianças perde essa ilusão até os 6 anos de idade.

Uma amiga que morava em Paris, um ano mais velha, ao nos visitar na Bélgica me fez a revelação. Fiquei incrédulo. Perguntei: “Mas, e os presentes? Como aparecem na árvore?” E veio a resposta, implacável: “São teus pais que colocam lá”. No Natal seguinte, meus irmãos e eu fizemos o teste: esperamos acordados e escondidos na sala e pegamos nossos pais em flagrante. Terá sido um choque? Em todo caso, sobrevivi para contar a história.

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Acima, meus irmãos e eu saindo do Museu de Cera no campo de batalha de Waterloo. Tenho 7 anos, meu irmão 6, minha irmã fará 4 em dois meses. Atrás de mim, a amiga que logo me revelará a verdade sobre Papai Noel. Nós nos damos até hoje, as duas famílias são próximas. Possuo inúmeros amigos ainda dessa época.

O diálogo voltou à minha memória há poucos dias quando, por coincidência, abri pela primeira vez um livro de Paul Veyne pelo qual sempre tivera curiosidade, Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes? (traduzido no Brasil pela Editora UNESP com o título Os gregos acreditavam em seus mitos?). A primeiríssima frase é a seguinte indagação (a tradução é minha): “Como podemos acreditar pela metade ou acreditar em coisas contraditórias? As crianças acreditam ao mesmo tempo que Papai Noel traz os presentes pela chaminé e que esses mesmos presentes são colocados pelos seus pais; e então, será que acreditam realmente em Papai Noel? Sim”. 

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Papai Noel, a meu ver, é uma parábola da amizade perfeita. Na visão infantil, uma vez por ano, no momento mais mágico, que é o Natal e a celebração do fim de um ciclo de doze meses, aparece um velhinho boníssimo, que vem apenas para trazer presentes e nada nos pede, a não ser que nos comportemos bem. Como resquício da fantasia da infância, dezembro é o mês da amizade. É quando mais jantamos, almoçamos e confraternizamos com amigos e colegas. É quando mais estamos em paz com o mundo e procuramos eliminar rusgas surgidas durante o ano. É quando a vida parece mais cheia de promessa e quando se sente alegria no ar. Como nasci em janeiro, para mim o sentimento natalino se prolonga por várias semanas além do Ano Novo.

Em 1982, o então presidente da França François Mitterrand dizia em uma entrevista serem seus principais amigos os antigos companheiros, como ele prisioneiros de guerra. Perguntado sobre se a vida política não seria un lieu maudit para toda forma de amizade, declarou — o que tomo com ceticismo — nunca ter sido traído ou abandonado por correligionários: “Il n’y a personne dont je puisse dire :’Comment a-t-il pu me faire cela et se séparer de moi?‘”.

Ao mesmo tempo, Mitterrand afirmava ser impossível formar amizades verdadeiras na vida pública: “Dans la vie politique, on ne se fait pas, on ne crée pas de véritables amitiés. On a quelques bons compagnons“. Nisso, a “esfinge” do Palais de l’Elysée lembra Cícero, que em seu Diálogo sobre a Amizade, declara: “Muito dificilmente encontraremos amigos verdadeiros entre os homens que se ocupam dos negócios públicos ou que procuram honras. Onde está o homem que prefere, à sua, a elevação de um amigo?”. Ainda que pertinente, a pergunta revela uma das contradições do texto de Cícero, que usa como exemplo de amizade perfeita a ligação entre Lélio e Cipião; ambos, porém, haviam sido homens públicos.

Esse não é o trecho que me interessa mais na entrevista de Mitterrand, que li anos após sua publicação, quando eu era muito jovem. Então como agora, parto do princípio, que considero salutar, de que todo mundo é meu amigo, até prova em contrário — algum cínico dirá que essa é uma maneira de seguir acreditando em Papai Noel.

A parte para mim mais estimulante das declarações de Mitterrand aparece no final, quando é perguntado se a amizade com figuras de ficção é possível. Descobre-se aí que ele — como eu — se identificava com personagens de Stendhal e com os de Guerra e Paz.

Stendhal foi um grande amigo da minha juventude. Ficava eu até de madrugada lendo seus livros, na mesma época, em Londres, em que idolatrava Beethoven. Quando ia a Paris, visitava seu túmulo no cemitério de Montmartre e nunca deixava de me impressionar com o epitáfio, escolhido por ele próprio: “Arrigo Beyle Milanese Scrisse Amò Visse”, Henri Beyle tendo sido o verdadeiro nome do escritor. O “Milanese” é uma declaração de amor à Itália, já que Stendhal nasceu em Grenoble. Quanto à frase: “escreveu, amou, viveu”, que mais belo resumo poderia haver de uma vida humana?

Quando viajei à Itália pela primeira vez, aos 20 anos, para passar dois meses em Florença estudando italiano, levei comigo para me preparar, além do Guide Michelin, três livros: o Dictionary of Subjects & Symbols in Art, de James Hall, a que já me referi ao escrever sobre o Museu de Arte Islâmica de Doha; o Viagem Italiana de Goethe, em uma tradução para o inglês; e o livro de contos e novelas de Stendhal extraídos ou inspirados de velhos manuscritos italianos, Chroniques italiennes, de que gosto mais hoje do que da primeira vez em que o li, em viagens de trem, nos fins de semana, por todo canto da Itália. Embora, na época, esse não fosse um livro de predileção para mim, parecia-me natural que Stendhal, o mais fervoroso admirador da Itália que já existiu, me servisse de guia sobre como entender os italianos. Até hoje, quando vou a Roma, gosto de andar pelo bairro onde moraram os Cenci, porque o drama vivido por essa família, e particularmente pela bela Beatrice, é o tema de uma das novelas na coletânea de Stendhal.

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Acima, os mesmíssimos três amigos que me acompanharam em minha primeira viagem à Itália, há tantos anos. A capa do livro de James Hall representa um quadro de Rubens, O Rapto das Filhas de Leucipo, que pode ser visto na Antiga Pinacoteca em Munique. O famoso quadro retratando Goethe na Campanha romana é de Johann Tischbein e fica pendurado no Städel Museum em Frankfurt. Existe uma cópia no Museu Goethe, na casa do escritor na mesma cidade, um dos lugares mais comoventes que conheço. A capa do livro de Stendhal, sensual mas não muito bonita artisticamente, é uma ilustração referente a uma das novelas, L’Abbesse de Castro. Poderia servir para representar uma das aventuras mais célebres nas Memórias de Casanova, seu romance com a freira M.M., personagem até hoje não identificada de forma definitiva. Na verdade, o erotismo ou a capacidade de amar de religiosas já fora tratado desde pelo menos o século XIV, com Boccaccio, e passara pelas Lettres de la religieuse portugaise, aparentemente uma ficção escrita por Guilleragues e publicada em 1669 e que Stendhal conhecia.

Na adolescência, meu romance predileto de Stendhal era La Chartreuse de Parme. Hoje, é Le Rouge et le Noir. Considero Julien Sorel um herói bem mais satisfatório para os nossos tempos do que Fabrice del Dongo. Ou talvez seja uma questão de idade. Um adolescente pode se sentir próximo de Fabrice, marquês nascido em berço de ouro mas que se permite ser idealista na juventude, gradualmente vai se tornando ambicioso e vive seu grande amor na prisão, supra-sumo do espírito romântico. Em minha releitura mais recente da Chartreuse, Fabrice me pareceu insuportável de vacuidade e arrogância. Já Julien, desde sempre movido pela ambição, vive dois grandes amores, é razoavelmente inescrupuloso mas, ao mesmo tempo, mostra-se romanesco, sedutor, capaz de afeição e curioso pela vida e põe tudo a perder quando parece prestes a chegar ao ápice do sucesso. A prisão o redime, tal qual um Raskolnikov avant la lettre, e terminamos a leitura do romance, quando adultos, admirando o personagem. Os contemporâneos de Stendhal foram severos com Julien, considerando-o o cúmulo da hipocrisia. Com a distância, vemos que seu arrivismo, intolerável para a sociedade burguesa do século XIX, explica a rejeição de que foi vítima naquela época, pelos críticos e pelo próprio universo do romance.

O julgamento e a execução de Julien Sorel antecipam os de Meursault em L’Étranger. O personagem de Albert Camus é tão vítima do preconceito despertado pela sua personalidade quanto o de Stendhal. Os dois aceitam o fim calmamente.

O célebre ator francês Gérard Philipe, morto em novembro de 1959 aos 37 anos, interpretou no cinema Fabrice em 1947 e Julien em 1954. Em 1945, ele se destacara criando o papel principal na peça Caligula, de Camus. Em 1954, tinha 32 anos e podia ser visto como um pouco velho para o papel de Julien, mas sua interpretação o consagrou, e na minha lembrança — tenho os dois filmes em casa — está mais convincente como o herói de Le Rouge et le Noir do que como Fabrice sete anos antes. Suponho que, para muitos franceses, até hoje, a percepção sobre os dois personagens de Stendhal seja transmitida pela atuação e pelo rosto de Gérard Philipe:

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Acima, o ator intermediando nossa apreensão sobre Julien Sorel, na companhia de Danielle Darrieux como madame de Rênal. Julien está aprendendo que, se dormir com a mulher de seu empregador pode ser uma boa forma de subir na vida, a atividade não é sem riscos. Eles se amam e ela será, por isso, no final do romance, depois de muitas e muitas aventuras, o meio para sua perda mas, também, para sua redenção. A caminho da guilhotina, Julien se comporta bem, nos informa Stendhal por meio de uma das mais belas frases da literatura, em qualquer idioma: “Tout se passa simplement, convenablement, et de sa part sans aucune affectation” (“Tudo transcorreu de forma simples e decorosa e, de sua parte, sem afetação alguma”). Nunca leio essa frase sem parar para meditar a respeito.

Se Stendhal foi um grande amigo na minha adolescência e juventude, outros escritores me acompanham em diferentes momentos. Tolstói tem sido um amigo na idade adulta e penso nele frequentemente. Henry James, em torno aos meus vinte e poucos anos, esteve sempre a meu lado. Hoje, raramente recorro a ele. Casanova é uma leitura frequente, desde que eu era adolescente; por seu intermédio, aprendi muito sobre o século XVIII. Racine, na primeira edição da Pléiade de suas peças, ficou anos sobre a minha mesa de cabeceira e eu nunca o abandonaria. O mesmo posso dizer de Saint-Simon — o memorialista, não o filósofo; ou melhor, o filósofo de Versalhes, e não o socialista. Shakespeare e outros dramaturgos elisabetanos e jacobitas estão sempre presentes.

Machado de Assis é um amigo caprichoso: some e reaparece. Anda sumido do meu cotidiano, mas começo a sentir saudades e é possível que uma nova fase de adoração machadiana esteja prestes a ter início. Machado e seu cunhado foram amigos de meu trisavô, Francisco José Corrêa Quintella, um homem aparentemente de bem com a vida, a quem o escritor dedicou um pequeno, leve e elegante poema:

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Por outro lado, o sobrinho predileto desse meu trisavô, o poeta e acadêmico Luís Murat, antagonizava o escritor e nessa qualidade aparece no livro de Josué Montello, Os Inimigos de Machado de Assis, nos capítulos “A agressão dentro da própria Academia” e “Luís Murat contra Machado de Assis”. Josué Montello — grande amigo de meu pai, que conheci pessoalmente e com quem eu teria gostado de discutir hoje estes assuntos — é severo com Luís Murat, atribuindo a um virulento artigo seu o suicídio de Raul Pompeia. Montello fala pouco sobre a oposição de Murat a Floriano Peixoto e seu papel, corajoso, na Revolta da Armada.

Tempos distantes, em que textos de um adversário podiam levar ao suicídio, refletindo o elevado poder da escrita. Conheço outro exemplo em que um autor se vangloriou de ter promovido uma morte, no caso a de Gabriel García Moreno, Presidente conservador e ultramontano do Equador, assassinado em 1875 ao sair de missa na Catedral. O escritor e polemista liberal Juan Montalvo, que vituperava contra García Moreno, proclamou, com orgulho: “Mi pluma lo mató”. Em termos estéticos, a frase é sublime. García Moreno dá nome a uma rua em São Conrado, em frente da qual passo cotidianamente, quando estou no Rio, e me surpreendo sempre de que um dos Presidentes mais controvertidos do Equador tenha recebido essa homenagem dos cariocas. Inversamente, textos de Cícero, que se julgava especialista em amizade, causaram sua própria morte, a mando de Marco Antônio, que se sentira por eles ofendido, e com a conivência daquele que logo se faria chamar de Augusto.

Para os leitores sedentos por bastidores de brigas entre escritores, recomendo este livro, que focaliza o meio literário francês, do século XIX ao início do século XX:

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A originalidade dos livros de Josué Montello e de Anne Boquel e Étienne Kern está no fato de que, em geral, é mais fácil encontrarmos publicações reveladoras de amizade – e não inimizade – entre escritores. Apesar das rivalidades entre artistas, é bem mais prazeroso ler sobre o bom entendimento entre eles. São inúmeras as coletâneas de cartas entre literatos. Acaba de chegar às minhas mãos, por exemplo, a correspondência entre Albert Camus e o poeta René Char, publicada em 2007:

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A primeira frase do prefácio, assinado por Franck Planeille, indaga se artistas podem ser amigos fraternais: “La fraternité est-elle possible entre les créateurs?” Lendo as cartas de Camus e Char, vemos que a resposta é afirmativa. A amizade entre os dois terminou com a morte de Camus aos 46 anos, em 4 de janeiro de 1960, dois anos depois de receber o Prêmio Nobel de Literatura. Eles haviam se visto poucos dias antes, pois a casa de campo de Camus na Provence, de onde ele voltava de carro ao morrer, era relativamente perto da de Char. O livro não é espesso, porque os dois se viam constantemente e, inclusive, moraram no mesmo prédio em Paris. Não havia necessidade de uma troca epistolar constante. As primeiras cartas mútuas, em março de 1946, começam com o formal “Cher monsieur”. Em 1947, elas são iniciadas com “Cher Albert Camus” e “Cher René Char”. Em 1948, chegamos ao “Mon cher ami” mútuo. Em 1949, temos “Mon cher Albert” e “Mon cher René”, fórmula mantida até o final. Muito rapidamente, as cartas passam a terminar com “fraternellement”, “affectueusement” e mesmo “À vous, de tout coeur” (carta de Camus de 1954). A última de Char, em dezembro de 1959, portanto poucos dias antes da morte de seu interlocutor, termina com “De tout coeur à vous toujours”, o que é um pouco triste, à luz do que aconteceria poucos dias depois.

Esse “vous” é justamente o lado mais intrigante da correspondência entre os dois. Apesar da intimidade, nunca passaram, ao menos por escrito, ao mais familiar “tu”. Cada um apoiava a atividade intelectual do outro e prestava apoio emocional. Em janeiro de 1954, Camus estava retraído, cuidando da mulher, vítima de depressão. Escreve a Char (as traduções são minhas): “Que sorte tê-lo conhecido há já tantos anos e que a amizade tenha entre nós tomado esta força que transpõe a ausência”. Char responde: “Você deve saber que sou seu amigo, seu parceiro, que você pode recorrer a mim a qualquer momento, que deve fazê-lo. Estar ligados no invisível não é suficiente” (“être liés dans l’invisible n’est pas suffisant”).

René Char parece ter tido o dom da amizade. Li cartas suas a outros correspondentes onde o tom era igualmente afetuoso. Com eles, utilizava o “tu”. A opção pela manutenção do pronome formal terá sido de Camus? A correspondência entre os dois lembra a de Flaubert e Turgueniev, onde a afeição e a admiração profissional também são fortes, ao contrário da relação conturbada entre Turgueniev e Dostoiévski.

Meu amigo literário mais constante é Proust. Como já tive ocasião de mencionar neste blog, comecei a lê-lo aos 11 anos de idade e nunca mais parei. Proust, nesse sentido, é o meu amigo, no campo das letras, mais antigo e a quem mais sou fiel. Ler a seu respeito é outro prazer constante. A bibliografia sobre Proust é tão extensa que virou uma indústria por si. Possuo uma prateleira inteira de livros sobre sua vida e sua obra, inclusive um intitulado Proust et ses amis, editado por Jean-Yves Tadié, seu biógrafo:

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Qual dos volumes de À la recherche du temps perdu e que personagens eu prefiro? Depende do momento ou das circunstâncias. Para os leitores mais jovens, Un amour de Swann e os volumes onde os Guermantes têm presença marcante são irresistíveis. Para os leitores mais maduros, os últimos tomos surpreendem ao trazer novas percepções sobre a psicologia dos personagens, que já pensávamos conhecer bem. A amizade – e as alegrias ou decepções que pode causar – é aliás um dos temas do romance.  Basta citar como exemplo a interação do Narrador com Saint-Loup, às vezes descrita pelo primeiro como verdadeira amizade (uma noite em que jantam juntos é classificada pelo Narrador como “le soir de l’amitié”), às vezes mencionada por ele como uma relação superficial (“…embora eu não acreditasse na amizade e nem que tivesse jamais sentido amizade verdadeira por Robert…”). Ao leitor de Proust, não resta dúvida sobre a afeição entre os dois personagens. A oscilação do Narrador sobre como julgar a amizade parece ter sido característica do próprio Proust, que podia ser um excelente amigo mas para quem, de maneira geral, a interação social era um impedimento para que o artista trabalhasse, criasse. Segundo Tadié, “seu livro é seu único amigo, do qual, de nosso lado, nós nos tornamos, no mundo inteiro, os amigos”.

Proust parece ainda mais nosso íntimo, pelo fato de que até a reconstituição de seu quarto podemos visitar, no Musée Carnavalet em Paris, assim como podemos visitar a casa de Tolstói em Moscou:

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Ou pelo menos, podíamos até recentemente, pois o Museu Carnavalet está fechado para obras e voltará a abrir somente no final de 2019. Tirei a foto acima em 2014.

Resumamos os vários círculos possíveis de amizades literárias descartando, neste comentário, a proximidade sempre possível, nos planos real ou virtual, com autores vivos.

Primeiro, escritores mortos, pelo grau de identificação que sentimos com sua vida ou sua obra ou sua personalidade, podem ser nossos amigos. Alguns serão amigos passageiros, outro durarão para sempre. Podemos ler seus textos e formar bibliotecas de análises sobre sua obra. Podemos conhecê-los melhor, talvez, do que nossos amigos do dia-a-dia.

Segundo, formamos amizade com livros específicos. Há aqui dois graus possíveis: de um lado a obra em si, o texto inserido dentro da capa e da contracapa; de outro, o exemplar específico que possuímos e que passa a fazer parte de nossa vida. Hoje, gosto da obra de Stendhal intitulada Chroniques italiennes, mas gosto também do volume que circulou comigo pela Itália. É reconfortante, pensar que ele me acompanhou em minhas viagens de trem e conheceu meus quartos de hotel em Roma, Veneza, Florença, Perugia, Milão e tantos outros lugares, voltou para Londres e, depois, me seguiu a outros países e continua aqui, na minha estante; posso segurá-lo e meditar sobre o tempo, sobre o passado, sobre o presente. As páginas ficaram amareladas mas o volume está em bom estado. Estamos envelhecendo juntos e não há dúvida de que ele durará mais do que eu.

Em terceiro lugar, há a amizade com personagens de ficção. Fui muito amigo de Fabrice del Dongo até os 30 anos. Hoje, descartei essa amizade. Cresci e Fabrice tem agora pouco a me dizer. Já sua tia e admiradora, a duquesa Sanseverina, é hoje uma cúmplice, um caso amoroso em potencial, e justifica minhas releituras de La Chartreuse de Parme. Andrei Bolkonsky e Pierre Bezukov – os quais, como expliquei em meus comentários sobre a versão da BBC para Guerra e Paz, podem ser vistos como duas facetas do mesmo homem – são indubitavelmente meus amigos e continuarão a sê-lo. Os personagens de Dostoiévski às vezes nos parecem estranhamente familiares, mas posso pensar em apenas um de quem eu gostaria de ser amigo. Quando li O Idiota estive certo de que o Príncipe Míchkin – outro papel de Gérard Philipe no cinema, em versão que nunca vi – precisava de alguém como eu como confidente.

Em La Orgia Perpetua, seu estudo sobre Flaubert e Madame Bovary, Mario Vargas Llosa  escreve: “Un puñado de personajes literarios han marcado mi vida de manera más durable  que buena parte de los seres de carne y hueso que he conocido”. Cita como exemplos de amigos literários seus, entre outros, David Copperfield – e Dickens possui o talento, de fato, de compor caracterizações inesquecíveis; David Copperfield é, de muitas formas, o amigo ideal e tenho a sorte de conhecer alguém como ele na vida real – D’Artagnan, outro amigo da minha juventude e… Fabrice del Dongo.

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Em quarto lugar, figuras históricas, com o tempo, se tornam acessíveis a nós de forma subjetiva, como se fossem personagens de ficção. Já tive ocasião de mencionar neste blog meu interesse constante, desde a infância, por Napoleão, despertado pelo fato de que Rhode-St.-Genèse é uma localidade perto de Waterloo e de que visitei inúmeras vezes, ao longo da vida, o campo de batalha, seu panorama, o museu de cera e a livraria cobrindo todo tipo de tema ligado à era napoleônica e subi os 226 degraus do morro do famoso Leão. Seria demais dizer que me considero amigo de Napoleão, inclusive porque não há dúvida sobre seu caráter autoritário e egoísta. Quem quereria ser seu amigo? O fato, porém, é que de tanto ler sobre ele chego a conhecê-lo melhor, em suas várias facetas, do que a muitas pessoas do meu entorno. Uma das minhas aquisições na Livraria Berinjela, este ano, como visto anteriormente, é um exemplar da biografia de Napoleão pelo historiador Jacques Bainville. Esse livro, em geral, é considerado crítico do biografado; pessoalmente, achei-o elogioso. De toda forma, o que li não é uma narrativa imparcial sobre Napoleão, mas sua história e sua personalidade como vistas por Bainville. Fabrice del Dongo, Julien Sorel e o próprio Stendhal eram todos admiradores do Imperador e estão, também, entre os intermediários possíveis para nossa percepção desse homem.

Um exemplo gritante do quanto só podemos ter uma visão “gerenciada”, quase ficcional de personagens históricos são os membros da dinastia julio-claudiana. O que sabemos deles nos chegou, sobretudo, por intermédio de Tácito e Suetônio. Um de meus heróis é Germânico, em quem penso com frequência. Será o pai de Calígula e Agripina e avô de Nero, contudo, o príncipe perfeito, digno de adoração descrito por Tácito? Não seria intenção do historiador romano que seus leitores se afeiçoassem a Germânico, transformado, assim, em personagem de ficção? Há debates entre os estudiosos sobre as motivações de Tácito, mas eu não tenho dúvida de que seu texto foi construído de forma a manipular o leitor favoravelmente. Germânico certamente ganha, na forma como o historiador o apresenta, na comparação com os demais membros da dinastia. Ao morrer antes de reinar, foi-se sem que sua real capacidade tenha sido colocada à prova. Em 2014, fotografei no Louvre – e os museus, a propósito, também podem fazer parte da nossa vida, como ilustra Alexander Sokurov em  Francofonia – o busto do príncipe-herói, para sempre destinado a ter amigos, mesmo 2.000 anos após sua morte, pois assim pretendeu Tácito, que o transformou em um personagem da literatura de mais relevância do que ele tem, hoje, como figura histórica:

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Em quinto lugar, livros e amigos literários podem contribuir a desenvolver relações com pessoas no mundo “real”. Em minha crítica a O Plano de Maggie, mencionei que esse era um filme para “o público que acredita serem os livros objetos – seres? – lúdicos e que avalia terem eles o poder de criar vínculo entre as pessoas”. Os nomes que atribuo a alguns personagens deste blog, como: o amigo leitor de Prousto amigo leitor de Morgenthau, o casal que me deu de presente a edição fac-similar do Alguma Poesia do Drummond mostram que livros e referências bibliográficas são uma boa forma – embora longe de ser a única – de estabelecer diálogo comigo. Postagens surgem porque amigos me deram livros de presente, como foi o caso do Gitanjali de Tagore. Gosto quando alguém me pede livros emprestados, pois essa é uma forma de compartilhar uma visão de mundo.

É possível que a amizade com obras literárias, personagens, escritores já mortos seja uma forma avançada da crença em Papai Noel. Assim como o bom velhinho vinha, eu estava certo, depositar presentes debaixo da árvore, salvarei com meus conselhos Julien Sorel da guilhotina, aprenderei com Gina Sanseverina a sobreviver a intrigas políticas, impedirei Swann de se casar com Odette de Crécy, assimilarei o carisma de Germânico, explicarei ao príncipe Andrei que ele deve perdoar Natasha – algo que nem Pierre Bezukov conseguiu – e direi a Camus que ele não deve entrar no carro de Michel Gallimard e encontrar a morte na estrada; bem melhor voltar a Paris de trem, como planejado, com René Char.

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O título em português dá um sentido levemente diferente do título em inglês (Mountains may depart). O título em francês (Au-delà des montagnes) já dá um terceiro sentido, mais fraco do que os outros dois. Qual dos três sentidos será mais perto do chinês? O enredo justifica os três títulos, dependendo do aspecto que se queira enfatizar.

Jia Zhangke aborda o tema filosófico, a meu ver, mais fascinante de todos: como o ser humano lida com a solidão inerente  a toda vida. Nascemos, vivemos e morremos apenas na companhia de nós mesmos, e se eu fosse o narrador de um filme do Woody Allen, recomendaria agora: “Ame a você mesmo…é muito chato ter de passar a vida inteira com alguém de quem você não gosta”.

Pode-se postular que amamos, fazemos amigos, jantamos fora em grupo e queremos sucesso profissional, em parte, para tentar escapar da solidão. Porém, nem os amores mais profundos, nem as amizades mais verdadeiras, nem a vida social mais intensa, nem a existência mais prestigiada, mais exitosa eliminam totalmente a solidão.

Um amigo, este ano, chamou minha atenção para um artigo de Hans Morgenthau de 1962, bastante surpreendente, intitulado Love and Power, em que o autor equipara a busca por amor e a busca por poder, argumentando serem ambas causadas pela tentativa de fugir da solidão.

Os amores, porém, muitas vezes terminam e os amigos se desentendem (e o poder, em algum momento, termina). Fazemos um esforço de aproximação com outros seres humanos para escapar da solidão, mas frequentemente afastamos de nós essas mesmas pessoas. Fugimos da solidão e a trazemos de volta.

O belo filme de Jia Zhangke é, entre outras coisas — muitos preferem ver no filme uma análise das consequências que o desenvolvimento chinês provoca nas pessoas, mas essa visão não é incompatível com a minha, é apenas uma questão de ênfase  -— uma descrição sobre a solidão a que as pessoas às vezes se condenam. Elas fazem escolhas, ao longo da vida, sem ter como prever as consequências; essas escolhas podem ser equivocadas e aumentar —  em vez de diminuir  — seu grau de solidão.

A frase mais marcante do filme talvez seja: “todo relacionamento humano termina; as pessoas sempre se afastam umas das outras”. A frase não é sempre verdadeira. Amores, amizades e relações profissionais e sociais podem durar a vida inteira, como sei pela minha própria experiência. Toda relação, porém, mesmo a mais indiferente, precisa de esforço constante para ser preservada. Um olhar mau-humorado pode bastar para azedar a relação mais antiga. E Proust nos ensina que todo relacionamento humano varia ao longo dos anos, às vezes mais próximo, às vezes mais distante.

A heroína do filme, em uma comovente interpretação de Zhao Tao, é bela, ética, meiga (sei que o adjetivo soa antiquado, mas é correto, neste contexto) e generosa. Um erro — e é, em qualquer vida, o que pode bastar — a condena, e a vários outros personagens, à solidão. A decisão em questão é perfeitamente natural e parece correta, naquele momento. Suas consequências, porém, afetam negativamente a vida de vários dos personagens principais do filme, e por muitos anos.

A cena final provocou em mim enorme tristeza. Alguns amigos, talvez mais sábios, tiveram percepção diferente: julgaram que a heroína termina feliz, conformada com a sua condição solitária, já que humana.

 

Ficha técnica do filme: imdb

 

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